A Pomba, 2001, Pipocas

Só para lembrar que as revistas A Pomba, 2001 e Pipocas encontram-se (quase que) na íntegra online. Aceitamos ajuda na divulgação: http://apomba.vigna.com.br   As revistas, Eduardo Prado e Elvira Vigna são citados na biografia de Raul Seixas, “Não diga que a canção está perdida“, de Jotabê Medeiros (Todavia,...

Kafkianas, 2018

Elvira Vigna –  Kafkianas, editora Todavia, 2018

– prêmio Biblioteca Nacional 2019, categoria contos

 

Você olha e vê o que não está lá. Porque uma coisa, qualquer coisa, te remete a outra coisa, que não é exatamente aquela que está ali na sua frente.

As palavras, por exemplo. Você lê “porta”, e não as letras p-o-r-t-a. O que te vem à cabeça é o objeto, que você conhece há tanto tempo, e alguém lá atrás te disse que tem esse nome. Desde então, existe um acordo tácito entre você e todas as pessoas que falam a mesma língua que você: toda vez que alguém escrever as letras p-o-r-t-a ou pronunciar o som a elas associado, você pensará no objeto.

Existem, claro, outras formas que as coisas têm de se remeter às outras. O mel que te lembra da cor dos olhos de fulano. O cheiro da comida saindo do forno significa que é hora de comer. Guarda essa palavra: significa.

Mas isso tudo é mais velho do que o mundo. Todos os anúncios que você vê foram feitos por pessoas que sabem disso, mas tem mais. Porque uma das qualidades que nos assegura a sobrevivência como espécie é a de entender como funciona o mundo a nossa volta. Outra qualidade, que talvez seja a mesma que virá a nos destruir, é que nós modificamos o mundo a nossa volta, nos apropriamos dos processos que ocorrem espontaneamente na natureza, como se colocássemos neles a nossa vontade. Criamos novos processos, e tomamos posse de processos criados por outros, numa sucessão infinita.

“Significação” é a forma pela qual as coisas representam outras: o cheiro de comida que diz que é hora do almoço, a palavra que quer dizer uma outra coisa, etc. Tudo aquilo que a gente já falou. E todo processo de significação pressupõe uma interpretação. Então, não basta estar escrito “por favor, não pise na grama”, você precisa entender o que isso significa. Fazemos isso o dia inteiro, todos os dias. Quer dizer, interpretamos coisas.

Se você concordar comigo, nossa interpretação das coisas talvez não seja a única, mas certamente é uma forma importantíssima de nos relacionar com a realidade. E por realidade eu quero dizer “aquilo que está lá”. Tem uma cadeira na sua frente, que nunca estará na sua cabeça: o que estará é a sua interpretação de que é cadeira. Com cadeira é fácil, mas tente fazer esse experimento com um utensílio obscuro de cozinha e você vai vendo que o buraco é mais embaixo. Em outras palavras, focinho de porco não é tomada.

Se você continuar concordando comigo, se alguém conseguisse manipular a sua interpretação das coisas, essa pessoa controlaria muito de você, talvez uma parte importante da sua vida. Imagine que alguém te fizesse acreditar que tudo o que você vê na verdade é desimportante, e o que importa mesmo é uma promessa de coisas que nunca vêm. Ou que tudo o que é bom é ruim, e na verdade o que é ruim é que é bom de verdade.

Você percebe que eu disse “conseguisse”, e eu disse isso porque, de fato, tentam fazer isso o tempo todo.

Te vendem coisas, produtos, marcas, não por aquilo que as coisas são, mas pelo que te fazem acreditar que aquilo fará por você: te tornará atraente, interessante, inteligente. Você será uma pessoa que se socializará melhor com as outras. Te vendem um objeto, mas você compra aceitação, sucesso, afeto.

E isso pode ou não ser um jogo de enganação, depende do quanto você é de fato enganado. E ser enganado tem a ver com muito mais do que comprar o que te vendem ou ouvir o que te digam: tem a ver com acreditar. Tem a ver, de novo, com o que você acha das coisas.

Saindo do domínio das coisas que a gente compra e vende, vamos falar da arte. Claro que arte também se compra e se vende. Não é sagrado. E justamente por não ser, além de comprar e vender, você desfruta da arte. A palavra para isso é fruir. Você, que frui da arte, é o fruidor.

Desde ir ao cinema ver um filme até ir a uma exposição, as coisas funcionam de forma parecida: você aceita um convite, de alguém que te pede pra acreditar em alguma coisa. Só que é um acreditar só por um tempinho, porque você sabe que aquilo tem hora pra acabar, e é bom que seja assim. De certa forma, aquilo tudo vai existir na sua cabeça, por um tempo, e só enquanto você permitir. Talvez você saia diferente dessa experiência, talvez não (e isso também é bom).

Então, da mesma forma, o livro aqui é um convite. E também fala de coisas que não estão lá, e eu não estou mais falando das palavras que significam coisas. Estou falando das histórias, que contam outras histórias, ou então não contam história nenhuma. Os limites entre essas coisas são sempre borrados: que diabos é uma não-história? As imagens também contam histórias? Quando você lê uma história em quadrinhos, a história que você entendeu na sua cabeça é aquela que as imagens contaram ou a que as palavras contaram? Será que existe uma terceira coisa: que não é nem a história das imagens nem a das palavras, mas surge ali, quando você coloca uma perto da outra? E que não surge porque elas se somam, mas porque elas de fato geram uma outra coisa?

Sei lá. Se vocês descobrirem, me respondam, por favor.

Morrendo de rir, minha vida de intelectual

ELVIRA VIGNA: TEXTOS INTEGRAIS DE FICÇÃO, coluna ‘morrendo de rir, minha vida de intelectual’, publicada por um ano na revista ‘pessoa’.

 

 

 

 

Vila Riso, Rio de Janeiro (meados de 2002)
(publicado em outubro/2016 pela revista ‘pessoa’)

Não era meu amigo, o Gerd Borhneim, embora eu gostasse muito dele e, acho, ele de mim. Nos conhecemos em um caminho profissional cruzado e o sorriso dele, sempre meio aéreo por trás daqueles óculos de quem não estava vendo nada, mas enxergando tudo, me encantou.
Em 1998 fiz minha segunda e última exposição individual. Foi na Vila Riso (RJ) e era um experimento com impressão mecânica em grandes dimensões sobreposta à tinta automotiva. Essa tinta, muito rebelde, me fascinou por décadas, até eu começar a desmaiar no ateliê e me dizerem que aquilo era venenoso.
Também venenosa era, pra mim, a convivência com ricos compradores de arte. Então, foi mesmo a última. Chamei o Gerd pra fazer a apresentação e ele, que não fazia essas besteirinhas, topou.
Perdi esse texto. Perdi dois textos nessa época de muitas mudanças (bem, a época permanece). O do Gerd foi um deles.
Acho que fiz bem em perder. Por mim e por ele. Eu ia ficar tentada a seguir em frente, tendo um padrinho desse quilate. E ele não ia gostar de eu brandir o texto dele, uma concessão a uma simpatia mútua, no meio da sua vastíssima, seriíssima bibliografia. Então, uma vez o texto perdido, do Gerd só posso brandir uma lembrança.
A da primeira vez que ele foi na minha casa.
Eu morava na Bambina, a rua citada no meu “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, e o apartamento era o seguinte. A gente tinha comprado ainda na planta. Na verdade, a gente comprou vendo um grande buraco, o das fundações do futuro edifício. Mas atrás tinha um morro e a gente achou que a vista ia ser linda. O apartamento, de último andar, vinha com uma opção já aprovada de construção de um terraço, mas ele mesmo, do jeito como foi entregue, era um dois quartos com uma varandinha em que não cabia uma pessoa, varanda essa que dava pra vila ao lado, pro Dona Marta a médio plano e pro Cristo Redentor, por sorte de perfil, irreconhecível, ao fundo.
Aí o Gerd entra, suspira e vai direto pra vidraça da varandinha. Mantém as mãos nas costas do seu corpanzil, suspira outra vez e diz:
“Nossa, Elvira, que apartamento lindo o seu!”
Ele, com seus óculos grandes e tortos, não tinha visto nada do apartamento. O apartamento, pra ele, era a possibilidade de ver o que havia fora do apartamento. O mundo. Era por essas coisas que eu gostava dele.
Depois passamos um tempo sem nos ver, a não ser por acaso, no meio de um carnaval, ele com o mesmo sorriso aéreo, os mesmo óculos inúteis, olhando um menino que dançava na rua, na frente dele. E que, achava, o tolinho, que Gerd prestava atenção nele, nele pessoalmente, e não no movimento bonito de uma dança genérica.
Gerd queria sair do apartamento em que vivia no Morro da Viúva. Disse que era porque era muito grande. Mas acho que qualquer apartamento iria incomodá-lo, a não ser que oferecesse um não-apartamento, um fora de si, uma possibilidade outra, de si.
Morreu em 2002, pouco antes do meu aniversário. Soube quando quis convidá-lo, dizendo que a gente tomaria uma cerveja e eu daria pra ele meu “Coisas que os homens não entendem”, recém-publicado. E fazia e refazia o convite na minha cabeça, já escutando o riso aberto, solto, aéreo, que ele daria ao escutar o título.
Ah, como eu teria gostado.
O outro texto perdido nessa época era um texto meu, ainda de quando eu escrevia pra criança. Uma peça de teatro chamada “Sem cabeça nem pé” e era inteiramente formada de locuções televisivas de jogos de futebol (que pra mim não fazem nenhum sentido), acompanhadas por músicas feita pelo Roberto. Era um musical, na verdade. As músicas também não tinham sentido. Suas letras eram um acúmulo de provérbios, expressões idiomáticas, bordões populares contendo as palavras “pé” e “cabeça”.
No palco dessa peça que nunca foi montada, dois times de futebol se enfrentavam com grande entusiasmo, mas eram disciplinados pelo apito do juiz que, de minuto em minuto, expulsava um jogador de campo. O palco ia ficando vazio. Acabava só o juiz ali, sozinho, agora em um silêncio total. Um jogador voltava, pé ante pé, atrás dele, pegava a bola que estava num canto e saia de fininho. Aí, em off, se ouvia gritos de alegria de um novo jogo começando.
Era a época da ditadura, fazia sentido o sem sentido das músicas e das locuções sempre forçadamente entusiasmadas.
Esse texto estava datilografado (sim!, ainda!) em laudas com o logotipo do jornalão em que eu tinha trabalhado até um pouco antes. Ainda vi essa pilha cada vez mais amarela, aqui e ali, numa e outra gaveta, até que não vi mais. Deve ter virado pó ou sido jogada fora no meio a outras tralhas em alguma das mudanças.
Ninguém nunca quis encenar essa peça. Nem me pergunto por quê. Não dava mesmo pra ter muita coragem. Entendo o amarelamento geral – não só do papel – e que, aliás, me incluía.
Também o “Vitória Valentina” foi recusado por todo mundo em sua primeira versão, chamada “Dez momentos de paixão” (que eram as dez fantasias eróticas da personagem, mantidas na versão que afinal saiu publicada). Esse texto mereceu comentários de que uma feminista não podia escrever algo açucarado. Sempre me espanto com isso. O engraçado é que, ainda quando era “Dez momentos de paixão”, o texto já vinha com uma integração a imagens. Cada “momento” era acompanhado de uma espécie de “quadrinho”, já adivinhando a forma final, tantos anos depois. “Vitória Valentina” foi recusado por todo mundo, mesmo na sua versão atual.
De todas as covardias dessa época, minhas e dos outros, restou a coragem do Gerd, de botar o nome dele em um texto sobre uma artista desconhecida, que ia expôr fora do circuito nobre das galerias da época, mas que ria pra ele, entendendo perfeitamente bem o que era isso de buscar, sempre, o que está lá longe, lá onde só a vista alcança e às vezes nem isso. Minha exposição que o Gerd apresentou se chamava “Imagens mentirosas”. O nome é porque as imagens tinham o rastro do real das fotos impressas, nos seus poucos traços contrastados em PB e afundados nas cores da tinta automotiva. As cores se expandiam sem se importar com as margens do papel tamanho A2. Como também ele e eu não nos importávemos com o tamanho acanhado de uma varandinha. As cores loucas, jogadas pra mais longe que desse, sendo, tanto quanto o olhar do Gerd, o único real em que se podia acreditar. Assim como as mentiras do dia-a-dia iriam ocupar, de lá pra cá, todo o primeiro plano dos noticiários sobre um “real” que, bem…
Depois, indo para outros apartamentos, sempre tive esse pensamento secreto antes de me mudar. Se o Gerd, entrando na porta, iria gostar. O atual é minúsculo, num edifício muito velho e num lugar central de São Paulo. Mas dá pra uma pracinha e, depois da pracinha, pra um desses vãos entre edifícios que às vezes tem. O sol nasce justamente nesse vão, que se estende bem, bem longe, nos outonos. Hoje escrevo isso antes das seis da manhã e o vão está de cor laranja, o resto do céu preto, os carros na rua ainda com faróis acesos. E fico contente porque o Gerd entrou há poucos minutos, foi para a janela e disse:
“Que apartamento lindo esse seu, Elvira.”
E, como sempre, já penso em me mudar. E fico olhando pra o que não existe. O Gerd deixou comigo o texto sumido e um olhar que não some. Que vê além do que nos dizem e mostram. Dedico esse ‘morrendo’ a ele. É o último. A todos, obrigada, e até o que ainda não existe.

 

 

 

Haddock Lobo com Antônio Carlos (primeiro semestre de 2008)
(publicado em setembro/2016 pela revista ‘pessoa’)

Eu tinha acabado de me mudar pra São Paulo e ainda estava naquela ilusão de que paulista passa na casa da gente. Nem minha prima do edifício ao lado.
“Passa lá em casa.”
Não passou. Até que marquei dia e hora e ela apareceu toda vestida e de salto alto, segurando o biscoitinho do café embrulhado em papel de presente. O resto do povo, nem isso.
Mas na ocasião eu ainda estava iludida.
Aí recebi uma visita e fiquei contentíssima. Ok, era visita carioca, mas, puxa.
Além de ser carioca, também tinha o problema de ser visita-hambúrguer.
Explico:
Uma coisa que eu sempre soube, e nada a ver com São Paulo, é que hambúrgueres são parte integrante da minha vida. Somos uma espécie de carne moída, nós, os que escrevem, desenham, fazem música, minicursos, teatro, coreografia, desenvolvem pensamentos ou ficam olhando fixo pra tudo que não existe. Pra sermos úteis, ou seja, pra essa carne moída virar hambúrguer ou qualquer coisa minimamente vendável, precisamos do resto. E a visita que chegava era desse tipo, pão-alface-maionese.
Nunca fez um texto inteiro, embora tentasse. Mas quem sou eu pra falar de quem tenta. Só de editoras estou na minha terceira, sei que não posso contar comigo pra nada. Nem jantar de quibe comprado na loja aqui embaixo dá muito certo. Muito menos projeto cultural, com plano de comunicação, target, e outras palavras em inglês. Fico me imaginando no telefone com o jornalista:
“Oiii tesão, você recebeu meu release sobre o ‘Putas’, querido?”
A voz arrastada, risinho sedutor, gutural, ênfase em ‘Putas’.
Não, né. Então tenho consciência de que preciso das pessoas pão-alface-maionese e sei que elas precisam de mim, a carne moída. Portanto, um relacionamento com tudo pra dar certo,  esse meu com a moça que me visitava. Só que não.
O problema foi a expectativa de atenção. Ela esperava alta, a  minha era baixa. E não que eu não me esforçasse, porque me esforçava, eu como sempre sem trabalho.
Era do tipo magro que conhece famosos, e andava de cá pra lá em cima dos saltos, citando patrocinadores louquinhos de vontade de ter sua marca associada ao meu trabalho. Ela andava, eu desandava.
De presente, uma saboneteira dourada que levei logo pro banheiro, escondendo envergonhada a antiga, de plástico com furinho, que funcionava bem. Mas é a tal coisa: me deslumbrei. Nunca houve nada dourado em qualquer casa minha e achei que enfim meu destino ia mudar. Agora eu era uma pessoa com saboneteira dourada!
“Víntege.”
“Ahn?”
Víntege, ou seja, coisa de antiquário. Como aliás descobri rapidinho, alguns banhos depois, no recinto que ficava meio úmido mesmo sem banho. Não tinha furinho a víntege, o sabonete melava, o dourado esfarelava.
Mas isso foi depois e, na hora da visita, a moça andando na minha frente, eu ainda tinha esperança de mudar de vida, com dourados que se sucederiam e não só no banheiro, aquela maçaneta, e até mesmo minha jeans, meu deus!, jeans douradas e tudo mudaria!
Então tá.
Eu lá, sentada no sofá, a moça andando de  lá pra cá, fui me distraindo com o brilho do meu futuro. Porque a razão da visita era explicar um projeto. Todo mundo tem projeto, já eu tenho delírio. O dela envolvia o governo do Estado do Rio e viagens. Adoro uma mochila, e quanto mais longe eu e a mochila formos, melhor, então não era que eu não tivesse interesse. Mas, sei lá, vai ver foi o toc, toc dos saltos no chão, os vínteges já virando quarênteges.
Não deu certo, mas por uns minutos achei que ia, porque, de vez em quando, eu balançava a cabeça com grande energia e caprichava uns ahns, ahns de concordância total, onde assino, puxa, que maravilha.
Até que notei a expressão dela de olhar em torno, de onde fica a saída, ó deus, meu hambúrguer caía das alturas, bife virado pro chão.
“Um vinho?”
Sem taça, expliquei, porque eu me mudara há pouco e não fazia a menor ideia de onde estavam as taças. O que não expliquei é que ia ser mesmo difícil achar taças porque nunca tive taças.
Mas ela não queria.
E aí pegou o celular pra chamar amigos, os realmente importantes, a razão de ela ter vindo a São Paulo. E que iam passar de carro pra pegá-la na sua marcha vitoriosa sobre todos os moídos do mundo rumo aos hambúrgueres lindos em caixinhas criadas por designers de alimento (existe, viu), vendidos aos milhares no mundo inteiro.
E ela falando  no celular, só escutei a frase quase final, quase fatal:
“Ok, desço em cinco minutos. Certo. Rua Haddock Lobo. Espera aí.”
Virando a linda cabeça loura bem penteada em minha direção, disse, enquanto tampava o telefone com a mão:
“Haddock com…?”
A sobrancelha exprimiu com perfeição o ponto de interrogação da frase inconclusa e óbvio que era pra eu responder que a esquina da Haddock Lobo, onde ficava meu apartamento da época, era com a Antônio Carlos.
E se eu tivesse feito isso, talvez ainda conseguisse salvar o hambúrguer do dia, uns dourados aqui e ali, minha vida em São Paulo e eu, nesse exato momento, não estaria escrevendo uma coisa chamada “morrendo de rir”, mas outra, chamada “vivendo sem rugas” (ou seja, sem rir). Que pelo menos  me daria algum dinheiro. Quer dizer, não escrevendo, imagine, vlogando um vlog de cosmetologia chamado “vivendo sem rugas”. Taí, quem sabe. Mas me perco. Justamente, outra vez. Igual naquela hora, ela na minha frente ao telefone, esperando eu completar o “Haddock-com-…?”
Não falei que era com a Antônio Carlos. Ó deus, não falei. O que eu disse foi:
“Com Agá.” – ela ficou parada, me olhando. “Haddock com agá.” – repeti.
E com isso deixei claro que: 1) – por mais que eu precisasse de hambúrgueres, nunca, nunquinha, eu ia realmente prestar atenção em pão-alface-maionese; 2) – eu era alguém com grande empatia emocional com letras mudas ou quase. Hambúrguer oferecido na minha frente,  só pensava em agás que estão lá!, estão lá! O que na época não estava claro, mas ficou agora, era que tal empatia era premonitória. Alguns anos depois era eu a virar letra muda ou quase. Eu só, não, toda uma classe de gente que lida com cultura, educação, todos nós hoje letras mudas ou quase. Não é que a gente não exista. Só não somos levados em conta nas políticas públicas atuais que, bem, vou simplificar: não nos levam em conta.
Mas nesse dia distante, a moça parada lá, o telefone na mão por não sei quanto tempo.
Até que: “Bem, foi um prazer, vou esperar lá embaixo.” – e saiu.
E eu fiquei lá, também por não sei quanto tempo, sem trabalho. Na verdade, até hoje.
A saboneteira não sobreviveu à mudança seguinte. As jeans douradas não sobreviveram à visita seguinte da Caró, que rolava de rir só de pensar. E eu estou aqui, ainda, berrando na minha pouca voz:
“Ei, a gente existe, viu. E existiremos, sempre. Em mesóclise pra você entender melhor:
existir-lhe-emos! Nós, os letras mudas ou quase, estamos aqui!!!!!!

 

 

 

 

livintpessoa10

Porto Alegre, 25/10/2012
(publicado em agosto/2016 pela revista pessoa)

Olha, só avisando. Um mau-humor desgraçado. E claro que é culpa do Temer, de quem mais. Pincipalmente, pelo menos. Então escolhi o assunto: vou falar mal de homem em geral e não do Temer, o próprio. A ‘Pessoa’, afinal, é literária e homem é o que mais tem no meio literário. Então aqui estarão literatos (o que exclui o Temer: gente, que versinhos são aqueles!) e, pra completar as mal traçadas, jornalistas e publicitários, um povo que se não é literato é porque não conseguiu. Porque querem, é o que mais querem. Mas sem mudar a cabeça e sem desagradar “clientes”, né. E mais, ahn, deixavê, bem, vou botando aqui, que nem linguiça, opa, nem sei porque me veio essa metáfora, mas agora ela já se impôs: vou botando gente aqui então, como lixo em linguiça, e se entrar quem não é do ramo, paciência, a linguiça (sem trema) lhes serve. Ora, dirão as estrelas, perdi o senso: tá cheio de mulher literata. Verdade. Mas o que eu queria é que a gente não fosse mulher-literata, só literata. E que jornalista desse notícia, só isso. E que publicitário se tocasse, só isso. E que o Temer… Mas sim. Começando. O primeiro.
E é, escrevo muito bem, começo pelo primeiro.
O cara que disse que ser escritor era legal porque pegava muita mulher e riu. Não fiz nada na hora, mas só sei que até hoje ele me olha alguns segundos a mais do que mereço, acho que pra tentar adivinhar se vou reagir imediatamente ou daqui a pouco. Foi daqui a pouco, Sérgio. Gostou?
Em segundo lugar vem o vaidoso do Ary Quintella, a quem tive a distração de editar na minha primeira editora a falir, a Bonde.
(Depois tive mais editoras falindo e mesmo agora, que acabamos de abrir a Uva Limão, acho prudente já botá-la, coitadinha, recém-nascida, na lista, porque não sei não.)
Voltando. Meu deus, como homem é vaidoso. Caceta. Aliás, acho que essa é outra palavra, como a linguiça, que eu não devia usar porque vai fazer com que fiquem mais vaidosos ainda. Nossa, né! Tão, mas tão impressionantes, que até viraram interjeição!
(No Rio, tem o bloco Trema na Lingüiça, fundado por poetas e professores indignados com a reforma ortográfica. Portanto, nada do que você estava pensando.)
Mas sim, onde eu estava? Na caceta. Não, no Ary. Que era desse tamanhinho, o Ary, mas sempre dava um jeito de me olhar de cima. Aí ele fez cara de, sei lá, Bogart? Vanitas, vanitas. Mas não é momento pra filosofia. O Ary. Fez caras, me apresentando o original, a mim, que ele desprezava porque, em ordem: eu era mulher; pior, era a mulher de um amigo dele, com quem eu brigava todos os dias (ou seja, não só não era comível, como era intragável); e obviamente não sabia o que estava fazendo nesses assuntos de homem (literatura). Sendo que no terceiro item ele tinha razão. Não sabia mesmo. Por exemplo: não devia ter editado o livro dele.
Mas, sim, o Ary. Me apresenta o original e faz cara bogartiana enquanto acende um cigarro e o cigarro cai no chão e eu na gargalhada e foi essa nossa história. Claro, depois nos encontramos outras vezes, eu era a editora dele, mas nunca mais deu liga.
O terceiro, deixovê o terceiro. Ah, sim. Claro, Porto Alegre, que dá título a esse “morrendo”. Uma mesa com mais dois, tempo de fala e tema previamente determinados. Eu a única mulher. O mediador olha o relógio, me constranjo e finalizo. Outro componente da mesa começa e diz que não vai aborrecer a audiência. Sai do assunto estabelecido e discorre longamente sobre a etimologia do verbo foder. Depois tinha um jantar. Sempre tem, nunca vou, não fui. Acharam que eu tinha ficado ofendida. Não. Fiquei só muito, muito cansada do mundo. No bar deserto do hotel comi, sozinha, uma omelete com pão e cerveja, e foi a melhor omelete com pão e cerveja da minha vida.
Agora o Josué Montello, na única vez até hoje que editor me convidou pra festa de editora: José Olympio. Fui contentinha. Achei que, agora sim, convidada e tudo, eu estava virando alguma coisa, o quê eu não sabia, mas só podia ser bom.
“E aí, professora, e seus livrinhos, estão vendendo bem?” – disse ele.
Nunca dei uma aula na vida. Tenho o maior respeito por quem dá, mas nunca dei. Na época eu fazia livro de criança, e livro de criança só pode ser coisa de professora, certo? Escritores eram o Josué e os outros ternos que se batiam nas costas uns dos outros. Eu era aquilo que alguns deles inclusive tinham em casa, mulher, e que vinha às vezes com esse apêndice, criança. Em editora, o apêndice supunha livros. Livrinhos. E era isso.
E teve o cara numa recepção do Itamaraty. Sim, fui. É, nunca vou. Sei lá porque fui. Só pode ter sido culpa do Roberto. Mas o caso é que estou lá naquelas mesas redondas em que cabem seis pessoas e já éramos cinco e aí chega esse cara, um editor, como vim a descobrir mais tarde e bota mais tarde nisso. Porque à pergunta inicial de “o que você faz?” o infeliz responde, olhar de cama, voz rouca, mão passando pelo meu braço:
“O que funcionar pra você.”
Soube depois quem era ele mas não qual a sobremesa. Saí arrastando um relutante Roberto que até estava gostando do vinho, e até hoje não sei o que perdi de docinhos.
E teve o lance da UPI, eu a melhor redatora mas sentando perto da porta. Veio um amigo do editor, outro Sérgio, e claro que ganhei um: “vê um cafezinho, querida.”
E teve o Chico, amigo total, irmão. Numa crise braba do jornalismo, uma das muitas, abre vaga na editoria dele.
“Vou chamar o fulano, né, Elvira, ele é homem, tem responsabilidade.”
Sendo que nessa ocasião eu já sustentava minha filha, sozinha.
Acho mesmo que vou dedicar esse “morrendo” ao Chico, que não vai ler porque continuo aqui, labutando, mas ele virou especialista em gastronomia e não lê besteira em revista literária que não paga ninguém porque não dá dinheiro. Aliás, gastronomia é só mais um campo profissional que atrai homem assim que começa a dar dinheiro, ou será o contrário, ao atrair homem começa a dar dinheiro. Ahn, faltou alguma linguiça?
Faltou. Faltou o repórter que queria me entrevistar pra uma revista feminina. Nem vou falar de existir revista feminina. Vou só falar do repórter que é pra vocês não ficarem de saco tão cheio quanto o meu e pararem de ler. Pois o repórter queria uma entrevista sobre as várias fases da vida da mulher e as tais fases eram: juventude, casamento, maternidade e velhice. Perguntei se as fases do homem eram punheta, estupor alcoólico, estupor tout-court e viagra.
Numa mesa em Belo Horizonte propuseram o tema “Literatura e experiência”. Não, nada sobre a transposição estética de experiências de vida. Experiência era eufemismo de velhice. Era sobre escritora velha, esse horror de todos os editores mundo afora. Mulher não pode ficar velha. Também não pode mandar no próprio corpo e, pra ser escritora, precisa sair bem na foto, conhecer seu lugar (o de ‘nicho’) e fazer charminho pra plateia/editor/jornalista. Aliás, mulher também ofende homem se for presidenta da república, né, quer mais o quê.
Tanto no caso da revista como no caso de Belo Horizonte, mandei à merda. Mas de maneira fina porque sou fina. Quase sempre. Só quando não dá mesmo é que não. Mas voltando porque tem mais.
Tem o prêmio em que meu livro foi descrito como de “rara agressividade no gênero” sendo que o gênero era o meu, feminino, e não o do livro, romance. Mas já falei disso.
E tem meu livro novo. Caró é de opinião que, toda vez que eu disser que o título do “Putas” é formado por dois versos heptassilábicos em cadência de redondilha maior, devo acrescentar que a redondilha vem nas opções cromo, couro e aço escovado. Só assim os carinhas da plateia vão prestar atenção no que falo. Não devia ter falado falo.

 

livintpessoa09

Poços de Caldas (férias escolares de julho de 1956)
(publicado em julho/2016 pela revista pessoa)

Em 1956, Juarez Távora, um militar fascistão em ostracismo temporário, pescava sem isca e levei quarenta anos de militância na área cultural pra perceber a abrangência de tal ensinamento.
Hoje também pesco sem isca. Nem sorrio, que é pra ninguém achar que vai ter isca porque não vai.
Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica. Não faço mais sucesso porque:
1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir.
Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância.
Na época em que, aos nove anos de idade, não percebi a relevância do que se passava ao meu lado, eu também pescava.
Hoje, em retrospecto, acho mesmo que nunca cheguei a gostar. Mas havia dados biográficos a me empurrar pra atividade.
O primeiro é que meu pai não queria dar o braço a torcer de que eu, mesmo reta e desengonçada, não era o que lhe haviam prometido. Pois minha mãe tinha dito, nove anos e nove meses antes:
“Quem sabe agora vem um menino.”
Então era isso eu: short largo, camiseta velha, e uma vara, ainda que de bambu.
O segundo dado biográfico também é meio ruim. Eu lá sentada, olhando o nada e com uma vara na mão, até parecia estar fazendo alguma coisa. Sou assim desde pequena, meio parada, meio olhando qualquer coisa que não seja importante. Então, se pusessem uma vara de pescar na minha mão eu ficava mais fácil de ser apresentada:
“Ah, é nossa filha…”, e um risinho nervoso. “Ela adora pescar.”
E pronto. Ninguém precisava explicar que eu era assim mesmo e que todo mundo que nos conhecia já sabia que eu não ia dar em nada. E que paciência, né, toda família tem um. Se pelo menos eu conseguisse casar! Mas isso é o que menos estava garantido, já que eu não era recatada nem ao sentar nem ao falar e, adivinhavam, também não o seria ao transar. Não era do lar, de onde fugia sempre que dava. E quanto ao bela, aí é que a coisa piorava mesmo.
Outra hora volto a esse assunto, das tentativas da minha família pra eu dar certo. Nem foram muitas, mas tendo a me alongar nelas, é um tique nervoso meu. Ok, não resisto: só mais uma. A insistência a respeito do cursinho de datilografia.
“Pelo menos alguma coisa desse lance de ficar escrevendo pelos cantos pode vir a ser útil no futuro.”
Útil sendo igual a ganhar dinheiro, claro, pois a profissa óbvia de mocinhas, casar, esbarrava naquilo que já falei antes e que envolvia perfis mais propícios. Perfis latu e strictu sensu, sendo que o strictu era de fato strictíssimu.
Mas chega. Voltando ao Juarez.
Então eu estava lá e acho que o lá era Poços de Caldas porque lembro de passar umas férias na cidade. Mas não tenho certeza. Palavras sempre tentam puxar a gente como comboio atrás de locomotiva. E Poços de Caldas tem a palavra poços a me jogar pro fundo dela. Dela sendo a cidade ou a palavra, nunca sei. E nem vale a pena ficar aqui teorizando sobre a diferença entre referente, significante ou um bom susto ontológico, desses lacanianos mesmo.
Então não sei. Porque na verdade eu pescava em qualquer cidade e em qualquer poço ou poça. Não precisava ser no plural. Não precisava ter peixe. Aliás, melhor se não tivesse. Poço(s), poça, laguinho de entrada de hotel, canal de irrigação cheio de agrotóxico, inundação pós-temporal. Ou delírio visual em pleno ar, nas nuvens. Até mesmo uma narrativa bem construída. Não Hemingway, que não gosto. Mas qualquer descrição minimamente interessante sobre alguém que arranca algo significativo do fundo de uma massa disforme, azul ou não.
Qualquer coisa servia, eu sentava e ficava.
Mas eu usava isca.
O Juarez Távora tinha perdido a eleição pro Juscelino (gúguel, crianças, que acabei de fazer a mesma coisa pra checar essa data). E quem perde – então não sei! – seja eleição, rumo na vida ou mesmo o arquivo word do livro novo, pode sempre dar um tempo em um lugar nenhum. Era o que o Juarez fazia. E tinha escolhido, pro lugar nenhum lá dele, o espacinho ao meu lado. Meu pai, reaça como ele só, quando foi me pegar no fim do dia e viu quem estava ali, foi logo sorrindo e estendendo a mão e perguntando se ele era ele, e essa é a única razão de eu saber que aquele velho que me pareceu meio maluco era o Juarez Távora.
Pois o anzol do Juarez não tinha isca e não que isso significasse modificações na postura do pescador. Sentado e com um olhar de quem não vai desistir nunca, igual ao olhar de quem tem isca.
Foi isso que aprendi com décadas de atraso. Não tem peixe nas nossas águas. Tudo bem alucinações, sou a favor totalmente. Mas aqui entre nós: não tem. Não nos nossos lagos/canais/poças habituais, onde chafurdamos dia sim outro também.
Cardume de olhos te olhando fixo, enquanto você fala sobre a excitação de uma análise semiótica sobre os falares de fronteira do Rio Grande do Sul, com notas ao pé de página que seguem as normas ABNT em duas línguas?
Não.
Rostos como corais coloridos, em deleite por conta da apresentação de um romance chamado “Putas”, cujo título em heptassilábicos traz a cadência da redondilha maior?
Não (rárárá, só rindo).
Filas a perder de vista pra evento de videomakers de vanguarda sobre o Sertão do Cariri, tão difícil de viabilizar, mas que você conseguiu através de captação de patrocínio, apoio, parceria e outros nomes pra dinheiro, sem Lei Rouanet, embora tendo de adaptar um pouco o lado vanguarda da coisa?
Tíquetes gratuitos esgotados uma semana antes da vernissage de esculturas, feitas de matéria orgânica que deverá apodrecer durante o período de visitação, com direito a performance a partir de música não-harmônica?
O corpo de bombeiros mandando dizer que não pode entrar mais ninguém no clube de leitura previsto pra um sábado de sol às nove da manhã na biblioteca pública, com pedido pra que a chegada se dê às oito e meia?
Não, né. A gente sabe que não.
Lançamento de livro quando você tem três amigos, sendo que um deles acaba de mergulhar num de seus periódicos ataques de pânico e não sai de casa de jeito nenhum?
Pois é.
E aí, se não tem peixe, o Juarez Távora tem toda a razão. Porque sem isca, a coisa vira. Não é mais que não tem peixe e você fica lá, com a vara possível na mão. Sem isca, passa a ser resistência cultural, manifestação, protesto pelo desmonte das políticas culturais e educacionais de um governo ilegítimo e retrógrado.
Porque tem isso. Se você ganha pouco, não ganhar não faz diferença. Se não respeitam o que você fala, você fala sem respeitar quem não te escuta.
Sem isca é essa a diferença, me disse o Juarez Távora: você encara de frente. Quer dizer, não disse. Porque também aprendo o que quero, mesmo quando não está lá.

 

livintpessoa08

Paraty (junho de 2016)
(publicado em junho/2016 pela revista pessoa)

Festa de aniversário na casa da minha mãe, cheia de atores da TV Globo porque nessa época minha irmã anda com gente da TV Globo. Aí tem essa mulher no sofá e eu olho pra ela. Vagamente.
Chego, dedo em riste, um olho meio fechado, aquele risinho de você não me engana:
“Você… Externato Atlântico!”
“Não. Papel principal da novela das oito.”
E fico me lembrando disso porque escrevo esse “morrendo” em outro aniversário, esse de catorze anos que não sou convidada pra Flip. Já cantei em fast foward um parabéns pra mim no espelho do banheiro e agora está na hora de ficar realmente alegre porque aniversário é pra ficar alegre: a gente aguentou um ano inteiro desde a última vez que pareceu que não ia aguentar nem mais um minuto. Uma sorte, portanto.
E fico alegre, também, porque me conheço.
Eu olharia pro cara na mesa do bar, e vagamente. E chegaria perto, dedo em riste, já com risinho de você não me engana:
“Você costuma ir na padá da Domingos com Estela!”
“Não. Prêmio Nobel de Literatura.”
Então, viva. Comemorem comigo. Sou mesmo uma sortuda.
Mas não é sorte. É merecimento. Não vou dar esse vexame em Paraty esse ano mais uma vez porque me preparei pra isso. Há muito tempo me perguntaram:
“O que você acha da Flip?”
“Um Simba Safari.”
(Por aí vocês veem como faz tempo.)
A gente no papel do leão. Nem urrando muito alto a ponto de assustar, nem muito baixo a ponto de decepcionar.
Nunca mais falaram comigo. Depois me ocorreu que aquilo podia ser uma sondagem. Prum convite. Gosto de pensar assim. Pessoas me sondando prum convite. O que eu acho de Paris.
Porque já tenho tudo esquematizado.
“Obrigada, mas não.”
E sairia segurando a ponta da saia de cetim com uma das mãos, a outra protegendo o colo. Porque nessa hora não tenho peito, tenho colo. E sumiria no portal de mármore de carrara (o do Michelângelo), em meio àquele barulhinho que saia de cetim faz. Saia comprida. Várias, uma por cima da outra. E tenho decote nas costas que é pras pessoas verem minhas costas (magras, mas promissoras), justamente nessa hora em que me viro de costas e saio. Em algum ponto, pendurada do lustre, desce a palavra Altiva, toda feita em pedrarias.
Variações da cena:
“Por escrito” foi lançado na Copa do Mundo, época em que, é sabido, a meia dúzia que sabe ler desaprende subitamente. E o livro foi lançado sem sequer entrar no site das livrarias, sequer no da própria editora. Pré-venda? Nem pensar. Aliás, eu só soube que o livro tinha saído porque alguém de rede social avisou. Me mandou foto do livro na Cultura, porque custei a acreditar. Deve ter dado algum erro, sei lá. Ou então é normal isso. Talvez eu deva me convencer de que é normal. Porque, depois, o livro foi segundão num prêmio e ganhou aquele selinho de livro premiado. Só que se enganaram e o selo que puseram no livro era de outro prêmio, do qual eu não tinha sido sequer finalista. E antes disso tudo, eu já tinha tido uma prévia, porque na hora de fazer a orelha, nem o nome da personagem principal o orelhista acertou. Precisei eu ir lá e corrigir. Enfim, vai ver é normal. Ou normal comigo. Acho que só comigo. Então tenho outras cenas, daquele tipo com cetim, pras reedições futuras do “Por escrito”.
Vamos imprimir uns banners pra porta de livrarias.
‘Obrigada, mas não.” E bate um reflexo dourado na minha bolsa Hermés.
Vamos mandar o livro pras editoras estrangeiras com quem temos contato.
“Obrigada, mas não.” E jogo meu cabelão – estou com cabelão – pra frente, pro lado e pra frente outra vez. Já vi fazer. Acho que dá pra repetir.
Vamos chamar os livreiros pra você apresentar o livro pra eles.
Isso só ouvi dizer que existe, talvez seja lenda urbana. Comigo nunca rolou. Então é possível que eu esteja em pleno delírio, de modo que vou parar por aqui. Mas paro embicada pra cima, que é meu jeito de parar. Embicada pra cima e com marcha engrenada em primeira, senão eu rolo ladeira abaixo de volta ao inferno tudo outra vez. E a marcha engrenada é uma frase que repito como mantra:
“Tudo vai mudar.”
Acho. Não acho. Me convenço que acho. E pulo da cadeira/caixote de feira/poço do elevador cheia de energia, tudo vai mudar, e ainda acrescento uns pontos de exclamação:
“!!!!”
Por exemplo, ao contrário do caso da Copa durante o “Por escrito” (sentiram a inversão?), esse de agora, o “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, não vai sair durante as Olimpíadas. Me jurou o André Conti:
“Pós-Flip, pré-Olimpíadas.”
Que foi quando comecei a preparar a festinha dos catorze anos sem-Flip, porque pós-Flip quer dizer exatamente isso, sem-Flip. Pelo menos, pensei eu animada, também sem Olimpíadas. O que considerei um presente mercadológico, uma espécie de marshmallow na ponta do pauzinho e vou explicar essa imagem que é pra não pegar mal.
Morei nos Estados Unidos uns tempos.
Tinha um jacaré. O pessoal lá tem mania de queimar bolinha de marshmallow na ponta de um pauzinho, coisa de reunir em volta de fogueira. Incentiva a vida em comum, o espírito solidário, os bons sentimentos. Não acho que dê certo, mas nunca me perguntaram. Aí conheci o jacaré, enorme, numa reserva ecológica. E era só enfiar a mão na água com um marshmallow tostadinho que ele vinha devagar (pra não assustar), mas não tão devagar (pra não decepcionar). Você jogava o marshmallow e ele abria a bocarra e sumia com o premiozinho dele, depois de te mandar um olhar resignado de que a vida é essa merda mesmo.
O que me lembra: preciso de um apelido pro livro. “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é um título completamente inadequado, enorme, nunca que as pessoas vão decorar isso. O tradutor e todos os funcionários da minha tão bem-educada editora se referem ao livro como “Palimpsesto”. Eu e Caró, que somos grossíssimas, só o chamamos de “Putas”. Mas nunca perco a esperança de virar senhora distinta (já que perdi o bonde da moça fina) e ensaiei um “Como se estivéssemos”. E três pontinhos. Mas quem ouvia me olhava com cara de pena, me dava tapinha nas costas.
“Pois é. Igualzinho mesmo, quem não lembra, né. Mas não vamos desanimar. Quem sabe numa nova eleição.”
Pedro Taam também gosta de “Putas”. David, meu filho, não chama o livro de nome algum porque não lê as barbaridades que a mãe escreve. Eric Novello e Roberto, consultados, não deram retorno até o fechamento dessa edição.
Todos vocês que não são Flip-material (ler matíriou) estão convidados pra festa sem-Flip. Haverá votação pro apelido do livro. Tolinhos, nós acreditamos em voto.

 

 

 

livintpessoa07

7) FNAC da Paulista (março de 2012)
(publicado em maio/2016 pela revista pessoa)

Você fala Irmãos Karamazov, entram música e luz indireta, e o cara solta:
“Sim! É mesmo interessante refletir sobre comunidades reminiscentes do arcaico e seu choque em relação ao dinheiro no contexto do pós-capitalismo. Vou pegar. Em russo ou traduzido?”
Mas, claro, imagina. E desnecessário. Pois, mesmo sem isso, sempre gostei de vendedor de livraria. Pra mim, que detesta quem tenta me vender seja lá o que for, havia essa exceção.
Mudei. Primeiro, não tenho mais esperança de chegar e ter uma standing ovation, ela chegou!, ela chegou! O máximo que houve até agora foi uma vendedora de óculos e espinha no nariz que teclava meu CPF pro desconto futuro na Cultura. Apareceu meu nome, ela olhou, era o mesmo da capa.
“Ah! você é você?!”
E achou engraçadíssimo, me esforcei pra achar também e ficou nisso.
São coisas que machucam. Por exemplo, essa ausência de standing ovation.
Mas o problema foi outro. Um livro meu tinha saído um mês antes, de modo que nem procurei. Literatura, todo mundo sabe, é uma espécie de legume. Na prateleira, no máximo as de ontem, então fui direto.
“O que deu para fazer em matéria de história de amor.”
O vendedor me olhou com total enfado.
“Sei. Mas qual livro a senhora quer?”
Foi isso que de fato mudou minha vida. Digo, pra pior. Sim, uma das vezes.
Porque tenho esse carma.
O que pensei:
1 – O vendedor olhou pra minha cara e achou que eu estava tentando contar minha vida pra ele porque minha cara é mesmo de alucinada que vai tentando contar a própria vida pra vendedor de livraria;
2 – O vendedor achou que eu estava tentando contar minha vida pra ele porque isso acontece todos os dias, várias vezes por dia, mulher de montão entrando lá só pra contar a vida pra vendedor da livraria; nada comigo, pessoalmente, imagina.
E eu precisava saber então se era o 1 ou o 2.
Fiquei com essa angústia até que conheci o Tuca. Mentira. Conhecia o Tuca de antes, de Curitiba. Ele fazia pós, era hilário, tinha um blog literário e nem pensava em trabalhar em livraria. Depois é que veio pra São Paulo e foi trabalhar na Cultura.
“Você me dá uma entrevista?”
E aí ele sentou no meu sofá, ofereci bolo e tasquei.
“É comum mulher entrar em livraria e despejar a vida dela pro vendedor?”
“Não.”
Achei que ele não tinha entendido a pergunta.
Dei mais bolo, contei uns casos, que chuva, né. E repeti.
“Não.”
Ele acabou indo embora, eu afundada no sofá, o olhar vago, os ombros baixos, não conseguia nem falar.
Depois me consolei.
Essa lance do “O que deu para fazer em matéria de história de amor” foi na FNAC da Paulista. E foi o único. Então, podia ser pior. Podia ser sempre.
“Nada a dizer.”
“Claro, perante a infinitude do universo, ó meu saco. Poesia é ali, na prateleira de baixo perto do banheiro.”
“Deixei ele lá e vim.”
“Fez muito bem, querida, é o melhor mesmo. Mas qual livro vai ser?”
“Coisas que os homens não entendem.”
“Vou chamar uma vendedora mulher que não estou nessa vibe de feminismo, não.”
“Por escrito.”
“É como é hoje em dia, ninguém mais tem classe, vai tudo em mensagem do Whatsapp. Mas vai escolher qual livro?”
“Às seis em ponto.”
“Obrigado, seria até legal, mas vou direto pra faculdade, quem sabe outro dia. E não quer levar um livro em vez de?”
E só vai piorar, tenho certeza.
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas.”
“Estivéssemos, nós quem, minha senhora?”
E aí ele vai dizer que eu é que sei da minha vida. Mas que com ele foi só daquela vez porque depois ele entrou pra igreja e jogou a peruca fora. E vai me olhar com aquele olhar de ira divina quando a ira divina recebe o reflexo azul de um monitor aberto em programa de controle de estoque.
Vai ser horrível.
Melhor me preparar. Ou vai ver passou. Vai ver minha cara melhorou, e nunca mais.
Vou criar coragem, nem é tão tarde. Acabo isso aqui rapidinho e saio com essa roupa mesmo, vou na Martins Fontes que é séria pra cacete e perto, dá pra ir a pé.
“Três mulheres altas.”
E o cara não vai dizer, não vai, não vai:
“Logo três?! Que cafajeste. Mas a senhora vai levar o quê?”
Aí eu piro e digo que as três eram as irmãs Karamazov, minhas vizinhas, as piranhas, tudo biscate. Viviam se insinuando e aí deu no que deu. E vou continuar, e ele vai apontar pra algum lugar no fundo da livraria, que ele tem de ir ali arrumar uns livros urgente e eu vou atrás, dizendo, não tem importância, estou com tempo. E ele vai subir a escadinha de dois em dois degraus, já suando, e eu atrás.
“Era sempre de tarde, sabe, quando eu saía pra buscar as crianças.”
Se você assume e radicaliza, às vezes dá certo.
É o que penso. Não penso. Mas não me ocorre mais nada. Botox não topo.
“O que deu para fazer em matéria de história de amor” tem esse título, entre outros motivos porque na época havia esse projeto editorial/filmístico/blogueiro/midiático chamado “Amores expressos”. Os felizes escritores participantes, na hora de fazer o livro, iam pra Londres, Tóquio, tudo pago, equipe atrás filmando os lances imperdíveis do gênio em ação. E eu fui pro Guarujá num apartamento da minha prima, caindo aos pedaços, e era agosto e chovia sem parar e eu estava sozinha e não tinha um puto e queria tanto fazer uma história de amor. E foi o que deu.
Podia falar de mais coisa que foi o que deu, um monte. E do que não deu por causa da truculência, do abuso, do interesse contrariado que aparece como sendo processos supostamente legais, mas que é só dinheiro mesmo. E mais as coisas que a gente não espera que aconteçam e acontecem. E, tenho certeza, eu e o vendedor da livraria íamos sentar num cantinho da escada e ficar lá até fechar, sem espichar conversa nenhuma, porque às vezes nem dá mesmo vontade de falar mais nada.

 

 

livintpessoa06

06 – Elevador da Gastão Bahiana (1980)
(publicado em abril/2016 pela revista pessoa)

Esse “morrendo” é ele próprio um “morrendo” porque comecei a escrever durante a passeata contra a Dilma do dia 13/03 e fiquei meio enrolada: tinha o complemento “de rir” que eu também deveria honrar, mas estava difícil.
Enfrentei, com a passeata, minha própria burrice: eu não esperava a radicalização.
Acabei lembrando que, afinal, tenho 68 anos e por causa disso eu sabia muito bem do repeteco. Se conseguisse escrever ficava até engraçado, porque a primeirona, a de 1964, se chamou Marcha Com Deus Pela Liberdade e a liberdade foi aquela que se viu depois, todo mundo preso. E torturado, e sumido e fugido, os mais sortudos, largando tudo. E forcei, sozinha no quarto, um rárárá, não é engraçado?, mas não era.
A janela estava fechada por conta dos buzinaços e dos gritos de exultação dos que protestavam porque nunca vi protesto mais feliz. Todo mundo tão feliz, papai, mamãe, criancinha, todo mundo fitness e feliz (e branco) acenando e sorrindo para a câmara da TV Globo com aquela confiança dos que acham que vencem sempre.
Porque eu estava no quarto com a janela fechada, mas pus a TV Globo sem som e tinha The Voice Kids, com menininhas lindinhas que franziam a sobrancelha e faziam biquinho num microfone, presumo cantando músicas românticas, falando de experiências amorosas que não poderiam ter. Uns oito anos. Vestidas de oito anos, aliás, com saias no meio da canela, rodadas, tão bonitinhas. E quase, pois, que esse “morrendo” não sai porque tinha esse programa, interrompido de cinco em cinco minutos pra mostrar Goiânia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e a Paulista, cheias de gente vestida de amarelo. E foi me dando uma tristeza paralisante e quem me salvou foi o Chico. O Buarque. O petista. O que reclama.
Porque pensei: pronto, bobeia começa tudo outra vez, vão me hostilizar outra vez nos lugares cotidianos em que todo mundo tem de ir. Vou ter de me defender de abusos todos os dias, ou talvez até de coisa pior. E eu e o Chico podíamos então fazer o que a gente já vem fazendo – e com tantos mais – e além disso também fundar um bloco, o Hostilizados Da Esquina. Pro próximo carnaval, que com certeza há de vir.
Mas só se eu conseguisse me dar bem com o Chico, o que não era nem um pouco garantido e não estou nem me referindo ao fato de eu não ter gostado de um ou outro livro dele. Não, é bem pior. E está aqui o meu “de rir”:
Começou no início dos anos 1980 e naquele tempo ele não era ainda um escritor e eu sim. E trabalhava em O Globo, onde eu entrava sempre que a chuva em cima de mim ficava mais forte, e de onde saía sempre que arranjava um sol.
Portanto chovia, e forte, em cima de mim, naquela época.
Mas eu tinha alguns momentos em que conseguia me sentir sensacional e um deles era quando pessoas olhavam, surpresas, pro grupo formado por mim, Roberto, Edu (o pai biológico da Caró), Ellen (a nova mulher do Edu) e as crianças todas, sempre juntas. Sempre juntos, nós. Nos dávamos bem, estávamos sempre juntos, rindo o que dava pra rir.
E foi um dia em que a Mônica (filha da Ellen) fazia aniversário e era um dia desses, em que as pessoas olhavam pra gente, admiradas, e eu me sentia então, mesmo que por poucos minutos, sensacional.
Então era uma rara Elvira do tipo sensacional que esperava o elevador, Caró segurando o presentinho da Mônica, na Gastão Bahiana, casa do Edu e da Ellen. Aí chega o Chico com a Silvia, também com seu presentinho. Silvia era colega da Mônica na escola. E ficamos lá os quatro.
Eu, a sensacional, achei que era uma oportunidade pra ser sensacionalíssima e começo a olhar o teto, as paredes, o chão e sou boa nisso, de olhar pra tudo que é desinteressante com máxima atenção. O raciocínio é que o Chico devia estar de saco cheio de olhares, palavrinhas e tentativas de aproximação. E que a boa educação era nem cumprimentar.
Depois piora porque, crianças entregues, ficamos os dois esperando o elevador de volta. Que chega. Ele abre a porta, gentil, mas rosno.
“Pode ir, vou no próximo.”
Ficou me olhando com olhos esbugalhados de quem não conseguia acreditar na minha – achava eu, que sou completamente louca – sensacionalíssima boa educação.
E piora mais ainda.
Porque mesmo depois que me toquei que eu era isso, uma completa louca, dei de ombros. Paciência. O cara famosão, imagine, nunca mais vou encontrá-lo, dane-se.
E claro, né.
Um desses eventos em que às vezes tenho de ir. O Chico. Gritos de “chico” e saias passavam voando em direção a um buraco negro que devia ser ele. Não averiguei. Me virei de costas e teve uma hora em que tive que dar uma andadinha um pouco mais pra direita e dei a andadinha de costas. Isso tudo, como é meu hábito, olhando o teto. Podia dizer aqui que eu estava tentando ser educadíssima outra vez. Mas não. Acho só que eu preferia que ele não me visse. O lance com o elevador, as meninas ainda pequenas, tinha sido há muito tempo. Mas resolvi não arriscar.
Depois me ocorreu que justamente por ter ficado o tempo todo de costas pra ele, que era a estrela da noite, eu me tornava reconhecível. Quem mais, no mundo.
Até hoje não sei. Sei que não sei o que vai acontecer outra vez neste país, eu provavelmente perdendo, que é uma tendência minha. Sei que tenho muitas histórias dessas. Em que eu, frente a algo ou alguém pra o quê ou quem o mundo espera que eu sorria e acene como pinguim de desenho animado, eu rather not.
Nem mesmo bilu-bilu faço, embora do bilu-bilu eu me arrependa.
Foi antes disso tudo. Tinha me separado de quem parecia ser o único amor da minha vida e, porque essas coisas vêm sempre juntas, também tinha perdido o emprego. Outro elevador, eu indo visitar minha mãe que costumava (e fez isso por décadas) me olhar com cara de pena, cara de eu não disse. E ajeitava um pouco meu cabelo e suspirava.
“Faz um corte mais pra cima, vai te rejuvenescer.”
Eu tinha 19 anos.
Junto comigo no elevador uma ex-vizinha pra quem tudo dava certo. Ficou noiva por dois anos de rapaz de futuro, eu vivendo em uma quase república sem marido formal à vista. Casou com bela festa de muitos convidados (eu inclusive, mas não fui), enquanto acabei casando, sim, mas no cartório e sem avisar ninguém. Adiei filho até conseguir dinheiro pra comida, enquanto ela, nove meses depois do casório, aparecia com belo rebento. E menino!!! A cara do pai!!!
Ela estava de costas pra mim, a criança no seu colo me olhando por cima dos ombros. Fiz uma careta horrorosa, o pobrezinho abriu o choro. O que foi, o que foi? A moça se virou, fiz gesto de não entender nada de criança, ela saltou do elevador e entrei na casa da minha mãe me sentindo muito bem, ela até estranhou.
Casei legalmente uma segunda vez, muitos anos depois, sempre em cartório, meu lugar preferido pra essas coisas. Comigo e com o Roberto estavam o Edu e a Ellen, as crianças todas, as dela e as minhas (nunca filho meu nasceu eu estando casada com o pai da criança) e foi inesquecível de bom. E é bom até hoje. Porque tem isso, a gente perde até a hora que ganha. Não fiz careta pro Chico, então ele até que deu sorte. Ou fui eu quem deu sorte. Hoje posso aventar a possibilidade do bloco. E estão todos convidados. E do riso (quando der). E estão todos convidados.

 

livintpessoa05

05 – Pacaembu, 11/11/2013
(publicado em março /2016 pela revista pessoa)

Estou com um saco de batatas nas mãos e um vestidinho novo. Tenho de explicar as batatas e não o vestidinho novo porque, afinal, estou indo prum evento em minha homenagem e não quero que vocês pensem que vou em eventos em minha homenagem segurando batatas, embora não haja problema de ir nessas coisas com vestidinho novo – o que dá um ensaio filosófico sobre gênero e capitalismo, mas numa outra hora.
Não vou com batata de propósito de jeito nenhum, como às vezes pode parecer.
Nesse caso, e em outros parecidos que sim, os houve, é porque não tenho nada pra fazer.
Nunca tenho. Passo a vida olhando o vazio. E aí saio sempre cedo de casa e chego cedo nos lugares e as pessoas estranham. Então, posso escolher: ou as pessoas estranham de eu chegar tão cedo ou as pessoas estranham de eu ter passado antes no supermercado pra fazer hora.
Mas chego. E pergunto na portaria onde é o evento com a escritora, me indicam e eu entro e é no auditório que é enorme e está vazio porque, apesar das batatas, ainda é cedo pra cacete.
E aí sento numa das últimas filas e fico lá rezando pra não ter mosquito porque, já falei, estou de vestido.
Entram pessoas, algumas olham pra mim de cara feia, o que estou fazendo lá, o evento é interno da escola e tinham avisado que não era pra chamar os pais porque só de alunos já enchia aquilo tudo.
E encheu.
Quando enfim deram por mim, que eu era eu, tinha bem uns, sei lá, sou ruim de número, mas acho que bem uns trezentos.
E dar por mim quer dizer que olharam bem pra minha cara e eu não era nem um pouco o que eles esperavam que fosse, não tinha luzinhas piscando na testa e eu não tinha nem um pouco cara de quem merecia evento em sua homenagem.
Mas eu era o que havia, então, que remédio, me levaram pro palco e as crianças, em uníssono:
“Elvira!!! (pam, pam, pam) Elvira!!!! (pam, pam, pam).
O pam, pam, pam, não sei como faziam, se com os pés no chão, as mãos na poltrona ou batendo com toda a força nos livros (os meus) que tinham no colo.
Colégio Benett. Enorme. Em Botafogo, Rio de Janeiro.
E há muito, muito tempo.
Depois larguei a literatura infantil e nunca mais.
Esse dia ficou conhecido como meu Dia De Zico. Não sei muito bem quem foi o Zico, além de ter sido um jogador de futebol. Mas Dia De Zico porque escritores de literatura pra adulto me disseram, verdes de inveja:
“Aí, hein, parece o Zico.”
Nunca mais.
Até Pacaembu.
E eu não estava mais com o saco de batata nas mãos, mas com o Nada a dizer.
Que vem a ser o seguinte: palavrões em uma história de adultério com detalhes de quarto de motel.
Mas, na minha frente, as mesmas trezentas crianças. Devem ter juntado das cidades vizinhas.
E eu pensando que algo deu errado. Porque avisei que ia ser o Nada a dizer e que o público, portanto, era de adulto, e mais do que adulto, adulto com a mente aberta e preparado pra discutir essas coisas que às vezes acontecem com adultos. E acrescentei que eu, aliás, há mais de trinta anos, não escrevia pra criança.
Mas nessas cidadezinhas que dormem, é difícil convencer adulto. Criança está lá, você manda: vai pra lá, vem pra cá. E elas vão. Fica mais fácil.
Então, o público era de criança.
Analisei algumas possibilidades de improvisação.
1) A falibilidade do ser em um contexto não teológico:
“Papai e mamãe às vezes fazem caca. Quem mais faz caca aí?”
E depois de algumas histórias de caca, lápis e papel pra todo mundo desenhar a caca feita.
2) O limiar da indiscernibilidade entre ética individual e moral coletiva.
“Mentir é feio, estão ouvindo. Quem mentiu aí?”
E depois de algumas histórias de mentira, lápis e papel pra todo mundo desenhar o inferno bem vermelhinho.
“E nada de passar o vermelho por cima da margem, hein!!”
3) Estruturação da linguagem no inconsciente, segundo Lacan.
“Não pode falar palavrão. A tia escreveu esse livro aqui inteirinho pra mostrar que é feio falar palavrão.”
E lápis e papel pra todo mundo escrever Um Dia Com O Vovô sem usar nenhum palavrão.
“Nenhunzinho, principalmente se for sem querer, ouviram?”
Os professores resolveram que o melhor era eu ficar calada e as crianças fazerem perguntas.
Acabou cedo.
O motorista tinha sumido. Fiquei esperando sentada no murinho do lado de fora ele reaparecer.
Tinha ido visitar uma “pessoa”.
Essas viagens pro interior são com você e o motorista dias e dias na estrada, se hospedando no mesmo hotel, olhando a mesma reta de asfalto sem fim na sua frente. O melhor é conversar, mas não sou muito boa de conversa mole, o futebol, a política. Pacaembu não era a primeira parada, longe disso. No começo ele tentou uns papos, depois desistiu. Música eu também não gostava. Então apareceu o apito. Algo apitava no relógio dele em intervalos regulares.
“O que é isso?”
“É pra eu não dormir no volante.”
Não perguntei se ele usava aquilo sempre. Achei que sabia a resposta.
Não. Só quando dirijo pra escritora chata.
Depois de Pacaembu e da minha espera por ele, eu sentada no murinho, as coisas melhoraram. Acabou contando do casamento falido, da “pessoa”. Não usou mais o apito no resto da viagem. Dei meu exemplar do Nada a dizer na despedida. Plateia de um. Não me importo. Em geral me comovo com minhas plateias, sejam elas do tamanho que for. Olho quem está na minha frente e descubro, quase sempre, uns malucos alucinados iguais a mim. Gente que, em caminhos muito retos, precisa de apito pra não desistir de vez.

 

 

 

livintpessoa04

04 – Caiabu – 15/11/2013
(publicado em fevereiro/2016 pela revista pessoa)

O problema do prêmio é a cara. Se você ganha tem de fazer cara de surpresa porque você não estava esperando.
“Imagina…”
E se não ganha, tem de fazer cara de condescendência irônica, humpf, enquanto bate palma pra quem ganha. Então já faz tempo que institui o alter do golden retriever. Ele fica lá, com os cabelos louros perfeitamente penteados, pose educadíssima, imóvel e acima de qualquer provocação, sendo que o abaulado na pele da bochecha quer dizer que, sim, embaixo tem dente, de modo que é melhor não.
Funciona.
Mas é minha única opção e sempre fico com medo que as pessoas saquem. Até que conheci o Mimoso.
Na hora eu devia estar recebendo um Jabuti, mas compromisso é compromisso, sou séria pra cacete, então eu estava em Caiabu que vem a ser.
O seguinte: umas casas, um pé de algo que me pareceu pitanga, mas muito maior, mais gostoso e que, de pitanga, só teve mesmo o vermelho que manchou minhas duas mãos e, temo, a boca (não tinha espelho disponível em Caiabu) durante toda a palestra que se seguiu ao pé de pitanga. Tinha também uma igreja e um lugar pra chamar de nosso. Meu e do Mimoso. No pastinho atrás da igreja.
Sou magra, ou tento, e o Mimoso deve ter algumas toneladas. O chifre, disso não vou falar porque não interessa aqui pro assunto tratado. Mas ele também ganhava prêmio, embora em rodeio, o que talvez seja mais fácil, gritos, assobios, música, ninguém prestando muito atenção pra cara que o boi faz se ganha ou não ganha.
Mas achei que eu tinha o que aprender ali.
Um olhar doce atrás de cílios longos, um leve abanar de orelhas sedosas. Achei que valia tentar no próximo. Um movimento suave com a boca de quem pode estar comendo capim ou recitando em voz baixa o tudo vale a pena do Fernando Pessoa.
Uma coisa já melhorei desde essa época e foi o vestido cinza.
Nesse Jabuti que não o foi – ou melhor, que eu não fui – porque estava em Caiabu, eu tinha um vestido cinza já há dois anos pendurado no armário, no cabide escrito “prêmio”.
Era pra ser um vestido desses que imitam ama inglesa do século XVIII, com rendinha nos punhos e no pescoço, botõezinhos que imitam pérola, tudo muito bonitinho. Mas achei que rendinha era demais e não tinha o modelo com botãozinho. Então ficou só um vestido cinza mesmo que comprei num ano em que achei que não havia como não ganhar o prêmio e, adivinha, não ganhei. O prêmio, não. Os prêmios. Porque uma coisa tem de ser dita. É claro que sou eu que mereço todos os prêmios e os outros só ganham porque:
– o júri ficou com pena, o infeliz está à beira da morte (não exclua assassinato);
– o júri foi comprado por interesses econômicos dos grandes grupos editoriais que são os que de fato comandam as finanças e a política do mundo inteiro;
– o júri é de analfabetos funcionais (função = me dar prêmio).
Mas então eu estava em Caiabu e até pensei que, por honra do Jabuti ausente, devia ir com o vestido cinza na bagagem, mas só ando de mochila e com os livros não coube.
Depois joguei o vestido fora sem nunca usar.
E fiz bem. Em Caiabu, além do Mimoso, tinha um cara que veio da roça, enxada na mão infância inteira. Foi chamado pelo antigo bibliotecário pra ajudar fazendo umas estantes, varrendo o chão, levando livro de cá para lá.
Sabia escrever o nome, e ler, vamos dizer que não sabia, de tão mal que lia.
Aí o bibliotecário que chamou o cara morreu e a cidadezinha ficou só com ele que continuava indo pra tirar o pó, consertar as cadeiras.
Aos poucos foi lendo os livros. Nem eram muitos. Sentava lá, nada pra fazer, e ia lendo os livros.
Se tornou o bibliotecário. E esse cara era tudo o que eu queria. Era ele que eu queria que pegasse um livro meu e lesse e gostasse.
E aí eu não ia precisar de vestido nenhum pra receber esse prêmio.
Tempos depois teve outro prêmio em meio a comentários de que minha narradora era dura e fria. Achei que se tratava de comparação com um feminino idealizado e retrógrado e fui à cerimônia toda de rosinha – saia, blusa e coletinho – só de sacanagem.
Minha ideia era fazer o serviço completo. Mimoso de cabo a rabo, maquiagem ressaltando os cílios e tal.
Aí, ganhando ou perdendo, eu poderia escolher entre:
– A Meiguinha, e olha só eu comendo capim;
– A Artística, e eu murmuraria, enlevada, que tudo vale a pena.
Mas acabei que não. Naquela noite fui mais um golden retriever, desta vez rosinha. Ficou mais pro médio. Perdi prum cara de terno bem cortado.

 

 

livintpessoa03

03 – Gotemburgo, 26/09/2015 (segunda parte)
(publicado em janeiro/2016 pela revista pessoa)

Então mando mais um email, agora num tom já francamente de pânico. Porque querem que eu vá pra Suécia via Papua-Nova Guiné.
Peguei os números no email pra vocês acreditarem.
1.1LEHMANN/ELVIRA MRS
1 KL     792  22SEP   GRU-MAS   1915-1150   23SEP
2 KL   1159  23SEP   MAS-GOT   1620-1750
3 KL   1152  29SEP   GOT-MAS   0620-  0750
4 KL     791  29SEP   MAS-GRU   1015  1715
Foi isso que recebi logo de prima e foi isso que, sim, é minha culpa, é sempre minha culpa, digo que está OK.
Porque perguntam se estou de acordo e digo sim.
Depois fui ver no google. MAS é acrônimo do aeroporto de Papua-Nova Guiné.
Aí pensei. Dinheiro público, né, não discuto, é o que for melhor, é o que der.
Uma coisa assim já entranhada de quem lida com cultura. Ênfase no verbo lidar. Porque é o que a gente faz, a gente lida. Pega com a mão, as duas mãos, pra não cair. Pega com um cuidado meio hesitante, não sabe muito bem onde botar, o que fazer, com medo de machucar, rasgar, inutilizar pra sempre e ouvir:
“Desse jeito que ficou, né minha senhora, não vai dar, cultura tem de ter casca brilhante, perfeita, senão ninguém quer. Agora vê só esse amassadinho. Isso é provocado por dúvida. Então eu pergunto pra senhora: a senhora já viu alguém querer dúvida?”
A gente sempre pedindo desculpa, falando por favor, obrigada e sempre tão acostumada a ser tratada tão mal e sempre tão contente por qualquer migalha.
Então Papua, qual o problema.
Porque pensei.
Estão me mandando pra Suécia via Papua-Nova Guiné porque 1) tem um avião com um carregamento de batata que vai pra lá e sobrou um lugarzinho; 2) há um acordo dentro do espírito preferencial pelos pobres em que, sempre que dá, aviões que vão do Brasil pra Suécia param lá pra movimentar o aeroporto e a venda de sanduíches de carne de jacaré; 3) porque não gostam mesmo dos meus livros e querem ver se desisto.
E até então, tudo bem. Porque sou do tipo que topa. Até que vi que precisava de visto e que visto, porque não tem representação legal papuense aqui, nem brasileira lá, o visto, então, se arranjava no aeroporto. O que me soou na linha de dólar na cueca (ambos in absentia). Ou: leva isso na bagagem que fica tudo certo, mas não pode abrir. E até mesmo, mas aí já sou eu delirando: rituais exóticos de acasalamento com chefes tribais na sala dos fundos do aeroporto.
Em tempo: o acrônimo do aeroporto papuense é MAS e o de Amsterdam é AMS. E é aí que entra a estagiária do Itamaraty. Acho que ela levou a culpa. Mulher é muito boa de levar a culpa. Mulher estagiária então, nem se fala. Ou seja, eu aqui, acho que a culpa é do Clinton, mas a gente não estava falando disso. Então, a estagiária do Itamaraty. Acho que a culpa é do computador. Digitou-se a ele mesmo erroneamente. Foi isso. O que ela, nem eu, notamos é que não podia ser Papua, não tinha como ser Papua. E eu quase fui pra Papua.
Minha filha, que gosta de mim e me entende, dava a maior força.
“Vai, mãe, quando é que você vai ter a oportunidade de conhecer Papua. Não fala nada pra ninguém e embarca, sua boba.”
Quer dizer, acho que ela gosta de mim.
O que me impediu foi o visto. Não fosse o visto, eu ia. E estava lá até hoje porque ninguém sente muita falta de escritor, como é mesmo o nome daquele que sumiu que fez aquele livro que não vou lembrar o nome?
Vocês já devem ter notado que essa segunda parte de “Gotembrugo, 26/09/2015” na verdade devia vir antes da primeira, já que se trata da viagem de ida. Mas qualquer um que tenha lido livro meu sabe que curto uma marcha ré. E vou continuar pra trás, mais ainda, porque, vocês acreditam?, comecei muito bem, eu. Aos dezessete anos, meu namorado queria que eu fosse modelo. Ou pelo menos que botasse um batonzinho pra fingir que era. Uma maneira de ele enfrentar, perante os amigos dele, nossa diferença de altura.
“Ah, ela é modelo.” E o sorriso de superioridade de quem come modelo.
Expliquei que preferia ressaltar outra altura, a da pilha de meus futuros originais, mas ah, ela é escritora, não surtia o mesmo efeito e ele acabou indo embora.
Pois nessa viagem de ida a Gotemburgo que quase foi via Papua, sentei ao lado de uma modelo. Uma moça lindíssima de dezesseis anos, da Ford. Não falava língua alguma além do português. E mesmo essa, mal. Se espantou quando apontei o Canal da Mancha e falei do túnel por baixo da água. Tinha largado a escola no quarto ano. Vivia num apartamento de oito moças, quatro beliches, dois em cada quarto. As roupas em malas pelo chão. Era o segundo apartamento dela. No primeiro, houve problema com as outras, um pouco mais velhas.
“Rolou inveja, sabe, elas têm inveja das mais novas.”
Às vezes passava uns dias na casa da mãe, no interior de Santa Catarina, mas gostava cada vez menos de ir.
“As pessoas lá têm inveja, sabe, da minha vida.”
Agora, dinheiro, ela, sim, ganhava. E coisas de graça. Academia, restaurantes finos, roupas, perfumes, jóias. Era só tirar umas fotos e pôr no instagram em troca.
E sabem o que fiz com a pobrezinha? Aconselhei que aproveitasse a experiência de vida e escrevesse um diário que fosse base de um livro futuro. Quer dizer, tentei fazer com que ela virasse escritora. E parasse de ganhar dinheiro, claro. E acabasse na Papua.

 

 

 

02 – Gotemburgo, 26/09/2015 (primeira parte)

(publicado em dezembro/2015 pela revista pessoa)

Há dois tipos. Os que falam da infância em Botucatu na casa da tia Conchita – pobrinha, é verdade, mas legal porque deu a eles a consciência social tão importante na literatura que fazem. E há os que falam sobre a especificidade da semiótica em campos de intersubjetividade. Os primeiros têm mais público. Eu sou dos segundos.

E não queria ser de nenhum. Porque, afinal, se escrevo é pra não falar.

Hoje não tem jeito. Você tem de falar e falar bem. Há mesmo coaching pra isso, dez sessões e uma é de graça. Por exemplo, você deve começar sempre com piada. Numa plateia tinha um judeu, um árabe e o Lacan. E terminar com citações inspiradoras. Vinicius e Nietszche estão meio por baixo. Guimarães Rosa emplaca bem.

Não que eu tenha feito o cursinho. Ouvi dizer, só.

Aliás, eu, na minha vida, bem que tentei não falar nem escrever. Com uns sete anos, ainda me esforçava pras pessoas entenderem, pela minha simples cara, o que eu pensava delas e do mundo. Acho que não deu certo. Ou as pessoas fingiram que não deu certo.

Então, o caso é que estou na Suécia com o papelzinho na mão que é, na verdade, bem mais do que um papelzinho. São cinco páginas em corpo doze e eu uso espaço simples.

Do meu lado, o editor já falou da Clarice Lispector, também publicada por ele. Falou da Clarice enquanto olhava pra mim. Está certo, iceberg, rosenberg, tudo a mesma coisa.

É minha vez.

Preparei o papelzinho sobre um livro que ia ser lançado mas não ficou pronto. Fiz uma análise da construção estrutural clássica em três atos e a razão de haver um epílogo que retoma as referências  metalinguísticas do incipit. Coisa fina. Mas tudo que consigo pensar naquela hora é que não gosto da Clarice Lispector. Nem de editores. E até mesmo daquela plateia, ali na minha frente, até onde eu conseguia ver.

Uma pausa pros óculos.

Escritoras mulheres de súbitos e avassaladores sucessos mundiais: é essencial que fiquem bem na foto. Se tiverem feito um livro, melhor ainda. Não fico bem de óculos. Também não fico bem sem óculos. Tento não pensar nisso, mas em palestras só ponho óculos na hora mesmo de ler o papelzinho. Então eu estava sem óculos, mas dava pra ver. Os diplomatas do Itamaraty, órgão responsável pelo convite preu ir até lá. Eram três e inchavam o peito pra ocupar mais do que três cadeiras. A mocinha do estande. Duas velhinhas que não sabiam se era palestra ou show de stripper e não que fizesse diferença. Mais umas sombras que determino serem pessoas.

Umas oito, calculei.

Eu tinha quinze minutos.

E disseram: sueco não tem essa. Quinze minutos e acendem uma luz na tua cara, desligam o microfone.

Então eu tinha quinze minutos pra falar de um livro que não estava pronto, pra um público, vamos chamar de público, sueco, ao lado de um editor que usou o tempo dele tecendo loas à Clarice Lispector, quem ele achava, com toda a razão, ter mais chance de vender livro do que eu, mesmo se eu tivesse livro.

E foi aí que baixou uma dessas inspirações de momento, dessas coisas que não se sabe de onde vêm.

Lembrei que mato gente.

Um, com sorte dois, em cada livro. Quinze minutos sobre minhas motivações de matar gente, sendo que me ative às literárias.

Uma pausa pro sotaque.

A palestra é em inglês e falo inglês com sotaque alemão, mas não é bem isso, é raiva. Sou da década de 1970, o imperialismo ianque e tal.

Batem palma. Com vigor. E saem correndo. Eu também. Pelos corredores e mais corredores da feira, cheios de livros em sueco, nenhum sentido. A falta de sentido, fico repetindo, é porque está tudo em sueco.

No estande brasileiro, a mocinha diz que gostou. Não acredito sequer que tenha entendido. Mas ela ri dentinhos pontiagudos e percebo que, sim, gostou.

Sento no banco alto que chamo de lar e é aí que Gotemburgo de fato começa.

Eles vêm e desde longe, nas aleias lotadas da feira, abrem os braços, um rebolado e o miudinho no pé, sem música mas perfeito, o riso na cara.

“Eeeehhhh.”

Eu no meu banquinho também começo a rebolar e abraço quem vem, os olhos molhados de encontrar a Donizete, nossa, a Donizete, que ainda não conheço mas que está há oito anos em Gotemburgo e a quem, portanto, não vejo há oito anos.

Se ela gosta de lá.

“Vixe.”

E revira os olhos. O marido ao lado parece maravilhado com tudo, e a filha deles, trancinhas afro, já vai entrando e pegando os livros como se estivesse em casa.

E é tão bom encontrar a Donizete que adorei Gotemburgo.

Já o livro não saiu até hoje, dizem que em janeiro.

 

 

 

 

01 – São Francisco Xavier, 05/04/2014

(publicado em novembro/2015 pela revista pessoa)

Digo que quero um bife.

“E pode trazer a cerveja antes, por favor.”

Só falta chamar a polícia.

O estabelecimento não serve bife. Muito menos cerveja.

Serve entrecôte.

E em vez de cerveja, diz um nome impronunciável. É de cerveja. Mas alemã.

Fico lá, assassinando a entrecôte, com dúvidas se seria o entrecôte. E vendo meu problema diminuir a cada golpaço da faca, como aliás acontece com problemas assim, filosóficos. Eles diminuem quando esfaqueados.

Diminui também o problema filosófico do garçom que acho nem era o garçom, mas o próprio dono.

Porque eu não era uma pessoa adequada para a/o entrecôte.

Depois fui descobrir por quê.

Depois de muito tempo.

Porque sou assim, burra mesmo.

Foi juntando dois com dois.

Porque fui catar meu bife num dos restaurantes conveniados mais para fora do centrinho, lotado.

Adendo: restaurante conveniado. Restaurantes que aceitavam o tíquete que, nós, os donos da festa (até então eu me fincava no papel de dona da festa) ganhamos ao chegar. O tíquete pagava qualquer refeição, excluída a bebida.

E era isso o que eu pensava camelando de volta na ladeira em direção ao centrinho onde eu devia apresentar meu papel de dona da festa.

Segundo Adendo: papel de dona da festa. Confraternizar com os fãs enlouquecidos que gritariam, meu livro na mão, querendo autógrafo, querendo, querendo, não tenho a menor ideia do que quereriam esses fãs que estariam na praça, onde eu deveria, magnânima, sentar para oferecer um pouco da minha genialidade para todos aqueles – e seriam muitos! – que não a tem.

Pensava eu, então, subindo a ladeira. Nos fãs. E no tíquete. Porque se a refeição era paga com o tíquete, pro dono do restaurante tanto fazia bife ou entrecôte. A diferença de preço inclusa na diferença de idioma estaria de qualquer modo coberta. Correto? Tíquete é tíquete.

Foi só depois de muito tempo que juntei.

Nos restaurantes lotados que davam para a praça do centrinho havia um grupo. Eu não tinha nada pra fazer. Resolvi esperar os fãs enlouquecidos que iam descer dos céus em uma nuvem púrpura entre raios de sol, e que obliterariam, os fãs, tenho certeza, a vaca que pastava bem no cocuruto da montanha ao lado e que era a única coisa que eu conseguia olhar.

Resolvi esperar sentada na sarjeta.

Dito assim, parece ruim. Mas não é. Nem era sarjeta, vai. Está bem, era sarjeta. Mas com tanta gente passando ninguém nem ia notar que era sarjeta. Aí fiquei. Olhando a vaca.

E escutando o grupo, que estava bem atrás de mim, na varanda do restaurante mais disputado.

Só o som, primeiro.

E eles diziam que ia ter uma festa logo mais. E alguém do grupo disse que precisava passar na pousada antes porque precisava melhorar o visual. Dar um trato. Ficar com look de artista. Porque sem look de artista não ia rolar nada.

Aí me virei.

O cara tinha um chapéu bossudo, paletó de linho bege. Se tirasse o chapéu e o paletó ia ficar igualzinho a uma pessoa dessas que você nem vê. Assim, como eu. A moça que queria passar na pousada estava com um vestido africano.

Eles já tinham look de artista.

Não tenho a ideia de como ficaram na festa na qual, claro, não fui. Mais look de artista ainda. Mas não sei como se aumenta um look de artista.

E nem me toquei. Foi só depois.

Eles eram entrecôte. Eu era bife.

É por isso que não faço sucesso e nem fiz, naquele dia. Porque não noto quando é para ser entrecôte.

Era para eu ter sido entrecôte. Preciso ser entrecôte. Meu deus, tenho de aprender urgentemente a ser entrecôte.

Quanto a ser dona da festa, às vezes não tem jeito. Não tem outro papel pra fazer. Você sabe que é apenas um laranja, mas é jogado lá, te empurram pra frente e você precisa, não tem outro jeito, a não ser virar ponto turístico em resort.

 

Biografia

ELVIRA VIGNA – BIOGRAFIA

também no wikipedia

arquivos internos de ‘biografia’:
revista A Pomba

 

Texto autobiográfico, em primeira pessoa, de Elvira:

Na carteira de trabalho sou jornalista. Trabalhei por diversos períodos em O Globo, para a Folha de São Paulo na época em que morei no exterior, para O Estado de São Paulo de 1999 a 2003. O último foi o Jornal do Brasil, onde publiquei artigos sobre arte contemporânea até o fim de 2006. Em 2007 passei a publicar os artigos no site Aguarrás (ISSN: 1980-7767), até fechar. Depois foi no Études Lusophones da Sorbonne IV (em português), até 2013. Ao todo, foram quase quinze anos de artigos teóricos sobre arte e literatura.
Fui também editora. Minha editora, a Bonde, durou cinco anos, a revista marginal-literária A Pomba, que mantive com Eduardo Prado, um pouco menos. Em 1988 abri uma empresa de traduções, a Earte, que funciona até hoje. Em 2016 eu, meus filhos e Roberto abrimos outra editora, A Uva Limão, especializada em textos acadêmicos.
Tenho um diploma de literatura francesa de 1975, emitido pela Universidade de Nancy (França), em convênio com a Aliança Francesa. Com este diploma – aceito como equivalente a uma graduação em letras – fiz um mestrado na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1979, na área de Teoria da Significação.
Em 1984 e 1985, fiz cursos de extensão universitária na Parsons School of Design de Nova York, dando seguimento assim à minha segunda área profissional, a da imagem. Antes, eu já havia feito o curso de três anos com especialização em gravura do Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro. O Instituto de Belas Artes é a escola que virou Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Em 2008, já morando em São Paulo, fiz o curso de um ano do Masp, de história da arte.
Fiz duas exposições individuais onde apresentei técnicas experimentais. A primeira, Pinturas cafajestes, na biblioteca da Cultura Inglesa do Rio de Janeiro em 1990, mostrou a tinta automotiva industrial como possibilidade técnica. A segunda, em 1998 na Vila Riso (RJ), trouxe a impressão em grandes dimensões sobreposta à mesma tinta industrial. Esta se chamou Imagens mentirosas e teve apresentação de Gerd Bornheim. Fiz uma terceira exposição, junto com Caró. Foi a Dimensões do tempo, em 1996, onde explorávamos as diferenças de visão e técnica entre mãe e filha na abordagem de um mesmo tema, o tempo. Esta exposição foi no Planetário da Gávea. Fui também, por quatro anos, capista exclusiva de uma revista cultural japonesa editada pela ed. Kodansha.
Em 2003, entrei em uma escola de cinema, a Darcy Ribeiro (RJ) onde completei o curso de roteiro. Como exercício, roteirizei livros meus. Já havia sido co-roteirista há muito tempo, ajudando o Edu no Balada dos infiéis, de Geraldo Santos Pereira.
Meus primeiros livros foram dirigidos a crianças e jovens. Depois, parei de escrever livros, ficando só com jornalismo. Quando voltei aos livros, escrevia para adultos e não mais para crianças. Sete anos e um dia, meu primeiro romance, é de 1988 e fala sobre um grupo de amigos durante os sete anos da abertura política brasileira. Fora de catálogo, ele está aqui no site, texto integral.
Nasci no Rio de Janeiro em 1947.

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LIVROS PUBLICADOS

 

ROMANCES

 

VIGNA, Elvira. Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2016, 212p.
– prêmio APCA de Melhor Romance – 2016;

 

VIGNA, Elvira. Por escrito. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2014, 312p.
– segundo lugar do Prêmio Oceanos;
–  finalista Prêmio Rio.

 

VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2012, 168p.
– edição sueca: Den kärlekshistoria som gick att få till. Trad. Örjan Sjögren. Estocolmo: bokförlaget Tranan, 2015,  240p.
– finalista Prêmio Jabuti;
– finalista Prêmio São Paulo.

 

VIGNA, Elvira. Nada a dizer. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2010, 168p.
– edição portuguesa: Nada a dizer. Lisboa: Quetzal, 2013, 176p.
– edição italiana: Niente da dire. Narni: Gran Vía, 2016, 168p.
– prêmio ‘ficção’ da Academia Brasileira de Letras;
– finalista Prêmio Portugal Telecom.

 

VIGNA, Elvira. Deixei ele lá e vim. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2006, 152p.

 

VIGNA, Elvira. A um passo. Rio de Janeiro: ed. Lamparina, 2004, 188p.
– projeto Mais Leitura, 2014.

 

VIGNA, Elvira. Coisas que os homens não entendem. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2002, 160p.
– edição sueca: Saker som män inte förstår. Trad. Örjan Sjögren. Estocolmo: bokförlaget Tranan, 2005, 220p.

VIGNA, Elvira. Às seis em ponto. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 1998, 128p.
– prêmio Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance.

 

VIGNA, Elvira. O assassinato de Bebê Martê. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 1997, 128p.

 

VIGNA, Elvira. Sete anos e um dia. Rio de Janeiro: ed. José Olympio, 1988, 192p.

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CONTOS (e outros textos curtos)

 

VIGNA, Elvira. Deve ter sido assim (Como se estivéssemos em palimpsesto de putas). In: Suplemento Pernambuco #118,  dezembro 2015.

 

VIGNA, Elvira. Pulando amarelinha com a Eneida de Virgílio (Como se estivéssemos em palimpsesto de putas). In: Gerúndio a dois. São Paulo: São Paulo Review, 19/10/2015 (online).

 

VIGNA, Elvira. Par écrit. Pessoa, edition spéciale Salon du Livre de Paris/2015.  São Paulo: Revista Pessoa.  Julho 2015, pg. 16-21.
– english translation of this edition: Contemporary Brazilian Literature, October/2015, ed. Mombak, 140p.

 

VIGNA, Elvira. In writing. Wasafiri, volume 30, issue 2. Brighton, Inglaterra: Taylor & Francis. 19 May 2015, pp. 56-58.

 

VIGNA, Elvira. Depois de tudo.  Segundo Caderno. Rio de Janeiro: jornal O Globo. 16/02/2015.

 

VIGNA, Elvira. Places, in the middle of everything. In: The book of Rio. Great Britain: Comma Press. 2014, pp. 111-119.

 

VIGNA, Elvira. ‘N’ de nada de eso. In: Narrar San Pablo. São Paulo: editora Mackenzie. 2014, pp. 89-103.

 

VIGNA, Elvira. A copa de 1990. In: Formas Breves. São Paulo: E-galáxia, 2014.

 

VIGNA, Elvira. La imposibilidad de un Kilimanjaro. In: La invención de la realidade. Ciudad de Mexico: Cal y Arena, Nexos Sociedad Ciencia y Literatura, SA de CV, 2013, 284p. 243-259.

 

VIGNA, Elvira. 5 mil toques é tudo o que ele tem a dizer – a voz de Paulo do romance Nada a dizer. In: Suplemento Pernambuco. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, # 51, maio de 2010. pp 16.
– inserção no volume Ficcionais, organizado pelo editor do Suplemento, Schneider Carpeggiani, 2012, pp. 57-59.

 

VIGNA, Elvira. Lugares, talvez um fim para contar. In: Suplemento Pernambuco. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, no 71, janeiro de 2012., pp 4-5.

 

VIGNA, Elvira. Retrato em cores frias (Arquivo Aberto). In: Caderno Ilustríssima. São Paulo: jornal Folha de São Paulo, 18/09/2011. pp 7.

 

VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor (parte 3) – Eles têm a chave uns dos outros. In: Suplemento Pernambuco. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, #60, fevereiro de 2011. pp 20-21.

VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor (parte 2) – No momento em que a viagem não nos move. In: Suplemento Pernambuco. Recife: Cia. Ed. de Pernambuco, #53, julho de 2010. pp 24.

VIGNA, Elvira. O que deu para fazer em matéria de história de amor (parte 1). In: jornal Rascunho. Curitiba: ed. Letras & Livros, nov. 2009. pp 28-29.

VIGNA, Elvira. Confissões. In: Ser mãe é tudo de bom. São Paulo: Editora Matrix, 2008. pp 71-75.

 

VIGNA, Elvira. I+zil+d=inha. In: + 30 mulheres. Rio de Janeiro: ed. Record, 2005. pp 205-302.

VIGNA, Elvira. Mais um caso de violência choca a cidade. In: Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. pp 61.

VIGNA, Elvira. Foi ao sentir o cheiro dele que Izildinha deu uma relaxada. In: Todos os sentidos. Rio de Janeiro: CL edições autorais, 2003. pp 27-37.
– prêmio Melhor Livro de Contos da União Brasileira de Escritores.

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TEXTOS TEÓRICOS

 

Texto publicado pelo suplemento pernambuco de setembro/2016, pg. 03, seção ‘bastidores’

 

Palestra O vão entre o trem e a plataforma, puc-poa, 20/05/2016

 

Apresentação de meus livros na feira de gotemburgo, em setembro/2015 

 

Vídeo da entrevista com Edney Silvestre, globonews, 13/03/2015

 

Apresentação Literatura e experiência, de 14/11/2014, de Belo Horizonte

 

Apresentação Pessoas perdidas, em trânsito ou de passagem, de 19/09/2014, na Primeira Festa do Livro do Vale do São Francisco, Petrolina – Pernambuco

 

Entrevista a Tanay Gonçalvez Notargiacomo, publicada no anuário de literatura da UFSC, Florianópolis, v.18, n. esp. 1, p. 255-260, 2013.

 

Apresentação A menina de lá e os meninos de cá, para a unb em 18/10/2013
(apresentado anteriormente em 17/09/2013 na semana de literatura do sesc-paraná)

Apresentação Concomitância dos efêmeros (ou como ler os clássicos), para a pucrgs em 25/10/2012
(posteriormente publicado como artigo pelo suplemento Pernambuco #83, de janeiro de 2013)


Apresentação Tentativas sobre o conto, as dançarinas de Degas, n
o festival nacional do conto de Jaraguá do Sul 09/08/2012
(posteriormente publicado como artigo pelo jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, em 11/08/2012)


Apresentação Escritas incômodas, para a prefeitura de belo horizonte em 19/04/2012

Apresentação Os narradores, em duas partes:
vídeo “narradores” para o site da sorbonne iv (40 minutos);
1) texto-base do vídeo “narradores”;
2) texto suplementar apresentado em palestra na sorbonne iv em 10/01/2012.

 

Apresentação O som das palavras, em duas partes:
O som das palavras: possibilidades e limites da novela, um adendo, na unb em 29/06/2011;
O som das palavras: possibilidades e limites da novela gráfica. In: Revista Estudos de literatura brasileira contemporânea # 37. Brasilia: UnB, 2011, pp. 105-122.(texto reproduzido em repositório internacional de textos acadêmicos, sistema Redalyc, via Universidad Autónoma del Estado de México)

 

Vídeo Um escritor na biblioteca, na biblioteca pública do paraná, em junho de 2011.
I    II     III

 

Coisas que os homens não entendem e Camões. In: revista Navegações, volume 5, n. 2 (jul/dez 2012).  Porto Alegre: PUC-RS, p. 228-233

 

VIGNA, Elvira: Icléa Goldberg. In: GOLDBERG, Icléa. Objetos extremos. Rio de Janeiro: Galeria Anna Maria Niemeyer, 2011.

 

VIGNA. Elvira: Monica Barki. In: BARKI, Monica. Arquivo Sensível. Rio de Janeiro: Aeroplano editora, 2011.

 

VIGNA, Elvira: A boa fala. In: PELLANDA, Luís. As melhores entrevistas do Rascunho, vol. 1. Curitiba: Arquipélago Editorial, 2010, pp 66-81.

 

 

 

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas – críticas

ELVIRA VIGNA: COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS (Companhia das Letras, 2016, 212p.)  uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

  • prêmio APCA de Melhor Romance – 2016;

 

 

 

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‘Prosa inquietante de Elvira Vigna chega a um novo patamar’, em ilustrada da Folha de São Paulo, 28/01/2017, por Camila Von Holdefer.

Um homem, João, relata seus encontros com garotas de programa diante de uma jovem sem nome, narradora do livro.

Se em “Por Escrito”, de 2014, a escritora Elvira Vigna já havia subido o tom, em “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas”, lançado em 2016, a autora alcança um novo patamar. O humor peculiar continua ali, mas convive com uma espécie de ferocidade nova.

De modo que Vigna passa a ocupar, quando se considera uma série de fatores, um nicho próprio. “Inquietante” é um epíteto fácil para uma obra que vem se destacando desde “Deixei Ele Lá e Vim”, de 2006. E o que inquieta é justamente o caráter único da prosa de Vigna.

Não que a ferocidade não estivesse lá antes. O que muda é a intensidade e o caráter dessa ferocidade. A impressão que se tem é que Vigna finalmente mostra os dentes, em um gesto que é simultaneamente um esgar agressivo e uma gargalhada. O artifício serve para zombar da fragilidade da masculinidade, dos inúteis jogos de poder, da procura exaustiva por algo que pode estar ali ao lado.

Enquanto enumera suas aventuras em um escritório mal-iluminado, João vê a si mesmo como um transgressor. A narradora sabe que não é bem assim. A matéria-prima do romance é, portanto, um clichê. O personagem de João é um estereótipo.

As garotas de programa são meros instrumentos que possibilitam a João uma fuga contínua. João não as vê como pessoas, mas como telas em branco em que ele projeta o que deseja. Uma sucede a outra, compondo uma espécie de palimpsesto.

A intenção da autora era justamente ressaltar o que há de ordinário em João. Partindo do lugar-comum, ou seja, a mediocridade do personagem, o enredo se desdobra a fim de encadear eventos antes insuspeitos.

Como os demais narradores da obra de Vigna, a de “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” também se encontra em uma espécie de encruzilhada.

Seria possível dizer que os personagens criados pela autora são todos desiludidos, não fosse essa uma descrição inexata. Sempre há um resquício de deslumbramento que pode, quando considerado em oposição à agressividade e à melancolia, passar por idiossincrasia.

“Como se Estivéssemos…” é marcada por uma série de conceitos opostos, entre eles os de mudança e estagnação. Entre Heráclito e Parmênides, Vigna fica com ambos.

Mesmo o estilo do livro é dúbio. Pela forma – cortes abruptos, períodos curtos -, é um milagre que a escrita escape de ser rígida. Pode parecer estranho, mas a descrição de uma boate frequentada por João serve bem para definir a própria narrativa: “Ah, sim, tudo se move, tudo nunca está parado, e se moveriam devagar, sinuosos, tudo e todos, mesmo se não houvesse, como há, o ritmo”.

COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS
AUTORA    Elvira Vigna
EDITORA   Companhia das Letras
QUANTO    R$ 44,90  (216 págs.)
AVALIAÇAO: ótimo. *****

 

 

Entre a palavra e a imagem, em Magazine de O Tempo – 31/12/16, Belo  Horizonte, Priscila Brito

 

Considerada um dos maiores nomes da literatura nacional em atividade e agraciada neste ano com o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor romance por “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” (Companhia das Letras, 214 págs.), Elvira Vigna, 70, relativiza e faz provocações sobre esses títulos. Em entrevista ao Magazine, a escritora também fala de seus projetos atuais, a editora Uva Limão, especializada em publicações acadêmicas, e o livro “Kafkianas”. Ainda sem editor, a obra traz contos de Franz Kafka revistos por Vigna com o suporte de desenhos da própria escritora, evidenciando o uso dos dois instrumentos que ela afirma serem seus meios de realização: palavra e imagem.

“Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” foi seu lançamento neste ano. Você está satisfeita com a recepção do romance?

Estou, sim. Tive medo de o livro ter uma acolhida superficial, grosseira, por conta do palavrão do título, mas não foi isso que aconteceu. Recebi resenhas excelentes (no sentido de serem análises acuradas, aprofundadas – e não só no sentido de serem positivas).

O livro ganhou o prêmio de melhor romance pela APCA. Que significado prêmios desse tipo têm para você?

A APCA tem boa fama. Afinal, a instituição é formada por críticos profissionais, em geral com background acadêmico irrepreensível. Mas prêmios nem sempre falam da qualidade do livro premiado. Considero natural: os jurados são pessoas, têm gostos pessoais, agendas regionais etc. Então, respondendo a tua pergunta: para mim, pessoalmente, prêmios não querem dizer muito. Para os livros, os prêmios são importantes. A grande imprensa não dá um espaço para literatura, e prêmios chamam a atenção para esforços que, do contrário, poderiam passar despercebidos.

O que motivou a criação da Uva Limão? Qual o principal objetivo da editora?

Foi uma iniciativa da minha filha, Carolina Vigna, sou apenas sócia. Meu filho também tem uma editora, a Estado da Arte, onde eu também sou sócia.

A editora tem até o momento três publicações. Há outros projetos em curso?

Há, sim. Mas ela pretende ir sempre bem devagar para manter a qualidade altíssima que oferece nas edições. Serão basicamente e-books na linha acadêmica, com revisão de texto (incluindo ABNT), traduções/versões de pequenos trechos, abstracts e citações, diagramação por designer e orientação sobre imagens. A Estado da Arte cuida principalmente de traduções de obras inteiras (ficcionais, inclusive).

Você cuida das redes sociais da Uva Limão – e as postagens têm muito bom humor, diga-se de passagem. Você gosta de redes sociais ou faz uso apenas profissional desses canais?

Não. Eu gosto muitíssimo da liberdade da internet. E (acho, não tenho certeza) o uso de rede social pode até trazer benefícios profissionais, mas disponho dessa comunicação principalmente por me trazer benefícios pessoais: é uma maneira de conhecer pessoas interessantes e divertidas.

Na minibiografia que consta em seu site, você menciona primeiramente seu trabalho como jornalista. Em seguida, fala de sua atuação como editora, do seu currículo acadêmico, dos trabalhos de artes visuais e do curso de cinema. Enfim, no último parágrafo, fala de seu trabalho de escritora, que é o que te tornou conhecida. Qual o peso que o trabalho de escritora tem nesse conjunto diversificado de atividades, tendo em vista tudo o mais que você realiza?

Na verdade, se você for ver, trata-se de vários usos de um mesmo instrumento, aliás, dois: a imagem e a palavra. Os dois, hoje, na minha vida, têm peso igual. Com isso quero dizer que me realizo – ou melhor, posso me realizar – da mesma maneira desenhando ou escrevendo livros.

Você fez um curso de roteiro e chegou a roteirizar livros seus. Foi apenas uma forma de exercitar o que foi aprendido ou você deseja um dia ver esses roteiros de fato virarem filme ou irem para a TV?

Tudo começou como um exercício de escrita. A linguagem do roteiro me parecia ter qualidades que eu gostaria de incorporar. E, de fato, passei (acho eu) a escrever com um peso ainda maior no visual do que já fazia antes, e acho isso bom. Quanto a livros meus virarem filmes, acho que eu não gostaria de fazer esses roteiros, da mesma forma que não gostava de ilustrar meus textos infantojuvenis do início da minha vida profissional. Acho bem-vinda a visão de outra pessoa. Enriquece.

Você tem algum projeto de artes visuais em curso?

Tenho um livro para jovens adultos chamado “Kafkianas”, em que, como acontece no meu “Vitória Valentina”, parte da narrativa se dá por meio de imagens. São contos do Kafka recontados por mim. Na minha visão, Kafka, antes de tudo, não obedeceu a fronteiras: mortos e vivos se falam, bichos e pessoas não são tão diferentes assim, muros não devem ser respeitados etc. Esse meu pensamento está expresso principalmente nos desenhos que abrem cada “reconto”. Esse livro, no momento, ainda está sem editor. Além dele, tenho também prontos projetos para textos do Tino Freitas e da Roseana Murray. O da Rose deve sair por uma editora mineira, a Lê, da Lourdinha (Mendes). O do Tino ainda está sem editor.

No documentário “Chico – Artista Brasileiro”, Chico Buarque fala sobre certo status de superstar dos escritores hoje em dia. Ele diz que antigamente o escritor era uma figura reclusa, mas hoje é colocado à frente dos holofotes, e escrever um livro implica estar presente em feiras literárias, falar com o público, fazer noites de autógrafos. Qual sua percepção sobre isso?

Faz parte de um processo que não acho positivo, que é o da espetacularização de tudo e todos. Mas, no caso de escritores, não esquento muito, não. Acho que, em princípio, ao escrever ou desenhar, o que eu queria desde o começo era me comunicar. De modo que se trata apenas de mais um jeito de me comunicar: num microfone!

É bastante comum você ser adjetivada como uma das grandes escritoras brasileiras da atualidade. Como você encara isso?

Acho engraçado. A língua portuguesa nos prega uma peça: uma das grandes e eu fico sem saber se o feminino me coloca na concorrência com outras grandes escritoras que, sim, temos. Ou se, por um milagre, o machismo e o sexismo não estão atuantes e seria eu um dos grandes escritores – independente de gênero – de hoje. Prefiro a segunda opção!

A Clara Averbuck já declarou que você foi uma das responsáveis por ela ter-se tornado escritora. Quem foram os responsáveis por você ter-se tornado escritora?

Ah, todos os adolescentes meus colegas de escola que não me consideravam bonita ou popular o suficiente para frequentar as rodinhas mais cool de Copacabana. Obrigada, queridos!!!

 

 

 

 

Prostituição, sexo e ego masculino – HomoLiteratus, 07/12/2016 – Estela Santos

 

Ao começar a ler Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016), de Elvira Vigna, a primeira coisa que salta aos olhos é a linguagem, que rompe com o tradicionalismo literário, e depois as temáticas nele apresentadas, as quais saem do que é corriqueiro e frequente na literatura brasileira.
A narradora apresenta um vocabulário simples, direto, com frases curtas e poucos adjetivos, marcado pela oralidade. Os fatos apresentados não estão dispostos de modo linear no romance, o qual é composto em blocos, por meio de fragmentos, pensamentos e memórias, reflexões e até suposições sobre aquilo que poderia ter sido, mas que não há como saber: um constante jogo de linguagem que exige um leitor atento.
De início, o romance traz o personagem João em diálogo com a narradora. Um homem maduro e casado que narra suas constantes saídas com prostitutas para sua colega de trabalho, que ele parece julgar ser lésbica pelo seu modo de vestir e sua cara fechada, e que parece que pensar que ela é uma boa pessoa para conversar sobre o assunto, uma vez que ela mora com uma prostituta; talvez conseguiria entendê-lo. João apresenta-se como um homem um tanto caricato, bastante egocêntrico, um tanto babaca e também machista. No entanto, julga-se transgressor e acredita que as prostitutas com as quais se relacionou também são transgressoras em suas vidas.
João tem duas vidas. Uma que ele julga transgressora, na qual vive encontrando-se com prostitutas em viagens de trabalho e até levando-as para hotéis onde ele se instalava; estas mulheres, julgadas como transgressoras, são apresentadas por ele como meras ferramentas e peças em sua vida, para sua habitual tentativa de se sentir bem e vivo.  A outra vida, que ele parece julgar necessária e inatingível, é ao lado de Lola, sua esposa; uma vida bem montada e estável, onde a sua mulher parece ser mero ornamento, ou também uma simples ferramenta para o seu bem-estar.
De fato, no início do romance, ele é o típico homem que tem como lema: liberdade, aventuras sexuais e constantes risadas. Uma caricatura de homem machista. No entanto, conforme fatos são apresentados pela narradora, João passar a ser um homem de mais carne e osso, se assim é possível dizer. Não deixa de ser um homem machista, mas é apresentado como um ser humano com medos, emoções, extremamente frágil (como todo ser humano) e repleto de contradições, não somente em suas práticas, mas também em seus pensamentos, isto é, por meio de fatos que a narradora apresenta e que surpreende o leitor: o típico babaca ganha dimensões humanas.
Elvira Vigna, em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, apresenta ainda um texto totalmente contrário a visões estereotipadas no que diz respeito à prostituição e ao sexo. Suas visões sobre ambos assuntos estão longe de preconceitos, idealizações e exageros literários que beiram achismos e visões deturpadas.
Em relação ao sexo, o romance de Vigna não o trata como boa parte do mercado editorial. Pelo contrário, o sexo é descrito como parte da necessidade humana, que não, necessariamente, é belo. Pode ser, e muitas vezes o é, sujo e feito às pressas, de qualquer maneira para suprir necessidades subjetivas. Uma visão crua e bastante realista do que é o sexo na maioria das vezes, sem sentimentalismo barato, sem grandes questionamentos existenciais e sem visões politicamente corretas.
Também não há visões politicamente corretas em relação à representação da prostituta no romance. As prostitutas com as quais o personagem João se envolvia, pagando ou não pelo sexo, não são representadas como deusas da sexualidade e também não são representadas de modo de modo preconceituoso, como reles mulheres que ganham a vida com sexo,  seres sem carga e dimensão humana, apenas objetos de desejo. E isto que é bastante interessante no livro. São apresentadas como seres humanos, iguais a todos nós, com suas vidas sociais e seus problemas, sua família e seus sonhos. São mulheres que são prostitutas e batalham todos os dias para sobreviver neste imenso caos que é a vida. A impressão que temos, ao ler o romance é que João, de fato, fala das prostitutas de modo bastante caricatural, mas a narradora expande isso, apresenta-nos fatos e detalhes que marcam pontualmente a condição de ser humano, que merece respeito, das mulheres que se prostituem.
Outra questão muito marcada no romance e que deve, inclusive, chamar muito a atenção de suas leitoras mulheres é a figura do homem enquanto conquistador, se assim podemos dizer. A narradora quebra a visão do macho-foda-comedor-conquistador-irresistível. Apresenta a disputa de egos que os homens vivenciam, o jogo no qual disputam quem é mais homem. Homens que, em suas viagens e em seu trabalho, buscam ser superiores aos amigos e colegas de trabalho em relação ao quesito sexo, em relação às mulheres. Um eterno jogo de egos para ver quem é mais homem de acordo com quem se relaciona com mais mulheres, um jogo quantitativo bizarro. Mulheres estas, envolvidas em suas aventuras sexuais, que em grande parte são universitárias e mães tentando tirar uma grana para conseguirem estudar e dar de comer aos seus filhos, enfim: ter uma vida relativamente digna.

 

Monte de leituras e A Tribuna de Santos, por Alfredo Monte, 22/11/ 2016

(Ele espantado com ele mesmo, demorando para terminar aquele café da manhã, mais uma xícara, e mais uma.
Porque ele nota que não foi o xixi, o problema. Foi a ideia de que a garota estava achando o que ela falava importante).
Elvira Vigna deixa seus leitores, inclusive os críticos, como baratas tontas. Eu, por exemplo, já considerava “Por Escrito” o auge da sua produção, e eis que ela publica COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PLAIMPSESTO DE PUTAS¸ um livro ainda mais extraordinário e cruel, com suas recorrentes personagens de origem humilde que reinventam, mesmo carregando os traços do passado.
O incrível do romance é que ela parte de um fio mínimo de enredo: a narradora e João trocam intimidades no escritório prestes a ser fechado. João não consegue dominar a compulsão de procurar garotas de programa.
A partir daí nós vamos desvendando o passado e o futuro por várias décadas, tudo misturado labiríntico. A chave desse jogo exasperante, é que não apenas o vivido surge, como também o possível não-realizado; ou seja, as ausências são importantes quanto a existência “real”. Temos uma narradora que faz suposições, e lança hipóteses admitido que não tem controle das vidas de João e Lola. Por isso, as cenas são retomadas, e algum detalhe não percebido, muda toda a sua interpretação dos fatos, o que permiti que, nas suas últimas páginas, Elvira Vigna atinja o cume da prosa de ficção da literatura deste século.
Esperando uma nova obra perturbadora, eu me pergunto: Como não se descobriu que Elvira Vigna é a nossa maior escritora da atualidade?
“Lola fica lá, pensando, sozinha. E ela está um pouco triste porque risadas, principalmente as internas, quando acabam, é assim mesmo. Fica, na ausência delas, a tristeza que estava lá desde sempre”.

 

 

Ácida e sulfúrica, na revista Cult, por Ronaldo Bressane, setembro/2016

Em seu novo romance, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, a escritora carioca Elvira Vigna exercita sua verve demoníaca ao esquadrinhar a vida de um dependente de garotas de programa

Elvira Vigna é daquele tipo de escritora que, como Lydia Davis ou André Sant’Anna, tem um estilo tão marcante que faz com que o leitor passe a ver o mundo com a sintaxe e a perspectiva do livro que acabou de ler. Ao terminar Como se estivésemos em palimpsesto e putas (Companhia das Letras), os olhos do leitor estarão chorando com o colírio venenoso despejado a conta-gotas pela escritora carioca de 69 anos pródiga em frases e parágrafos curtos, afiados como estiletes.
Conforme demonstrou em livros anteriores como O que deu para fazer em matéria de história de amor, Por escrito ou Nada a dizer, Vigna se debruça sobre relações entre homens e mulheres sem um pingo de sentimentalismo. Seu método, na linguagem, procura enfocar a migalha do relacionamento em vez de se preocupar com o sabor ou o mofo do pão de cada dia amoroso. O troco, o miúdo e o mesquinho ganham sua forma com uma pontuação em pizzicato: pontos e vírgulas que esmiúçam períodos reunindo a narrativa em síncopes e soquinhos, trancos e barrancos.
Não é agradável.
Mas Elvira Vigna não quer ser agradável.
Ela quer é enfiar um cisco no seu olho.
Talvez sua linguagem nunca tenha se aproximado tanto de seu tema quanto nesse Palimpsesto. “Aquilo que se raspa para escrever de novo”, o palimpsesto designa um tipo de papiro ou pergaminho usado na Idade Média que permitia ser reutilizado após lavado ou raspado com pedra-pomes. Muitos textos clássicos foram perdidos por causa desse método; mas tecnologias avançadas conseguem hoje recuperar os que estavam escritos sob aqueles que lhe tomaramo o lugar.
Do mesmo modo, a linguagem de Vigna vai raspando o que estava escrito antes para melhor recombinar a narrativa. E a narrativa é sempre a mesma: os encontros de João com prostitutas – um exercício quase mecânico que vai aos poucos perdendo o sentido, uma vez que João nunca se sacia nem satisfaz o interesse da narradora do livro. Tudo começa quando dois estranhos por acaso se encontram num escritório atulhado de livros, no arrasador verão carioca: ela é uma designer em busca de trabalho, ele foi contratado para informatizar uma editora em estado falimentar. Nessa espécie de limbo, todo dia ele rememora a ela seus encontros com garotas de programa quando era jovem.
“João entra em um dos cubículos, afastando uma aba do plástico azul que, essa, não está presa em nada, descendo solta da estrutura de alumínio. É uma abertura à guisa de porta. Os cubículos não têm propriamente porta. Não têm teto e também não têm paredes. O que seriam as divisões entre eles é o mesmo plástico azul meio solto, meio preso, que pousa no chão, mas não muito. Então não é o caso de se encostar em nada porque a pessoa pode acabar encostando, sem querer, em alguém que está fazendo a mesma coisa no cubículo ao lado.
A garota diz para João deixar os sapatos do lado de fora.
João acha, num primeiro momento, que sapatos do lado de fora são uma preocupação com higiene. Depois percebe que é uma maneira, talvez a única, além da auditiva, a indicar que o cubículo em questão está ocupado.
Depois, um colchão no chão.”
É desse jeito mequetrefe que João começa a praticar sua arte: transas furtivas com moças desgraciosas, pagas com cachês irrisórios em troca de ejaculações precoces em cafofos de edifícios decadentes (a de cima é uma das “saunas pobres” que existem depois que as repartições públicas de Brasília fecham às seis da tarde, uma sacada hilária). A obsessão sexual de João é totalmente desglamourizada por Vigna, em sua linguagem seca, direta, objetiva e sublinhada por um humor oblíquo ao mesmo tempo cruel e compassivo: as muitas repetições são dissipadas pelas contínuas piscadas de olho ao leitor. Os intercursos que se sucedem quase idênticos seriam deprimentes não fosse o humor de Vigna.
Em um livro antissentimental, cada personagem tem sua psicologia esquadrinhada por uma lupa feito um rato em um laboratório-labirinto. Tal como na guerra conjugal de Dalton Trevisan, tudo é típico no mundo de Elvira Vigna – mas até mesmo os tipos têm suas idiossincrasias. Representante comercial da Xerox (daí nascerá seu impulso ao sexo copiado em série?), o carioca João viaja pelo Brasil enquanto sua esposinha Lola, uma ex-praticante de nado sincronizado, trabalha como corretora imobiliária e fica bonitinha esperando o maridinho voltar. O maridinho aproveita as viagens para ocupar as noites vazias com garotas de programa. As visitas são para João um tempero ficcional, uma forma de se transformar em outro homem, de escapar para um mundo de fantasia – ainda que seja o mesmo insosso mundo toda noite. A própria repetição desse gesto fascina a narradora e, por consequência, o leitor.
A narradora é um caso à parte. Ela vai sendo introduzida aos poucos no romance à medida que nos perguntamos quem seria, afinal, a pessoa que arranca e comenta as proezas tesas de João. A Sheherazade talvez seja a própria Vigna, então uma designer que compartilha um escritório em Botafogo com João – agora um alto executivo de uma grande editora -, onde bebem uísque em copinhos de plástico enquanto ele desfia suas presepadas. Na época, ela divide um apartamento com Mariana, uma prostituta que tem um filho, Gael, por quem às vezes demonstra “uma saudade absurda”, raro resquício de ternura. Por sua inexpressividade, Mariana simpoliza o tipo de garota de programa qu João procurava:
“‘Uma garota novinha, tesudinha.’
E descrevia mais ou menos uma mariana.
Por muito tempo achei que ser novinha era uma fixação mais para a pedofilia da parte dele. Independente se era ou não, acho que também queria dizer que as garotas não tinham marcas. Eram novinhas no sentido de que não tinham marcas, gestos, expressões, coisas que as individualizassem. De algumas ele lembrava alguma coisa, um nariz um pouco maior, um jeito mais sacana de rir inflando as narinas ou franzindo o nariz. Ou era ele que punha, nelas, características, lembranças e ilações que nelas não havia. Da maior parte das garotas, nada ou quase nada ficou para ele.”
Vigna é uma narradora não confiável, posto que o tempo todo deixa claro que preenche as lacunas das histórias de João com suas ilações e juízos. Ouvir João é um modo de ouvir, pelo avesso, Mariana e, por que não, Lola. É um modo de reindividualizar mulheres que não têm peso nem serventia para o mundo, de reinvidicar personalidades a essas bonecas inanimadas. A estrutura do romance, por sua vez, construído em fugas, do tempo presente ao passado e daí ao pretérito imperfeito de cada personagem, em si é uma metáfora da impossibilidade de João se estabelecer como um porto seguro. João é o que foge, de uma mulher para outra, sempre voltando para Lola. Daí então o ponto de fuga de todo romance residir na ambígua psicologia da mulher de João.
“Porque quero contar, eu, o que é de outra autoria. E não estou falando de João.
Porque é isso o que faço agora: estabeleço uma autoria. Não a minha. Nem a de João. De Lola, a grande ausente, a de quem não falávamos. A que estava fora de tudo.
É sobre ela, isso.”
Assim, outra camada narrativa desse Palimpsesto refere-se não só às escapadas de João, ou às tentativas de Vigna representar essas escapadas, mas ao universo de Lola, de quem João escapa, porém nunca escapa. Um retrato de Lola, a enganada, seria o grande objeto do romance. No entanto, ela também escapa o tempo todo – até sua impressionante virada de jogo no final, depois que se separa de João, ao pegá-lo no pulo.
Como o romance, de certa forma, nasceu dentro de uma editora – entre as estantes de livros do escritório em que ambos jogam conversa fora -, Vigna faz questão de mostrar-lhe suas estruturas, alicerces e convenções. E o que sustenta a trama são os jogos de poder do pequeno mundo de João. Como espertamente o sociólogo Robert Michels escreveu, “qualquer coisa no mundo trata de sexo, menos o sexo em si: o sexo trata de poder”. João justifica para a narradora que procura garotas de programa “para ter uma transgressão na vida”, mas também para alimentar uma velha fantasia de infância: “o garoto pobre em frente à loja de doces”.
Da cronologia ziguezagueante, estruturada em idas e vindas ao passado – mas sempre narrada no presente -, o livro se complica com a entrada em cena de outros personagens. Há o arquiteto, um empreendedor com quem a narradora planeja comprar apartamentos velhos, reformá-los e então vendê-los a um alto preço. Um desses apartamentos é comprado pela narradora, que por coincidência passa a ser vizinha de João. Há também Lurien, uma travesti vizinha da narradora e de João. A princípio antagonistas, João e Lurien acabam de tornando amigos. E há, sobretudo, Cuíca, colega de firma de João com quem ele costuma ir a puteiros famosos, tais como o nostálgico castelinho da Kilt na Praça Roosevelt, em São Paulo. Em outra sequência engraçadíssima, Cuíca convida João e coleguinhas para um gangbang com uma garota em um hotel – mas João “amarela”.
“Garota de programa é uma coisa, assim, de meninos”, João analisa. “Meninos, apenas, que não sabem o que fazer, o dinheirinho na mão, na frente da vitrine de doces da padaria. Só isso.” Para confrontar sua tese de que só vai trás de garotas de programa como um exercício imaginário de poder, a narradora diz a João: “Pra mim, vender a buceta ou o bíceps é exatamente a mesma coisa”. João se esquece de que, em uma transação comercial, o poder nem sempre está com quem compra – talvez, sobretudo, com quem vende. “João e seus colegas buscam um gozo sob controle. Pagam, controlam. Buscam também, e é engraçado pensar isso assim junto com a necessidade de controle, estar livre de regras e controles. E buscam, além disso, a sensação de que são superiores aos outros, embora estejam fazendo exatamente a mesma coisa, todos.”
A comédia de erros desse Palimpsesto soluciona-se quando as camadas narrativas de João, Lola, Lurien, Cuíca, o Arquiteto e da narradora – deliciada com o caótico caminhar dos fatos – se sobrepõem e se interpenetram, dando origem a surpeeendentes ocorrências. Uma verdadeira suruba da qual o leitor participa como um animado voyeur. Não vou aqui estragar a experiência do leitor com o desfecho inquietante – um final que nem mesmo a narradora tem certeza se aconteceu de verdade. Uma vingança, uma derrota, uma amargura? Esse divertido romance de Elvira Vigna sublinha o que já desconfiávamos: nada é muito real no que acontece com um homem e uma mulher entre quatro paredes.

 

 

Inverso e reverso, Pedro Fernandes, 01/09/2016

O termo que salta aos olhos do leitor nesse título de Elvira Vigna é, não o que parece ao olhar comum, o que encerra a expressâo, e sim palimpsesto. Isso porque é essa a manera como a narradora compõe a narrativa: uma variação sobre um mesmo tom, ora derivado de um acontetcimento, ora uma repetição, ora ainda um acontecimento sobre outro, como se num processo de contínua recriação. Essa maneira que é, por fim, a composição da própria estrutura desse romance se não é um todo inédita no tratamento do fato ficcional é uma maneira muito original no âmbito da literatura brasileira contemporânea. Vejam: não se trata de uma narrativa estratificada pela diversidade de pontos de vista ou pela exploração de uma mesma situação por ângulos diferentes – para citar duas possibilidades estruturais há muito repetidas por escritores; trata-se de um conjunto de situações marcadas pelo mesmo tempo que tanto se repetem quanto se sobrepõem uma à outra; um texto construindo-se ora por subtexto ora por hipotexto. É um puzzle que, cada vez que o leitor avança, melhor constrói uma possibilidade sobre o narrado.
Nesse sentido, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, pela própria estrutura, rompe com a ideia de narrativa enquanto externalização de um acontecimento. Claro, esse exercício de subversão do contar remete para a literatura de Marcel Proust – porque intimista e, logo, centrada numa interioridade psíquica do eu-que-narra – mas aqui na maneira de contar dessa narradora de Elvira Vigna é a própria certeza sobre o que se diz o que é colocado em xeque: também não é a substituição do realizado pela sua possibilidade essa inovação a que nos referimos, é a maneira como a escritora constrói esse possível, assim como a sugestão oferecida pelo termo palimpsesto, impressa desde o título da obra. A escritora constrói uma narradora que – ao contrário daqueles narradores clássicos cuja força do narrado é medida pela veracidade do relato – gaba-se de contar o que não viveu, viu, mal ouviu. E prefere externalizar, como se uma fantasista, não algo sobre si, mas sobre um casal, Lola e João.
Até parece – imagina o leitor ingênuo – que estará numa história de amor das comuns, o que, evidentemente, não se concretizará (e agora nossa atenção recai sobre o útimo termo do título) devido ao tratamento de dissociação que logo se poderá fazer entre o comum das histórias de amor, sempre pensadas entre figuras amparadas pelo ideal estabelecido social e culturalmente de uma ordem fundada sobretudo nos princípios machistas. E é esse modelo, altivo embora corrompido desde o levante da burguesia, o criticado implacavelmente por Elvira Vigna neste romance. Lola e João, as figuras principais da imaginação dessa narradora (fornecidas ambas pelo ponto de vista de João, em quem  ninguém deve se fiar), formam o casal bem apresentado socialmente. Enquanto ele, muito ciente da posição farsesca que construiu para si e para os outros, mantém a vida como se uma longa avenida marcada pelo uso de todas as mulheres que se lhe atravessam. Talvez porque ele nunca se desvencilhe do padrão macho-caçador e esteja, pela vida profissional que criou, favorecido pelo sexo fácil, produto de outra relação corruptora, a do capital.
O ir e vir da narradora, que por vezes age como se conversasse com João (seja porque é o ponto de vista e as situações dele filtradas por ela), lhe permite desconfiar e duvidar da gabolice dele. E aos poucos revela, não uma face dessa personagem work in progress – visto não nos ser oferecido, mesmo que a narradora tenha em parte esse interesse, um retrato realista seu; mas, quando muito, um amontoado de visões que dão à personagem um caráter de figura deformada, cubista: acentuada em algumas características e esmaecida em outras. Também, apesar de ter para si todas as possibilidades de construção de uma figura caricata, risível, rebaixada da sua condição, essa narradora prefere, ao investigar sobre a maneira de seu comportamento maníaco por mulheres, dizer que o homem, dessa maneira, é já criatura risível e caricata. Não é tarefa da visão literária distorcê-la a esse limite. Muito embora essa escolha da narradora possa demonstrar, primeiro por uma atração sexual (não há como esquecer nos traços de fantasia que ela constrói com esse garanhão um qualquer de não interesse em usurpar esse lugar do homem); mas, olhando mais atentamente para essa tela cubista, o que prevalece é a constatação de que não se pode ridicularizar o que já-é ridículo. Anotemos aqui o que a certa altura se apresenta como um vazio enfrentado por João, o de ir e vir sedento com outros pela noite e já incapaz de se o garanhão de quando jovem.
Nesse território do possível em que se pode cogitar mesmo uma projeção imaginária de quem narra, um fascínio pela descoberta de João no interesse atento dela – sempre julgado porque a convicção dele é de que esteja diante de uma lésbica e, por isso, tem a liberdade que tem de expor sua vida sexual – arma-se outra reflexão, esta talvez a mais cara para a mulher. É a figura entrevista de Lola, quem só se mostra por entre os relatos de João, como um pálido sujeito não visto por ele.  Ora ciente e conivente com tudo, ora iludida por acreditar que a manutenção de um status quo social é motivo para não desconfiar de uma possível vida pregressa levada por João. Até que compreendida esta, decide-se pela separação, numa clara alusão ao extenso movimento de resistência das mulheres pela dignidade e não só isso, desccobre-se possível a vender o corpo igualmente por valor muito alto só pela prazer de ver o homem que sempre lhe humilhou às favas.
Ainda nesse tema sobre a condição da mulher é necessário não esquecer da extensa galeria de mulheres anônimas que transitam pelos quartos de hotéis, bordéis, casas de prostiuição, campo ideal para servir a tipos como João e os amigos. Ou ainda, por outro lado, a não menos extensa galeria de mulheres resignadas à condição de apresentáveis à sociedade. Aos olhos dessa narradora, a história do homem é movida pela força do sexo e este é o grande produto na história do capital e da exploração das mulheres pelos homens; e isso, embora designado pela via do imperativo, conforme dissemos, social e cultural. É a revelação de um universo machita que se desdobra pelas confissões naturais de uma figura que tem no sexo oposto a necessidade de edificar sua própria convicção de macho. Claro, fora ao fato de que se refere ao tema, esse romance zela pela compreensão de que não é por essa situação binária tampouco o que faz as mulheres eternamente presas à redoma imposta pelos homens. Elvira Vigna é ciente dos movimentos de ir e vir e sobre os prrocessos de variação das identidades individuais bem como de que a história das subjetividades é contínua movência.
E não é isso até agora exposto o único tema de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas; há toda uma série de outras presenças designadamente históricas e sociais há muito recorrentes quando o assunto é o das relações afetivas e, acrescente-se, o da identidade brasileira. Sobre este útimo ponto, Elvira Vigna não se descuida de lembrar que é papel da literatura fornecer subsídios para pensar sobre o que nos é caro coletivamente:  profanação das relações em nome do capital, a violência, o preconceito, a corrrupção estão, entre outras, no interior das relações mais simples  – como as investigadas nesse romance. Mas recaem sobre o coletivo e sua máquina deteriorada, tal como o conhecemos. É um livro único porque sabe combinar os assuntos mais caros sobre o que somos, individual e coletivamente, com a inventidade estrutural e formal da narrativa. E isso, convenhamos, numa ocasião quando proliferam toda sorte de literaturices e modismos, tem uma valia extrema: lembra-nos que ainda há fôlego no universo criativo da literatura.

 

 

Como se estivéssemos em palimpsesto e putas – Eric Novello, Goodreads, 23/08/16

Li toda a obra da Elvira, desde o comecinho.
Quando o André Conti disse que esse livro era pura Elvira, mas ao mesmo tempo diferente de todos os outros, pensei “hum, sei.” Era como a gravadora dizendo “esse é o disco mais comercial da Bjork”, e a Bjork dizendo “pobre gravadora, sempre diz isso.” Mas nesse caso, o André tem razão.
Esse é um livro diferente. No modo de narrar, mais irônico. Na exposição dessa narradora, aqui mais próxima da autora do que de um personagem construído. Na sua estrutura, que não tem capítulos, e sim uma cadência de blocos de pensamento estruturado, como se fosse uma conversa que vai fluindo, fluindo. E que ao mesmo tempo oferece ao leitor mais momentos de pausa para um café, um xixi, para ir dormir, do que um romance tradicional ofereceria.
O livro vai além de um feminismo também. Não gosto desses termos tipo “pós-feminismo” e tal. E nem de resumir um livro a feminismo, não mesmo. Então eu diria que ele é contemporâneo além do que “literatura brasileira contemporânea” pode abarcar atualmente, sem aquele nariz pra cima de “ó, como sou contemporâneo”. Porque ele é contemporâneo ao quebrar hierarquias babacas que estamos tentando quebrar desde o séc XX. Ele desconstrói um monte de coisas, e mostra homens e mulheres como iguais, ali, olho no olho. Inclusive nas fragilidades, apontadas com muito estilo. Ele coloca as escolhas nas mãos de seus personagens, que é como a vida deveria ser, nossas escolhas nas nossas mãos, e não nas mãos do estado, de religiosos retrógrados, do vizinho fifi, daquele cara que a gente tenta agradar na vida pessoal, família, trabalho.
Seus personagens escolhem por onde seguir. E essas escolhas trazem, obviamente, consequências. Que uns notam mais rápido do que outros, inconsequentes. Até que notam e não tem mais volta.
Ah, o livro não é sobre putas. É sobre vidas. Um homem conta à sua amiga suas histórias sobre as putas com quem dormiu. Pra ele sempre iguais, porque pra ele tanto faz a mulher, sendo ele o protagonista de suas transas. Conta pouco, e o que conta é desinteressante para a amiga, por isso a amiga vai inventando as histórias. Tornando humanas, transformando em pessoas as putas, a esposa, aquilo que o sujeito tenta ver como um artifício de si mesmo. E nisso a narradora inventa (nunca sabemos em que medida) a vida das putas, sua própria vida, a vida do homem com quem se encontra, a vida da esposa de quem o homem pouco comenta, mas que está sempre presente.
São muitos os personagens que passam por esse palimpsesto, um dando lugar ao próximo, numa versão mais firme, menos rascunhada, a cada vez que a narradora repassa na cabeça aquelas histórias. É, de certo modo, um processo de humanização daquilo que nos cerca.
Para quem curte literatura, ãhn, contemporânea, é um prato cheio. Aquela literatura que vai além do “homem branco de meia idade conhece uma menina mais nova que muda sua vida completamente.” Fora um momento mais lento aqui e ali, a história não perde o ritmo.
Ah, para quem escreve, é uma aula. Uma aula de como dizer, onde dizer, quando dizer aquilo que se quer transmitir ao leitor. A estrutura deixa espaço para irmos completando as histórias, do mesmo modo que a narradora faz, e mais tarde retoma esses espaços meio que dizendo “viu só como deu certo?”
E tem o final, um final forte, daqueles que ecoará no leitor por muito, muito tempo, depois que o livro se fecha. Se você nunca leu nada da Elvira Vigna, “Nada a Dizer” e esse “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” são ótimas portas de entrada.

 

 

Guilherme Sobota no Estado de São Paulo de 20/07/2016

(chamada de capa: Elvira Vigna publica décimo romance e continua sua série de exploração formal dos relacionamentos)

O primeiro parágrafo do novo livro de Elvira Vigna, de 69 anos, oferece um resumo involuntário do próprio romance: “Mas nessa hora que faço”, escreve, “vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo”. Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Companhia das Letras) é o décimo romance da escritora carioca, e ninguém vai achar estranho quando um crítico disser que é o melhor deles.

A estrutura formal da narração é um aspecto que a autora explora com um vigor particular na literatura brasileira contemporânea. Aqui, quem conta é uma designer que relembra uma série de conversas com João, um editor que virou seu amigo, e cujo assunto principal era o relacionamento dele com garotas de programa: mas dizer que o assunto principal deste livro é a prostituição seria reduzi-lo. Com uma série de repetições ritmadas entre frases, parágrafos e segmentos, ele se espalha e recompõe a história do casamento de João e a própria trajetória da narradora.

Os livros de Elvira não são explicitamente políticos, mas, entre essas camadas que se formam com a habilidade da escritora em narrar, existe, implícita, uma maneira muito única de ler as relações interpessoais, necessariamente políticas. Não muito fã de entrevistas, Elvira concordou em responder a algumas questões por e-mail.


(a entrevista abaixo foi a que eu mandei pro jornal e não a que foi publicada, que teve trechos cortados)

— Você disse que não queria fazer uma teorização para o trabalho das garotas de programa. Como foi fazer o romance sobre o assunto sem escorregar nesse risco?
Primeiramente, fora Temer.
Agora a entrevista:
Meu romance não é sobre garotas de programa.
É, como todos os outros, sobre relações interpessoais.
Mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens. E Transexuais, para nos lembrarmos que o mundo não é binário e que fica melhor não o sendo.
As mulheres do livro são vistas da mesma maneira, façam ou não programas sexuais.
O perigo de teorização nunca foi meu.
Jamais faria teorização sobre o trabalho de garotas de programa em um romance.
Então nunca tive esse risco.
O risco era que os leitores, esses meus co-autores, o fizessem.

— Porque é tão diferente para o João sentir empatia pelas mulheres (seja sua esposa, sejam as outras garotas com quem ele se relaciona) e pelos homens?
Acho (e me arrisco aqui, por não ter formação em antropologia ou sociologia) que “João” é exemplo de um fenômeno mais geral.
E que abrange mais do que as relações de gêneros.
Uma onda conservadora muito violenta.
Uma vingança contra as tímidas conquistas libertárias que anunciavam um Contemporâneo.
Acho que vale uma comparação com a Renascença européia: várias tentativas até enfim conseguir estabelecer seus novos paradigmas.
“João” é um homem do Moderno, não consegue estabelecer relações equalitárias com mulheres.
É o que mais tem.

— Eu queria que você me falasse dessa opção que você faz dos narradores/as. Porque é sempre alguém que se coloca claramente como narrador, contando a história de outra pessoa, e aí meio que misturando, lembrando, destacando reminiscências, etc… são sempre muitas camadas. Que que você tá buscando com essas camadas? Me parece uma torção da “realidade” tão acentuada que ela… quebra.
A realidade descrita será sempre, primeiro, a realidade do processo de escrita.
Aí tem a realidade que está sendo descrita.
E que caminha junto com o processo de descrevê-la.
O/a narrador/a está sempre, de fato, ele/ela próprio/a, escrevendo algo ou contando algo para alguém.
Às seis em ponto – Tereza fica tentanto dizer ao namorado, com quem está fazendo uma viagem curta, o que aconteceu na viagem curta anterior;
Nada a dizer – a narradora  quer contar o que ela acha que foi uma morte provocada pela amante do marido. Nâo consegue, interrompe antes.
Por escrito –  É uma longa carta de fim-de-caso falando das razões para isso.
E até mesmo nos meus infantis, com que comecei minha atividade de escritora:
O livro A breve história de Asdrubal foi seguido de A verdadeira história de Asdrubal.
O segundo livro contava o que seria a história ‘verdadeira’, ‘oficial’ do primeiro, mas era tudo mentira.
Bem, pode soar familiar hoje, mas era uma refência ao golpe, o militar, o de 1964.

— E nesse livro, inclusive, há uma repetição insistente (entre frases, parágrafos, segmentos), que cria mais uma camada por si só.
Essa é a “camada” (como diz você) que considero mais sofisticada.
Diz respeito exclusivamente à forma.
O livro brinca com as epopéias medievais.
Tem uma cadência, um ritmo; é a métrica, típica deste gênero literário.
Mas os feitos retratados nele não são grandiosos e o grupo de homens responsável por eles não são heróis.
E não pretendo, claro, essa dimensão.

— Esse título é muito bom, e o fato de você ter apagado o primeiro manuscrito (confere?) transforma o próprio livro numa espécie de palimpsesto. O que foi que havia no primeiro rascunho que te desagradou?
Gostei da observação de que o próprio livro é um palimpsesto.
Não tinha notado e adorei.
O primeiro original tinha uma linguagem grave, um tom dramático.
Achei que podia induzir uma leitura/co-autoria moralista, teorizante.
Eu não quis correr o risco da teorização a posteriori de que você falava na primeira pergunta.
Títulos são – em geral, e foi o caso aqui – das últimas coisas de aparecem na escrita dos meus romances.
Esse título tem o ritmo e sílabas tônicas internas de versos de redondilha maior.
A redondilha é uma forma que surgiu na Renascença e foi usada em epopéias inclusive por Camões.
Mas tem, na sua história, um uso mais ameno, mais popular.
Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, portanto, só faz sentido como título da segunda versão, a versão publicada.
Não se aplicaria na primeira, que não chegou a ganhar título.
Chico Buarque parece também gostar da cadência e, me parece, pelos mesmos motivos (um ar mais leve para epopéias mais atuais):
“O meu pai e-ra pau-lis-ta”
“Meu a-vô per-nam-bu-ca-no”
“O meu bi-sa-vô mi-nei-ro”
“Meu ta-ta-ra-vô bai-a-no”
“Meu ma-es-tro so-be-ra-no”
“Foi An-to-nio bra-si-lei-ro”

— Você fala de um fake-feminismo em mais de um momento nesse livro, como na comparação entre minissaia e long neck. Cito: “quem inclina seu longo pescoço para além do espaço previamente demarcado do feminino. Porque o espaço continua sendo previamente demarcado”. O que é esse fake feminismo? Quão problemático ele é? Você acha que tem alguma coisa a ver com as redes sociais?
É uma estratégia usual.
Você pega uma reivindicação legítima mas difícil de atender; dá algo parecido e menor; e anuncia o atendimento que, não, não houve.
Na questão em pauta são frases do tipo: ‘mas, veja só, este evento literário é dedicado à mulher!’
Respondendo à segunda parte da tua pergunta:
Acho a internet tudo de bom. Acho redes sociais um instrumento ótimo de equalização e denúncia.
Acho que a espetacularização do ‘eu’ e a falsa aparência de sucessos irreais – inclusive na luta de gêneros – é um aspecto dos mais nefastos do nosso capitalismo tardio.
Não uma consequência de redes sociais, como quer a antropóloga Paula Sibilia e como você sugere na sua pergunta.

— No filme ‘A Grande Beleza’, do Paolo Sorrentino (a quem eu cito por considerar uma experiência estética bem diferente da sua), um personagem, homem, depois de ser chamado de misógino, diz: “Não sou misógino, sou misantropo, porque até no ódio há que se ter ambição”. Isso faz algum sentido para você?
A frase é ótima e vou adotá-la.
Mas acho dois fenônemos bem diferentes.
Acho que a misoginia atual, tão prevalente, é uma reação à perda de poder do estar-no-mundo masculino.
E, veja bem, esse estar-no-mundo inclui indivíduos com ou sem o apêndice sexual masculino; é uma ideologia.
Acho mesmo que a misoginia de fundo religioso recebe uma espécie de tolerância de setores – que se dizem liberais e mesmo de esquerda – por uma questão de identificação.
É a mesma raiva pela perda de um poder – aliás, fantasmático, imaginado, ideológico – de religiosos e laicos que então se unem, uns na ação, outros na inação.
Já a misantropia, olha só, consigo entender mais facilmente!!
Estou brincando.
Uma espécie animal que constrói cidades para viver em grupo não pode ser de todo má.

  — Seus livros não são estritamente políticos, mas existe uma dose grande de relações políticas entre aquelas camadas que mencionei. O que você está pensando sobre a situação política do Brasil esses dias?
Agora você me pegou.
Acho que a única, ou pelo menos a mais importante, função do Estado é a de incluir quem foi jogado para fora.
E aí tenho consciência de uma contradição no meu pensamento.
Pois que dentro é esse, não?, que desejo para quem está fora?
O dentro geográfico do Estado-Nação?
O dentro de uma mesma cultura (quando sei que elas são sempre uma construção a partir de um passado feito e refeito)? E qual das culturas ditas brasileiras eu escolheria?
O dentro da abrangência de um  mesmo código-civil (feito necessariamente por uma elite que, no nosso caso, é bem pouco elucidada)?
Complicado.
Mas, ainda assim, sim, sou por um Estado Includente.
O que significa laico e anti-mercado (que é quem exclui).
O que significa lealdades (alianças) com excluídos e não com quem exclui.

— São Paulo passou a ser sua cidade definitiva, é isso mesmo? Rio, nunca mais?
De definitivo não tenho nada na vida.
O Rio me dói.
Sou muito velha. Vou falar de coisas que você não conheceu.
Um Rio de músicos, criadores, pensadores, em cada esquina, em cada bar.
De Vila Isabel a Ipanema, os subúrbios, andar pelas ruas era uma aula sobre vanguardas.
Agora é uma cidade de culto ao corpo.
Esportes, com sorte, cafajestes, no mais das vezes.
Quem sabe muda outra vez.

 

 

 

 

Fabrício Vieira – Valor Econômico – 29/07/2016   

A recriação do que pode ter sido
Em seu décimo romance, Elvira Vigna apresenta uma linguagem direta e envolvente, criando uma complexa rede temporal (legenda da foto)
O nome de Elvira Vigna talvez ainda não ecoe como deveria quando se fala em literatura brasileira contemporânea. Uma das grandes escritoras da atualidade, Elvira chega a seu décimo romance mostrando domínio pleno da arte narrativa. Este novo “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” é um dos momentos fortes de sua trajetória literária iniciada em meados dos anos 80 com a publicação do hoje fora de catálogo “Sete Anos e um Dia”.
Por trás de uma aparente simplicidade, sob uma linguagem direta, com frases curtas e sem divisão em capítulos, o romance se desenvolve por meio de um bem arquitetado complexo temporal, em que lentamente vamos conhecendo os protagonistas. João e a narradora se encontram todas as tardes em um abafado escritório no Rio de Janeiro. Ele conta sobre seus muitos encontros com prostitutas. Ela ouve e, em sua imaginação, tapa as lacunas dos relatos, recriando as histórias e os personagens a seu modo, em um jogo no qual é cada vez mais difícil saber o que de fato aconteceu.
As histórias de João com as garotas de programa se sucedem em camadas sem fim e, apesar de algumas variantes, sempre repetidas, como em um sintoma neurótico que retorna de forma irrefreável – a narradora parece assumir a posição de psicanalista, sentada no sofá nas quentes tardes apenas ouvindo o que ele parece ter necessidade de revelar.
A agilidade narrativa logo enreda o leitor e o arrasta por uma intrincada construção temporal, em que os encontros com João ora parecem acontecer no momento em que se narra, ora em algum ponto indefinido do passado. A primeira noite com uma prostituta, as muitas vivências em hotéis baratos, os quartos de bordéis, os apartamentos minúsculos das garotas, as escapadas durante o período em que foi casado, o divórcio, a ex-mulher, Lola, aos poucos vamos, entre idas e vindas no tempo, montando o mosaico da vida de João.
A narradora também fala sobre ela. É aí que saberemos que se trata de uma jovem designer à procura de emprego, que vai até a editora onde João trabalha – ele foi contratado para informatizar a empresa – e, mesmo sem conseguir uma resposta positiva para o projeto de reforma que oferece (“fazer uma modernização da livraria da editora”), acaba retornando todos os dias para ouvir suas histórias. João se sente à vontade para desabafar após saber que ela divide o apartamento com uma garota de programa, Mariana – é como se a narradora fosse a escuta ideal, alguém que, de alguma forma, estaria próxima ao mundo que tanto o seduz, mas sem estar maculada por ele.
A narração dos infinitos encontros de João é cheia de lacunas, superficial, o que faz sua interlocutora recriar os acontecimentos, fantasiando como seriam as garotas, as vidas e desejos dessas anônimas. “Uma garota de programa por cima de outra garota de programa, sem nunca individualizá-las, acabá-las, sempre faltando alguma coisa, calcando mais da próxima vez, quem sabe agora. Até a última”, diz ela. Esse esquema vale também para a ex-mulher de João, Lola, de quem ele praticamente não fala, mas que vamos conhecendo progressivamente através da narradora.
Entre o que João revela, o que a narradora conta e o que de fato correu pode haver um abismo, nunca saberemos com certeza. “Não sei se aconteceu. (…) Acho que pode ter acontecido”, diz ela, por exemplo, após contar algo sobre Lola. Com os desdobramentos dos relatos, outros personagens surgem em cena, além das várias mulheres que chegam e desaparecem, como o amigo Cuíca, Mariana e Lurien, o vizinho transexual.
Além das garotas que se sobrepõem nos relatos de João, o palimpsesto do título pode remeter também à própria criação do romance. Elvira tem contado em entrevistas que esta é uma segunda versão do livro: a primeira que escreveu acabou no lixo, pois estava muito pesada, fora do tom desejado. Ao leitor que apreciar o livro, fica a angústia da primeira versão perdida, esse texto oculto sob a obra final.
A cuidadosa escrita de Elvira já rendeu algumas importantes premiações a ela, como a de melhor ficção da Academia Brasileira de Letras (ABL) e o segundo lugar no Prêmio Oceanos (antigo Portugal Telecom). O que falta é ser descoberta por um público mais amplo, que muito perde desconhecendo sua obra.
“Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas”
Elvira Vigna, Companhia das Letras, 216 págs., R$ 44,90. / AA+
AAA  Excepcional / AA+  Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco)

 

 

 

resenha de  rodolfo viana, caderno ilustrada da folha de são paulo, 02/01/2016

Foram quase 40 dias isolada em um pequeno apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro, escrevendo um romance sobre as incursões sexuais de um homem com garotas de programa. Ao terminá-lo, Elvira Vigna leu o que havia produzido e, em seguida, deletou o arquivo. “Joguei fora”, diz, sem remorso algum, a escritora e artista plástica de 68 anos, que recentemente foi segundo lugar no Prêmio Oceanos de Literatura. “Havia um peso ali que eu não queria.”
“Como se Estivéssemos em Um Palimpsesto de Putas”, que será lançado pela Companhia das Letras no primeiro semestre de 2016, é a história reescrita – agora, com a densidade estética que a autora julga ideal. A narrativa traz João, um sujeito casado que relata à narradora suas transas com prostitutas.
“Eu queria um livro em que não houvesse diferença entre quem presta um serviço sexual e quem não presta”, explica Elvira.”Na primeira versão, Lola [mulher de João] tinha uma presença mais dramática e, com isso, embora não fosse minha intenção, as garotas de programa ficaram numa posição de serem alvos de teorizações. Eu não queria isso, de jeito nenum.”
Moralismo não cabe na obra: prostituta e esposa têm o mesmo peso, pois são feitas da mesma matéria “Tem inclusive uma frase – que eu não vou saber repetir textualmente -, mas é mais ou menos assim: se João conseguisse se dar ao trabalho de olhar para qualquer uma das mulheres com quem se relacionava, ele poderia ter se encantado”, comenta.
“A frase é dita de maneira que não há nenhuma diferença entre a mulher dele, o eu – a narradora, que é uma jovenzinha – e a amante. Era isso que eu queria dizer.”

QUESTÃO DE GÊNERO

Se, por um lado, o julgamento de valor passa em branco nas páginas do livro, por outro extrapola qualquer ficção e transborda na realidade. Elvira acredita que existe uma expectativa silenciosa para que a mulher trate de certos assuntos “de uma maneira mais distante, menos detalhada”.
O sexo é um desses assuntos, e não apenas na literatura. Elvira, que também tem uma carreira premiada como artísta gráfica – com um Prêmio Jabuti em Ilustração em 2013, pelas imagens de “Primeira Palavra”, de Tino Freitas, e trabalhos nas bienais de Bratislava, na Eslováquia, e Brno, na República Checa -, observa que, enquanto “o nu feminino não choca”, a nudez do homem causa espanto, sobretudo se for objeto de arte de uma mulher.
“Eu tenho uma marchande mineira que levou para vender uma coleção quase anódina de desenhos de nus masculinos”, comenta. “São nus frontais – mostra ‘piru’ e tal – e ela me contou que tem tido dificuldade, que as pessoas ficam chocadas. Uma mulher desenhando um homem nu deixa as pessoas um pouco desestabilizadas.”
E ainda que escape do machismo escancarado, esbarra no preconceito velado, escondido em notícias que, apenas à primeira vista, soam positivas.
Recentemente, ao se deparar com notícias que apontavam 2015 como um ano favorável às mulheres em premiações literárias, Elvira se sentiu ofendida.
“O livro da Maria Valéria [Rezende, autora de ‘Quarenta Dias’, obra que ganhou o Jabuti de 2015 como Ficção do Ano] e o meu são os dois melhores livros de 2014, eu não tenho a menor dúvida. Então alguém botar a manchete ressaltando o fato de sermos mulheres é diminuir a ideia de que o livro possa ser bom por si mesmo.”

 

 

 

editorial do suplemento pernambuco # 118, dezembro 2015
Escolher o mais novo romance de Elvira Vigna para ilustrar a capa da última edição de 2015 do Suplemento Pernambuco não foi uma decisão aleatória. A escrita e o posicionamento político da autora, dentro e fora da sua literatura, falam de questões que nos interessam para refletir sobre esse ano estranho que acaba de passar, ano de emergências: da luta do movimento feminista e, num plano maior, da busca por um mundo possível diante de tantas adversidades. Elvira não escreve sobre isso, nem para isso. Mas isso, leia-se, a inquietação, está nela. E fechar o ano colocando em relevo esse desassossego a partir de personagens que dialogam com o conflito entre o ser moderno e o ser contemporâneo diz muito sobre o lugar que a literatura deve ocupar. Em uma conversa exclusiva com nossa editora Carol Almeida, Elvira fala desses desvios, de palavras e ideias, e das desconstruções que precisam ser feitas. O Pernambuco é o primeiro meio de comunicação do país a escrever sobre Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, que será lançado no primeiro semestre de 2016 pela Companhia das Letras, um livro que dialoga diretamente com as construções sociais de homem e mulher em nossa sociedade patriarcal.

 


 

trabalhos acadêmicos:

Os espaçamentos de Elvira Vigna – Leonardo Tonus em Estudos Lusófonos – dez. 2015

 

A construção do real – Elvira Vigna – março 2017, palestras sobre o mesmo assunto em universidades brasileiras.

 

texto-base para a palestra na biblioteca são paulo (estação carandiru) com mediação de manuel da costa pinto em 20/08/2016;

vídeo da palestra na biblioteca carandiru: https://www.youtube.com/watch?v=-QWSvZhNGlY;

 

E no entanto (texto competo)

Sempre falo, nos meus livros, de acontecimentos vividos, vistos ou ouvidos. São reais as pessoas, os lugares e as ações. O livro começa, muito antes das primeiras palavras serem digitadas, quando há um encontro entre dois tempo. Algo objetivo, externo, no tempo presente da minha vida, evoca um acontecimento passado, também objetivo. Para haver esse encontro, preciso de uma série de fatores, esses sim internos, emocionais, psicológicos. Num processo de ficcionalização que começa, como vou explicar, desde o momento mesmo do registro mneumônico do passado, e segue em grau crescente a cada vez que o registro é recuperado, esse encontro dos dois tempos é o momento em que passo a considerar tal registro do passado como matéria ficcional. Embora real.

Então, outra vez, é tudo real. A junção desse tudo é ficcional. Não porque o que está dito seja inventado. Não é. Mas porque o que não está dito faz, daquilo que está dito, uma ficção. O que digo é uma escolha, e é minha. Outro a contar a mesma história contaria outra história porque escolheria outras coisas, também reais, para dizer. O que escolho para dizer a respeito do acontecimento vivido tem uma finalidade simples. Serve para responder a uma pergunta que faço para mim mesma: o que foi aquilo?

Porque essas lembranças nunca fazem o menor sentido.

Esse texto tem três partes: na primeira, falo do acontecimento real que vai ser contado; na segunda, falo como o acontecimento real que é contado só pode ser ficção; na terceira, falo sobre aquele que conta, o narrador.

 

 

I – O que é contado

Conto então uma lembrança.

Não são todos os tipos de lembrança que me servem para dar início a um livro.

Uso lembranças-imagens.

Não considero que os outros tipos de lembrança tenham a polissemia necessária para que eu dê início a um texto. Há uma diferença entre lembranças e memórias. As memórias já nascem integradas a uma estrutura, uma lógica ou cronologia. A lembrança é só aquilo mesmo. Sem lógica inerente.

As memórias que não uso são as memórias buscadas, em seus três subtitpos e as memórias coletivas. Vou explicar o porquê:

 

1) As memórias buscadas (esse vocabulário é do Paul Ricoeur).

a – A memória buscada simples em geral cobre um acontecimento de duração mais longa que tem elos com a experiências de vida de quem conta, mas não só. Seus lapsos exigem uma pesquisa para serem cobertos. Essa pesquisa impõe uma linguagem impessoal, fria.

b – A memória buscada com indício. Neste caso, há algo concreto que diz respeito ao acontecimento vivido. É um pouco melhor do que a anterior, porque o indício garante algo vivo daquilo que pode se transformar facilmente em mais um tedioso exercício de documentação. Mas o índice também raz um perigo: será em volta dele que  escrita vai se organizar. Portanto, a memória buscada com índice traz uma estrutura rígida bem cedo na gênese da escrita o que, a meu ver, é um defeito.

Esse indício pode ser uma foto, uma visita a uma casa antiga hoje com outra função, roupas de pessoas que morreram etc.

c – A memória buscada impedida. É igual à memória buscada com indício, só que o indício é interno, psicológico e traumático. O termo aqui é de Freud, e é sintoma neurótico. A pessoa não pode se lembrar do vivida por ser nuito assustador e transfere sua lembrança para algo próximo, para uma sinapse ocorrida no momento do registro mneumônico. Não gosto dessa também porque não acho que literatura deva ter função psicanalítica como motivação inicial.

No entanto, reconheço possibilidades de lembranças-impedidas nos meus livros, como a repetição de mortes talvez criminosas que aparecem mesmo quando eu achava que não iam aparecer.

d – Uma espécie radical de memória buscada é a que não existe. Vai ser criada. Ela terá uma estrutura determinada pelo autor, antes mesmo de virar memória. É um processo artificial de memorização. Um exemplo é quando você se expõe voluntariamente a algo que você acha que vai ser importante ou impactante, já com o intuito de escrever a respeito. E toma nota de tudo que acontece. O que, aliás, te impede de avaliar a importância ou sentir o impacto de seja lá o que for.

 

A memória buscada, seja de qual tipo for, tem também, a meu ver, outro defeito. Ela não se beneficia do processo de esquecimento. Não lhe é permitido ter lapsos e, assim sendo, não oferece picos emocionais. Fica tudo igual. Sem o esquecimento, essa lembrança não tem seletividade, não é, por assim dizer, pessoal. É muito fria.

 

2)  A memória coletiva. Não é ‘solta’, está integrada em uma contextualização sempre muito contaminada por agendas politico-ideológicas. E, além disso, tem também a seu desfavor uma situação problemática com o tempo, já que é um tropos constitutivo de uma identidade coletiva. Ou seja, é algo que aconteceu no passado, tem função no presente e uma projeção utilitarista no futuro.

Além disso, essa memória – que já vem, portanto, com uma narrativa manipulada e manipuladora com a qual eu não necessariamente concordo – só se sustenta frente ao ‘outro’ através de uma coerção. Qualquer lembrança individual pode colocar a qualquer momento uma memória coletiva em cheque. Só o descrédito prévio dos discordantes a faz continuar de pé. E a memória coletiva quase sempre existe com o intuito de dourar, amenizar, um acontecimento violento perpetrado pelo próprio grupo.

 

Então, resumindo. O início dos meus textos é uma lembrança-imagem. Melhor dizendo, uma lembrança-sensorial, já que ela pode ser visual, mas também auditiva ou olfativa. E ela me chega evocada, não buscada. No vocabulário de Bergson é a ‘recordação instantânea’ e não a ‘recordação laboriosa’.

E eu gosto dela e não das outras porque ela é o início mais polissêmico que existe. O que equivale a dizer, o início mais livre que consigo obter, mas também o mais difícil, falho e sem desenvolvimento pré-traçado.

 

 

II – O que é aquilo que é contado ficcionalmente por alguém para outro alguém, a respeito de algo que, sim, aconteceu

 

1) Então o primeiro evento da escrita de um livro meu é a evocação involuntária de uma lembrança-imagem que não me vem como um quadro completo, compreensível, do acontecimento traumático a que ela se refere. Ela me traz apenas elementos a partir dos quais vou tentar reconstruir algo legível, em vez de visível. Tem uma diferença grande aí entre o lógico e o analógico.

Além disso, é mesmo embaraçoso confessar que o ponto de partida, essa lembrança-imagem, é diferente  já, ela própria, do que de fato houve, embora seja o que há de mais verdadeiro a respeito daquilo. Isso porque quando vivi o acontecimento, não fiquei olhando em volta, registrando a cena, entendendo tudo à medida mesmo em que vivia. Não. Eu, enquanto vivia e durante todo o tempo que se passou desde o vivido e até o momento do início do livro, eu não entendi nada.

 

2) O segundo passo é o reconhecimento dessa lembrança-imagem como algo válido, verdadeiro, que diz respeito ao mesmo tempo àquilo que aconteceu no meu passado e ao que acaba de acontecer no meu presente. Então, nesse segundo passo, a lembrança-imagem aparece na minha cabeça sem eu pedir ou esperar, e reconheço ela como sendo algo que fala verdadeiramente do acontecimento, embora saiba, já, que não é bem assim. Estabeleço o reconhecimento como um ato de vontade, uma decisão. É verdadeiro e pronto.

Piora. O próprio ato de reconhecer essa lembrança-imagem – que já não era tão confiável assim no momento mesmo do seu registro, pois nela falta quase tudo – não é, esse próprio ato de reconhecimento, confiável. O reconhecimento da lembrança-imagem é suspeito porque está contaminado pela passagem do tempo e inclui várias narrativas anteriores que fiz sobre a mesma lembrança-imagem, nas várias vezes em que ela foi evocada e reconhecida, desde o seu registro, até o momento em que vou usá-la para dar início a um livro.

Não só o reconhecimento da lembrança-imagem já é falho por esses dois motivos – falha ela, de nascença, e falho ele, pelas narrativas a ele integradas, como também vai ser falho por um terceiro motivo: eu mudei. Quem reconhece a lembrança-imagem na hora de fazer o livro não é a mesma pessoa que viveu o acontecimento, nem quem juntou narrativas a cada vez que fez esse reconhecimento antes. Minhas ansiedades mudam. Mudam minhas perguntas a respeito daquele acontecimento que nunca entendi.

E só insisto na feitura do livro porque essa lembrança-imagem, capenga a mais não poder,  mantém ainda assim um grau de familiaridade com o real, mesmo dentro de um unheimlich freudiano inevitável. Então, embora saiba que não é bem assim, nem na origem nem no que resta, mantenho a convicção, para mim, de que a lembrança que tenho e sobre a qual vou trabalhar é uma unidade valiosa de um dado momento da minha vida, que ela é legítima. De um certo modo, sirvo de testemunha – no sentido quase jurídico – de mim mesma. Dou testemunho de que aquilo que ali está de fato aconteceu. Sou assim então uma falsa testemunha de mim mesma.

Digo: Eu estava lá, foi assim mesmo. E emposto a voz para fingir que sou testemunha confiável.

Então, até aqui. Tenho uma lembrança-imagem falha, que reconheço como verdadeira sendo que esse reconhecimento eu também sei que é falho, porque um tempo se passou e eu sou outra, minhas condições psíquicas e emocionais são outras, e a lembrança também mudou porque incorporou outras lembranças e outras informações.

Então eu já não posso dizer se estou no terreno da verdade ou da ficção desde aqui. E ainda não teclei uma letra do livro.

Há mais um problema, e vou falar mais dele depois: para quem eu falo, para quem dou esse falso testemunho que juro que ser verdadeiro, e é. De que modo esse alguém me escuta.

 

3) O terceiro passo é recuperar o lugar e o tempo em que o acontecimento se deu. À epoca do acontecido, o entorno pode não ter me parecido importante e sequer constar da minha lembrança-imagem, mas hoje preciso disso, ao sentar para escrever. Agora,  não dá mais para me manter no âmbito estrito da lembrança-imagem.

Amplio ela, trabalho ela. Não ‘lembro’ mais o acontecimento. ‘Me lembro’ do acontecimento. Entro de fato em uma ação consciente sobre aquilo que veio de graça. “Me lembro’. Isso é uma ação, um trabalho feito.

Esse trabalho tem uma existência. Ele reinvidica um status de verdade ao lado daquilo que decidi que era verdade, ou o mais verdade que dá para ser.

Não tento, ao iniciar então o texto, uma representação do acontecimento.

O texto é um trabalho, uma experiência, ele também. A feitura desse texto é algo a ser vivido, narrar tem o mesmo status de acontecimento daquilo que está sendo narrado.

Por ser considerada, portanto, como uma experiência de vida tão verdadeira quanto o assunto dela, a narrativa não tem outro jeito senão existir de fato, lado a lado com o acontecido, dentro dela própria.

E, assim como o acontecimento que vira lembrança-imagem, que vira reconhecimento, que vira livro, a narrativa, ela também, tem um caminho próprio, uma vida própria.

A narrativa, à medida que passa a existir, vai falar comigo e me apontar verdades que eu desconhecia. São verdades que nascem dela e não mais de mim e de meus falhos processos mneumônicos. E preciso me manter humilde, não impositiva, com ouvidos abertos para escutar.

Há uma coerência aqui, que não é mais conteudística ou, no meu caso – já que trabalho com o vivido ou com o que acho que foi vivido -, referencial. É uma coerência puramente narrativa, e preciso aceitar isso. Não sou a dona de nada.

Então, começo a pensar no tempo e no espaço. Na continuidade temporal de quem viveu um acontecimento e vai trabalhar sobre a lembrança dele. Estou falando de uma identidade que, como todas as identidades, tem o sonho da casa própria. De se manter estável, reconhecível, através da passagem do tempo. É a terceira parte dessa apresentação.

Mas antes, preciso decidir qual tratamento do tempo me parece mais verdadeiro para aquilo que quero contar. Pode ser uma cronologia facilmente inteligível, externa a mim. Ou uma sequência não-cronológica, emocional, interna.

Aqui já estou falando de uma trama. Aqui já estou na narrativa. Embora ainda não tenha escrito nada. Mas já estou vendo na minha frente o tempo e o lugar, e com isso, uma percepção melhor das coisas e pessoas. Uma estruturação. Aquilo que evitei até aqui. Mas de onde vejo isso? Ou, em outras palavras, de onde narro?

Cabe a esse lugar, que pode ser chamado de narrador, levar à frente a empreitada que partiu, então, como eu disse:

  1. a) de uma má percepção, já que no momento do acontecimento eu não tinha controle de todos os fatores, não sabia de tudo, aliás de quase nada, e estava sujeita a pressões e afecções pessoais e grupais;
  2. b) de uma má retenção mneumônica que provocou e provoca um mau reconhecimento da percepção inicial, já que, no decorrer do tempo, a lembrança-imagem foi se modificando a cada vez que era evocada e eu fui me modificando a cada vez que com ela me defrontava.
  3. c) de uma ausência total de estruturação, sinônimo por exeemplo do storyboard dos americanos. E isso porque a história a ser contada no livro – história essa que eu nunca soube qual é e cujo reconhecimento não é confiável – muda a partir da resposta que a narrativa aos poucos me dá à pergunta que faço a ela, e que por sua vez, também muda. Então, como posso estruturar de antemão a narrativa de algo que desconheço e que me será desvelado, com sorte, durante a própria feitura da narrativa?

Então, outra vez. Não sei a resposta daquilo que pergunto antes do nanossegundo mesmo em que essa resposta se apresenta aos meus olhos, na tela, na frase que faço. A resposta à minha pergunta vem, ou não, a partir do próprio caminhar da narrativa, o que não é antecipável por mim e que tem, para mim, status de acontecimento, tanto quanto o acontecimento que é o motivo de ela existir.

E aqui chego perto de uma coisa que também é visto como algo antecipável ou controlável e que, para mim, não o é: o estilo. Não tenho. Tenho uma poética. Coisas que se repetem, como as mortes criminosas de que já falei. Ou as frases curtas de uma contenção emocional que me é necessária até para conseguir escrever, já que trato de acontecimentos duros da minha vida. Não tenho um sistema de regras que encontrei por acaso ou inventei, e que repito porque funcionam. Tenho um jeito de fazer. E que não funciona.

E no entanto continuo contando histórias.

 

 

III – Quem conta

Tem uma analogia de que gosto. As narrativas que partem de acontecimentos, como as minhas, são como cidades. Elas se mantêm reconhecíveis, com um nome, se inserem no âmbito de uma verdade, de uma realidade. Mas há construções que se erguem, e que se relacionam com uma dada tradição arquitetônica ou que, pelo contrário, trazem à cidade uma renovação. Outras mantém um rastro emocional do vivido ou o destróem. São registros de tempos diferentes. Mas a cidade se dá a ver – porque partiu de uma lembrança-imagem considerada o tempo todo como válida. E se dá a ler, pois traz um sentido, oferece um significado histórico, digo, de histórias, que a imagem não dava. E mais, ao morar nela sou testemunha disso, são histórias que existem e existiram. Acontecem e aconteceram.

Quero dizer com isso que, assim como em uma cidade, nos meus livros o narrar se integra ao narrado, é ele próprio um acontecimento traumático, não passível de compreensão no âmbito da lógica e que, como qualquer outro trauma, não termina quando acaba. Há nas cidades, e nos livros, a co-autoria de um ‘outro’, que se estende para um depois, e essa co-autoria será integrada a mim quando eu lá voltar.

 

O texto ficcional é alguém dizendo alguma coisa a alguém, a respeito de algo. Já é complicado e é preciso incluir, ainda, esses co-autores, que recebem esse algo sobre outro algo, carregando uma expectativa deles-leitores, estruturada por sua visão própria de mundo. Reconfiguram tudo.

Há uma resistência da literatura e de seus estudiosos contra elementos extratextuais. A análise da literatura, seu conteúdo e valor, é considerada interna, enclausurada. Não é essa a postura que adoto. E não por estratégias quase infantis para impor como verdade uma verdade que estou longe de considerar como tal. Mas porque exibo o fazer ao mesmo tempo em que o faço. Já disse antes aqui que o narrar, em dado momento, se põe de pé e compete de igual para igual com o que é narrado. O narrar está presente e do jeito mesmo que é: falho, hesitante, perplexo, pedestre. Não é um juiz quem escreve, é um historiador (ou melhor ainda, um cartógrafo).

Lembrar de alguma coisa é lembrar de um si-mesmo. A identidade de alguém supõe um si-mesmo de agora reconhecível, nomeável.

Para encobrir que não sou, hoje, em pleno movimento, reconhecível ou nomeável, estabeleço o que eu chamo de triunfo da presença, também chamado de verdade. É uma espécie de teste: o que, ou quem, ou onde, está aquilo capaz de resolver esse impasse de um si-mesmo mutante, e me devolver, de forma mais ou menos inteira, à mim mesma enquanto narro. Ou seja, o que, quem ou onde está o olhar exterior capaz de me fazer verdadeira enquanto narro.

Aqui dou mais um passo na estruturação iniciada com a inclusão de um espaço e tempo narrativos. Agora chamo, para me ajudar, algumas apropriações. São as associações de ideias que recusei naquele primeiro momento ao escolher como ponto de partida apenas lembranças-imagens não buscadas, portanto não estruturadas, portanto muito polissêmicas. Agora as coisas vão entrando num funil, por um lado, já que imponho uma ordenação. Mas por outro, se ampliam, já que lanço mão do similar, do verossímil.

Eu uso o narrador pessoal e já discorri sobre meus narradores em vários textos teóricos, não vou repetir. Mas o que falei até agora, aqui, indifere se o narrador está na primeira ou na terceira pessoa ou se simplesmente não aparece. Tem a ver com a distância, o ponto de vista em relação àquilo que está sendo narrado. E tem a ver com a noção, hoje bem assimilada, de que o narrador, seja ele quem for e do tipo que for, será sempre o representante de uma situação social, um situ, um lugar dentro de um grupo e, sendo assim, será sempre inconfiável, pois reproduzirá os limites desse lugar de onde fala. O que inclui a posição do narrador-deus, pairando onipotente, onipresente e onisciente. Esse também tem limites, porque estará longe.

Há uma dicotomia prevalente, que diz respeito ao ‘eu’ e ao ‘ele’ da figura do narrador. Eu uso um ‘eu’ abatido. Um ‘quase-ele’. Não é nunca o agente da ação, o dono da verdade. Em uma apresentação espacial, não seria o ‘eu’ dono de alguma coisa, e também não o ‘ele’ enfiado em uma identidade-tipo, coletiva, distante emocionalmente. É um ‘eu’ próximo que não é bem eu. Entre a lembrança individual de dentro e um olhar exterior a mim, meu narrador seria a voz de um afeto, aquela pessoa que oscila em atividades e passividades, em jogos de distanciamentos e aproximações. O narrador não é um ‘eu’ nem um ‘outro’. É uma espécie de amigo meu e é desse lugar que ele me conta.

Ele inventa o que não sabe, e no entanto só fala a verdade.

 

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, 2016

ELVIRA VIGNA: COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS (Brasil, Companhia das Letras,  2016, 212p.)
– prêmio APCA de Melhor Romance – 2016;

 

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Início:

 

Está escuro e tenho frio nas pernas. No entanto, é verão. Outra vez. Deve ser psicológico. Perna psicológica. Faço hora, o que pode ser dito de muitos outros momentos da minha vida. Mas nessa hora que faço, vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo. (Posso dizer a mesma coisa de outras histórias, dessas que às vezes conto.) Lola e João. Acaba de acabar. Então é isso. Verão outra vez, Rio de Janeiro outra vez, e vou começar. Pelo casamento.

 

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas – reviews

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (Brasil, Companhia das Letras, 2016, 212p.)
– best novel 2016 – APCA

 

 


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Café com letras, abril 2016, pg. 91 (Lisboa)
Elvira Vigna publica novo romance em 2016
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é o novo livro de Elvira Vigna, que será lançado pela Companhia das Letras, no Brasil, durante o primeiro semestre de 2016. A escritora de 68 anos, que ficou em segundo lugar no Prémio Oceanos de Literatura, em 2015, revelou ter destruído a primeira versão da obra, para reescrever tudo com a densidade estética que considera ideal.
“Havia um peso ali que eu não queria”, revelou Elvira Vigna.
Trata-se de um livro sobre João, um homem casado que mantém relações sexuais com prostitutas. Durante a escrita, Elvira Vigna demarcou-se de qualquer moralismo, não querendo que houvesse diferenças entre quem presta um serviço sexual e quem não presta. Para a escritora, esposa e prostituta têm o mesmo peso, pois são feitas da mesma matéria.
“Na primeira versão, Lola [mulher de João] tinha uma presença mais dramática e, com isso, embora não fosse minha intenção, as garotas de programa ficaram numa posição de serem alvos de teorizações. Eu não queria isso, de jeito nenhum”, explica a autora.
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” será o décimo romance de Elvira Vigna. Em 2010 ganhou o Prémio Ficção da Academia Brasileira de Letras, com o livro “Nada a dizer” (Companhia das Letras). Além de escritora é artista plástica, tendo sido contemplada com o Prémio Jabuti em Ilustração, em 2013. Expôs nas bienais de Bratislava, na Eslováquia, e Brno, na República Checa.

Como se estivéssemos em palimpsesto de putas – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (Brasil, Companhia das Letras, 2016, 212p.)
– best novel APCA – 2016

 

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Excerpt:

(translator Roberto Lehmann)

 

It’s dark, and my legs are cold. Although it’s summer. Summer again. It must be psychological. A psychological leg. I stall, which can be said of any other moment of my life. But in this one, I’m going to tell a story that I don’t know. I didn’t live it, didn’t see. I barely heard it. But I think this is really like it was. (Which can be said of any other story, one of these I sometimes tell.) Lola and João. It just ended. So that’s it. Summer again, Rio de Janeiro again, and I’ll start. From the marriage.

O que deu para fazer em matéria de história de amor – reviews

ELVIRA VIGNA: O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR (Brasil, Ed. Companhia das Letras, 2012); Den kärlekshistoria som gick att få till (Sweden, Tranan, 2016, 240p.)

 

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Hanna Stjernfeldt in unt.se, 05/03/2016
Den brasilianska författaren Elvira Vignas nya roman på svenska är berättartekniskt intressant och utmanar läsarens förväntningar, skriver Hanna Stjernfeldt.
“Vi har förlorat det anspråksfulla” hävdar den kvinnliga huvudkaraktären i Elvira Vignas andra roman på svenska, och gör en håglös ansats att berätta historien om sig själv och sitt livs kärlek. Den kärlekshistoria som gick att få till är en fantastisk ambition att inte bekräfta den förenklade hollywooddramaturgin. Det storslagna och känslofyllda har söndersmulats av berättarens trötta likgiltighet. Medelmåttigheten, livets enkla och till synes menlösa skeenden, har stället lämnats utrymme.
Delvis är berättelsen en ironisk spegling av medelklassens liknöjda tillvaro, som tar sin början på ett kafé i dagens Rio de Janeiro där den namnlösa huvudkaraktären, en medelålders kvinna, inväntar sin man Roger. Som dröjer. Under tiden hinner kvinnan avslöja romanens innehåll för läsaren. Men hennes syrligt ironiska metakommentarer gör mig inte säkrare på vad det är jag läser. Efter att Roger hunnit infinna sig, efter att kvinnans minnen och fantasier av svärföräldrarnas förflutna har broderats ut i samband med att hon ger sig av för att rensa ut deras gamla lägenhet och jag återigen infinner mig bredvid kvinnan på kafét där historien slutar, känner jag en viss förvirring.
Det är berättartekniskt en mycket intressant roman. Vigna utmanar läsarens förväntningar genom att säga emot sig själv och skildra flera olika versioner av en händelse eller en karaktär. Resultatet blir en annorlunda och stimulerande läsning. Det kanske är författarens konstnärsbakgrund som har satt sin prägel på den vågade formen. Med flertalet romaner bakom sig i Brasilien finns sedan 2005 den första romanen av Vigna på svenska, och det är ett fint initiativ av Tranan att nu fortsätta sin översättning av en författare som idag tillhör en av de mest hyllade bland den brasilianska kritikerkåren.
Vignas berättelse skulle kunna beskrivas som ett uppgivet men samtidigt enträget sökande efter betydelse. Huvudkaraktären kompletterar sina minnen och kännedomar om svärföräldrarna Arno och Roses relation genom att fylla in med bitar från sitt eget förhållande med Roger. Läsaren följer med på pokerkvällar i efterkrigstidens Brasilien under 40-och 50-talet hos svärföräldrarna tillsammans med Arnos bror Gunther och hans fru Ingrid. Det antyds om triangeldraman, otrohetsaffärer, avgörande livslögner och mord. Och Roger är egentligen inte Arnos son.
En grandios och dramatisk berättelse närvarar som en möjlighet, men den realiseras aldrig fullt ut. Istället uppstår luckor i texten som lämnar läsaren i samma ovisshet som kvinnan som undrar vem mannen hon har gift sig med egentligen är. Berättelsen ger uttryck för en syrligt ironisk humor bakom vilken allvaret döljer sig. Kanske är det oviljan att ge upp sitt sökande efter sanningen om sin make som till slut avslöjar kvinnan bakom den hårda masken. Bakom kulissen av likgiltighet och cynism anas ensamhet och svärta. Här antyds om en stark längtan efter kärlek och erkännande, om hur samhällets könsnormer hindrar människor från att älska och självförverkligas. Det som imponerar är hur romanens komplexa bygge och mångbottnade innehåll framställs genom en sådan lågmäld framtoning. Romanen är svindlande motsägelsefull, Elvira Vigna kontrollerar det anspråkslösa så mästerligt att det överträffar det storslagna.

 

 

Andrea Lundgreen, in Svenska Dagbladet, 05, mars, 2016

Något historieskrivningen har lärt oss är att vi människor är narrativa varelser. Vi gillar att berätta, helt enkelt. Och goda berättare förstår vikten av att göra historien intressant för sin publik, att samma historia kan berättas på många olika sätt som helt avgör dess spänningsvärde. Och betydelse. Den ”stora berättelsen” om människan är därför aldrig given utan beror mycket på vem som hållit i pennan. Vill man åt sanningen betraktas detta ofta som problematiskt. Vilken version är rådande? För kanske finns det inte bara en enda sanning om ett liv – utan flera?
Denna fråga tar brasilianskan Elvira Vigna fasta på i sin roman ”Den kärlekshistoria som gick att få till”. Hennes narrativa slughet gör den till ett typexempel på en text där formen är avgörande för innehållet. Berättaren, en grubblande kvinna i en vacklande kärleksrelation, har fått i uppgift att ta hand om sin partners pappa Arnos dödsbo. Under arbetet med att tömma lägenheten försöker hon hitta sanningen om hans och frun Roses till synes kärlekslösa äktenskap.
Utifrån de små minnesfragment hon har provar hon sig fram mellan olika berättelser, tar bort och skriver om, samtidigt som hon tveksamt rensar bland Arnos saker. Varför stannade de hos varandra? Tankarna leder till frågan om vilka ögonblick i någons liv som förtjänar att bli musiksatta mest dramatiskt i minnet. Och om hur historien skiftar om andra ögonblick istället får lite mer stråkar.
Allt eftersom parets berättelse skrivs fram blir en mer personlig intention tydlig. Även hennes egen kärleksrelation med parets vuxne son Roger sätts under lupp. Arnos bror är i själva verket Rogers riktiga far, likheten mellan dem är slående, vilket möjligen drev Arno och Rose att flytta från sonen till en annan stad. Finns det ett trauma här – eller bara likgiltighet? Berättaren tror själv att orsaken till Rogers känslomässiga stumhet ligger dold någonstans bland Arnos färgfläckade penslar och gamla medicinburkar.
Talande är att Arno, som var konstnär, sysslade med så kallad konkret konst. Inom konkretismen döljer sig ingenting under ytan … Inga svårtolkade symboler – inga hemligheter eller svek. Ändå ska hans sista konstverk intressant nog visa sig vara en betydelseladdad nyckel som får den vattentrampande handlingen att börja porla lite snabbare.
Kommer den berättelse om kärlek som jaget försöker formulera istället bli en berättelse om död?
Den mångfacetterade författaren och konstnären Elvira Vigna är uppskattad av många i hemlandet, mycket just för sin lek med stil och form. Grundidén i “Den kärlekshistoria som gick att få till”, att genom formexperiment ställa frågor om narration och sanning, är också det som är mest intressant i romanen.
Själva utförandet är en annan historia. Berättarens småpladdriga och bleka observationer av tillvaron engagerar inte speciellt mycket och den löpande förklaringen av romanens idé förtar dess spänning. Formexperimentet upplevs mest som en byggnadsställning som borde ha tagits bort i efterhand (som man gör när bygget är klart, för att den inte ska vara i vägen). Dessutom kommer den första dramaturgiska höjdpunkten alldeles för sent.
Romanen borde istället ha börjat där eller strax före, två tredjedelar in i handlingen. När det äntligen blir lite drag är jag tyvärr helt obrydd om både Rogers eventuella faderskomplex och om berättaren själv. Kommer hon dumpa honom eller inte? Gäsp.
Den goda historieberättaren ska ju som sagt veta att välja ett framställningssätt som fängslar sin publik. Det lyckas Elvira Vigna, som jag ser det, inte med här. Men om vi ska vi dra några lärdomar av hennes roman är det ju också att den recension som du precis läst, trots allt bara är en tolkning av berättelsen …

 

 

 

dagens nyheter.se, by lars vasa johansson, 29/02/2016

En kvinna städar ur en lägenhet i Sao Paulo. Paret som bodde där, Aron och Rose, kom från Europa under andra världskriget och fick en son, Roger. Men var Roger Arons biologiske son? Var Rose och Aron någonsin lyckliga? En vindlande berättelse om förhållanden, besvikelser och otroheter, med många överraskande vändningar och en metanivå om hur berättaren styr berättelsen.

 

 

bernur, 17/02/2016

Antagligen kommer Brasilien att tjatas sönder och samman under sommarens OS som lär utspelas där. Bara två år efter att landet anordnande fotbolls-VM, vilket föranledde en del utgivningar på svenska. Så också i år, med bland annat Elvira Vignas roman med den smått uppgivna titeln Den kärlekshistoria som gick att få till. Den är översatt av den synnerligen kompetente Örjan Sjögren.
Det är en något bitsk historia Vigna har skrivit. Hennes berättare har viss insikt i ett dött par, Rose och Arno, och deras son Roger, som berättaren har haft en kärleksrelation till – en relation som delvis pågår fortfarande. Arno är konstnär. Rose utmanar sin egen prydhet med att i lägenheten sitta i soffan naken – så mycket att hon en gång ligger med svågern Gunther. Medan Arno är i verkstan – ett badrumsknull på två minuter, som i en Tindersticks-låt.
Det är en temperamentsfull och uppiggande roman. Särskilt inledningens drygt 100 sidor är skrivna finurligt och danslikt. Sedan vidtar de stora överraskningarna, och paradoxalt nog tappar jag något av intresset ju mer Vigna tar i för att förbluffa och lansera häpnadsväckande fakta och ny information. När hon försöker skriva mer originellt blir det ändå bara konventionell prosa. Som kärlekshistoria som aldrig riktigt tar fart fungerar det desto bättre: miraklet som uteblev, liksom, och som sådan kanske det kan fungera som en realistisk skildring. Kärleken är mer prosaisk och mindre omtumlande.
Ofta skapar Vigna en verfremdung-effekt, genom att låta berättaren röra sig från den vid det här laget bekanta opålitliga berättaren till den nyckfulla. Stilen är kantig och skev, växlar mellan det diffusa och det skarpa, och vi får en jämförelse med dansen – en fullt rimlig jämförelse. Det är ett skrivande som tar till vara den korta meningsbyggnadens förtjänster: ”Invandrare. I dag är vi det allesammans. När resan inte förflyttar oss är det omgivningen som flyr från oss, vilket går på ett ut. Så medan allt annat rör sig står vi stilla, invandrare som varje dag försöker ta sig in i sig själva.” Den säregna rytmen gör sig beroende av det där korthuggna, det stenhårt kategoriserande. Nyanserna planas ut.
Vi rör oss bakåt i familjehistorien, bakåt till Tyskland före andra världskriget, för det är därifrån Rose och Arno kommer, innan de hamnar i Brasilien. Världen är en labyrint av upprepningar.
Berättaren är också föraktfull mot Rose, av anledningar som länge förblir oklara. Frågan är om hon är mest dum eller bara elak. Distansen förstärks när berättaren påminner sig själv om att det är just en berättelse hon är med om att forma, en berättelse vars inslag allt mer liknar ett önsketänkande, med kusliga paralleller mellan Rose och hennes egna liv. Allt mer framstår berättaren som en mytoman, eller åtminstone någon som döljer mer än hon avslöjar. Det vi läser blir ren spekulation, eller projiceringar från berättarens sida att hon i brist på fantasi ger Roses liv samma kontur som sitt eget.
Därav titeln: det är en kärlekshistoria som inte fullbordas. Enligt berättaren växer Roger upp med pedofilen Ernie (Ernst), som under flera år medan han är Roses icke-älskare förgriper sig på pojken. Det är en tråd som läggs lite åt sidan av Vigna, när jag hade önskat att hon gjort mer av den och kanske mindre av förhållandet Rose-Arno, med misstanken att Arno mördat sin hustru med giftampuller från ett av sina konstverk.
Det är en temperamentsfull och uppiggande roman. Särskilt inledningens drygt 100 sidor är skrivna finurligt och danslikt. Sedan vidtar de stora överraskningarna, och paradoxalt nog tappar jag något av intresset ju mer Vigna tar i för att förbluffa och lansera häpnadsväckande fakta och ny information. När hon försöker skriva mer originellt blir det ändå bara konventionell prosa. Som kärlekshistoria som aldrig riktigt tar fart fungerar det desto bättre: miraklet som uteblev, liksom, och som sådan kanske det kan fungera som en realistisk skildring. Kärleken är mer prosaisk och mindre omtumlande.

 

 

bokrecension: Thomas Almqvist, mvt.se, 17/02/2016

Elvira Vigna föddes 1947 i Rio de Janeiro. Förutom författare är hon journalist och konstnär och skriver även för barn. Hon debuterade som barnboksförfattare. Hennes romaner kan vara förbryllande, lite mystiska och överraskande, framför allt när det gäller stil och form. Formen har alltid varit viktig för henne liksom själva skapelseprocessen.
I “Den kärlekshistoria som gick att få till” har en kvinna – romanens jag-berättare – tagit på sig uppgiften att tömma och sälja en lägenhet i en liten stad utanför Sao Paoulo. Hon minns lägenhetens tidigare invånare, Arno och Rose, vars äktenskap alltid verkat kärlekslöst. Hon vet att de flydde från andra världskrigets Tyskland och hon vet att deras son Roger inte är Arnos. Hon har själv en invecklad relation med Roger. Hon vet också att fakta alltid förändras, beroende på hur de berättas. Roses och Arnos verkliga historia måste finnas gömd någonstans i lägenheten. Om hon kan göra deras liv till en kärlekshistoria kanske samma sak går att göra med hennes eget liv.
“Den kärlekshistoria som gick att få till” är en roman om hur vårt liv formas av den berättelse vi skapar om det och om hur lätt den berättelsen kan förändras. Berättaren återskapar och gör om Arnos och Roses historia, så att den bättre passar hennes eget minne. Roger blir irriterad när hennes historia om honom inte stämmer med hans eget minne, men vems sanning gäller? Varje människa ståtar med sin egen historia, som förändras med tiden.
Vigna är väldigt detaljerad, eftersom det är i detaljerna som helheten finns. Det är helheten hon söker med sin berättelse. Hon har en högst egensinnig ton och ett väldigt personligt sätt att uttrycka sig och skriver ett mjukt, mycket vackert, poetiskt språk, som ger både tjusning och skapar spänning. Hon vrider och vänder på Arnos och Roses livshistoria och når på så sätt fram till ett svar även på sin egen. Ändå känns romanen märkligt stillastående, trots att berättaren hela tiden uttrycker sig i presens, vilket ger både närvaro- och nukänsla. Om romanen rör sig över huvud taget, så är det i det livfullt skimrande, ofta drastiska språket. Berättarens självironiska distans till skeendet bidrar till balansen i romanen, som också innehåller en hel del humor, om än en svart sådan.
Trots mina invändningar ovan är Vigna ett mycket bra exempel på var den brasilianska litteraturen står i dag och att Örjan Sjögren står för översättningen från portugisiskan borgar också för högsta kvalitet. Tidigare har bara hennes roman “Saker som män inte förstår” (2005) översatts till svenska.

 

 

 

presentation by  världslitteraturen.se, february/2016 and april/2016

Vilken är egentligen den sanna berättelsen om vårt liv?
En namnlös kvinnlig berättare tar en regnig vintermånad på sig uppgiften att tömma och sälja en lägenhet i en strandstad utanför Sao Paolo. Hon har en del minnen av lägenhetens tidigare invånare: Rose och Arno och deras livslånga men svala förhållande. Rose och Arno var föräldrar till Roger, med vilken berättaren har en slingrig kärleksrelation som sträcker sig flera decennier tillbaka i tiden. Hon är ute efter den historia som hon vet döljer sig i lägenheten, den om Rose, Arno och hans bror Gunther och dennes fru Ingrid, som alla flydde till Brasilien från andra världskrigets Tyskland. Hon känner till vissa saker: att de fyra brukade träffas för att spela kort, en flyktig otrohetsaffär, Arnos mediokra konstnärskarriär, tyngden av plågsamma minnen från förr. Annat måste hon hitta på. Hon vet också att fakta förändras beroende på hur de berättas. Det kan bli en kärlekshistoria och det kan bli en historia om ett mord. Och om hon kan göra den till en kärlekshistoria kanske det också är så hon kan se på sitt och Rogers liv.

Romanens berättare inser att en kärlekshistoria måste framställas med hjälp av vardagens små slätstrukna historier istället för dramatiska berättelser med hjältar som kan uträtta stora saker.

 

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Förutom romanförfattare är Elvira Vigna journalist, konstnär och barnboksförfattare. Hon har arbetat för flera viktiga brasilianska dagstidningar och började sin litterära publicering med att ge ut böcker för barn och ungdomar. För dessa fick hon flera nationella och ett japanskt pris. Hennes första vuxenroman, Sete anos e um dia (Sju år och en dag), handlar om en grupp vänner under några år av den politiska processen mot demokrati efter en lång period av diktatur. Efter det har hon gett ut ytterligare fem romaner, samt publicerat noveller i diverse antologier och tidskrifter.
Hennes böcker beskrivs ofta som förbryllande, överraskande och orädda, framför allt i stil och form. Hon har blivit hyllad av kritiker och anses av många vara en av Brasiliens viktigaste författare. Hennes konstnärskap märks i böckerna, hon lägger stor vikt på form och skapelseprocess. Romangestalter återberättar ofta sin historia, det är vanligt med hopp i tid fram och tillbaka och berättelsen växer direkt inför läsaren.
Vigna har gått på konstskola i Rio de Janeiro, Parsons school of Design i New York och har studerat litteratur i Nancy och Rio de Janeiro. Hon arbetar även som formgivare, illustratör och översättare, och har tidigare haft ett förlag och ett litterärt magasinAnnakarin Thorburn.

 

 

 

 

Örjan Sjören – Karavan #2014 – Third quarter 2014, 48-53p.

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presentation on gotenburg book fair, 23-29/09/2015

I’ll talk about three books of mine. Two of them published by Tranam. The third one was the last to be published, in 2014, and I’m hoping it will also be published in Sweden.
The first one takes place in Santa Tereza neighborhood, in Rio de Janeiro. It’s a very old neighborhood, traditional, with large, old houses, that in time became surrounded by slums. Thus, it has the passing of time inscribed in the architecture itself.
That’s “Coisas que os homens não entendem” (“Things men don’t understand”).
The second one takes place in a summer resort of rich Brazilians, in Guarujá. Except for the fact that the action takes place after summer end. Therefore, the place shows its mask, its layer of cheap ornaments, that make it nice and cozy for those who spend only a few days there, not for those who really get to know it.
This second book is “O que deu para fazer em matéria de história de amor” (“What could be done in terms of love story”).
Scenarios are important in my books.
I use to go to the places where the described action happens. I write at the place itself represented in the book. I never placed the action of a book of mine in a place I did not know well.
It has to do with the way I write.
I follow, when writing, the very thing that is being written.
In “Coisas que os homens não entendem” (“Things men don’t understand”), it’s how to face passing of time. Similarly as Santa Tereza neighborhood has to face its violent passing of time.
In the book, the narrator returns to the neighborhood that had been its own, and that no longer is the one she left. She is also different. She has nothing stable or static to lean on. Not even inside her, since she probably committed a crime, even though she can’t even say whether she in fact wanted or not to kill whom she killed. She is permanently in transit.
In “O que deu para fazer em matéria de história de amor” (“What could be done in terms of love story”), the narrator enters a game with herself. If she succeeds in removing the well-behaved mask that marked the relationship of an already dead couple, she will equally get to know her current relationship with her lover. The dead couple are the father and mother of her lover.
The book is inconclusive. Even removing one mask, there is another, and another. And the hypothesis of a love story coexists with the hypothesis of a story of hate and murder.
Here, a segment of this book:

As the years pass, Rose, who never had great nights of love with Arno, sort of forgets the subject. Sex ceases to be an important thing in her life. After her lover Ernie, there is no longer anyone – if in fact Ernie was a lover in bed, and not only in dreams. The days keep passing by, potatoes keep being cooked. There will be comments exchanges about one or other type of potato. The one with purple peel, not very good. The one that gets soaked when cooked. The one with hard kernels in the pulp. And they establish one afternoon per week to go to the best place to buy potatoes. As in fact they establish other rituals. All old couples have them.
On Tuesday nights, they laugh together of some comedy TV show.
And secretly tell themselves, each to himself/herself: after all, they know each other so well that yes, they like each other, of course they do. And they confirm this in the what? what happened? of some night apnea. Or when getting home happens after the normal hour.
The money embezzlement is what defines Ernie, not his performance in bed. In the years following his disappearance, and forever after, Ernie will be the son of a bitch that took advantage of their kindness to steal money from them. And the possessive pronoun, as much as the money or lack thereof, brings them together.
And that’s it.
A love story, with a golden closure befitting the monogamist stage of a ballet of white swans. One dies, the other dies short after, incapable of conceiving live without his mate of all times. It’s a story. Although the swans were, I saw it, herons. And the stage, a ditch full of garbage.

And now a segment of my last book.
Its scenario are airports, hotels, the back seat of cars with chauffeurs. The book name is “Por escrito” (“In writing”).
Here, a woman that travels all the time is under the impression of never leaving one place, of always waiting for something – a flight, the time to leave for a professional event, a personal decision of her own. And this waiting, she thinks, seems to take place always at the same molded plastic chair, everywhere the same.
She is, in fact, imprisoned. There is a guilt from which she can’t free herself.
In the three books I mentioned here, and in all my other books, in addition to the scenario that reflects what takes place in it, there is also an ephemeral quality to the characters and their actions. Nothing seems to me very definitive. There is no solid and mythic past defining people. Nor a clear future for anyone.

A segment of “In writing”:

I use to establish a communication, me and my ass, in these occasions. It telling me, you will have to move. Me crushing it with my superior silence. Although I know very well it will gain, I will have to move. The ass always succeeds, as it does now, in establishing a collusion with my stomach. It’s not hunger. With a wooden consistency pulling me, insidiously, a little forward. At times like this, I generally put my elbows over my thighs.
It’s an insufficient concession, and I know it. Ass and stomach keep always wanting more. They want me to go further forward, forward, until I drop out of the world or of what is closer and represents the world: the chair. Or inward. Because there’s a time when I get up. And I come, if I’m far away. The taxi, home, key at the door, you with your nice face, the happy dog.
This always, in airports or cafes. In halls of unknown hotels I enter, me and my serious face, no one ever stops me, and I sit at the reception sofa. I stay there as if I were waiting for someone, a guest. Sometimes I take advantage of a restroom, sometimes I drink a coffee when there’s free coffee at the reception. And suddenly I stand up, leave, disappear in the street.

 

 

Por escrito – críticas

ELVIRA VIGNA:  POR ESCRITO (Companhia das letras, 2014, 312p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro.

– segundo lugar no Prêmio Oceanos;

–  finalista Prêmio Rio.

 

 

arquivos internos de ‘por escrito’:
trecho do livro
críticas no exterior

 

 

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Rascunho, por Arthur Tertuliano, março 2015

Durante a adolescência, o título Coisas que você pode dizer só de olhar para ela me parecia inspirador: sugeria que, diante de um olhar arguto, qualquer mulher se tornaria transparente — não vi o filme. Talvez a maturidade possa ser medida pela admiração crescente por outro título, em detrimento do já citado: Coisas que os homens não entendem — romance de Elvira Vigna que ainda não li. Posso enumerar a lista de motivos, terminando com as neves do Kilimanjaro, mas não espero que você entenda. Não espero que você entenda nada nunca. Não ter lido não significa que inexistam expectativas. Pois foi repleto delas que entrei em contato com a obra mais recente da escritora, Por escrito — já lera antes a HQ Vitória Valentina e dois romances, além de alguns infantis. Durante a leitura, lembrei que ler também é comparar: a linguagem, elíptica sem ser hermética, não deixava dúvidas de que o novo livro era da mesma autora de O que deu para fazer em matéria de história de amor; no enredo, contudo, Por escrito se revelou um livro irmão (ou espelho) de Nada a dizer.

Você quer que a gente more junto há muito tempo, já, nesse dia. Casamento é bom para homens.

No romance anterior, a protagonista narra em detalhes o que acontece após a descoberta de que o marido tinha uma amante; sobre como deixou de se permitir piadinhas a respeito do tema, algo possível quando a confiança ainda existe (“Essa brincadeira também sumira, junto com as outras coisas, porque a graça era justamente sua total impossibilidade. Ter um amante, para Paulo ou para mim, sempre foi algo inimaginável. E, portanto, engraçado de imaginar.”), e como ela se viu transformada em um clichê (“Eu não existir para Paulo foi só um preâmbulo rápido antes de eu não existir para mim mesma. Passei a não estar mais em mim. E a me encontrar em cada episódio de CSI, Criminal Minds, SVU, Cold Case e todos os outros, sempre pródigos em relatar adultérios, calhordices e mentiras, antes de um final apaziguador, já que cheio de sangue. Eu, saída de mim, virei a mulher traída de todas as histórias existentes e ainda por existir.”). Em Por escrito também há um Paulo (seria o mesmo?), mas a narração fica por conta do outro lado da moeda: a mulher que é sua amante — dessa vez denominada: Valderez. Nuances Isso por escrito, nas frases cheias de erro, que se atropelam em msgs e skypes. Abreviaturas, carinhas feitas de dois pontos parêntesis, e ainda o silêncio, e ainda os olhos que podem sair da tela, ir para a parede branca e lá ficar por todo o tempo. Mas principalmente o silêncio.
Dessa vez é a narradora que, muitas vezes, não tem nada a dizer — “I would prefer not to”. Mas contar o “outro lado da moeda” não resume o que Vigna faz em Por escrito. Há muito chão para percorrer (São Paulo, Paris, Curitiba, Brasília), muita história para contar: um casamento a ser celebrado, outro desmoronando (e outro apenas uma promessa); uma bailarina e uma sacada; uma montagem teatral, o “Nelson Rodrigues possível”; uma visita a um quilombo e o diálogo com o passado; a onipresença dos eventos corporativos e a linguagem publicitária que reina neles; um câncer. E não apenas: a posição em que a narradora se coloca (“Uma presença ausente, eu sentada por eternidades em cadeiras pré-moldadas de aeroportos, deitada em colchas pré-históricas de hotéis baratos, eu lá e não lá, eu parada ou a mil por hora, no emparelhamento possível com outros bólides que vão, como eu, com toda a firmeza, para lugar nenhum, indiferentes.”) permite-lhe dar atenção especial a coisas quase imperceptíveis, gestos mínimos e automáticos. Como quando ela encontra o irmão em Paris:

O abraço e eu, sem jeito, sem saber o que fazer, passo a mão no rosto dele sabendo que provavelmente ele não gosta mais que passem a mão, que peguem, que se esfreguem, que isso é coisa de brasileiro e ele não é mais muito brasileiro.

Há outros, diversos, por toda a narrativa: “Barbudos que se cumprimentavam ao meu lado com tapas para declararem que, apesar de terem marcado um encontro para irem juntos ao cinema, continuavam sendo muito machos e artistas e fodões”. No aeroporto, ninguém lhe escapa: “Homens cafajestes de diversos modelos, esportista, gordo bem-sucedido, executivo de terno, todos eles apêndices de celular, cocôs que saem de celulares e nem saem de todo, ficam lá, pendurados. Cocôs falantes”. Há um gesto em particular cujas nuances serão analisadas em profundidade, quase no fim do romance. Contudo, não foi esse o aspecto da obra que mais me chamou a atenção. Protagonistas Bem, nas passagens de Jane Eyre que citei, fica claro que a raiva estava corrompendo a integridade da romancista Charlotte Brontë.

Ela abandonou sua história, à qual dedicava inteira devoção, para cuidar de mágoas pessoais. Lembrou-se de que estava sendo privada da devoção à própria experiência — foi obrigada a estagnar em um presbitério cerzindo meias, quando o que queria era vagar livremente pelo mundo. Sua imaginação desviou-se do curso por causa da indignação, e nós a percebemos desviar.

O trecho acima é de Um teto todo seu, e dele me lembrei assim que a narradora apresenta a história de Rosário, a única mulher entre todos cafeicultores que ela conheceu em seu trabalho. Uma história singular, mas que teve de ficar de fora de sua apresentação por alguma razão — chutemos misoginia e não estaremos de todo errados. É palpável a indignação da protagonista quanto a certos papéis sociais reservados às mulheres, da mulher traída às moças invisíveis montando kits de lembrancinhas em um evento — o termo “sororidade” me veio à mente algumas vezes. Porém, em momento algum essa preocupação destoa do resto do romance, o que diferencia Vigna do que Virginia Woolf escreveu sobre Brontë.

Mas acho que não foi por isso o convite. Fico bem, eu. Quer dizer, não fico. Mas justamente por não ficar, fico. Em tempo de politicamente correto, fico bem eu, lá, eu tão pouco televisiva. Fomos cinco naquele palco. Três homens. Do tipo mesmo que se espera: brancos, jovens, descolados. Uma mulher também do tipo que se espera: branca, jovem e descolada. E agressivíssima, como mulheres precisam(os) ser em ambientes profissionais. E mais eu. Componho bem. A agência e a empresa ficam parecendo bem bacanas, assim, comigo lá, meu cabelo ondulado e quase branco, minha cara de parva.

Por escrito não é apenas sobre mulheres, mas, sem dúvidas, delas é o protagonismo. Há coisas que os homens não entendem, mas Elvira Vigna mais uma vez nos dá a oportunidade melhor compreendê-las, creio. Mais um romance brilhante, mas não poderia esperar menos da escritora.

 

 

entre os dez melhores/2014 segundo o globo;
entre os cinco melhores/2014 segundo a folha de são paulo.

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Valor  econômico, por Mariana Ianelli, 31/10/2014

A “dor incurável” de Elvira Vigna
Um broche barato esconde em seu avesso um oco perfeito, que ninguém vê. Sabe-se que está lá, como se sabe que é suposto fingir que esse oco não existe. O oco, o nada em relevo, o vazio. É esse avesso das coisas que Elvira Vigna explora até o limite em seu novo romance, “Por Escrito”. Na fantasia de pudor da bijuteria remendando um tecido, o que brilha, para quem procura olhar sempre o negativo das coisas, é uma ferida obscena. Entre tantos detalhes em geral despercebidos, esse serve como exemplo de uma realidade bruta que, em seu estatuto mesmo de realidade, não existe separada nem da memória nem da fantasia.
Elvira Vigna tem uma maneira muito própria, brutal como a realidade, de ritmar suas narrativas por meio de cortes, recortes de cena, lapsos, idas e vindas que desestabilizam o leitor. A ideia de um desfecho, de um sentido fechado, em que tudo se encaixa, não passa de um blefe de narrador. Histórias e personagens vão se fazendo em pedaços e aos pedaços vão se recompondo, iguais em seus avessos, jamais completos, e, afinal, ocorre que nada é tão antissentimental quanto parece. Os próprios nichos de desolação em “Por Escrito” são armadilhas. Cenários de ausência em aeroportos, quartos de hotel, subterrâneos de metrô, ou fantasmagorias de presença em telas de Skype, celulares, Facebooks, podem a qualquer momento reverter-se em seu contrário.
Difícil, e inútil, resumir aqui a história de Valderez em sua trama de situações e um que outro acontecimento extraordinário, conectados no tempo e no espaço da escrita às histórias de Molly, Pedro, Paulo, Aleksandra, Izildinha, dona Tereza, dona Isaura. Difícil resumir essas histórias, que ora estão cheias de pontas soltas, ora se imbricam, e cujos personagens, espelhados uns nos outros, refletem o que veem (ou não veem) sob diferentes ângulos. Inútil armar esquemas, resumos, sínteses, porque a energia que Elvira canaliza em sua prosa está relacionada com o modo como suas histórias são contadas, com seus cortes, recortes, reflexos, lapsos.
Os “lugares nenhuns” onde Valderez se instala a olhar o nada, em escadas ou “cadeiras pré-moldadas”, são como vãos do pensamento por onde o sentido das coisas constantemente escapa. Num mundo que passa como um “ruído de fundo”, Valderez se empenha em ser uma presença ausente, quase banal, quase invisível, revolvendo suas “pedras nunca compartilhadas”.
Interessante que, para o vídeo de apresentação do livro, a autora escolheu falar sobre “Por Escrito” mostrando cenas de “O Deserto Vermelho”, de Michelangelo Antonioni, cuja fotografia perturbadora de lugares vazios, arruinados ou simplesmente impessoais traz à tona, na história do filme, o vazio da personagem principal. A comparação é clara. Também a personagem principal de Elvira, do interior da Paraíba a Paris, atua em cenas de vazio que inventa para si mesma, num filme particular, numa novela que ela própria dirige ou, ainda, numa peça que tem de Nelson Rodrigues a inteligência sardônica e o patético inevitável.
O ponto de tensão crescente é que a mordacidade da narradora, longe de imunizá-la contra o patético, conduz sua autossuficiência e indiferença ao limite do humanamente suportável. Perde-se a conta, por exemplo, de quantas vezes a personagem fala de suas “trepadas”. Essa repetição obsessiva, propositalmente agressiva, tem ao longo do livro o efeito de um grito surdo num vão entre a palavra e o ato.
Há uma cena em que Valderez observa ironicamente o público de uma festa com sua fachada de sorrisos bem medidos. A razão dessa fachada, ela pensa, é menos um pânico do que uma ânsia do real: “Não que seja assunto, essa vontade disfarçada em pânico, de que algum dia alguma coisa de fato aconteça, realmente aconteça. (…) Não podem admitir que é o que mais querem: o tiro, a bunda, a gargalhada”.
O avesso disso, para uma personagem acachapada pela realidade e atenta a seus avessos, é outra ânsia disfarçada em pânico, dessa vez de que algum dia, em alguma coisa ou em alguém ela afinal se reconheça, com a qual ou com quem se integre ou se comunique de verdade, alguma coisa além do tiro, da bunda e da gargalhada. Por exemplo, uma saudade. Ou ainda o “ridículo” de um amor. Algo destoante da ausência de sentido, do desenraizamento geral, da impessoalidade. Como no filme de Antonioni, as imagens de “Por Escrito” são imagens que se pensam, na acepção rara do verbo, como se pensam feridas que são incuráveis.

 

 

Folha de São Paulo, por Bruno Zeni, 25/10/2014
A obra de Elvira Vigna autora de “Nada a dizer” e “O que deu para fazer em matéria de história de amor” é uma das mais inquietantes da literatura brasileira atual. Seu mais recente romance é narrado por uma mulher que está num momento de chegada: decide parar de trabalhar como executiva, vai a Paris para o que acredita ser sua última viagem, está prestes a se mudar para a casa do amante, a quem dirige seu relato, “por escrito”.
Nessa altura da vida, que combina recordação, relato e acontecimentos presentes, a história às vezes parece banal, mas é traumática – e outras vezes ocorre o contrário. Assim como a narradora tem como marca subjetiva a “não presença”, os demais personagens se sustentam em uma espécie de encenação teatral, que parece se voltar contra a “nobreza cenográfica” da vida social.
O fascinante do enredo é descobrir se as identidades são confiáveis, o que há de decisivo a ser contado e mesmo se há algo a ser contado, nesse estilo tateante e instável, prestes a se desfazer ou a se desprender rumo ao delírio, à morte, à doença, à solidão e ao anonimato, não necessariamente nessa ordem.

 

 

 O Globo, por Beatriz Resende, 25/10/2014
Elvira Vigna é uma das nossas escritoras de carreira mais consolidada. Pessoal sem ser confessional, com uma voz de mulher que recusa feminilidades, certa constância na temática e, o mais importante, dicção própria. No romance “Por escrito”, no entanto, mantendo o que já conquistou com sua escrita, expõe-se a um risco: mais do que o que é narrado, importa aqui o ato mesmo de escrever. Como fica a vida quando ela é escrita, anotada, reescrita, expondo-se não como fala ou relato, mas como um texto deixado na tela do computador, o eu por escrito.
A mulher, seu amante ou companheiro, a ex-mulher dele, o irmão, a mãe e a morte de uma personagem secundária, morta talvez mesmo por ter sido sempre uma personagem secundária.
A personagem narradora vive de colocar em fichas o movimento e os negociantes de uma empresa de agronegócio. Gente enjoada, pedante, ignorante, mulheres enfeitadas e homens obviamente grosseiros em seus ternos italianos. Um trabalho que já acabou.
Um homem gentil, disposto a ajudar e ser companheiro talvez para se redimir dos tempos em que foi um amante casado. Sem maiores encantos, mas bom de cama. E o erótico, o sensual, como sempre na obra de Elvira Vigna importa bastante.
O irmão gay, amigo e meio filho. A mãe que veio do interior, afastada do patrão que a engravidara. Uma mulher batalhadora, mas de quem não consegue ficar muito perto. Um suicídio ou assassinato ou acidente, mesmo no centro dos movimentos narrativos não faz muita diferença, porque a morte, como a vida da dançarina russa, importa pouco.
Nenhum drama e nenhum afeto. Nenhum entusiasmo, nenhuma escolha intencional.
Quase um “prefiro não”, no modelo de “Bartleby, o escrivão”, na personagem que “prefere ficar mais à margem, mais do lado. Em algum entre. Como sempre”. Não dá nem quer receber nada dos que a cercam. A inevitável realidade da vida com seus detalhes banais, isso é que precisa ficar por escrito.
O não pertencimento total parece impossível, mas deve ser buscado. A casa pode ser um hotel qualquer, a mochila guarda tudo e o destino pode ser alterado no meio do caminho, dar a volta na rua ou mudar de cidade. Coisa alguma faz muita diferença para quem olha o nada.
É essa trajetória de idas e vindas, sem partidas ou voltas que importem muito que o romance precisa contar e aí está o desafio que se propõe a enfrentar. Se acompanhar a frieza, a secura extrema dessa mulher pode chegar a irritar o leitor — que não encontrará na leitura nenhum alento, nenhum recurso de sedução —, seguir, porém, o caminho da escrita que a leva de uma cidade a outra, de uma cama a outra, dos movimentos de idas e vindas de que vai tomando notas, num papelzinho ou em notas mentais, é participar de uma experiência original.
Porque a vivência desse mundo real desprezível mas não odiável está sendo colocada por escrito, a temporalidade varia, passado e presente se confundem como os tempos verbais usados na narrativa. “E não sei mais se falo daquele dia ou deste, este. Mas volto, me forço: aquele”. Com o espaço a relação não é mais definida, a mulher pode estar em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília, numa fazenda de café do interior. Cada cidade, porém, tem uma personalidade própria e requer uma linguagem diferente.
São Paulo traz a ideia de fim, mas para lá e para o mesmo homem sempre volta. Paris e o Quai Branly colonialista são uma festa estranha; o interior evoca nomes de passarinho em listagem ao modo de Guimarães Rosa, diminutivos e regionalismos; no Rio de Janeiro uma revelação quase trágica contrasta com o dia lindíssimo numa Copacabana que não dorme. E de novo São Paulo: “Mais um pouco e a cidade goza, espirrando gente, barulhos e gases tóxicos para tudo quanto é lado”.
A narradora passa os verbos para o passado, volta usar o presente, são lembranças do passado ou existem agora: “Não sei quando foi”. Romance e sua escrita vão assim se construindo num processo que se expõe. Cabe ao leitor acompanhá-lo, não sem algum esforço, o que afinal é bom.

 

 

Jornal do Commercio de Pernambuco, por Diogo Guedes, em 27/09/2014

Em um dos momentos do novo romance da escritora Elvira Vigna, a narradora diz que anota “como se escrever não fosse resolver, só deixar pronto”. Nome importante para se entender e percorrer a literatura brasileira atual, a autora carioca radicada em São Paulo parece emprestar à personagem de Por escrito (Companhia das Letras) uma das suas impressões sobre o fazer artístico. Não esperem dela harmonias maquinadas ou personagens que vão do ponto A ao ponto B sem desvios, porque está na natureza do seu caráter ou no destino ser assim.
Por escrito é um livro pronto, mas não resolvido. Na verdade, a produção de recente de Elvira parece se encaixar nessa definição: suas narrativas não são a busca por desvendar a incógnita que equilibra a equação, a coerência que explica as errâncias dos personagens. Assim como a vida, neste romance e no anterior, O que deu para fazer em matéria de história de amor, não há a solução que se finge descobrir por acaso ou por cálculo. Deixar pronto é apenas terminar, talvez formular bem a inquietação sem evitar as suas quinas e farpas.
A trama do livro mostra uma narradora, Valderez, escrevendo para o seu antigo amante na véspera dos dois morarem juntos. O passado deles, a ex-mulher, Izildinha, a relação entre Pedro, irmão gay de Valderez, e uma bailarina, as viagens cansativas para divulgar os perfis de plantadores de café da sua empresa são parte desse texto, que parece um diário tanto quanto um diálogo. Não é um enredo coeso, comportado, porque isso seria mais uma armadilha das convenções que se cria para os romances, a vida, os conceitos. Elvira trabalha com uma personagem que tateia o objetivo de “atar, não as duas pontas da vida, mas bem mais do que duas” sabendo que ele é impossível
A profissão de Valderez exige viagens constantes para outras cidades e continentes – uma sucessão de hotéis, congressos, aeroportos, distâncias. A prosa da autora reflete esse momento de contemplar a repetição (um forma singular de vazio) e extrair dela alguma reflexão sobre a própria vida, sem a ilusão de resolvê-la. Elvira, através da linguagem e do mergulho nessa imperfeições, cria personagens que – pegando a definição de José Luiz Passos para as criações de Machado de Assis – são mais próximos de pessoas do que de tipos. O que nunca é um feito pequeno na literatura ou em qualquer outra expressão artística – prova de que sua escrita é indispensável para o panorama atual.
DÚVIDAS
“Literatura para mim é apresentar dúvidas, convidar o outro a discuti-las. Nunca apresento certezas”, conta Elvira, em entrevista ao JC por e-mail. O norte dos seus romances são as incertezas e, em Por escrito, romance mais longo que as obras anteriores, o leitor se vê no oposto de uma história policial, de um romance psicológico comum. “Resolver uma trama ou um mistério, por exemplo, é o objetivo de livros voltados ao mercado. Resolver problemas pessoais do autor pode ser o objetivo da escrita chamada ‘fluxo de consciência’. E claro, resolver o suposto problema do leitor é o que pretendem os livros de autoajuda. Não são dialógicos, são monólogos”, aponta.
A veia analítica e crítica da literatura de Elvira se reflete nas suas falas e posições. Convidada da Feira do Livro do Vale do São Francisco na semana passada, Elvira tem apontado o preconceito do olhar crítico sobre a literatura feita por mulheres no Brasil. Esses livros são, muitas vezes, tratados como arte de um gênero próprio, enquanto a literatura feita por homens é chamada convenientemente apenas de “literatura”. Na visão da autora, há pouco avanço na questão, principalmente na curadoria de eventos. “Não vejo melhora não. A discriminação existe. E a participação, quando existe, é pelo motivo errado: ‘precisamos convidar algumas mulheres para não pegar mal’ é uma frase que você consegue ver escrita na testa dos que não querem ser vistos como machistas”, afirma.

 

 

A Tribuna de Santos, 16/09/2014, por Alfredo Monte: “A obra-prima da rainha das trevas: ‘Por escrito’, de Elvira Vigna”
Para quem acompanha fielmente a produção de um escritor, é sempre emocionante (mesmo porque o mais comum é ocorrer o fenômeno contrário) quando ocorre um salto quântico e nos damos conta de um fôlego maior, de uma amplitude e verticalização mais pronunciadas do que antes, e nem julgávamos isso possível.
Elvira Vigna vem construindo uma marcante obra como romancista desde o final dos anos 1980, um universo áspero e cáustico, no interior do qual as protagonistas reinventam-se socialmente, acumulando autoenganos e armadilhas, e nem assim se furtando da lucidez (daí o uso feroz de uma primeira pessoa muito peculiar, inconfundível, na narrativa). Ela argamassou os fundamentos desse mundo ficcional com os notáveis < O assassinato de Bebê Martê > (1997) e < Às seis em ponto > (1998), chegando à maestria dos mais recentes < Nada a dizer > (2010) e < O que deu para fazer em matéria de história de amor > (2012). Apreciei deveras este último, porém confesso que fiquei um tanto preocupado, perguntando-me se as travessuras da menina má da nossa melhor literatura não tinham chegado a um impasse perigoso.
Tal ressabio entrou no modo alarme quando descobri que o seu novo livro tinha 300 páginas, mais que o dobro da maior parte dos títulos precedentes (< O que deu para fazer… > já era mais longo que o habitual). Prolixidade e Elvira Vigna não pareciam uma combinação concebível nem desejável.
Como a abertura desta minha resenha indica, foi um temor vão. Temos mais uma protagonista (Izildinha/Valderez) que se “faz”, ou melhor, refaz na vida, social e profissionalmente, para minar essa reinvenção (para a qual ela não tem a menor convicção) ao longo da narrativa, escrita (daí o título do romance, tão enganosamente anódino) para —e contra— o complacente companheiro de muitos anos, só que dessa vez os diques todos parecem ter se rompido, arrostando a reinvenção do próprio Brasil das últimas décadas, o relato adquirindo uma feição radicalmente agônica, para além do cáustico. POR ESCRITO é dolorosamente “humano”, com páginas progressivamente emocionantes, que nos deixam embargados.
Valderez viaja muito, por conta do trabalho (ligado ao ramo do café) e das “pedras” da sua vida interior. Chegando sempre antes (horas, às vezes) aos compromissos, ela se sente à vontade numa espécie de limbo em não-lugares (quartos de hotéis, aeroportos, metrô). Essa rota nebulosa começou muitos anos antes, quando uma menina quilombola deixou-se seduzir por um fazendeiro, no Nordeste, e afastada para bem longe—vai para o Rio—teve uma filha. Mais tarde, haverá um meio-irmão, uma escada (o primeiro limbo?) num edifício, a qual servirá como improvável, nunca substituído espaço de proximidade, e cujo encanto vai se quebrar com a queda de um corpo, uma das “pedras” da autoinventada Valderez (deixando para trás—para os outros, é claro—a origem, o nome, os corpos-vítimas), bem a filha de uma autoinventada Molly, a menina seduzida que vai se desfazendo das migalhas de pão no rastro do passado, sempre em novos avatares.
Empurrando com a barriga, como se costuma dizer, a relação com o destinatário de sua escrita, Valderez decreta, no início do romance, o fim de suas viagens profissionais. No entanto, leva o leitor para círculos cada vez mais enrodilhados e densos de uma viagem por sua biografia, sempre a um passo de se desfazer/ocultar em versões e camadas (para utilizar esse termo tão em voga). Então, vislumbramos o rosto implacável de um país que se modernizou e avançou, tentando ocultar/rebocar a desfaçatez e a renitência de suas forças sociais mais vorazes. O aeroporto-igual-a-todos-do-planeta e o quilombo, pontos de fuga de um dos textos mais reveladores da nossa “contemporaneidade”, tão insólita:
< À nossa frente, avisam as placas, vai acontecer o seguinte, haverá uma retenção. E, depois, tornam a nos avisar, vai acontecer outra coisa. Até o fim desse caminho, se o mantivermos, saberemos o que vai acontecer. E só vai acontecer o que está nas placas (…) O caminho de um aeroporto para um centro urbano. Uma das linhas retas mais absurdas que conheço e as tenho, muitas (…) Tirando o mundo real, o resto continuava direitinho. E nos avisavam o que ia acontecer à frente, e tudo o que não tinha sido avisado estava proibido de acontecer. Tirando o mundo real, o acaso, a gravidez de adolescentes, a chegada inesperada de quem viaja, a queda em janelas ou a mudança climática anunciando que todos os cafezais do mundo inteiro estão indo para o brejo, não são permitidos imprevistos de nenhum outro tipo nesse caminho que, resolutos, seguimos…>
Nesse sentido, tanto pela abertura quase alegórica quanto por um quê de cru, de não lapidado (felizmente) no relato, com suas reiterações, sua obsessividade, sua insistência em não “fechar” harmonicamente, parece-me que a grandíssima escritora carioca meio que mandou às favas a “maestria” e foi às suas fontes, ao seu primeiro (e já acima da média) romance, <Sete anos e um dia > (1987), cuja reedição é muito necessária, um painel simbólico dos anos de “abertura” entre a ditadura e o governo Sarney.
Portanto, nossa Elvira continua a indestronável rainha das trevas, com seu desassombro em inventariar mazelas. Só que os matizes e contornos dessas trevas nunca foram tão variados e surpreendentes. A meu ver, sua obra-prima. O que podemos esperar a seguir?

 

comentários online:

taverna o fim do mundo #29 (podcast)

the huffington post/editora abril
literaturabr
blog 54 quadradinhos
suplemento pernambuco
revista são paulo review
blog homo literatus

 


 

Texto usado para a apresentação do livro (foram feitas duas: uma na Livraria da Vila da Alameda Lorena (SP), com Adriana Calabró e Rita Lobo; em 30/08/2014; outra num Happy Hour Literário com Maria Valéria Rezende e Rosa Amanda Strausz, com mediação de Débora Ferraz, no Café Galeria (João Pessoa), em 06/09/2014

A história principal do “Por escrito” não é bem uma história. Nada acontece com a Valderez, que é a narradora. Ela perde o emprego e isso é mais ou menos tudo. O emprego dela inclui viagens, participação em eventos. Antes de perder o emprego ela fica parada esperando o avião que atrasa, o motorista do evento. Depois que perde o emprego, piora. Fica parada sem álibi mesmo. Fica porque fica.
Não é fácil escrever um livro desses e levei um tempão só parada, igual à Valderez.
O que me fez escrever foi algo que aconteceu na minha vida presente. Esse algo me fez lembrar algo da minha passada e que eu havia meio que esquecido. E aí consegui entender melhor esse ficar parada da Valderez. Ou seja, o meu. Porque é para isso que escrevo livro. Para ver se consigo entender o que nunca entendi.
Não funciona. Aí escrevo outro livros. Eles se parecem sempre, um pouco.
No caso do “Por escrito”, a Valderez fica parada olhando o nada porque não acredita muito no que vê ou vive. Ela acha que aquilo ali em volta pode ser aquilo ali, ou o contrário daquilo.
Muito gente liga esse livro ao “Nada a dizer” que foi o livro escrito antes desse.
E é, tem um pouco a ver.
Se a narradora do “Nada a dizer” delira o que não está lá, ou seja, um amor do cara dela que não existe, aqui, no “Por escrito” a Valderez faz o contrário: não vê o que de repente está lá, que o cara dela, sim, gosta dela. Não ver o que está lá ou delirar o que não está dá mais ou menos no mesmo.
Mas então, vou contar o episódio vivido que  me fez afinal levantar um dedo, apertar uma teclinha, fazer uma letrinha aparecer na tela em branco, e começar o livro.
Vocês já sabem disso. Escrevo sempre histórias reais, acontecidas comigo ou com pessoas que conheci. A história que vou contar aqui não é uma história que eu em princípio escreveria.
Ela é a seguinte:
Tenho um amigo gay que resolveu se casar com uma bailarina russa. E eu jamais escreveria essa história por dois motivos. Primeiro porque é inverossímil. Segundo, porque parece início de piada: ‘tinha esse bar e dentro estavam um gay, uma bailarina russa e um papagaio…’ E a pessoa fica esperando o punch line para dar uma risadinha e esquecer um assunto que merece mesmo ser esquecido.
Não é uma história que eu escreveria, mas escrevi.
E escrevi por causa de uma cena.
Foi num cartório de registro civil e eu estava sentada no banquinho.
Sim, porque a piada na verdade seria: ‘tinha esse cartório e dentro estavam um gay, uma bailarina russa e uma mulher que só prestava atenção ao que não era importante…’. Dá até para esquecer o papagaio.
Eu estava sentada lá há horas. Porque os atendentes nos olhavam de viés, enrolavam, atendiam os outros e não aprontavam os papéis. Sei o motivo. O noivo passava o tempo fazendo imitações da cena final do Lago dos Cisnes. A noiva era estrangeira e não entendia quase nada do que se falava. E o resto da entourage, eu incluída, só tinha gente esquisita. Aqueles papéis não iam ficam prontos nunca. Acabaram que ficaram. Mas antes, meu amigo e a bailarina saíram para fumar lá fora.
Fiquei lá sentada. E quando bati os olhos neles eu vi, ou achei que vi, a cena que me faria lembrar a outra, a da minha infância, e que me faria esse livro.
Aqueles dois diziam para todo mundo que o casamento era um arranjo comercial. Casando, a bailarina conseguiria um visto definitivo no Brasil, meu amigo conseguiria um apartamento para ficar em Moscou, onde pretendia estudar piano clássico. Eles seriam livres para manter o relacionamento sexual/afetivo que quisessem e pronto, ganhavam todos.
Diziam isso inclusive para eles mesmos.
No entanto não foi isso o que vi.
É difícil descrever. Um jeito de corpo, uma expressão. Meu amigo acendeu um cigarro, passou para a bailarina, depois acendeu o seu próprio. Falavam sem que eu os escutasse. Ás vezes sorriam, olhos nos olhos. Uma mão que fazia carinho em um braço, um balançar cúmplice de cabeça. Quem teve um relacionamento profundo, muito próximo, reconhece os sinais. Eu reconheci.
Eles, ao se dizerem a eles mesmos, e dizerem aos outros, que o casamento era de mentira, uma encenação útil, não sabiam o que estavam de fato vivendo. Não percebiam.
Isso me fez lembrar a outra história.
Eu tinha uns sete anos. Era igualzinha ao que sou hoje, só que menor. Quero dizer com isso que já dava preferência a formas indiretas de comunicação. Na época, eu desenvolvia uma estratégia de ficar mudar e enviar ondas mentais para as pessoas. Depois, claro, tive que optar por algo menos ambicioso, a literatura.
Então, eu não gostava de elevadores. Em elevadores, você fica preso lá dentro à mercê de adultos que te perguntam o seu nominho, e que gracinha, e qual amiguinho você tem no prédio.
Eu ia pela escada.
Eu tinha uma amiga que morava no prédio ao lado do meu, em uma Copacabana ainda amena, que permitia que menininhas de sete anos fossem sozinhas brincar uma no prédio da outra, e voltar.
Eu voltava. Pela escada. Aí, pelo vidros sujos dessa escada, vi passar o que me pareceu ser um colchão, com lençóis esvoaçantes. Não falei nada para ninguém. Não quis constranger minha amiga que, pelo visto, morava num edifício chinfrim, decadente mesmo, em que as pessoas jogavam de um tudo pela janela, inclusive colchão.
Depois de um tempo que não sei dizer quanto foi, ouvi minha mãe comentar o caso da noiva que havia se jogado num edifício ali da rua. Não fiz a ligação. Era mais uma dessas histórias do mundo adulto. Noiva que se joga da janela, carro que cai de viaduto porque o motorista está bêbado, nada que me dissesse respeito. Depois de mais um tempo que também não sei dizer quanto foi, liguei as duas coisas.
O que me ficou não foi a tragédia que eu talvez tenha testemunhado. E digo talvez porque nada me garante que eu não tenha de fato visto um colchão. E uma noiva tenha se jogado em um outro dia de um outro edifício.
O que me ficou na memória, e o que eu iria lembrar muitos anos depois, sentada num banco de cartório do Méier, foi essa sensação incômoda de viver coisas que não estão acontecendo. Tanto eu posso ter vivido o testemunhar de uma tragédia, uma noiva que se joga. Como posso perfeitamente ter vivido o contrário disso. Achar que vi uma tragédia quando vi um colchão.
Então é isso o livro. É esse incômodo de você às vezes perceber que está vivendo algo que não está lá. Que a tua vida pode não ser o que você acha que é.

 

 


Trabalhos acadêmicos


TOFANELO, Gabriela Fonseca. A trajetória do feminismo na literatura de autoria feminina brasileira. In: IV SIES, Feminismos, Identidade de Gêneros e Políticas Públicas. Maringá: UEM, abril/2015.

ARRUDA, Helena.  Entre a ausência do não-ser e a presença do não-lugar. In: Forum de literatura brasileira contemporânea, 12a edição. Rio de Janeiro: UFRJ, março/2015.

Por escrito – reviews

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Por escrito (Brasil, Companhia das Letras, 2014, 312p.);

an excerpt of this book was published by Comma Press in The Book of Rio, June 2014.

 

internal files:
por escrito – excerpt

 

livescritog

 

The Independent – by David Evans – 13 July 2014, London.

The Book of Rio: A City in Short Fiction, edited by Toni Marques and Katie Slade, paperback review: Stories focus more on Brazil’s favelas than football

The media coverage of the football World Cup – which reaches its climax at Rio’s Maracana stadium this evening – has tended to rely on lazy stereotypes. Until they were thrashed by Germany in the semi-finals, the Brazilian team were being acclaimed as stylish entertainers – despite playing a particularly dull, dirty brand of football. Similarly, the host nation has been depicted as a land of sun, smiles and samba – with Brazil’s more troubling realities overlooked.
All of which makes The Book of Rio, published to coincide with the competition, extremely timely. It collects modern fiction that gives a rich, variegated picture of the Brazilian city and its inhabitants. There’s plenty of sex and partying here, but we also meet disgruntled construction workers; corrupt officials; desolate drag queens; bickering lovers.
Rio’s combustible mixture of poverty and wealth is a recurring theme. Luiz Saffato’s moving “Lucky Was Sandra” draws contrasts between a housemaid seeking to escape her working-class roots and the well-to-do families she works for. Sergio Sant’Anna’s “Strangers” depicts two affluent house-hunters who turn up to view a new apartment – only to discover that its walls are perforated by stray bullets from the nearby favela.
Interestingly, the final story suggests that Rio’s inhabitants are themselves preoccupied by the slippage between their sexy, fun-loving reputation and their own sense of themselves: the ageing narrator of Elvira Vigna’s “Places, in the Middle of Everything” struggles to reconcile her own “flabby and unhappy” self-image and what’s expected of the typical Carioca: “After all it’s a beach city, we’re all athletic here ….” It makes a fitting conclusion to a fine anthology.

Por escrito, 2014

ELVIRA VIGNA:  POR ESCRITO (Companhia das letras, 2014, 312p.)

– segundo lugar no Prêmio Oceanos;

–  finalista Prêmio Rio.

 

arquivos internos de ‘por escrito’:
críticas
críticas no exterior

 

 

 

 

 

 

vídeo de apresentação de cinco minutos (em cima de imagens do filme ‘deserto vermelho’, do antonioni):

 

 

 

 

 

 

 

Desenhos referentes ao livro.

Essa é a Molly.

De antes de eu chamar a Molly de Molly.

Fiz na época dos ‘contos da Izildinha’.

Explico isso no vídeo.

Deviam ter entrado no livro.

Mas acabaram não entrando.

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livescritogInício do livro:

 

É primeiro de janeiro e lembro disso por causa do passeinho que fizemos de manhã. Dormi na tua casa. Nesse dia ainda chamo tua casa de tua casa embora saiba que vá virar nossa casa logo depois. A que vai, não hoje, eu aqui escrevendo, mas a qualquer momento, virar tua casa outra vez.
Dormi na tua casa de véspera porque é isso que faço em caso de viagens, embora não assuma.
“Dorme aqui, te levo.”
“Não precisa.”
“Ah, precisa.”
“Bem, ok.”
“Ok.”
O diálogo mais uma vez repetido e mais uma vez as risadinhas, a minha e a tua, no entendimento de que não se trata só de carona para o aeroporto, mas de trepada, um queijo, tomates, vinho, o braço em cima de mim pelo menos nos primeiros minutos depois de a luz apagada, eu gostando do teu braço em cima de mim, o olho aberto adivinhando o teto por alguns minutos, talvez muitos, até que me viro, agora o olho aberto adivinhando a parede ao lado, umas apagadas rápidas num sono que nem parece sono. E a claridade da futura manhã. Você não fecha a persiana, então não me preocupo, chegam rápido, as manhãs na tua casa. São insônias confiantes, essas.
O avião sai às cinco e cinquenta da tarde, check-in às três e cinquenta, são sete e pouco da manhã e a cama, arrumada, tem, nesse dia, a maleta de mão já fechada em cima e, por cima da maleta, o casacão antiquado, pouco prático (branco), mas é o único, então é ele. Depois, no aeroporto, vou tomar nota do passeinho da manhã e é fácil dizer que não sei por que tomo nota, mas sei.
É a ideia de fim. Porque quando acabam, as coisas, tenho essa vontade de que não acabem, mesmo quando, como é o caso aqui, nesse dia e hoje, eu aqui sentada, as coisas não propriamente acabem, mas são acabadas, e por mim, que fico então com uma vontade de que não acabem.

Por escrito – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Por escrito (Brasil, Companhia das Letras,  2014, 312p.)

 

internal files:
por escrito- reviews

 

 

 

 

livescritog

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

This is Molly.
The drawings were made long time ago.
They should be in the book.
But aren’t.
So I put them here to you to see.

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Excerpt – translation: David Lehmann

The driver is from those parts, he knows the place well. The quilombolas’(*) village.
I had already explained before.
“It’s between the old quilombo and the Pedra do Conde farm.”
He doesn’t know Pedra do Conde. He knows all the farms that grow coffee. But not Pedra do Conde. Pedra do Conde produces nothing. Not coffee nor, as I’ll discover, anything else. So it doesn’t exist. But the information that the place I’m looking for is at the border of the quilombolas seems to suffice.
So, during these initial moments, there is wonderful silence.
And then we arrive.
The houses are now  made of masonry. The blacks aren’t so black anymore, and they’re standing still, looking at us. The driver knows the area. He even said he knows someone from there, from the quilombolas area, and that he invited this person to accompany us.
Now he’s talking. He cheered up. He’s talking nonstop. The presence of blacks who own land forces him to demonstrate, to me and to himself, that he also exists and that he’s important, even if he doesn’t own any property.
He says that the quilombolas gained title to the land a little while ago, something like two, three years. And that, after this date, they started building on the lands they now own under the law.
Indeed.
Through the window, I see that behind new houses, some unfinished, there are old hovels on stilts. They didn’t tear them down. They build the new one without tearing down the old. I like them, I like this. But the driver is talking.
He explains something he doesn’t know, something he doesn’t understand, but he needs to explain it anyway.
“Why demolish what is going to fall down anyway, ha ha”
Why indeed, why do something, make an effort for something that will end up happening anyway.
Why am I here, if I already know that everything that comes from here will end anyway, is in fact ending.
“It’s their nature. They are lazy.”
And then he adds, in a conciliatory tone:
“Anyway, while they don’t fall, the hovels can always be used to store some crap, right?, ha ha.”
I don’t mention the possibility of an incurable pain behind the apparent practicality. I don’t mention that maybe, even if demolished, the hovels would still be there, like ghosts, so it’s better to keep them. I already know, on that day, that sometimes it’s better to keep around what wouldn’t go away anyway. That these things are better left there, in the middle of the room. So they can be washed, every day, twenty-four hours a day, by the stares of everybody, day after day, as portraits that they are. And that maybe that’s the only way to make them slowly vanish.
I look at the people standing still, in front of the houses, at the windows. Before, in the days of Pedra do Conde, they would be crop workers. They would go, in groups, without mixing with the others, to earn the small amount of possible cash, each May. They worked, a lot.
I’m the one that asks.
“Slower.”
Otherwise, the driver would go straight over the low-quality tarmac, full of holes, which is unable to handle the rains and is repatched every year. And I wouldn’t see them, one by one, arms crossed, elbows on the window sills. Just existing, they are. Staring at me without moving, clawing at me without moving, they are like Pedro, crumbs tossed in at the beginning of a world, for a future conversation that would never happen. Between them and me, between Pedro and me.
A conversation that maybe, all things considered, is not necessary. Not anymore.
At the right, an entrance.
“Turn here.”
He resists.
“But isn’t it after the quilombolas?”
“Yes, but go in anyway”.
He does.
Then we proceed to another group of houses, to pick up the girl, the one he knows that lived in a farmhouse right at the border of the quilombo. The driver talks.
And talks.
He talks about when he was a boy, walking around all these places, him and his little lead pellet rifle.
Biguá, cambaxirra, viuvinha, tiê-de-topete, tiê-preto, curicaca, rolinha-caldo-de-feijão, graveteiro, macuquinho and macuquinho-de-colar, juruviara. And he keeps rambling, reciting a list of bird names that I’m not sure are named like that anymore. The cute names I keep, and repeat them sometimes, walking on the streets, sitting on coffee shops or sidewalks. I repeat them just because I like them, catuí, acaiá, icatú, just sounds, not even names anymore.
He killed them all.
“The bag came back full.”
Then they were gone, the birds. He doesn’t make the link, at any time, between the slaughter of birds and the disappearance of birds.
The path to the place I want to visit is rough and difficult. More like trails cut through the woods. The driver’s acquaintance gets in the car. She knows. She’s someone cousin, was raised together with someone else. She’s the one who goes there to sweep once in a while, he says, turning back, just one hand on the wheel, thinking the risk in this gesture and the occasional sweep of the eye are enough to impress me, convince me of the authenticity of that person, a woman he barely says hi to when she hops in, agile, to the front passenger seat.
After a curve, she tells him to turn. The road is even worse than before, and I thought that would be impossible. We fell in a hole, we went around the mud, we arrived at the cashew tree.
It’s there.
My destination is a cashew tree. Nothing around it. I should have guessed.
On the way Cris – her name is Cris – doesn’t talk at all, except it’s here, turn there. But when prompted, she says she likes the new windmills, which are ugly, white, something from Dom Quixote, generating wind energy at a distance, in the middle of a sugar cane plantation. Sugarcane is each year replacing more coffee trees. The mills, a future that carves its space before it really exists. Just like this past brought by Cris through holes, mud and cashew trees, which I also carve out. In the hope that it really exists.
We stophe car, the rest would be on foot. The driver, what a relief, tells us he’ll wait for us in the car.
The farmhouse, which is after a curved descent, surprisingly short for those that didn’t see it coming, a few steps before, is almost a ruin.
Is it on the exact border between Pedra do Conde and the quilombolas?
Yes.
Cris confirms, she’s sure about it. And she even lived there for like twelve years, she says. She gave up recently. It’s not the way it was, the way she liked.
She shows where she sat to stare into an empty space.
She shows the empty place where there used to be a small table. She used the word set. She set the table. The little table stood there, but at a specific time of the day, she set the table. She set the tablecloth, the coffee mug already with sugar, the cups. I can almost see it. The table, the coffee, the two chairs. She and her godmother. Then her godmother dies. She says a few names and looks sideways at me, afraid I might know them, afraid I might steal names that are hers alone. I say I don’t know them. And I don’t.
There used to be a vegetable garden and chickens. And she points out with a sweeping motion to the whole universe.
“It had everything.”
She almost cries. She shows the two concrete tanks. The tanks are filled with water, with a thick pipe connecting them, so white it is rude. A new pipe. It is the only thing new and white amidst the walls stained with mold, the dirt on the cement floor, the fence of thin and crooked sticks, lost in the middle of the undergrowth bushes, that are the same on both sides of the fence, no difference.
The pipe brings the rainwater that drains from the roof. The first rain washes the tiles, she explains. From the second rain onward, the water is diverted to the two tanks. It is the only water. There is no well. She says that once her nephews, still children, want to do what I’m doing. Visit this place.
And there, she points out, towards nowhere in particular, there was a very large hole. That was where they dug up the sandy earth to mix with the cement for building the house. That was some time ago. Before, the house was mud and straw, just like the ones in the quilombo.
 “The hole was there and it was very big.”
The two children like to play in the sand hole. Someone asked, when they were nearby, how much the house was worth. And they answered that it had to be worth a lot of money, because there was this hole, which was so big and good.
We laughed. It is nice to laugh. Me and her laughing, so much laughter that no one notices the tear that drops. But I keep to myself the unformed question. How much the house is worth.
I don’t know if that was the farmhouse that belonged to Molly’s family. It might have been. Or not. It doesn’t matter to me. It doesn’t matter today and it didn’t matter that day. If it was not that farmhouse, it would be another, just like it. If it’s not the same, it was good enough for me to imagine it was.
Because it didn’t matter.
And not just because if it was not that farmhouse, it would be the same. But rather, because all that was indeed over, and that was what I wanted to be sure of. Not that it existed, but rather, precisely, that it didn’t.
We stand a while outside the nearly ruined house. We can’t go in. She says she doesn’t have the key. And she offers a long story about the key. I say yeah, yeah, accepting. I understand. She surely wants to defend, faced with this woman (me) from the big city, the privacy of a home without appliances, an old oven using bottled gas abandoned long ago, firewood being cheaper and so much easier. Just head over there, and cut.
We talked some more, standing in front of the closed house.
We talked about the pests on the Jambo tree. The Jambo tree is next to the cashew tree, which is next to the gate. The gate has been open for so long that its wood has drilled into the mud and from there it is germinating in a new stupid start.
(Like my own.)
We talked about the coffee stalks, wild ones, which we still see around those parts, even without looking for them.
We stand there. There’s a sound of radio coming from the neighboring house. The original land, which was never very big, was divided and partly ceded. Hence such a close neighbor. In exchange, Cris agrees with them that she’d get some chickens, some vegetables.
But the new neighbor’s home is closer than she’d like. She can’t sit at the table anymore, with a coffee, the chair turned towards the undergrowth. Just one chair now. She can’t stay there anymore, listening to the sound of nothing. And she leaves.
She’s just there to show it to me. She hasn’t been there in a while.
Right after the car is parked underneath the cashew tree, there’s a dog that comes to see us and then vanishes. She says she’s seen it around other times, when sometimes, and it’s been a while, she comes to look at the closed, empty house, the undergrowth almost erasing the gate. I think that after she says that, she regrets it. I think she notices that, by talking about the dog, she’s telling too much. By talking about the dog, she’s saying she goes there all the time. That she’s standing all the time, next to the gate that’s growing from the ground, looking at the sand hole that is no longer there. The absent coffee table. The laughter of the nephews when they were children. The godmother.
While we’re standing there, on foot, the house closed, the car parked crookedly underneath the cashew tree, the dog doesn’t show up. It only reappears when we’re slamming the door back shut, the engine starting its rumbling.
The house was burglarized once, she says. Someone related to one of the nearby neighbors.
He takes the gas cylinder. Uses almost all of the tank water, the theft happens during the dry season.
And he takes some cloths. Tablecloths, bed sheets.
Later, the guy is arrested, for another theft. She’s summoned to the police station to identify  the cloths. It is a Sunday afternoon. The thief hadn’t had lunch. She goes out, buys some warm takeaway, brings it back. That’s the only time the house is burglarized. After that, the guy’s already out, never again.
She has a hard, marked face, and a kindness in her voice. She never got married, she answers me. Not even a boyfriend. So, during this whole day, we kept our distance. Our private lives, so different, and at the same time, so understandable to each other. But we kept our distance, our lives politely excluded from the conversation, in common and tacit agreement.
I try to talk about Molly a little, but she never knew Molly. Molly was gone from there a long time ago, she wasn’t even born yet. She thinks she’s heard about her, but she’s not sure.
I leave my address, email, telephone. I don’t know what the legal situation of the property is.
I don’t even know if this is really the house that belonged to Molly’s father. But I say that, if it is, and Cris wants to or needs to make it legal, just say the word. I’ll come back. I’ll sign whatever.
The driver drops Cris at her little house in the village. Nothing changes on her face. It’s just the same as when we picked her up on the way to the farmhouse. Now she has my card in hand. But the face doesn’t change at all. The drive to the farmhouse is not important. She doesn’t let it be important.
I didn’t have much to offer, much to tell. I realize then how little I know about Molly. I know Molly’s father had a cow. What was left of the milk and the raw cheese made in a crumpled aluminum mold, he threw away. There was no electricity. Therefore, no refrigeration. It would go rotten in a single day, with the heat. Later, Pedra do Conde managed to get the wiring and posts up to the gate. They went through the farmhouse. Molly’s family starts being able to sell the remainder of the milk and the cheese.
Molly was the only one to go to school. The brothers, all men, did not study. They stayed on the fields. Molly studied until third grade.
What I’d have to tell is that one day the school bus was late. The stop where Molly got off was the same one that the children of regular employees of Pedra do Conde also used. From there to the farmhouse, there was a section of the coffee crop. The children of regular employees went one way. She went the other. Her father or a brother would always be waiting for her, on the return from school. They came back together. One from the fields, her from school. And then one day the bus was late. It broke down midway. When she arrived at the stop it was late at night. And there was no one waiting for her. So she went by herself. She crossed the coffee fields alone, clapping with her hands stretched away from her body. Snakes leave when they know there’s people around. They are very peaceful creatures. They only attack when they think they’re in danger. Not like cougars. Cougars are different. But Molly thought it was best just to think about the snakes. She crossed, she got home. Everyone already at the table.
“Hi.”
“Hi.”
They didn’t even raise their faces from the plates. Nothing out of place. Nothing extraordinary. So she didn’t think there was anything extraordinary either. She washed her hands. She sat down, and ate.
That’s what Cris would have done.
The driver takes me back to the hotel. There’s a stupidly strong sun on the already late morning. I tell him to leave me at the beach hut in front. I ask for a moqueca, amidst the flies. The moqueca takes a while. The wind in the palms, continuous, grows stronger, the music in staccato. I switch chairs to face the wind, so the hair won’t hit my face, won’t tickle, won’t remind me I exist.
It’s nice, the wind in my face. Very nice. When I open my eyes, I see the wind also works against the flies. They disappear. The moqueca is good. Not great, but good. A shame it doesn’t have pepper in it. My desire is to fill it with pepper. Until it drains out through the eyes, until the eyes cry out: pepper.
Back to the hotel, I meet the rest of the group, anxiously looking for me. There’s a lunch that was already scheduled. The whole group, great restaurant. I apologize. I’ve eaten already.
“Early, huh?”
“That’s right.”
I got up early, I got hungry early. An explanation. I don’t always have one.
They ask if at least I’m still up for dinner. I tell them no, that I’ll eat at the hotel. Tired, you know. I recommend the hotel food to them. Grilled chicken. My usual good old grilled chicken, when my crumpled sandwich runs out.
And I say to them that the next day, the last in town, I’ll need the morning just to myself again.
I go to the low house that the driver pointed out when we arrived, where the local documents are. Notary’s office.
I don’t need to explain much to the person there.
“Oh, that was a nasty fight, a bloody one.”
Pedra do Conde was divided up even more, between legitimate heirs and those who appeared over time.
“Once in a while another one shows up.”
He laughs.
The guy, the owner, died in a silly way, in a bar fight. He offended a quilombola. He called him a dirty negro without even being provoked.
He would have hated Pedro. Gay. Me, I don’t think he’d have the opportunity to hate. I wouldn’t give him that chance.
As for DNA, I won’t pose as a magnanimous person. At Molly’s time it didn’t even exist. At the time of this trip, it did. Molly was very afraid of this. Very afraid that I’d want it. I didn’t. Exhumation of dead bodies, lawyers, me fighting for a life that wasn’t mine. I didn’t want to. I never did. Me, and the legal recognition, the guy recognized as my father.
“Hi, daddy.”
No. No way.
I went back, the trip was over. I never told this to anyone. For a while I still waited for Cris to get in touch. I would have liked to talk to her again, I liked her so much. I thought I’d like to drink coffee with a lot of sugar next to her, both chairs turned towards the same direction, four eyes staring into the distance, looking at nothing, anywhere, in any city.
Talking to Molly, a little after this trip, her eyes examined me, furtively, saying hello, how are you, in an inquisitive way. It would be the hello, how are you of every trip, if not for those eyes. I answered with the usual everything’s fine. And I got the feeling, that sometimes she gave off, that she knew where I had been. And that it was a relief to hear my everything’s fine. She didn’t want to listen, she never did. But she knew.
 
 
(*) heirs of fugitive slaves who remained on the land.

 

 

 

 

and there is another excerpt, published by wasafiri magazine volume 30, issue 2, pages 56-58, and read by its translator, lucy greaves, in youtube.

Nada a dizer – reviews

ELVIRA VIGNA: NADA A DIZER (Brasil, Ed. Companhia das Letras, 2010,  168p.; Portugal, Quetzal, 2013, 176p.; Itália, Gran Vía, 2016, 168p.) – reviews.
– Literary Fiction Award from Academia Brasileira de Letras

 

internal files:

nada a dizer – excerpt

 

 

 

 

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Reviews:
(Italian edition)

 

Salvatore Iacono – Centro de studi ed iniziative culturale Pio la torre – 15/07/2016

Tradire è un po’ morire, ma anche capire
Il Brasile letterario dev’essere ben più sterminato di quello geografico. E starci dietro non è affatto semplice. Di certo è quasi sempre garanzia di un’esperienza di lettura che resta dentro e sedimenta. Lispector e Abreu, Amado e Guiamares Rosa, Machado de Assis e Scliar, più di recente Wrobel e Ruffato, in questo senso, insegnano. Si fa fatica ad orientarsi – ma è un piacevole smarrimento – nella letteratura lusofona dell’America Latina ed Elvira Vigna è un altro tassello, una bussola che mancava negli scaffali delle nostre librerie. Le edizioni Gran Via colmano un vuoto, con la pubblicazione di “Niente da dire” (163 pagine, 14 euro) della scrittrice brasiliana – già giornalista, editrice, autrice per l’infanzia – tra le più amate nel proprio paese, con una carriera quasi trentennale alle spalle, ma fin qui sconosciuta in Italia.
La credibilità che ha questo romanzo, tradotto da Vincenzo Barca, non sta nella storia raccontata – una solida (apparentemente) trentennale relazione della classe media messo a rischio da un adulterio del marito con una donna più giovane di vent’anni – ma nel modo esplicito in cui è narrato (immerso non in uno scenario esotico, non nei luoghi comuni di Rio e San Paolo, quanto nella contemporaneità delle mail, degli sms, di Skype), un crollo in prima persona, la ridefinizione della vita e delle abitudini, il mettersi in discussione fra illusioni e disillusioni, senza perdere di vista umorismo e lucidità. Il triangolo è composto dalla narratrice senza nome, dal marito Paulo (coppia di traduttori, di certe lotte e certi ideali, vissuti insieme nel passato, e di siderale distanza nel presente) e dall’amante di lui, N, antagonista che della narratrice è perfetta antitesi, prorompente quanto la donna tradita è il prototipo di un’intellettuale impegnata. Si affastellano domande sulla vita di coppia e sulla libertà, su ciò che viene meno quando si tradisce: un inventario dell’amore nella mezza età e del dolore di spietata contemporaneità è “Niente da dire”, che scorre crudo e onesto fino in fondo. Ne vien fuori che tradire è un po’ morire, ma è anche capire, maledettamente, gli altri e se stessi

 

 

Gianluigi Bodi, in Senzaudio.it, 12/07/2016

Cara Elvira Vigna, qualcosa da dire ci sarebbe.
Cara Elvira Vigna, ho tradito e sono stato tradito. E a ripensarci ora, credo che la cosa più difficile da fare in casi come questi sia parlare. Parlare con onestà, a sangue freddo, di quanto è successo. Nemmeno in un milione di anni riuscirei ad affrontare un tema come questo con la qualità usata in “Niente da dire” da Elvira Vigna.
Tramiamo.
Paulo e la nostra narratrice senza nome hanno un problema. E’ lo stesso Paulo a dircelo nel capitolo introduttivo. Lui tradisce la moglie con una donna più giovane e a mio parere molto meno interessante. Ma questo di solito non conta, giusto? Poi la palla passa a lei e lei racconta l’evoluzione di questo tradimento, dall’iniziale scappatella fino all’epilogo. Quindi, per farla breve, questa è la storia di un tradimento.
Quello che rende il libro speciale.
Quello che rende questo libro speciale è la voce narrante. La donna senza nome che scopre casualmente che il marito si trastulla in altri lidi. Il racconto è spietato. Lucido alla follia. Quasi fosse un esperimento scientifico. L’analisi attimo per attimo del percorso extraconiugale è denso di particolari. Quella della narratrice sembra quasi essere una ricerca ossessiva delle motivazioni profonde che portano tre persone ad agire come stanno agendo. Perché il marito ha tradito? Perché l’amante ha partecipato al tradimento? E perché la moglie tradita reagisce a quel modo? Mano a mano che le pagine scorrono la voce che ci accompagna scava ancora più in profondità, come un detective si barcamena tra indizi e congetture fino ad un’ipotetica verità. Quale sarà la soluzione migliore per riprendersi Paulo? Diventare forse come l’amante? Cercare di dargli quello che lui non riusciva a trovare nel matrimonio? Non c’è una ricetta, ma se il tradimento fosse una legge scientifica Elvira Vigna sarebbe molto vicina a scoprirne i postulati.
Il traduttore.
Vincenzo Barca ormai qui è di casa e io non mi stanco mai di dire che un libro tradotto da lui parte già avvantaggiato.
La casa editrice.
Di Gran Via non posso che parlare bene. Essendo un appassionato di letteratura latino americana nel loro catalogo ho sempre trovato una seconda casa. Vuoi per la qualità dei libri, vuoi perché affidando la copertina a Mirko Visentin, vuoi perché mi permettono di staccarmi dai classici e tuffarmi su autori contemporanei che forse avrei perso. Per queste e altre ragioni la via di Gran Via è da percorrere.

 

 

Leyla Khalil, Reinventarsi dopo il tradimento, in Facciunsalto.it, 22/05/2016

Elvira Vigna in Niente da dire, edito da Gran Via Edizioni, racconta il tradimento nel Brasile della borghesia, quello piatto – ma di una piattezza autentica, che proprio per questa borghese ordinarietà surprende chi si aspetta invece panorami esotici e piume colorate riproducendo ingenuamente immaginari fallaci proposti dai media europei.
La narrazione avanza attraverso la voce della protagonista, seguendo a linea guida di alcune date fulcro che lei serba in mente com la gelosia perversa con cui si trattengono i ricordi di ogni addio, percorsi e ripercorsi mentalmente infinite volte. Niente da dire non è soltanto la storia di un tradimento ma della ricostruzione di sé dopo il tradimento del partner, in questo caso di Paulo.
“Chi ero io per Paulo?”, se ló chiede spesso, la traduttrice tradita attorno a cui ruota l’intera vicenda. La Vigna analizza una ad una le tappe di elaboracione del fatto: il senso di assurdità, la negazione dei fatti, l’ostinato parlare al duale con um “noi” che sottintende una coppia che non c’è più. E ancora, il vano quanto assurdo tentativo di non somigliare più a se stessa, l’ambivalenza continua nei confronti dell’amante, che al lettore viene presentata semplicemente come “N”, la voglia di vestire come lei, essere como lei, scopare como lei con il fine unico di riconquistare Pulo.
Partendo dal quesito “chi ero io per Paulo?”, la donna giunge a tutt’altra risposta: rinunciando all’approfondimento identitario, preferisce essere chiunque pur che sia qualcuno che Paolo ancora desidera.
Passa con rassegnazione a non esigere più una spiegazione al trascorso:

 

“Quella mancanza di chiarimenti è una delle cose che non sarebbero state possibili nel mio vecchio io e che nel nuovo, in quello che alla fine ero riuscita a costruire, era possibile. Fragile, nel senso che ammette l’ambiguità, l’incomprensione, il non controllabile, à un io che include la presenza di un Paulo anche lui ambiguo, spesso incomprensibile e certamente non controllabile.”

Quest rassegnazione però resta teorica, perché soltanto alla fine vedremo la vera rinuncia al controllo della protagonista, l’abbandono totale alla realtà senza bisogno di filtrarla attraverso una forzata razionalità.
Con rassegnazione, la protagonista ammette poi il fallimento nel tentativo di essere” N:

“Non riuscii a far sì che la sua presenza nel mondo si restringesse fino a coincidere esattamente con il mio modesto corpo, quando infine avremmo occupato lo stesso spazio, io sarei stta lei e lei sarebbe stataa me. E lei sarebbe scomparsa.
O forse sarei scomparsa io.”

L’impossibilità di essere N. diventa a sua volta impossibilità di cancellare il tradimento che la coinvolge, di cancellare N. como amante, como presenza nei pensieri e nei ricordi di Paulo.
Allora arriva la disperazione: umanizzare un iPod quasi per fondercisi, appropriarsene penetrandolo con la propria essenza per sottrarre lo spirito di N. che lo possiede in un privatissimo rito animista. Per quanto inquietanti, le scene riportate da Elvira Vigna mantengono sempre una vena ironica che le fa scivolare nel grottesco. Così capita anche di sorridere, leggendo i disperati tentativi di cancellare dal mondo l’esistenza dell’amante.
Ma poi, in fondo, fa capolino una verità nascosta finora: la donna ama ancora Paulo.
Lui, che da traditore pentito non aspetta altro che l’assoluzione, accetta a capo chino di farle leggere le mail che si scambia con N., ed entrambi costruiscono un nido provvisorio.
Se l’escamotage di non dare un nome alla donna antagonista si rivela un trucchetto di cui la Vigna avrebbe potuto fare a meno, a convincere di più è la descrizione puntigliosa della routine ossessiva della protagonista. La quale, spinta da gelosia, controlla le mail del partner, la sottigliezza con cui accenna al calore della sedia del computer che fa presagire la clandestina presenza del partner poco prima davanti a quello stesso schermo, in un gioco di evidenze celate e dissimulate e verità fiutate scavando fra inganni e trabocchetti.

“Io ero vittima di un’ossessione che diventava sempre più forte. Ogni occasione era buona per frugare nel computer di Paulo. In mancanza di nuove mail, cercavo quelle vecchie. Cercavo tracce di file cancellat, indizi di qualsiasi tipo che riconducessero al nome di N.”

In questo gioco di scritture, cancellature e riscritture del proprio io, la donna si ritrova nel paradosso di non aver più nulla da dire, eppure di vomitare parole su parole cercando nelle parole una razionalità residua.
Nulla da dire sono le memorie di una donna ferita e colpevole di molto amore e troppo abbandono, che esiste ma che decide di smettere di esistere.

“Mi sgretolai. Non esistevo più.
Non mi aspettavo che questo potesse succedere. Che io potessi non esistere, che mia esistenza potesse non essere calcolata dalla persona che più mi conosceva al mondo.”
Eppure è proprio nel momento di massimo abbandono allinestenza che una forma nuova di libertà sembra poter germogliare.

 

 


Amarilli Novel in Mangialibri, 18/03/2016

Rio de Janeiro. Paulo aspetta la sua futura amante in un ristorante quasi vuoto: è già stato lì in molte altre occasioni, ma sempre per lavoro. La vede dapprima dalla finestra: lei scende dal taxi, ha le cosce tornite e un modo di fare sicuro. La camminata di lei pare dire: “So quel che faccio”. E Paulo sa quel che fa? Non proprio. Quando N. è abbastanza vicina Paulo esita un istante, poi si alza e decide di baciarla: è solo l’inizio. Ordinano. Sorridono. Poi non resistono: cominciano a toccarsi. Paulo ride, anche più di quanto dovrebbe: la strada che porta al sesso non è facile. Vorrebbe portarla subito da un’altra parte, averla tutta per sé. Spazientito le dice: “Be’, andiamo”. Bisogna però aspettare il cameriere, il conto, la ricevuta. Non è così semplice. Finalmente escono, salgono su un taxi ed è lui a decidere: ”Portaci al Motel Sandalo”. Non le chiede se va bene, lo dà per scontato. È lo stesso motel nel quale lui è già stato tante volte con la sua compagna di una vita, perché casa loro era sempre piena di bambini e poi di ragazzi e quello era l’unico modo per fare un po’ di sesso indisturbati. Adesso i bei ricordi di quei tempi Paulo sembra averli dimenticati tutti. Eppure, la verità non ci metterà tanto a venire a galla: presto lui dovrà confessare i dettagli del tradimento e la sua compagna ascolterà ogni cosa, ogni singolo particolare, chiedendosi come sia possibile scordarsi di chi ti è sempre stato accanto e mentire per mesi…
Niente da dire è l’unica opera finora tradotta in italiano della scrittrice, illustratrice e giornalista brasiliana Elvira Vigna ed è una storia cerebrale, quasi una discesa nella psiche. Protagonisti sono Paulo e la sua compagna (senza nome per l’intera durata del libro): una coppia di sessantenni non ordinaria che per scelta non si è mai sposata e che, dopo un passato di impegno politico, lavora ora nel campo della traduzione, vivendo in una casa che somiglia a una comune. Sebbene tra i due protagonisti ci sia affiatamento e amore, lui decide di tradirle lei: una situazione banale, “da telenovela di quinta categoria” come dirà la compagna di Paulo, voce narrante. Per sopportare il dolore dell’infedeltà, lei prende una decisione insolita: ricostruire quel che è avvenuto tra Paulo e l’amante in ordine cronologico, scoprendo i dettagli, ricreando i particolari degli incontri dai quali è stata esclusa, anche i più minimi. Così chiede, domanda, indaga, arriva persino a controllare le email di lui più volte al giorno – cosa che non aveva mai fatto prima – e ad affittare un appartamento tutto per sé nel quale riflettere. Niente da dire è una lunga investigazione sulla propria personalità e sul modo in cui si viene percepiti dagli altri ed è un effetto domino che si regge traballante sulle lettere dell’alfabeto: il tradimento di Paulo non travolge non solo lui, ma chiunque gli stia attorno, privato – senza motivo – di un solido terreno sotto i piedi.

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Myriam Pettinato, in Gufetto Mgazine, 02/03/2016

Elvira Vigna, una delle maggiori autrici brasiliane contemporanee, ha all’attivo trentasei pubblicazioni, tra le quali si annoverano i libri per bambini e ragazzi scritti e illustrati negli anni dell’esordio letterario, romanzi, racconti e saggi. Niente da dire (2010) è il suo ottavo romanzo, il primo a essere tradotto e pubblicato in Italia, portato in libreria il 23 febbraio dalle edizioni Gran Vía.
Niente da dire è il racconto minuzioso e sofferto di una vita intera messa in discussione dall’adulterio. La protagonista senza nome del romanzo scopre per caso la relazione clandestina del suo compagno Paulo con N., una conoscenza comune, anch’ella sposata, esponente di un universo sociale altro rispetto ai due, una femminilità dirompente che non ha nulla a che fare con il contegno da intellettuale progressista della narratrice. Il suo racconto si muove lungo alcuni assi ideali – la relazione extraconiugale, il rapporto socialmente riconosciuto benché non convenzionale, il ricordo della lotta contro la dittatura, il presente lavorativo, le differenze di genere – che conducono a un’analisi profonda dell’agire e del sentire di una persona che si scopre all’improvviso essere nient’altro che un cliché.
Una donna tradita che indaga almeno un quarantennio della sua vita, scandagliando le ore e i giorni trascorsi nei dodici mesi in cui il tradimento non solo si è compiuto, ma si è ripetuto, alla ricerca di una comprensione totale degli accadimenti – anche i più infimi – dai quali lei è stata esclusa; delle motivazioni che hanno condotto il compagno a ignorarla come mai avrebbe creduto; delle conseguenze; del valore politico della possibilità di scelta. Ma anche un elenco inesauribile di parole, canzoni, storie andate perdute per sempre, e il ritratto impietoso di una donna che si sgretola e scompare. «Non esistere per Paulo fu solo un rapido preambolo a non esistere per me stessa.»
Con uno stile realistico che non risparmia gli atti e le parole più triviali, e allo stesso tempo esprime tutta la dolcezza dell’amore ferito, Elvira Vigna descrive e scruta ossessivamente la relazione tra due persone mature che si perdono e si ritrovano senza sosta, lei resistendo alle infinite varianti di una storia montata e rimontata mille volte, lui sostenendo paziente il fuoco di fila delle domande ripetute giorno e notte. Il tutto in un Brasile lontanissimo dai luoghi comuni, tra due città – San Paolo e Rio de Janeiro – che, come le case abitate e poi lasciate, restano sospese, in attesa di un ritorno alla normalità per nulla scontato, ma possibile.

 

 

Niente da dire di Elvira Vigna, by Andre Pennywise, in  Um antitodo contro la solitudine, 28/02/2016

Uno dei fenomeni più comuni nella nostra società è sicuramente il tradimento. Un aspetto sempre più diffuso e radicato a una normalità caratterizzata da quell’amore infedele quasi sempre inaspettato. Un sentimento rivelatore di una parte nascosta della persona alla quale abbiamo deciso di affidare il nostro cuore.
All’interno di questa dinamica Elvira Vigna muove la sua voce chiarificatrice, quella di una donna tradita costretta a far i conti con il proprio essere.
Niente da dire (gran vía) è l’ottavo romanzo di questa autrice nuova al panorama italiano, nonostante sia una della maggiori rappresentanti della narrativa brasiliana contemporanea.
Questa è la storia di un tradimento compiuto tra gli alberghi e le strade delle due città che più rappresentano il Brasile: Rio e San Paolo. Due luoghi ai quali sono collegati i sentimenti sotterranei di Paulo e N., la donna senza nome capace di poter strappare la figura maschile da un contesto familiare apparentemente consolidato.
È il flusso di coscienza della protagonista a guidarci tra i meandri della perdita servendosi di un occhio sorprendentemente atipico atto a tralasciare tutto ciò che potremmo perdere e a valorizzare un lavoro di analisi intima sulla capacità di affrontare la tragedia.
Estranea a me stessa, diventai la moglie tradita di tutte le storie già scritte e ancora da scrivere.
Tra i numerosi viaggi, nel corso di un interno anno, si consumerà un amore cercato, sintomo di una libera scelta individuale che non contempla “l’altro”.
La Vigna delinea ogni individuo della coppia come un’entità singola in cerca della propria dimensione, della rottura di uno schema consolidato da troppi anni di quotidianità sempre uguale a se stessa.
Quali sono le motivazioni che ci spingono a tradire? Cos’è la libertà individuale? Quali sono le dinamiche regolanti della vita di coppia? Queste alcune delle domande alle quali il lettore non potrà far a meno di pensare.
Tanti saranno i percorsi da seguire grazie ai quali ogni lettore potrà mettersi in discussione. Grazie a una voce sicura, potremmo accantonare la paura di rivelarci e grattare la dolorosa parete dell’autoinganno. Non sarà poi così strano mettersi nei panni di quell’odiata antagonista ripercorrendo in un gioco sadico i passi di un amore fittizio, per poi poter addirittura costruire una personalità diversa dalla nostra. Il nostro io calpestato dal sentimento più naturale del mondo. La dignità dimentica tra le lenzuola di un albergo ai margini della città.
Il Brasile a fare da sfondo alla libertà sessuale del nostro tempo e alle sue contraddizioni sottolinea la frattura lasciata dalla rivoluzione. La sessualità conquistata con il sangue e con il carcere, la possibilità di poter scegliere oggi più che mai abusata e svestita dalla sua valenza, dal peso di una consapevolezza ormai persa.
Come se uno scenario inadeguato potesse impedire l’esistenza stessa di ciò che doveva essere vissuto.
Leggere Niente da dire ha significato immergermi in un’esperienza nuova e mi ha permesso di dare il volto a una narrativa immediata, stilisticamente accessibile e sempre più di nicchia.
È stato come trovarsi davanti al vetro di una finestra con l’intenzione di guardare il mondo esterno, concentrarsi, perdersi nel dolore e non riuscir a veder nient’altro che il nostro volto sfuocato tra le luci di un nuovo giorno. Niente da dire sì, tutto però ancora da fare.

 

Presentation by Gran Vía:

Mi piaceva quel gioco che facevamo con il linguaggio. Parlavamo senza interruzione, giorno e notte. In generale la notte e urlando. Parlavamo e tornavamo a parlare, ricamando su cose dette e ridette mille volte, giusto per tornare a ridirle. Nella speranza che lo spostamento di una virgola, di una nuova parola, ci proiettasse oltre il linguaggio.

Dopo aver scoperto casualmente il tradimento di Paulo, il compagno di una vita, con un’amica di vent’anni più giovane, la narratrice senza nome del romanzo inizia un’analisi minuziosa della sua vita di coppia. Il triangolo fugace ed effimero che la vede suo malgrado coinvolta diviene così il motivo scatenante delle sue riflessioni. Nulla sfugge al suo sguardo distaccato e alla sua ossessione per i dettagli, mentre ricostruisce gli eventi di un’intera esistenza, in un esercizio spietato, benché necessario, di scoperta e rivelazione. Ma il flusso di coscienza della protagonista, le parole sorte dalla sua voce ferita non sfociano tanto in un inventario dei danni e delle perdite che il resoconto di un adulterio porta con sé, quanto in un’indagine sulle motivazioni dei personaggi coinvolti, sulla libertà, la scelta e l’autoinganno, alla ricerca di quella che è, forse, l’unica possibilità di recupero.
Narrato in prima persona in tono lucido e umorismo caustico da una delle più importanti scrittrici brasiliane contemporanee, Niente da dire è un contundente ritratto di coppia e una riflessione indiretta sulle possibilità di comprensione reciproca nel nuovo millennio.
Il romanzo vincitore del prestigioso premio Ficção dell’Academia Brasileira de Letras

 


(Portuguese edition)

Sergio Almeida, Jornal de Notícias , programa Companhia dos Livros, 08/03/2014.

(link para o vídeo.)

 

Isabel Coutinho, jornal Público, suplemento Ipsilon, 08/03/2013, p. 18-19.

Elvira Vigna tem uma obsessão por Camões. Quando o leu pela primeira vez ficou muito impressionada. E a memória dessa leitura coincidiu, mais tarde, com uma “experiência dura”. “Na minha leitura, o que mais me ficou foi a volta da viagem, a dificuldade da integração do novo, da mudança, na vida que se leva. Os Lusíadas tem uma volta difícil”, diz a escritora brasileira ao Ípsilon por e-mail.
Essa leitura aconteceu há muitos anos e é anterior a uma experiência fundadora. “Na década de 80, precisei de morar uns anos no exterior.A volta foi muito complicada. Nossa bagagem ficou presa no porto de Nova Iorque, sob uma greve de portuários americanos. Ficámos uns tempos num hotel sem roupa, com os papéis de trabalho longe. E eu estava muito diferente daquela que tinha ido”, lembra a escritora, que nasceu no Rio de Janeiro em 1947.
“Apesar disso, aqui [no Brasil] me esperavam meus pais, amigos antigos que eu não sabia se ainda poderiam ser meus amigos e um apartamento fechado que me pareciam muito distantes e estranhos. Me esperava até meu antigo emprego [no jornal] O Globo, cuja redacção estava em reforma, com gente que eu não mais conhecia. Me lembrei de
Camões e de sua volta.”
Foi nessa altura que escreveu o seu quarto romance, Coisas que os homens não entendem (Companhia das Letras), que conta esse seu regresso e cita Camões, sem aspas, no meio do texto. Por isso, quando em Janeiro do ano passado a escritora esteve em Lisboa, sem ter ainda nenhum livro publicado cá, escolheu para tema da palestra que deu na embaixada brasileira Coisas que os homens não entendem e Camões (disponível em http://elvira.vigna.com.br/livcoisascri.
No entanto, não é com esse livro que se estreia agora no mercado editorial português. A Quetzal optou por um romance mais recente, Nadaa Dizer, Prémio de Ficção da Academia Brasileira de Letras 2011 e finalista do prémio Portugal Telecom no mesmo ano.
Para os seus romances, Elvira Vigna não parte de ideias. Parte de histórias reais que viveu, que lhe contaram ou que presenciou, e que a marcaram a ponto de nunca mais se esquecer delas. É o caso de Nada a Dizer, que conta uma história de adultério, embora o tema não a atraia de uma forma especial. Vê-o como uma “‘solução’ medíocre para
um conflito que é humano e bem comum”. Nada a Dizer relata o modo como um casal de meia-idade tenta sobreviver à traição. Paulo engana a narradora com N., uma mulher 20 anos mais nova, casada. O relato é-nos contado pela mulher traída numa tentativa de entender o que não entende: “Paulo fez o teste de HIV. Depois mostrou, condescendente. Li em seu rosto que ele achava que me fazia bem eu considerar N. uma mulher promíscua. Que eu, a esposa traída de meia idade, me sentiria melhor se ele não refutasse a hipótese de sua amante ser uma puta. Eu afundava, mais e mais, em estereótipos, e Paulo continuava a me ajudar para que assim fosse. Agora, eu era a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha sido traída. E era também a mulher merda, banal, medíocre, imbecil que tinha a reacção típica de todas as mulheres merdas, banais, medíocres, imbecis ao serem traídas: pedir teste de HIV.”
A narradora descobre o adultério do companheiro de décadas quando vê um e-mail protegido com uma senha. O livro aborda a traição em tempo de Internet, Skype, blogues e redes sociais. “Este foi o meio que encontrei — e bem real na minha vida, já que frequento as redes — pararesolver um problema de escritor. Como o livro é narrado pela mulher traída e como eu o queria brutalmente realista, a ponto de não permitir possibilidade alguma de ilusão romântica, precisava de fazer com que a narradora ‘soubesse’ de detalhes que ela não poderia saber. As conversas entre ela e Paulo, brutais em sua sinceridade, resolviam a maior parte do problema. O resto teria chegado ao conhecimento da narradora através de espiadas nas páginas de redes sociais da amante, N.”, diz Elvira Vigna, que, além de ser jornalista, teve uma editora, a Bonde, durante cinco anos, editou a revista marginal-literária A Pomba e, em 1988, abriu a empresa de traduções que ainda tem.
“O que me volta até hoje, cinco anos depois, é a imagem dos dois depois de tudo o que aconteceu, eles cada vez mais velhos, sozinhos na casa, se olhando sem máscaras, muito próximos, muito verdadeiros um com o outro, e sem mais nada a dizer sobre a vida que lhes coube ser vivida.”
Trepar com quem se quer
Em Nada a Dizer, o Rio de Janeiro é o lugar do adultério e São Paulo a cidade onde o casal mora. “Sempre ancoro o que escrevo no que eu vivo no momento da escrita, ainda que o que está sendo escrito tenha se passado ou comigo em outras épocas ou com outras pessoas em outros lugares. Eu acabava de me mudar do Rio para São Paulo. Os cenários são reais, um retrato exacto da minha casa naquele momento, e também do bairro em que morei no Rio, Botafogo. Quando o que eu quero contar precisa de se passar em lugares específicos, eu me mudo para esses lugares enquanto escrevo”.
A seguir reescreve e reescreve, mas o cenário já está montado.
A narradora de Nada a Dizer contanos a determinada altura: “Fomos nós, os que fizeram 60 anos no início do século XXI, os que lutaram e enfrentaram hostilidades de todo o tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos, trepando com quem quiséssemos, sem que as peias e o jugo de uma estrutura burguesa conservadora tivesse algo a ver com as decisões pessoais de cada um. Eu, com a filha que decidi ter.
Paulo, experimentando sexualidades e estilos de vida em grupo. Eu, à la Leila Diniz — que inclusive conheci bastante bem — levando minha barriga alegre e solta, ao sol. Paulo com suas letras de música proibidas, com seu carrinho velho, enfrentando o perigo, para levar amigos clandestinos de um lugar para outro.”
O modelo para a narradora desse livro é uma mulher que Elvira conheceu. “Ela me impressionava muito. Tudo estava sempre bem com ela. Tinha uma porção de filhos, de vários relacionamentos, todos vivendo com ela e com seu eventual companheiro do momento. Trabalhava como montadora do cinema brasileiro. Fazia pão em casa, usava
roupas compridas. E no momento em que escrevo isso para você, recupero o sorriso dela e até sua voz. E tanto eu quanto ela conhecíamos [a actriz] Leila Diniz. A personagem desse livro é ela, ou melhor, como ela seria (e como eu seria), hoje, tendo vivido o ambiente que ambas vivemos naquela época.”
Como acontece com todos os narradores dos seus livros, essa mulher é também Elvira Vigna. Para conseguir escrever um romance, a escritora precisa de encontrar em si “essa possibilidade de ‘eu’”. Pelo contrário, custou-lhe construir a personagem N. — a companheirona “a que bebia, porra, ria alto, caralho, fumava, merda”. “Foi muito difícil fazer com que ela se sustentasse coerentemente no livro, porque na verdade eu não a entendo bem. Tenho muita dificuldade em entender alguém que não seja verdadeiro com o que sente. Que pretenda manter uma posição confortável em detrimento do que a vida possa trazer de mudanças. N., como os outros personagens do livro, também existe na vida real.Portanto sei que a postura liberal que ela apresentava em público, sim, convivia com um extremo conservadorismo na vida pessoal. A explicação que desenhei no livro é mais sociológica do que individual. Seria um reflexo de sua classe social, uma burguesia encastelada há várias gerações em privilégios e em ‘jeitinhos’ para manter as aparências e uma suposta respeitabilidade.”
Paulo, por sua vez, é descrito como um comunista filho de um “pai bronco, português — que cortava seu rabo-de-cavalo com a faca de açougueiro”? “Paulo, como tantos de sua geração, revoltou-se primeiro com o ambiente dentro de casa. Tendo vindo de uma cidade pequena do interior, a sua revolta estendeu-se dos limites da casa paterna
para os da cidade pequena, e depois para a política nacional. Esse percurso foi comum na minha geração. Quanto ao ‘português’, isso também era um aspecto comum naqueles tempos, em que a imigração portuguesa das primeiras décadas do século XX, já estabelecida em pequenos comércios, começava a educar os seus filhos, nascidos no Brasil”.
Uma das coisas mais interessantes na leitura de Nada a Dizer é a mestria com que Elvira Vigna consegue mostrar como aquela história é vivida de forma diferente pelo homem que trai e pela mulher traída. É um dos pontos principais do livro: “Duas pessoas muito distantes que, após um trauma, começam um lento e doloroso processo de aproximação e conhecimento. Paulo e a sua mulher vivem duas vidas completamente diferentes e afastadas uma da outra sem que se dêem conta disso. São obrigados a enfrentar essa distância, pela primeira vez em muitas décadas, com o caso de Paulo com N. Com o impacto dessa realidade, as fantasias, inclusive a que seria a ‘história principal’ do livro — a do possível assassinato do marido de N. — caem no vazio. Não há mais espaço para fantasias. Eles precisam de aprender a falar e a se falar, e isso é tudo.”
O modo como os filhos do casal vivem tudo o que se está a passar naquela relação é outra das forças de Nada a Dizer. A determinada altura, a narradora pede à filha para lhe comprar um bâton, que habitualmente não usa: “’Quero vermelho puta’. Ela disse Ahn, ahn, e comprou quase incolor.” “Os filhos aparecem pouco e são, como você tão bem notou, importantíssimos. Eles vêem. Eles sabem, eles gostam dos pais, mas pouco podem fazer, além de tentar aparar excessos e caminhos sem volta. São mais maduros do que os pais. É como se a história fosse contada por eles. O ponto de vista é exactamente esse: de alguém muito próximo, que vê o que acontece com um afecto e também com um riso sobre as trapalhadas em que o casal se mete”, nota a escritora.
Incomodar quem lê
Elvira Vigna é também ilustradora e crítica de arte contemporânea. As imagens são a base da sua escrita. “O hiper-realismo é uma técnica terrível. Você não ‘inventa’ nada. Você desenha ou pinta exactamente o que está lá. E o que seria a reprodução anódina de algo bem comum — digamos, um balcão de bar ou uma praia cheia — torna-se perverso. Isso porque, ao olhar normalmente seja o que for, você ‘filtra’ as imagens que vê. Você omite detalhes e acentua outros, a depender de qual acervo cultural você tem, de qual é a sua ‘vontade’ em relação àquilo que você vê, de quais os seus traumas.
O hiper-realismo, de Edward Hopper e outros, te impede de fazer isso. Te obriga a ver. O que era banal e anódino torna-se ligeiramente perverso. Você não sabe direito o que te incomoda. Mas incomoda. Quando descrevo os detalhes do motel ou de um almoço com essa mesma técnica, o que poderia ser visto como algo comum ou positivo também
passa a incomodar quem lê.”
No livro há esta passagem: “Mas eu continuava sem entender como ele podia meter o pau dele em qualquer buraco, só porque podia. (…) Ele fazia porque podia. Assim simples. Assim capitalista. Assim quanto-mais-melhor. Assim burro.”
Como é que entra o capitalismo nesta história? Elvira explica: “A narradora é oriunda da década de 60, teve uma formação muito ideológica na juventude, como muitos brasileiros de sua geração, por conta da ditadura militar. É um comentário que ela faria. É um comentário que eu faria. Diz respeito a uma atitude acumulativa, burra porque destruidora (do planeta e do indivíduo, igualmente) a longo prazo. Você quer mais capital e o acumula enquanto pode porque pode, não porque queira exactamente, ou porque precise. Mais um carro, mais uma casa de veraneio, mais um avião. Ou mais uma boceta.”

 

Vanda Marques, Informação, 15/02/20113

Fazer contas à dor, tentar transformá-la num inventário, com perdas, dívidas e ganhos, pode parecer simples. Talvez até resolva alguns problemas e ajude a encontrar respostas. Mas, como aprendemos com a narradora de “Nada a Dizer”, as coisas não são assim tão fáceis. “Como se pôr nomes e definir itens fragmentasse minha desvalia, a fizesse mais fácil. A frase implícita era: não, as perdas foram essas e essas outras, somam tanto, agora é calcular o valor do seguro. Cálculos matemáticos sempre são mais confortáveis do que o que não dá para contar”, escreve Elvira Vigna no romance que acaba de ser editado em Portugal pela Quetzal.
A narradora deste livro – que não tem nome porque a escritora não conseguiu “dar um que não soasse falso, já que o verdadeiro não podia dar” – relata-nos como descobriu a traição do marido, como sofreu com ela e tentou enganar-se. O tema não é propriamente novidade, mas aqui ganha mais força pelo tom honesto e confessional com que Elvira escreve. Uma forma despretensiosa marcada pelos diálogos e que cria empatia com qualquer tipo de leitor, traído, não traído, traidor ou curioso. De repente estamos na pele daquela mulher, com vontade de a sacudir para que não se deixe enganar e quase a ponto de odiar Paulo, o marido, e N., a amante.
Ou de sentir pena, de perguntar porquê. E quanto ao perdão, será que existe? “Sequer sei o que quer dizer perdão. Me parece algo meio religioso. Acho que pode haver entendimento. Se for mútuo, melhor”, responde por email a escritora de 65 anos. E os ódios a personagens, esses ficam para quem lê. “Eu?! Imagine. Quem deve responder isso é o leitor.”
Quem tentar ler o livro “Nada a Dizer” com um olhar moralista vai ficar desiludido. Não é uma crítica de costumes nem um manual de boas maneiras, com fórmulas para evitar traições ou para as descobrir. A escritora acredita que se pode amar mais de uma pessoa, mas que não pode haver enganos. “Não acho que o poder que o mentiroso se reserva ao mentir para o traído conviva com algo que se pareça com amor. Amor é troca. Se um detém o poder total de saber o que se passa e o outro não, não é amor.”
O livro é um desabafo sobre um assunto que hoje parece não ter tabus e ser mais difícil de esconder. Deixamos ao longo do nosso dia um rasto tecnológico. Os emails que enviamos, as mensagens de telemóvel, os cartões multibanco que mapeiam a nossa vida permitindo ver onde e quando comemos o quê, parece que fazem de uma traição coisa fácil de apanhar. Elvira, que já foi casada três vezes e tem “a experiência de ser traída”, discorda. “Engana-se quem se julga esperto e que acha que não precisa escolher, que pode ter tudo – o que é um engodo do capitalismo.” A escritora acha que hoje as novas gerações são menos hipócritas porque fazem o que querem e que não há diferenças na traição de homens e mulheres. “Não estabeleço diferenças de género na falta de inteireza em assumir decisões – que é a origem da traição.”
O livro foi um sucesso no Brasil e gerou muita discussão. A melhor definição que Elvira encontrou para uma história que tem um ponto de partida verídico é “o que dizer aos que não sabem o que dizer”.  E as reacções de quem a leu surpreenderam-na. “Gostei dos leitores que entenderam que de forma alguma faço a apologia de casamentos ou de seu contrário. Faço a apologia de assumir o que se quer.”
Distinguido pelo Prémio Ficção da Academia Brasileira de Letras e finalista do Prémio Portugal Telecom, o romance é o oitavo de Elvira Vigna, depois da estreia em 1988 com “Sete Anos e Um Dia”. “É um prémio importante. O livro contém muitos palavrões, cenas pesadas. O prémio me fortaleceu frente a sectores mais conservadores”, diz ao i.
Literatura Infantil Jornalista de profissão porque queria “sair às ruas descobrindo o que não conhecia”, a brasileira que nasceu no Rio de Janeiro, diplomada em Literatura na Universidade de Nancy e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio, nunca pensou em ser escritora. “Era jornalista. Durante a ditadura brasileira não conseguia trabalho. Acabei abrindo uma editora e me tornei escritora por acaso.” A editora chamava-se Bonde e durou cinco anos. Mais tarde criou a revista “marginal-literária ‘A Pomba’”, como conta, e em 1988 abriu uma empresa de traduções, a Earte, que ainda hoje funciona.
Começou a escrever literatura infantil, até que se fartou e decidiu escrever para adultos. Confessa que todas as suas histórias têm um ponto de partida verdadeiro e não tem medo de se expor. “Escrevo para contar aos outros o que me impressionou, o que nunca entendi, o que me volta sempre. É uma espécie de vontade de conversar à distância. Tenho algumas histórias das quais nunca esqueci. Pessoas que se negam a ficar para trás, mesmo que depois desapareceram da minha vida. Lugares que revisito na minha cabeça. É esse o meu assunto. As coisas que nunca pude esquecer.”
Essa fronteira com o real faz com que Elvira Vigna assuma que não há uma história que não seja confessional. “Embora enredo, personagens e cenários sejam sempre reais, não necessariamente o que acontece no romance é o que aconteceu com aquela determinada pessoa naquele lugar específico.” E vai mais longe para falar dos problemas que isso pode criar. “Só uma vez fui interpelada por alguém que julgou se reconhecer. Meu sogro. O livro era o ‘A Um Passo’. E ele se enganou. Não era ele a pessoa descrita, mas o pai de uma amiga de infância. Outra vez foi a mãe de uma amiga. O livro era o ‘Coisas Que os Homens não Entendem’. Achou que o jovem amante do livro era um jovem amante do seu passado. E dizia: ‘Mas como você sabia disso?, como você pode ter visto esta camisa que você descreve e que eu dei para ele?’ Claro que eu nunca conheci a pessoa em questão.”
Já está a escrever um novo livro, sobre o qual não adianta pormenores. Diz que não sabe como será recebido “Nada a Dizer” em Portugal, porque conhece pouco do país. A nossa literatura conhece melhor e confessa que gosta “imenso de Lobo Antunes”. Mas enquanto houver histórias que a intrigam ou até a mesmo a “maneira de alguém gargalhar” vai continuar a escrever.

 

Ana Dias Ferreira, Timeout, 07/02/2013
A mulher traída tenta ligar para o telemóvel do homem que a traiu e percebe que ele o deixou em casa, desligado. Imagina então se ele o tivesse levado para se encontrar com a amante no quarto do hotel e o telefone tocasse:
“Seria assim: 
Musiquinha de celular em impromptu na harmonia dos 
Ahn, Ai, Tesuda. 
Paulo no celular:
‘Oi, querida.’ 
O pau de Paulo entre as pernas: ‘Tchau, querida.’ 
Outra querida, evidentemente.” (p.71)
A cena faz parte de Nada a Dizer, o livro com que a carioca Elvira Vigna chega às livrarias portuguesas, e mostra em meia dúzia de linhas o que é este romance, originalmente publicado em 2010: o relato de uma mulher traída a tentar entender como é que duas pessoas que estão juntas há mais de 30 anos podem esquecer-se uma da outra, e a falar do fim do amor com uma ironia que chega a ser desconcertante.
“Escolhi a mulher traída para narradora por este ser um ponto de vista raramente considerado nas histórias românticas”, diz a autora a partir do Rio de Janeiro. “Assim retiro a impressão romântica que uma traição possa ter. Não acredito em amores aos pouquinhos. Casos de amor significam que o amor anterior acabou.” Não é a primeira vez que Elvira Vigna escreve sobre o tema, e para o saber basta olhar para o título do seu romance mais recente, O que deu para Fazer em Matéria de História de Amor. “Acho que a dificuldade em se obter satisfação em relacionamentos afectivos é um tema contemporâneo, sejam tais relacionamentos do tipo que for: monogâmicos e longos ou, pelo contrário, rápidos e diversificados.”
Paulo e a mulher que escreve na primeira pessoa, a mulher traída de quem nunca chegamos a saber o nome, são do tipo monogâmico e longo, apesar de terem crescido com a revolução sexual dos anos 60 e a viver em repúblicas ou apartamentos com mais dez ou 12 pessoas. Ele já tem mais de 60 anos mas ainda gosta de fumar a sua “maconha”, ambos são tradutores e acabam de se mudar para São Paulo quando ela descobre que ele tem um caso com N., uma colega 20 anos mais nova.
Com a entrada em jogo dessa mulher, tudo é passado em revista, e Nada a Dizer torna-se uma espécie de viagem para entender as falhas do outro, ou quem se é sozinho, ao mesmo tempo que se ergue como um testemunho muito forte do amor na meia-idade e no mundo de hoje, em que os emails podem ser encriptados e as traições combinadas por sms. “Havia a carga de toda uma vida passada juntos. A carga de um conhecimento profundo um do outro a impedir o frescor de uma risada inesperada, de uma aceitação sem comentários. Ou julgamentos.” (p.58)
E como na cena do telemóvel, no meio da traição, da descoberta de que não se conhece ninguém e de que todas as respostas são temporárias, o dramatismo dá lugar a um humor fino, infinitamente mais eficaz a mostrar a dor desta mulher que se expõe sem artifícios.
“A ironia costuma estar presente em meus textos, sem que eu me esforce para isso”, conclui Elvira Vigna. “É uma coisa minha. Não sou uma pessoa dramática.”

 

Mário Rufino, Público-P3, 03/02/2013

“Nada a dizer”, um triângulo amoroso num texto realista
Elvira Vigna (n.1947), jornalista, tradutora e escritora brasileira, apresenta-se ao público português com “Nada a Dizer” (Quetzal). O seu oitavo romance (primeiro editado em Portugal) foi aplaudido pela crítica brasileira.
“Nada a Dizer” venceu o Prémio Ficção da Academia Brasileira de Letras e foi finalista do Prémio Portugal Telecom. O enredo do livro é simples.
Um casal sexagenário pertencente à classe média, com filhos e sem problemas económicos, vê o seu casamento, de mais de 30 anos, em risco devido a adultério. Durante um ano, a mulher traída narra os factos e as emoções sentidas durante esse período. A mais-valia desta obra de Elvira Vigna não é a história; é a forma como a história é contada.
Nesta perspectiva, “Nada a dizer” é um texto literário muito bem estruturado, onde a escritora, com mestria e através de um “eu narrativo”, seduz o leitor a assistir às vicissitudes inerentes a este triângulo amoroso.
O relato na primeira pessoa de uma traição acrescenta dificuldades à necessidade de relatar situações a que o narrador não pode ter assistido. Isto num texto realista como o de “Nada a Dizer”. No entanto, a estratégia narrativa, tal como está montada, dota o texto de credibilidade. O leitor não põe em causa aquilo que é contado. Há sempre, no mínimo, uma dúvida razoável.
E é essa credibilidade que convence o leitor a acompanhar o árduo caminho das personagens até à redescoberta de si próprios e hipotética pacificação individual e colectiva. Assistimos à ilusão, apesar de todas as evidências; à desilusão, quando tudo é já indesmentível; à destruição do “eu” e do “nós”, pela ruína dos pilares que os sustentavam; e à difícil reconstrução como indivíduos e como casal. A identidade é pressionada até ceder. De forma minuciosa, quase masoquista, a autora (re)constrói uma outra identidade.
“Nessa noite que durou dois dias, em que Paulo me contou do seu caso com N. e, de sobremesa, da origem do chato nordestino, eu desmoronei, eu inteira – e não só minhas opiniões, atitudes e posições. Desmoronei. Eu não mais existia.” Pg. 113
Ao contrário do que se poderia supor, não há auto-comiseração exagerada. Antes pelo contrário. A lucidez e o humor com que a narradora, de quem nunca sabemos o nome, conta todos os passos do adultério são notáveis. O relato pormenorizado do que vai acontecendo contrasta com o silêncio do marido. Enquanto a mulher enfrenta os problemas, o marido esconde-se no silêncio. Se não fala, não existe.
A escritora explora a volatilidade do ser humano quando provoca a identidade com factos que obrigam a uma redefinição dos hábitos que a sustentam.
Numa prosa fluente, de cariz realista, a intimidade é colocada em causa quando o que a compõe é desvalorizado e exposto, por exemplo, na internet. Os meios informáticos são um mecanismo para a diluição entre o que é público e o que é privado.
A partir de uma história linear, Elvira Vigna constrói uma narrativa onde expõe algumas características da sociedade contemporânea.

 

Cassionei Petry, blog da editora Quetzal, Lisboa, 14/01/2013

Há muito a dizer sobre Nada a dizer, de Elvira Vigna. O espaço, porém, é limitado, o que é bom, pois só assim escapo da tentação de contar tudo e afastar, dessa forma, o leitor da obra. Sugerir é mais sensato, provocar a leitura, dar pistas talvez. Bem, o melhor é dizer pouco.
Carioca, nascida em 1947, Elvira Vigna tem uma obra consolidada, que inclui romances como Coisas que os homens não entendem e Deixei ele lá e vim. É uma escritora que sabe o que quer dizer e diz. Seus projetos literários são baseados em estudos teóricos bem fundamentados que ela expõe em palestras ou vídeos disponíveis no seu site. Não é diferente com esse Nada a dizer.
No romance, há uma história de adultério. Tema que pode parecer comum, mas que na mão da escritora ganha outro brilho, pela maneira como é contada, pela voz que relata, pela forma como ficamos sabendo da traição. Aliás, o ponto de vista da narrativa, para quem não lê a orelha ou a contracapa do livro, é uma surpresa que se desvenda logo no início, mas que já demonstra o trabalho criterioso da autora. É difícil, inclusive, resumir parte do enredo sem falar sobre o narrador. Tentaremos.
A personagem principal, cujo nome desconhecemos, é casada com Paulo. Ambos estão recém se mudando do Rio de Janeiro para São Paulo. A casa ainda por arrumar tem caixotes espalhados pelos cômodos, dando um indício do que acontecerá com os dois. A vida deles será bagunçada devido a algumas visitas que Paulo faz ao Rio de Janeiro, com o pretexto de encontrar os amigos e jogar futebol. Através de troca de e-mails, conversas no Skype e mensagens de celular, o marido marca encontros com N., uma amiga do casal no Rio. A mulher traída, depois de descobrir tudo, lê obsessivamente os rastros de conversas que foram deixados, bem como o blog escrito pela amante, numa tentativa de entender os motivos de o marido, já com seus sessenta e poucos anos, se envolver com uma mulher vinte anos mais nova.
Paulo, num primeiro momento, nega tudo. Mente. Mas depois confessa, a esposa o ouve e expressa esse momento numa das passagens mais belas do romance: “Não sei como exprimir o que vivi. Eu teria de falar em frases lentas, muito suaves, uma música de câmera dessas que nos embalam e se preocupam em nos avisar quando terminam graças aos compassos em tom menor, mais curtos. Quando então saímos de nossa letargia para bater palmas discretamente e nos dirigir à pessoa ao lado, com acenos de cabeça, sim, a execução foi exatamente como esperávamos, sim, muito satisfatório esse sentimento de realização que nos fica quando acompanhamos até o fim uma melodia”.
Paulo havia mentido para a mulher. É a mentira que torna o caso uma traição. Não ter nada a dizer sobre o que aconteceu, negar tudo. O romance, por isso, é muito mais sobre a mentira do que o adultério. Mentir é inerente ao ser humano. A história escrita por Elvira Vigna pode ser uma mentira. O escritor mente e cria personagens que mentem, inclusive a própria mulher traída mente. Por isso dizemos que um romance é uma ficção. A mentira aqui serve para mostrar a verdade, revelar questões humanas que só se revelam na ficção. Acreditamos mais em uma mentira bem contada do que numa verdade com roupa rota. Inclusive esta resenha pode ser mentirosa, mas sobre isso não tenho nada a dizer. O que tenho a dizer é que Nada a dizer é um romance que merece e deve ser lido. Pronto, já disse.

 

Escritas incômodas

Texto da palestra “escritas incômodas”  para programa da prefeitura de Belo Horizonte, em 19/04/2012.     Escritas incômodas Primeiro, umas definições. Ou tentativas de. Por exemplo, quem a gente é. Produtores de bens simbólicos. Até aí tudo bem. Mas isso quer dizer o quê? Ou,...

O que deu para fazer em matéria de história de amor – críticas

ELVIRA VIGNA : O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro
arquivos internos de ‘o que deu para fazer em matéria de história de amor’:
trecho do livro
críticas no exterior

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Raul Arruda Filho – blog Raul e a Literatura, 09/07/2012

Puro exercício de linguagem, as palavras emolduram as ações projetadas para abranger discursos conflitantes, ambigüidades, incertezas, titubeios, nada do que parece certo permanece, desaparece nessa planície composta pelas 203 páginas do romance O Que Deu Para Fazer em Matéria de História de Amor, escrito por Elvira Vigna. Vinha, virá ou deixará de vir, ver, rever, revolver algumas promessas que sugerem estar escondidas no meio do vinhedo que nos embriaga nos sucos alcoólicos que compõem, decompõem, põem na mesa, ao lado dos alimentos, uma, ou melhor, várias histórias de desencontros amorosos, sexuais, banais, que exageram nas dores, flores não há, muitas dessas colisões arrebatadoras deságuam em rimas pobres, trepadas fugidias. O objeto do desejo deseja ser objeto ou trapaça? Ameaça latente no seio familiar, familiar seio mordiscado com carinho e volúpia nessa luta constante em que os corpos transitam entre camas e cenas de adultério encenadas no banheiro, durante banhos desajeitados, não planejados, desejados durante muito tempo. Não devem ter nem se beijado. Não é sobre tesão, essa história. Entesados sentimentos retidos na fonte resultam na dramaturgia dos sentimentos, precários hematomas emocionais, alguém levou o soco no queixo, beijou a lona, viu estrelas, sonhou maus sonhos. Não há nada a t(r)emer. Günter e Arno são irmãos, meio?irmãos, diferentes e antagônicos, Günter é homem rico, dono de gráfica, Arno é homem pobre, artista plástico, Günter casou com Ingrid, ficou viúvo de Ingrid, não sobreviveu ao segundo casamento com a Inacreditável Claudete, Arno casou com Rose, talvez não tenha amado Rose, Rose foi amante de Günter e Ernest (Ernie), Roger é filho cartorial de Arno, Roger é filho biológico de Günter, Roger foi casado com alguém propositalmente inominada, Roger é pai de Lígia, Lígia detesta a narradora, a narradora se sente desconfortável na presença de Ligia, Roger foi namorado e amante da narradora, Roger é isso e aquilo, bissexual, amante de Santiago, dono de galeria de arte, e, no mínimo, um filho da puta, literalmente, literariamente, parceiro nessa mesa de jogo onde quase todos os personagens possuem nomes teutônicos, leilão de trunfos, blefe em forma de royal straight flush, a peça encaixada no espaço vazio do quebra?cabeças projeta o desenho que está, esteve, estará escondido, bispo na sétima casa do bispo do rei, xeque, a força da ameaça substituindo o que precisa ser afastado, os bárbaros preferem arrebentar as portas ? esquecendo que é mais fácil procurar pelas chaves debaixo do capacho. Certas historias refletem pesadelos, não há modelos capazes de descrever o horror relatado pelas palavras, essas que pelo texto estão desfilando, desfiadas, desafiadas a verem a luz proposta pela aposta de Penélope, ardil e redil tecido durante o dia, desfeito durante a noite, retendo a enunciação de propósitos e interesses. Conteste esse teste se for capaz, diz aquele que nada quer entregar enquanto armazena o máximo de significados e (in)significantes, a economia narrativa quase à míngua, tamanha a ausência de informações, não é possível ignorar que protelar o desfecho é a meta, o alvo, salvo nada está nesse caudal que se estende pela narrativa, o escuro é sempre o espaço em que contido está o escuso, há todas essas histórias por trás da nossa história, a lembrar que Sherazade também armazenava informações, também recusava caminhar pela límpida trilha que leva ao entendimento, à ausência de sofrimento, emoções manipuladas em doses homeopáticas vão camuflando os acontecimentos, distribuindo pistas, compondo trajetos e travessias até chegar ao desfecho, O que falo é sempre quase nada. E é o que ele repete, com variantes, neste caso também. O que falo e mostro pode perfeitamente não ter nada a ver com nada, duas gerações que trepam entre si, trai mais quem trai menos, o corpo da doença habita o coração e aquele apartamento no Guarujá, onde estava escondida a última peça artística de Arno, onde o rebaixamento sexual se pronuncia em carências e gozos no corpo do Alemão, onde finalmente a clave do raciocínio é cravada nas feridas dos muitos cadáveres que povoam a narrativa. O amor é o cemitério que chamamos de desfecho narrativo. Quase ao final, Santiago aparece em cena como uma boa alma, antes de ser devorado pela AIDS aceita morar com a narradora, aceita em cartório que o filho da narradora tome o seu patronímico, patronímico falso como devem ser todos os patronímicos nessas histórias que encobrem as verdadeiras mentiras, essas que são celebradas em dedicatórias e saudades. Ser pai do filho do amante é uma das formas mais do que disformes de castrar Roger, de subtrair a virilidade que ambos desfrutaram entre massagens e penetrações. O último mistério resolvido é a drágea de remédio substituída por algum placebo, reticências a encaminhar o entendimento à direção oposta, resiliência que aposta na soma somada ao montante em cima da mesa, espectro a assombrar os jogadores – isca ofuscante, recurso de quem está pensando em não estar. Viver e morrer são estações intermediárias de uma história muitas vezes insatisfatória, muitas vezes sem fim. Fim.

 

 

 

Anderson da Mata – O Globo, Prosa e Verso, 23/06/2012

O novo romance de Elvira Vigna, “O que deu para fazer em matéria de história de amor”, funciona, de partida, como uma provocação à onda de publicações de “histórias de amor”. Como toda onda, esta foi alimentada por textos encomendados e por respostas espontâneas à demanda que, se supõe, seja do público. No romance, escrito em 2006 e só agora publicado, Vigna, de alguma forma, antecipa o seu quinhão nessa discussão, já se desculpando: em termos de história de amor, não deu para fazer muito.
A narradora do romance, desde o título, parece descrer da possibilidade de se contar uma história de amor dentro do esperado. Mais do que isso, ela não acredita nem mesmo na possibilidade de se contar uma história, qualquer história, dentro do esperado. No entanto, apesar de desinteressada, ela tenta e conta não apenas uma, mas três (ou quatro) histórias de amor. A narração da tentativa de escrevê-las, porém, é o que sustenta seu romance.

Narrativa com idas e vindas reflete sobre os próprios limites

Hospedada em um apartamento no Guarujá, de cuja venda se encarregara, a narradora, cujo nome não é apresentado, decide contar a história dos antigos moradores do imóvel. A partir daí desenha-se a quadrilha vivida em jogos semanais de cartas pelos casais Arno/Rose e Gunther/Ingrid. O foco, no entanto, é no triângulo protagonizado pelos irmãos imigrantes alemães Gunther e Arno e pela esposa deste último, Rose. É desse triângulo que nascerá Roger, com quem a narradora vive sua própria história de amor. Sem recorrer a espelhamentos fáceis, ela, no entanto, encontra um tipo de identidade entre o casamento duradouro e frio de Arno e Rose, a transa fugaz entre Gunther e Rose e sua própria relação com Roger, marcada por algum distanciamento e pelo descompromisso com convenções de fidelidade e heterossexualidade.
Hesitante, a narradora mostra-se consciente de que contar uma história de amor tem mais a ver com o ato de remontar as pequenas histórias do cotidiano, mais ou menos monótonas, mais ou menos medíocres (e mais ou menos reais), do que com uma narrativa de forte tensão dramática com heróis e heroínas capazes de grandes feitos. Então, essas histórias são contadas de modo quase balbuciante, com idas e vindas em fatos entregues repletos de lacunas para o leitor, que são preenchidas por digressões sobre o ato de narrar o real, mantendo sua falta de sentido, como na reflexão a seguir: “ao por uma ordem — outras são possíveis — nestas histórias, fico tentada a descobrir as dificuldades, tantas e tão óbvias, para que eu não nos descreva com a falta de sentido que nos definia. E talvez defina”.
É assim que têm se comportado as engenhosas narradoras de Elvira Vigna: aparentemente com pouca segurança. Interessadas em contar uma história, elas duvidam do que dizem porque não confiam na matéria-prima com a qual lidam: a estrutura esponjosa da imaginação e da memória. As frases curtas não indicam certezas — elas afirmam e negam com a mesma frequência, duvidam afinal. Por outro lado, elas têm um método, apresentado de modo até mesmo insistente na narrativa, por meio de algumas frases de efeito ou de símiles ora líricos, ora bem humorados. Pois outro traço que tem marcado as narrativas de Vigna é o humor, que aparece como uma ironia — cáustica, quase amarga — que, em “O que deu pra fazer em termos de história de amor”, começa a ser construída na personagem de Rose e se estende até a narradora.
A descrição feita pela narradora da técnica utilizada por ela para comer o milho cozido, que pode ser comparada à da própria narração, é, por exemplo, uma das provocações mais bem humoradas à pompa esperada de uma história de amor. “Mordo um milho cozido”, ela anuncia. Em seguida, completa: “Na primeira mordida queimo o lábio inferior. Eu como o milho por fileiras, primeiro sete delas, alternando, uma sim, outra não, e depois as outras sete que restam”. E segue: “Todos os milhos que comi na vida tinham o mesmo número de fileiras, e que vem a ser catorze. Isso se você desprezar o que acontece na cabeça do milho, a parte mais grossa da espiga, em que cada dia mais as fileiras se entortam, bifurcam ou nascem anãs”. É uma metáfora esteticamente canhestra para o ato de narrar — controlado apenas na medida em que se ignora a matéria bruta e caótica dos fatos, mas que ainda assim é capaz de queimar o narrador.
No romance, desde o capítulo inicial, o leitor tem acesso a informações sobre toda a história, inclusive sobre seu desfecho. Ao mesmo tempo, sabe-se que a narradora se compromete cada vez mais com a história das personagens, que falam muito sobre ela. A respeito da razão pela qual escolheu a história de Rose como ponto de partida da sua narrativa, ela justifica: “Se recomeço com Rose mais uma vez (tentei antes, e muito), cineasta que sou de fins de tarde, é porque com ela acho que preciso de menos palavras. E recomeço especificamente com a dança, porque dança não se descreve. E esta dança de Rose não me exige palavras, a imagino a partir de outra dança, que é a minha”. Além disso, completando a metáfora do milho, é só no curso da leitura que essa história, inicialmente fragmentada, contada em flashes, vai ganhando corpo e se completando, à medida que a narradora opta por entregar mais informações, ou por inventá-las.

Desinteresse pelo grande enredo é gesto transgressor

A provocação estética constituída pela metáfora está fundada no fato de que, em uma narrativa cujo protagonista (Arno) é um artista plástico concretista em vias de consagração, opta-se por discutir o processo de criação a partir de um prosaico milho verde. Há um desdém significativo pela grandeza da arte que está por trás do próprio princípio narrativo do romance. Do mesmo modo que Arno não faz uma grande arte, a narradora não está empenhada em escrever um grande romance. Ela escreve o que dá para fazer, recorrendo a alguns lugares comuns como o triângulo amoroso, a paternidade questionada e o crime passional, sem investir forte carga dramática em nenhum desses elementos. Este é seu grande gesto transgressor: o desinteresse pelo grande enredo sem deixar de levar a sério a importância das histórias, porém desde que surjam menores, na expressão de sua mediocridade.
Observadora da classe média com a qual se relaciona, ela se insurge contra o que denomina “bem-estar de batata frita”, isto é, uma zona de conforto medíocre à qual parte dessa classe média se agarra e da qual as histórias de amor convencionais são um bem simbólico e um símbolo de estabilidade. Sua oposição se dá pela via do desconforto, da consciência irônica de sua condição. “Somos todos sem sentido algum mesmo, em nossas vidinhas em que nada acontece”, afirma a narradora. E é aí que ela termina por encontrar as histórias de amor, sem saber como acabam.

 

 

 

Noemi Jaffe – Folha de São Paulo, Ilustrada, 09/06/2012

O título do último romance de Elvira Vigna, “O que deu para fazer em matéria de história de amor”, já dá bem as pistas do que se lerá.
É tanto uma confissão metalinguística, como se a autora estivesse fazendo uma autocrítica ou mesmo uma crítica à sociedade moderna, em que histórias de amor praticamente não cabem mais, como também uma descrição do conteúdo do livro, cuja trama (esgarçada, labiríntica) fala justamente sobre um jogo amoroso que flutua entre o possível e o impossível.
E é a própria oscilação entre metalinguagem e fluxo  narrativo que define a prosa deste romance.
A narradora, que conta a própria história, baseando-se também na história de personagens do passado, hesita sobre sua capacidade de contar o que quer que seja, logo no início do romance. “Podia parar por aqui”; “Se forçar a barra, chego no suspense”; “Quero, porque preciso da história. Precisamos. Digo, não eu e Roger, mas todos.”
E aqui, nesse rompante metalinguístico, a narradora não inclui somente a si, mas também a nós, leitores, que certamente também temos uma história de amor fracassada que é impossível contar.
Afinal, quem consegue, em tempos de pós-história e de pós-representação, contar qualquer coisa, quanto mais uma sempre ridícula história de amor?
Mas a narradora avança, mesmo que por uma narrativa intencionalmente gaga. É preciso que o leitor suporte as idas e vindas do texto porque as hesitações não impedem que a história seja finalmente contada.
E é no passado de quatro imigrantes do pós-guerra, aqui  no Brasil, e suas difíceis sobrevivências, que ela vai encontrar histórias de adultério, bastardia, moralismo e medo, com o necessário mistério que, além de tudo, envolve até certa crítica ao mundo da arte concreta e neoconcreta dos anos 1970, chegando a citar nomes e fatos reais desta época.
O maior mérito do romance está certamente na linguagem travada, bloqueada pelo excesso de autoconsciência da narradora, cujas contradições enriquecem mais do que confundem. Outro mérito é a coloquialidade e a simplicidade com que ela consegue narrar uma trama densa e complexa.
Mas, a partir do momento a cerca de um terço da narrativa, em que ela abandona as hesitações da fala e a metalinguagem e passa a contar os fatos de forma mais sequencial e próxima do convencional, a narrativa perde um pouco de sua força paradoxal e autocrítica e se aproxima de um romance de suspense mais conhecido.
O risco que a autora aceitou correr, no uso da metalinguagem e da dificuldade intencional de contar o inenarrável, deveria se manter ao longo de todo o romance.
Mas a densidade da trama e dos personagens, além da forma como a história do Brasil se entranha na vida e nos amores de todos, superam esse deslize.

 

 

 

Vinicius Jatobá – O Estado de São Paulo, Sabático, 19/05/2012

 

Elvira Vigna é a melhor ficcionista brasileira viva que só um reduzido número de leitores ouviu falar: há mais de uma década escreve romances sólidos e criativos, cada um deles diferente do anterior. Lendo Elvira fica evidente que este é o primeiro momento na história do País em que as mulheres escrevem com maior inventividade formal e temática que os homens.
O Que Deu Para Fazer em Matéria de História de Amor traz um olhar irônico acerca do vazio dos relatos diante de sentimentos absolutos, como as paixões e a solidão, que dominam o romance. A narradora repensa sua vida afetiva à luz do amor perfeito de um casal recentemente falecido, e enquanto escolhe o que ficará consigo entre os objetos de um apartamento a venda, elege o que fazer com a herança sentimental de guardiã da memória dos outros.
Ao longo de sua carreira, Elvira esteve mais preocupada com a atmosfera na qual relatos assim circulam e com o efeito dessa tal memória na vida das personagens. Seja a lembrança do amor, do assassinato de um pai, do adultério ou do retorno do exílio – pontos de partida da trama -, ela está sempre mais ocupada com a relação que seus protagonistas, após o ocorrido, têm com suas próprias histórias do que em torná-las visíveis. Seus livros apontam a maneira de como lidar com essa defasagem – são como compêndios instáveis de romances não escritos.

 


 

Entrevista a Talles Colatino – Suplemento Pernambuco, 05/06/2012

 

1) “O que deu pra fazer em matéria de história de amor” foi escrito em 2006, mas é publicado apenas agora. Ele sofreu alterações durante este tempo? Como você reconhece que um livro está pronto?

 

O livro foi recusado por várias editoras. Então teve esse tempo de limbo. Respondendo à pergunta. Pus coisas. É que vou cortando, cortando. Corto antes mesmo de chegar na tela. Corto na cabeça. E continuo cortando depois. E quando reli este livro, havia frases que não consegui entender. Aí devolvi verbos, artigos, sujeitos.
E tirei outras coisas. Uma descrição no começo que me pareceu bem ruim, por exemplo. Mas acho as mudanças superficiais. Ou seja, se sua pergunta é sobre o que faz um livro ser recusado ou aceito, não sei a resposta. Quanto a estar pronto, não acho que fique. Fica pronto para aquele momento. Se no momento seguinte você muda, e muda, o livro não está mais pronto.

 

2) Em busca de compreender o desafeto em torno de um relacionamento, a narradora de “O que deu…” parte de poucos fatos para construir uma história, que, no fim, é pautada, em suma, pela sua imaginação. Você acredita que as lacunas da memória, se depender de nós mesmo, serão preenchidas com fantasias que pautem as nossas necessidades? Do que é feito aquilo que a gente não conheceu ou, pior, não lembra, mediante a necessidade de narrar um fato?

 

Narrativas são sempre ficcionais. Qualquer uma. Mesmo as factuais. Mais: qualquer aposição de sentido é baseada em escolhas ou limites, ou seja, ficcional, ainda que pela não inclusão do que poderia estar lá.

 

3) O ato de tentar recontar sua história através da história de outra pessoa. Há uma tentativa de se redimir de uma culpa, ou maquiar um medo, numa ação assim? Olhar para o outro, na tentativa de encontrar a si, não é uma ação defensiva?

 

Sua quem? Se é de mim que você fala, não. A resposta sugerida por você, envolvendo culpa, não tem nada a ver comigo. Vem, talvez, de um pensamento religioso, que não é o meu. Culpa nenhuma. Uma curiosidade  benigna. Uma leve surpresa, perene, bem-humorada, comigo mesma. Se o “sua” é da narradora, também não. Se ela queria trepar com o cara, ela trepou. ação das mais legítimas. Para isso não enganou ninguém, não traiu ninguém, nem ela mesma. Se trepou por acaso, sem querer, eis uma coisa que pode acontecer. Então, culpa nenhuma, também aqui. Se você se refere à Rose, com a ausência emocional do marido, acho que ela também não teria culpa. Isso, se trepou. Porque a narradora infere que Rose traiu o marido, não que tenha certeza. Nem poderia.

 

4) Em palestra dada no Instituto Cervantes de Brasília, reproduzida em texto disponível no seu site, você relaciona o jogo entre material biográfico e ficção à participação do leitor. A estrutura utilizada em “O que deu…” permite a aproximação do leitor, a partir do momento em que ele se vê conduzido pela narradora a recriar, junto com ela, a história das pessoas que, de algum modo, poderiam afetar o seu relacionamento com Roger. Fale um pouco sobre este artifício aplicado ao romance.

 

Artifício nenhum. E certamente não “aplicado”. O sentido de qualquer coisa é dado pela tensão entre elementos, todos dispostos em uma mesma estrutura que por sua vez também muda sem parar a partir do que acontece nela. Assim, eu, a narradora e o leitor “acontecemos” juntos em um espaço, o do livro. O sentido é feito e refeito por todos. Não detenho um poder maior, dependo dos outros. Digo isso, aliás, no começo:

 

“E é um quase ponto final, e não um ponto final inteiro, redondo, indissolúvel, perfeito, porque a história, por mais que eu (me) imponha uma Rose, um Gunther e um Arno há muito extintos, nunca poderá ser só minha. Só contada por mim. Dela, meu controle é bem relativo.”

 

Portanto, não é “aplicado” e não é “artifício”. É este o livro. É isto o livro. E a relação que faço entre material biográfico e participação do leitor no texto citado por você, e que está na página do “O que deu…” no meu site, diz respeito à espetacularização na escrita. Sem pôr o leitor como plateia de um espetáculo já pronto e impessoal, ele terá sempre a seu dispor um espaço de participação que de outro modo não teria.

 

5) “O que deu…” coloca a narradora e, por consequência, o leitor, em uma encruzilhada diante de um possível fato que não se sabe se foi um crime, uma prova de amor ou, pior, se ele existiu propriamente. Neste livro você retoma o tema do seu romance anterior (“Nada a dizer”), o adultério. Em matéria de história de amor, as consequências de uma traição estão próximas as de um crime?

 

Não. Imagine. O crime (se é que houve) e a traição (se é que houve) são (seriam) ambos frutos oriundos de uma mesma situação, a de limites severos para uma individualização, agenciamento, subjetivação. Não há uma relação causal entre uma coisa e outra. Há um paralelismo. Trair e matar são duas possibilidades radicais de atuação para pessoas que se encontram frente a limites severos de atuação. Aliás, os crimes, em  meus romances, são sempre isso: uma probabilidade mais do que uma certeza, e sem motivo além do de transgredir um limite. A ideia sugerida na pergunta me parece, inclusive, conter um moralismo ausente deste e de qualquer livro meu.

 

6) No vídeo de apresentação do livro, você diz que os apartamentos ambientados no livro existem de fato. “O que deu…”, inclusive, você escreveu, isolada, em um deles. Como é sua relação com o espaço durante o processo criativo? Essa espécie de fuga, de ir para um ambiente que não é o seu cotidiano, é uma necessidade para trabalhar?

 

Não é fuga. É busca. Da dor, do desconforto, da ressensibilização. E sim, é uma necessidade.

 

7) Em 2010, neste Suplemento, você experimentou dar voz ao silencioso personagem masculino do romance “Nada a Dizer”. Foi um desafio dar voz a um personagem que você mesma julgava de pouca densidade? É confortável para você escrever a partir de um narrador masculino?

 

Não experimentei. Dei. E não foi um desafio. Foi um tédio. O personagem não é interessante. E ele não era silencioso, como você diz. Falava paca. Só que mentiras. Ao não poder mais falar mentiras, teve que, tanto quanto a narradora, se dar ao trabalho de reencontrar uma voz melhor. Tive um narrador masculino em meu primeiro livro publicado, o “Sete anos e um dia”. Está integral, no meu site, é só baixar. Foi publicado pela José Olympio. E no “Deixei ele lá e vim” apresento uma construção – árdua, cotidiana e não terminada – de gênero. Shirley Marlone é uma metamorfose ambulante, inclusive sexual. Descobrir o ponto de vista de uma história é tudo. É o mais importante. E, não, não excluo o ponto de vista masculino. Quando aparece, quando é este o ponto de vista “certo”, é este que eu uso.

 

8) Pensando ainda o artifício de buscar um “eu” no “outro”, o que a escritora Elvira Vigna busca na ilustradora e crítica de arte Elvira Vigna para a sua literatura? De que forma elas se cruzam?

 

Bem, já disse que, feliz ou infelizmente, não é um artifício. Lacan que o diga. Quanto á sua pergunta: as artes não andam de braço dado. Saber como uma enfrenta o desafio de existir (nesse nosso momento em que não há mais rituais e espaços privilegiados para nenhuma delas) me permite ver claramente a outra. Gostaria de saber mais de música, por exemplo. Acho que eu teria uma visão melhor de arte e literatura, se soubesse.

 

9) Qual é a função da ficção na sua vida? Você se apega àquelas definições, um tanto solenes, de que se escreve literatura para se salvar de algo?

 

Respondendo à sugestão de resposta embutida na pergunta. Não. Não me salvo. Tenho histórias. São minhas. Escrevê-las, pelo contrário, me liga a elas. Me compromete com elas. Respondendo à pergunta propriamente dita: a função da ficção na minha vida é a mesma função que a ficção tem na vida de qualquer pessoa. Sem ela, a gente não faz o menor sentido. Quanto à literatura, foi esta a forma que escolhi para exercer e fortalecer a minha ficção diária e ininterrupta. Por quê? Sei lá. Dados biográficos, acasos, momento histórico ou tudo junto.

 

10) Seja num intervalo entre um livro e outro ou mesmo durante o processo, existe o momento de cansar da literatura (ler ou escrever)?

 

Quando acabo um livro fico sempre muito burra. Sendo gentil comigo mesma, me digo cansada. Aí vou pintar. Ou passear, o que é muito parecido.

 

11) A literatura depende de um leitor ideal? Quem seria o leitor ideal para a sua literatura?

 

Não sei o que quer dizer um leitor ideal. Não entendo o termo. Aliás, não precisa nem ser leitor. Não sei o que quer dizer ideal. Como assim ideal? Que não existe?

 

12) Está trabalhando em algum novo livro? Pode adiantar alguma coisa?

 

Se você chama trabalhar passar horas olhando o nada. Estou sim. Arduamente. Aliás, há muito, muito tempo.

 

 

Entrevista a Diogo Guedes – Jornal do Commercio de Pernambuco, 27/05/2012

 

1 – Começo perguntando sobre o título, que traz uma dupla possibilidade de insatisfação, como se o amor e/ou a história ali encontrados pudessem não ser o ideal. Então, por que falar de um quase amor? Por que fazer uma história, ainda que ela não seja completa?

 

Porque é isso a literatura como eu a entendo. Histórias nunca completas, sempre sendo feitas por seus inúmeros e infindáveis ‘autores’: o escritor, seu leitor e o tempo em que esse encontro se dá, e que também muda, a cada minuto, mudando a história.

 

2 – Assim como “Nada a dizer”, este livro também traz a vida de um (quase) casal de meia-idade que viveu a ditatura e, de certa forma, a liberação sexual. Esse é o contexto que você considera familiar? A preferência por personagens que viveram esses tempos é porque eles são mais próximos a sua experiência?

 

Também próxima da minha experiência é a história do duplo deste casal, o que viveu no pós-guerra e no modernismo dos anos 50. Existiram, e tê-los conhecido teve impactos emocionais e afetivos em mim. Então, não vejo como limitado, o tal ‘contexto familiar’. É tudo que vivi, o que conheci, e isso vai mais do que minha época e geografia. E sim, só escrevo sobre o que conheço.

 

3 – Na história do casal mais velho, há o peso de ter sobrevivido a uma guerra, peso que se reproduz nas relações pessoais. Ao mesmo tempo, a distância é igual ou ainda maior na complicada relação entre a narradora e Roger. Era justamente o amor – nas suas formas mais estranhas de convivência – que você queria contemplar no livro?

 

ão ‘queria contemplar’. Contemplei. E não foi um catálogo de possibilidades amorosas. Mas uma única possibilidade. A possibilidade da impossibilidade amorosa. Ao menos em sua aparência e rituais burgueses, previstos, previsíveis.

 

4 – O ambiente das artes plásticas, vivido pelas histórias de Arno e Roger, é retratado a partir de relações frias, desapaixonadas, movidas mais pela rotina e pela necessidade do que por qualquer coisa. Existe nessa representação uma crítica da situação atual das artes (plásticas ou não) no Brasil e no mundo?

 

Nunca. A crítica é de um determinado vetor modernista. A arte atual é tudo menos fria, desapaixonada e rotineira.

 

5 – Noto, no livro, que o ato de contar a história dos outros e a própria história serve, ao mesmo tempo, para construir e para destruir uma versão dos acontecimentos. É essa sua intenção criando várias camadas de histórias sendo contadas ao mesmo tempo? Qual pode ser para você, pessoalmente e literariamente, a função do ato de narrar?

 

É a tentativa, sempre recomeçada e sempre frustrada, de criar significado. Aliás, falo isso textualmente no incipit do livro.

 

6 – E, dentro das possibilidades da narrativa, qual pode ser o papel da memória? Lembrar, ainda que apenas para si mesmo, é sempre contar uma história?

 

Viver é sempre contar uma história. E quando isso não se mostra possível estamos diante do que escapa à linguagem, estamos diante do trauma, do real lacaniano.

 

7 – É só a partir do narrar que podemos entender a nós mesmos? Ainda que as histórias sejam insatisfatórias, incompletas, elas importam por que podem ter também um caráter, por assim dizer, “didático”?

 

Só a narrativa incessante nos dá a ilusão do entendimento, a nosso respeito e a respeito do mundo. Ainda que a narrativa seja insatisfatória, incompleta. Mas, não, não didático. Nâo hoje. Já foi. O verbo, lembra? no começo era o verbo, e no meio e no fim. A importância. Hoje vivemos em uma época cínica. Não acreditamos mais no que fazemos.

 

 

 

Palestra no Instituto Cervantes de Brasília no ‘Encuentro Literatura en la democracia’, mesa com Marta Sanz, Andrés Barba e Marcos Giralt, com o tema ‘material transgresor, material biografico’; 13/04/2011


Tenho dupla formação – arte e literatura. E me valho sempre de uma quando preciso entender algo de outra.
O uso do material aubiográfico na literatura me parece ser uma das várias estratégias da quebra de representação que vejo nas artes visuais desde meados do século passado. A arte saiu do retângulo, como dizem. A frase não é minha e quer dizer que a arte saiu do espaço artificial que foi o seu por muitos séculos, embora não desde sempre.
(Retângulo é a moldura do quadro, a base da estátua, as quinas da parede, a tela do vídeo, a palavra “romance” na página de rosto de um livro. É o que separa mundo e representação do mundo.)
Com a literatura essa quebra de representação fica menos visível, embora não menos clara. Também em meados do século passado, a literatura sai do seu espaço privilegiado e artificial. Há os estruturalistas franceses, com suas descrição minuciosas de cenários e objetos. Robbe-Grillet, Barthes com seu grau zero. Eles também passam, direto, com pouca ou nenhuma mediação, algo testemunhado por eles. E com o mesmo intuito.
Então, embora o uso da biografia com pouca e nenhuma mediação seja um fenômeno relativamente novo,  o entendo como parte de uma estratégia transgressora que não é nova. Sequer, como falarei no final, de eficácia garantida.
Vou fazer um parêntesis para falar de “representação”, que é um conceito que muda muito. Será um resuminho dos últimos 2.500 anos de civilização ocidental, mas não se preocupem, prometo que será rápido. Aristóteles. A representação como mímeses de um real existente. Esse conceito tem a ver com a noção de verdade, que é algo que constuma mudar ainda mais. Para Aristóteles, a mímesis não só era possível como tinha uma utilidade imediata, produzir uma reação do receptor da arte. Sua mímesis era a mímesis por semelhança. Cópia, e quanto mais próxima da tal verdade, melhor.
Século XXI. Eu disse que eu ia ser rápida. A noção atual de verdade já inclui uma primeira espécie de representação ou pelo menos de equivalência, que é a da linguagem. Ou seja, a verdade atual só pode existir na linguagem, que é um sistema de equivalências.
Entre Aristóteles e Lacan, houve alguns desvios da mímesis. Um exemplo é o barroco, em que se pretendeu, já, uma reação do receptor, não mais visto como passivo ou contemplativo. Ou, no século XX, o Teatro do Antonin Artaud, em que a mímesis se deu com o sinal trocado, era a mímesis da diferença. O que ele pretendia mostrar era o que não se via da verdade, o aspecto oculto da verdade oculta. Outros exemplos, um bem perto de nós, brasileiros, no manifesto neoconcreto, do Ferreira Gullar, em que há a referência explícita, já, a uma fenomenologia da recepção. Citando: a circunstância artística (aí incluída a literatura na figura da poesia) é “um ser que só se dá plenamente na abordagem direta, fenomenológica.” Há também o branco sobre branco do Malevitch, que problematiza o retângulo da moldura ao se mostrar muro, sem figura ou fundo.
Hoje, admitimos: não temos a menor ideia do que seja verdade, muito menos de como representá-la. Nem queremos. Nós fazemos ações no mesmo espaço do vivo. E essas nossas ações criativas supõem uma continuidade, um processo. São, por assim dizer, incompletas. Quem nos lê, ou vê, precisa levar em frente o que propomos, ou não seremos artistas. A mímesis e seu retângulo divisor foram substituídos por eventos que, para serem artísticos, precisam ser fecundos, não se esgotarem em si mesmos. O importante, portanto, é o processo, que não acaba, e não um produto final, aliás frequentemente inexistente. Radicalizamos: não se trata mais de esperar por uma reação do receptor, mas precisar de sua participação criativa.
Então, resumo do resumo: sai o jogo de verdade e mentira, ficção e realidade, e entra o jogo do autêntico e do verossímil. Explicando os dois termos:
Autêntico. O autêntico é aquele indivíduo (escritor ou artista) que faz algo às claras (apresenta o gestual na pintura, ou a metalinguagem na literatura, por exemplo).
Verossímil. O verossímil é a maquiagem ficcionalizante que sempre haverá, ainda que por exclusão, por o que não está lá, e não pela modificação autoral do que está.
E sempre haverá porque não há verossimilhança alguma na vida real. Nada nunca faz o menor sentido para ninguém.
As estratégias para se tolerar o maior grau possível de autenticidade variam. Sempre houve uso de material biográfico. Os limites de tolerância é que estão sendo arrombados, transgredidos, pelo pouco ou nenhum uso de maquiagem e boa educação. O que é novo é o emprego do material biográfico praticamente sem intermediação.
O lado bom e o lado ruim dessa estratégia transgressora que é a nossa, a desta mesa. Primeiro o bom.
Ao usar o material biográfico com pouca ou nenhuma mediação, o escritor conserva um rastro do vivo – ação ou evento. Esse nível baixo de “entendimento” ou “explicação”, essa pouca preocupação com a verossimilhança, abre uma fissura na hegemonia ideológica que inclui, é claro, o próprio escritor em suas condições de produção. A chamada “visão” do ocorrido.
Segundo ponto bom: ao agir assim, o escritor  convida seu parceiro na ação artística, o leitor, a assumir sua parte na história. O que está lá não tem um sentido explícito, não está completo, fechado. Há um convite para seguir adiante, continuar aquela ação.
Há uma terceira vantagem, e esta é pessoal. Sou uma escritora mulher. Vejo nessa atitude da literatura contemporânea uma política de gêneros que me é favorável. O modo anterior de fazer literatura, mediá-la com a “visão de autor”, me parece atrelado a um campo literário (no sentido que Bourdieu deu ao termo) mais masculino, com seus problemas de “tomada de posse” do material, de “impôr uma voz” a acontecimentos. O que é bem diferente do que se propõe na apresentação  de eventos de forma abrangente, não determinística ou sequer sequencial.
Falei em três motivos de por que a base biográfica pouco ou não mediada é interessante do ponto de vista de seu potencial de transgressão. Primeiro por apresentar uma certa proteção contra os sistemas ideológicos hegemônicos. Segundo por provocar a atitude participativa do receptor. E terceiro, por apresentar um ataque ao ambiente ainda machista em que tentamos sobreviver. E me ocorre que essas três coisas sejam uma só.
Agora o ruim.
Primeiro, nossa carreira literária fica seriamente comprometida. Não podemos mais apresentar algo como um estilo, uma identificação imediata de nossos textos. Com a pouca ou nenhuma intermediação autoral, um material biográfico será muito parecido com outro material biográfico. O que muda não é mais a maneira de interferir ou analisar o vivido, que não está mais lá, mas a vida.
Segundo ponto ruim, o Michael Jackson. Mais precisamente, seu funeral midiático.
Voltando ao meu resuminho dos últimos 2.500 anos de civilização ocidental. Houve uma descorporificação das emoções na nossa metade do mundo. Religiões, desespacialização por causa de grandes movimentos migratórios. Descartes. Enfim. O fato é que ninguém mais sente muita coisa, hoje. Mas sente falta de sentir. Então, ao pôr emoções vivas em nossos livros arriscamos vê-los tomados como uma possibilidade de intensificação emotiva. Funciona mais ou menos assim. Eu me emociono na sua frente para ver se, ao ver você se emocionando com minha emoção, eu consigo intensificar a minha emoção. E aí volta tudo. Em vez de chegar cada vez mais longe de Aristóteles, é a mímesis inteira outra vez. Eu mimetizo você e você me mimetiza num pingue-pongue que dura pouco mas agrada muito. Tenho um truque, que ofereço aqui de graça a meus colegas e concorrentes. Ponho, ao mesmo tempo, o evento vivido, real, e meu processo de contá-lo. Uso o material biográfico e a metalinguagem associados. Engraçadíssimo, não é? Para tentar assegurar que a vida não seja ficcionalizada pelo leitor, eu digo a ele como eu a ficcionalizei ao transpô-la, sem ficcionalização, para palavras.
O trecho a seguir não está publicado. Não tem nome, é só um exemplo:
“Me empenho, então, aqui, sentada na Cinelândia, em encontrar em mim uma respiração calma, educada. Uma respiração sincronizada com a daqueles vultos que me fogem, arredios, ridículos com suas roupas antigas, com suas cartas de bridge que caem dos bolsos e das mesas. Que desaparecem, quase, por entre os sons, os cheiros de um bar cada vez mais cheio.
Mas preciso.
Fixo o olhar em um ponto de um espaço “entre”. Um espaço de quebra, de vazio. E aos poucos me entrego outra vez à luz daquela sala de móveis escuros, seus ruídos que – consegui – estão agora menos distantes.
Jogam, eles.
Jogam educadamente. Os reflexos das madeiras e dos copos de cristal se sobrepõem aos poucos, e mais uma vez, aos néons da cidade. Um dos néons, o do relógio digital aqui na minha frente, com sua publicidade acoplada (celulares Oi), no entanto, se mostra particularmente mordaz em sua permanência/impermanência. Pois mudam, seus números verdes, a cada minuto. E continuam, fortíssimos, impávidos, no cenário em que não foram convidados. (Faço um parêntesis rápido: será que é o caso de me preocupar com o que pode ter acontecido a Roger?)
Acabam que pousam, os traços verdes, combinam e se mesclam, definitivamente, no marrom escuro da madeira dos móveis.”

 


Trabalhos acadêmicos:

 

BARROS, Silvia. As relações familiares e o fingimento em O que deu para fazer em matéria de história de amor de Elvira Vigna. In: Revista Litteris, da UFRJ, # 14, setembro/2014, pg 382-392.

 

PIETRANI, Anélia Montechiari. Fazer e dizer a literatura e a mulher. In: Revista Graphos, da UFPB/PPGL, vol. 14, # 2, pg  124-135;

 

HELENA, Lucia. A queda das ações no mercado dos afetos.  Estud. Lit. Bras. Contemp. [online]. 2016, n.48, pp.67-86.

O que deu para fazer em matéria de história de amor – excerpt

ELVIRA VIGNA: O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR (Brasil, Ed. Companhia das Letras, 2012); Den kärlekshistoria som gick att få till (Sweden, Tranan, 2016, 240p)

 

internal files:

o que deu para fazer em matéria de história de amor – reviews

 

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Excerpt (trad. Maria Clara Carneiro ):

 

Une odeur de cigarettes arrive de la table à côté. Je l’aspire. Je ne fume pas, n’ai jamais fumé, si l’on me demandait la raison, je dirais que je n’aime pas la cigarette, on ne me le demande pas, on le sait déjà. Pourtant, j’aime. Et je pourrais m’arrêter par là. Parce que c’est à ça que je pense. À ces histoires qui paraissent une chose et sont une autre. Si je choisis la radicalité, je peux même arriver à un suspense, à l’est-ce que. Par exemple. J’attends Roger. Je connais la chanson. Salut. Salut. Et alors? Ça va. Et quand on aura enfin accédé au post-introït, il parlera du Guarujá. Que je dois aller au Guarujá. Et je vais lui dire que je ne veux pas. Et, pourtant, je le veux. Et je veux parce que j’ai besoin d’ une’histoire. Nous en avons besoin. Je veux dire, pas moi et Roger tout simplement. Mais nous tous. Tout le monde. Un petit joli suspense pour que, une fois résolu, on puisse croire que tout aura été résolu. Et pire. Un petit joli suspense résolu et voilà le ahhh conséquent, même si nous tous – moi et le reste de l’univers – le saurions très bien : il n’y a pas de suspense. Aucun suspense. Adieu les suspenses. Nous le savons, déjà, tout ce qu’il y a à savoir. Avant. Avant qu’il ait lieu, nous le savons déjà. Pas seulement ce qui va barder. Ce n’est pas ce que vi barder. Ça a déjà bardé. Je crois que c’est à cause du post-guerres. Comme ça, au pluriel. Des guerres que ne sont pas tout à fait des guerres, mais des batailles pulvérisées à chaque instant de tous les jours. Et c’est justement cela que je veux/je ne veux pas. Pas tellement le suspense. (Parce qu’il l’a tuéje te le dis carrément), je le dis d’un trait: oui, il l’a tué, au moins, c’est ce que je pense.) Mais revenons à l’histoire. Puisque nous n’avons que de batailles banales, toutes pareilles, il ne nous reste qu’inventer: des points d’intérêt, des palpitations du coeur – et des sens.
Des inventions modestes, il faut le dire. Parce qu’après le nine-eleven des gringos, si cinématographique, tellement, mais tellement, nous devons avoir l’humilité de nous restreindre à des réalisations mineures. Guaraujá, alors.
Des inventions mineures et partielles, je t’en avertis. Des inventions que n’en sont presque pas. Parce que, suite à  de tels super-pouvoirs, e à chaque coin de rue, c’est ce qui nous reste, ce qui marche: raconter, comme si tout n’était qu’une histoire. Même si elle ne l’est pas. Ou presque pas. Me raconter des histoires à moi-même, comme si ce « je » n’était pas moi, comme si j’étaisquelqu’un qui parle des autres.
Dans ce cas-ci, les autres s’appellent Rose, Gunther, Arno.
Les trois pères de Roger.
Au Guarujá, moi allant au Guarujá, comme Roger le veux, je pourrais perfectionner l’histoire que je veux raconter et qui n’est pas à vraie dire une histoire, mais deux. Et où les noms énoncés ne sont pas vraiment ceux-ci, juste similaires. Et, en racontant leur histoire, ce qui me vient à la pensée, c’est que je pourrais, derrière ces noms là, inventés, ou presque, me raconter  moi-même, moi, à qui je ne donnerai pas de nom.
Et ces histoires, la mienne ou celle des autres, c’est bien égal, je ne sais pas comment elles finiront.,Maintenant, quand je commence, je ne sais pas comment terminer, comment je serai, moi, à la fin. C’est mon petit suspense de poche.
Cette fin que ne sais pas que sera-t-elle, quand viendra-t-elle, si viendra-t-elle, elle sera ma paye, ce que j’espère recevoir pour mon séjour là-bas, au Guarujá. Un « là-bas » que oui, je connais. Un appartement fermé depuis longtemps et qui se ruinait même avant d’être fermé. Et dont les prises n’ont jamais su ce qui c’était Internet. Et dans une plage désertique : on est en août, hors saison. Ma paye sera, je l’espère, un point quasi final de mon histoire, la réelle, avec Roger. Et alors, à partir de ce point final, comme un domino à rebours, une fois le point final obtenu, tout le reste se lèvera en ordre, devant moi. Le point quasi final, une fois obtenu, trrrrrrr, un bruit des pièces se levant en ordre, si dans l’ordre, ah, un ordre, séquentiellement, ah, une séquence, jusqu’à la majuscule initiale. Ils resteront là, les petits blocs debout, parfaitement visibles, intelligibles, formant un chemin claire, voyez, ça finit là ; donc, ça commence là. Un sens au grand complet.
Et ce serait un point quasi final, et pas un point final complet, rond, indissoluble, parfait, parce que bien que j'(m’)impose une Rose, un Gunther et un Arno il y a si longtemps disparus, l’histoire ne pourra jamais être à moi seule. Ne pourra jamais être racontée juste que par moi. Mon contrôle sur elle est bien relatif. Il me manquera toujours le complot des autres. L’un : « oui, c’est ça ».
« C’était comme ça ! C’était vraiment comme ça ! »
Je ne peux pas me garantir d’avance telle chose. Me rassurer. Bien que, en effet, je n’invente presque rien. Je peux montrer : là, regarde, la photo. Là, vois, le document. Tout ça est la vérité, je le jure. Roger, par exemple, il n’a jamais accepté mes tentatives précédentes au domino. Je lui ai beau montré : mais viens, pense avec moi.
Je m’abrite sous un avantage, en racontant tout cela. Les histoires sont toujours reçues, aujourd’hui, à mi-ouïe. Tous des malentendants, de façon qu’à peine le récit débuté, ils sont déjà en train de penser à une autre chose. Bien sûr, de l’envie, ils en ont, oui, d’avoir quelques petites vacances de leur vie à eux. Des petites vacances de soi-même, qui ne le souhaiterait pas ? Mais ils entrent (nous entrons) sans croire complètement à quoique ce soit. Ils essaient (nous essayons) un demi-tarif avec notre attention boiteuse à un semi-récit à propos de quoi, vraiment ? Ah, oui, de la vie des autres qui sont peut-être les nôtres. Ils font ça (nous faisons) pour essayer de la récupérer, à distance et en ne faisant pas tellement d’efforts, cette vie là, à eux. Et nous, la nôtre. Mais sans y croire pas trop que ça marchera, en effet. Je le sais. C’est pareil pour moi. Même en s’agissant de vies – celles-ci, les vies racontées – avec un certificat de simplicité, puisqu’elles sont racontées. Présentées phrase après phrase, elles deviennent, les vies, au moins séquentielles, même si pas linéaires. Forcément plus simples que les nôtres, celles que nous avons en effet. Même celle-ci, la mienne. Pas du tout simple. Celle que j’ai, et que, quand le jour finit, je ne la raconte à personne, ni même à moi-même.
Pourtant je ne me plains pas de cette mi-ouïe qui m’attend. Je l’ai dit. C’est un avantage. J’ai besoin de cette mi-ouïe au lieu d’une ouïe-complète, puisque je ne sais même pas comment commencer.
Je peux dire que Roger est en retard. Évidemment. Il l’est toujours. Un début ready-made. Ou je pourrais commencer par les années 1960. Les années 1960 me sonnent mieux. Les années 1960 expliquent toujours plein de choses (malgré le retard de Roger qui pourraient expliquer aussi plein de choses), Les années 1960 expliquent les pétrodollars qui ont surgit comme par magie, ou le début de la dictature militaire brésilienne, cette autre magie, aussi bête. Et c’est de la magie parce que les choses ne débutaient pas, ni duraient ou finissaient, dans cette ordre. La dictature, par exemple, a commencé en 1964, et puis de nouveau en 1968. Et elle a fini sans avoir fini vraiment, si peu à peu que cette fin arrivait. C’est ce que je disais, sur les batailles journalières, anonymes, presque sans exister. Au lieu de guerres.
Et les années 1960 c’est bon aussi à cause de la baise sous la douche.
Il me semble un bon début, des baises sous la douche.
Et celle-ci a été une baise sous la douche tandis que les gens prenaient de la bière au salon, et l’on disait, en chuchotant, mais est-ce qu’ils sont en train de baiser sous la douche ? Ils y sont. Nous y étions. Mais ce n’est pas poli que j’en parle maintenant, d’entrée, de ça, parce que je ne sais pas, à ce moment-ci, comment on pourraient comprendre les choses de cette époque-là. Comment je pourrais les comprendre moi, aujourd’hui. J’ai besoin de les créer, les recréer, pour le savoir ou, mieux, pour croire que je sais.
Qui dira savoir ce que c’est baiser sous la douche tandis que les gens boivent de la bière au salon, au disque d’Elis Regina. Qui dira savoir ce que c’est écouter Elis Regina avec le bras levé et cette tête de conne que, non, pardonnez-moi, mais elle l’avait. Parce que les choses changent.
Les choses ne changent pas. Justement.
Parce que je pourrais raconter l’histoire d’Arno, Rose, Gunther, Roger – et, à petite échelle, de la femme de Gunther – au post-guerre des annés 1940, 1950. De manière identique  je pourrais raconter la mienne, à la première personne, à la fin des années 1960, début des annés 1970, la baise sous la douche, les gens en buvant de la bière au salon. Entre une et l’autre, une vingtaine d’années de différence. Et – je ne trouve pas ici et maintenant, avant de commencer – pas beaucoup d’autres différences. Par exemples, les deux histoires, rien de si bouleversant. Parce que les choses changent, les choses ne changent pas, mais bouleversant n’est définitivement plus une possibilité. Même quand il y aurait de motifs réels. En le racontant, on n’en’a plus. Bouleversant c’est, je l’ai déjà dit, que le nine eleven.
Bouleversant, maintenant, seulement en anglais.
Nous avons perdu le bouleversant, nous. Nosotros.
Même la mer, quand elle monte, le fait tout doucement, ressac à ressac, personne ne se rend pas compte. Et on recommence à reparer les trottoirs. L’appartement de Guarujá n’est pas devant la plage. Juste près. Mais on peut entendre la menace sourde, continue. On pourrait. Personne ne l’entend. On s’y est habitué.

 

 

Excerpt (Lucy Greaves):

A smell of cigarettes comes from the next table. I inhale. I don’t smoke, I’ve never smoked, if anyone asks I don’t like cigarettes, no one asks, they already know. Still, I do like them. And I could stop there. Because that’s what I’m thinking about. About those stories that seem to be one thing and are actually another. If I force it, I’ll get to a moment of suspense, a what if. For example. I’m waiting for Roger. I already know. Hi. Hi. Alright. Yeah, fine. And, when we finally get to the post-introit, he’s going to talk about Guarujá. About me going to Guarujá. And I’m going to say that I don’t want to go. And still, I do want to.
And I want to because I need the story. We do. Not me and Roger, I mean. Not just us. All of us. A sort of suspense so that, once it’s resolved, we think everything’s resolved. Sort-of-suspense resolved and the subsequent ahhh even if we – me and the rest of the universe – are all sure: no suspense at all. Goodbye, suspense. We know everything. In advance. Before it happens we already know. It’s not even a this’ll be a fuck-up. It won’t be. It already is. I think it’s a post-wars thing. Yes, plural. There are no wars anymore, there are atomised battles every moment of every day. And this is what I want/don’t want. No more suspense. (Because it was murder, you see, I say then: it was, that’s what I think.) Time for the story. Since, when there’s nothing more than identical everyday battles, all that’s left is to invent: interests, palpitations – and meanings.
Modest inventions, you ought to know that. Because after the Yanks’ 9/11, so very, oh so cinematographic, we must have the humility to retreat to lesser productions. Guarujá, then.
Lesser, partial productions, I’m warning you. These are almost non-inventions. Because after so many superpowers, one in every corner, this is what works: just recounting, as if it were a story. Even when it isn’t. Or almost isn’t. Recounting myself, as if I’m not me, like someone talking about others.
In this case, the others are Rose, Gunther, Arno.
Roger’s three parents.
In Guarujá, if I go to Guarujá, as Roger would like, I could perfect the story that I want to recount and which isn’t one story, but two. And with names that aren’t exactly these, just similar. And, recounting them, what comes after these names might just manage to recount me, this me who I’m not going to name.
I don’t know the end. At the beginning, I don’t know how I end, how I’ll end up. It’s my own personal suspense.
This unknown ending, when it comes, if it comes, will be my payment, the payment I expect to receive for my stay there. The ‘there’ which, yes, is familiar. An apartment that’s been shut a long time, and was falling to pieces even before it was shut. And whose sockets have never known what the internet is. And on an empty beach: it’s August. My payment will be, I hope, an almost full-stop in my story, the real one, with Roger. Then, beyond that almost full-stop, like dominoes tumbling in reverse, once we’ve achieved that almost full-stop, everything will rise up neatly in front of me. Once the almost full-stop is achieved, trrrrrrrr, comes a noise of pieces rising up, in order, very much in order, ah, an order, sequentially, ah, a sequence, along to the first capital letter. Those little blocks will stay there, upright, perfectly visible, intelligible, forming a clear path, just look, it ends here, so it starts there. Making complete sense.
And it’s an almost full-stop, not a whole, round, insoluble, perfect full-stop, because the story, as much as I impose (on myself) a Rose, a Gunther and an Arno, or a long-lost version of them, will never just be mine. Just recounted by me. My control over it is highly relative. Because I’ll always lack the collusion of others. A “that’s it.”
“That’s it! That’s exactly how it was!”
There’s no way I can get a thing like that in advance. To give myself a guarantee. However much I’m not in fact inventing. And not showing: hey, look, the photo. Look, here, the document. It’s true. I swear. Roger, for example, never accepted my previous domino attempts. Though I’d showed him: come here, think with me.
I hide behind an advantage, that of recounting. Stories are always received, today, with half an ear. Everyone half listens and, as soon as the story begins, they’re thinking of something else. Of course, they want a short holiday from their lives, yes, they do. A short holiday from oneself, who doesn’t want that? But they enter (we enter) without believing much in anything. They attempt (we attempt) a half entry with our half-mast attention into a seminarrative about what, exactly? Ah, yes, other people’s lives that could be our own. They do that (we do), at a distance and without putting in much effort, to try and recapture life. Our life. But without really believing that it’s actually going to work. I know. It’s the same for me. Even when dealing with lives – these ones, the ones I’m recounting – that are certifiably simple, because they recount one another. These lives, presented phrase after phrase, remain, if not linear, then at least sequential. Necessarily simpler than the ones we actually have. Including this one here. Not simple in the slightest. And this is the one I actually have, all day, even when I don’t recount it, not even to myself.
I’m not complaining about the half an ear that awaits me. I already said. It’s an advantage. I need that half an ear instead of whole ears, because I don’t even know how
to begin.
I could say that Roger is late. Of course. He always is. A ready-made beginning.
Or I could start with the sixties. The sixties seem better. The sixties explain a lot of things (although Roger being late also explains a lot of things). The sixties explain the petrodollars that appear as if by magic, the start of the military regime, that other, far more stupid magic. And it’s magic because things no longer just began, went on and ended. The regime, for example, started in ’64 and then again in ’68. And it ended without ending, inching out. It’s like I was saying, daily, anonymous, almost inexistent battles. Instead of wars.
The sixties are also good because of the shag in the shower.
That seems like a good beginning, shags in the shower.
And this was a shag in the shower while people were drinking beer in the living room, and saying to one another under their breath, giggling, do you think they’re shagging in the shower? They are. We were. But it’s not even right for me to talk about this now, straight away, because I don’t know yet, just now, how these things from back then might be understood. How I can understand them, myself, today. I need to create them, recreate them, to know or, rather, to think I know.
Who can possibly say what it’s like to shag in the shower while people are drinking beer in the living room, listening to an Elis Regina record. Who can possibly say what it’s like to listen to Elis Regina, with her arm raised and that face like a children’s party performer that seriously, but no offence, she did have. Because things change.
Things don’t change. Precisely.
Because I could tell the story of Arno, Rose, Gunther, Roger – and, to a lesser degree, Gunther’s wife – in the post-war period of the forties, the fifties. I could tell my story, in the first person, in the late sixties, the early seventies, the shag in the shower, people drinking beer in the living room. Between one and the other, some twenty years’ difference. And – now I think of it, before I begin – few other differences. For example, in both stories, nothing all that overblown. Because things change, things don’t change, but overblown is definitely no longer a possibility. Even when it was. When we recount it, we no longer have it. Overblown, like I already said, is 9/11. Overblown, now, is only in the US.
The rest of us lost that sense of the overblown.
Even the tide, when it comes in, does so slowly, wave by wave, no one notices it. And they patch up the pavement again. The apartment in Guarujá doesn’t look onto the beach. It’s nearby, that’s all. But you can hear the dull, continuous threat. You could. No one listens. They’re used to it.

Infanto-juvenis – críticas

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – críticas

 

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel – fora de catálogo
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível – fora de catálogo
asdrúbal no museu – fora de catálogo
o triste fim de asdrúbal, o terrível – fora de catálogo
viviam como gato e cachorro – em catálogo (ed. dimensão)
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café – em catálogo (ed. positivo)
uma história pelo meio – fora de catálogo
problemas com o cachorro? – em catálogo (ed. positivo)
lã de umbigo – fora de catálogo
mônica & macarra – fora de catálogo
o jogo dos limites – trecho – fora de catálogo
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel) – em catálogo

 

 

 

 

 

clara averbuck é uma pessoa que admiro e respeito.

nos conhecemos torto, como acontece muito comigo.

gosto dela de montão.

aqui, ela conta (01/09/2016):

A arruda da Elvira Vigna
Sempre fui uma leitora voraz, graças à minha mãe, Heloiza Averbuck, que, independente de situações financeiras complicadas na minha infância, sempre deu um jeito de arrumar livros. A Feira do Livro de Porto Alegre, com seus até 90% de desconto nas publicações, era a grande época do ano pra mim. Eu voltava pra casa abraçada naquelas pilhas e com o maior sorriso que poderia caber no meu rosto.
Um desses livros chamava “A verdadeira história de Asdrúbal, o terrível” e foi um dos meus preferidos durante toda a infância. Foi publicado no ano em que nasci, 1979, mas chegou às minhas mãos em 85. Foi amor à primeira leitura e logo mais minha mãe comprou outros livros da série, um deles pelo saudoso Círculo do livro. E foi assim que Elvira Vigna entrou na minha infância, em mal sabia eu, na minha vida.
Elvira é, sem dúvida, uma das maiores e mais originais escritoras brasileiras. Ela tem dezenas de livros incríveis publicados, alguns infantis, muitos romances. Seu “Nada a dizer” bateu fundo nas minhas entranhas. Que livro. Que escritora. E que mulher. Cheia de prêmios, cheia de honrarias. Não que isso importe em um país em que a Academia Brasileira de Letras é uma piada?—?e uma piada com bem pouco apreço às mulheres. A obra dela se destaca e vive independente disso.
Quando eu era jovem e louca tentei marcar uns encontros com ela. Uma das responsáveis por eu ter escolhido essa profissão que, via de regra (e toda regra tem suas exceções) faz com que a pessoa precise ter outros trabalhos pra se sustentar. Tradução, preparação de texto, roteiros, peças de teatro, enfim; conheço pouquíssimos escritores que vivem de fato da venda de seus livros. Marquei e não fui. Eu estava louca, afinal, mas ela não tinha nada com isso e não quis mais saber de mim.
Até este ano. Em 2016 eu conheci Elvira Vigna, sua casa, suas plantas, seu café, seu bolo e seu marido. Sentamos na sala por horas falando sobre Todas As Coisas e foi um dos momentos mais incríveis dessa vida. Eu estava na casa da Elvira, ela, a minha escritora preferida que ainda pisa sobre a mesma terra que eu, ao mesmo tempo. Que carrega muitas das mesmas angústias porque somos mulheres, somos escritoras e sabemos do nosso talento. Que sabemos exatamente o que nos atravanca o caminho. A Elvira, cara.
Ficou tarde, autografei meu novo livro, deixei de presente e caminhei pro metrô feliz da vida. A Elvira! Que dia. Que dia bom.
Outro desses dias, quando eu já estava começando a sentir a pneumonia que me acometeu e a sinusite que não me abandona, minha amiga Monique Prada foi lá também, pra conversar sobre o novo livro da Elvira, “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas“. Não consegui sair de casa, quis muito, mas não deu.
Monique voltou com uma mudinha de arruda, presente da Elvira, que disse que estávamos precisando.
Estávamos mesmo.
A mudinha está crescendo bem linda. Chegou aqui um bebezinho, uma coisinha, mas tenho dado muito sol, água e amor e ela está crescendo no vasinho verde de cerâmica ao lado das outras coisas que eu plantei e curto tanto ver crescer.
Todos os dias eu acordo, vou até a cozinha, faço meus chás e minhas bruxarias e vou lá ver as plantinhas. Ela é a primeira que eu vejo, cada dia maior, a mudinha de arruda que Elvira Vigna, a grande escritora brasileira, Elvira Vigna, uma das madrastas da minha escrita, Elvira Vigna, ela mesma, me mandou desde o Paraíso até a Consolação.
Obrigada, Elvira. Vou cuidar dessa plantinha e fazê-la crescer como cresceu a escritora em mim, com a outra mudinha que você me deu sem saber.

 


“Vitória Valentina”, apresentação em vídeo feito para o curso preparatório de vestibular Jadoski, Florianópolis, abril/2016

 

 

 

“Vitória Valentina”, curta-metragem feita a partir do livro.

 

 

“O silêncio dos descobrimentos”
(livro contendo textos meus e de Roseana Murray, desenhos e projeto meus, mas que não incluo na lista de livros meus, em resenha de Neide Medeiros Santos de setembro/2015)

 

 

 

“Vitória Valentina” na rádio da UFMG em 16/06/2014

 

 

 

 

 

“Vitória Valentina” no Festival da Mantiqueira, em 05/04/2014, em mesa com Maria Valéria Rezende, Evandro Affonso Ferreira e o mediador Sérgio Rodrigues.

“Vitória Valentina”, curta-metragem feita a partir do livro.
(link do youtube)

 

 

 

 

 

 

 

Correio Braziliense, 21/01/2014, por Nahima Maciel e Guilherme Pera:

 

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(mais uma parte da entrevista foi publicada online.)

 

 

Vitória Valentina, de Elvira Vigna – por Marco Severo em Qual é a tua obra?  15/12/2013
Há alguns anos, tive um choque ao ler Daytripper, dos cartunistas brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. Até então, eu tinha verdadeira ojeriza àquilo que se convencionou chamar de “graphic novel”, ou romance gráfico: o escritor cria uma trama, geralmente inédita (digo isso porque há também muitas adaptações de romances consagrados), e une a imagens que podem, ou não, ser também criação do escritor.
Foi a partir do mencionado Daytripper que vieram em seguida Fun Home (Alison Bechdel), Pagando por sexo (Chester Brown), A máquina de Goldberg (Vanessa Barbara) e muitos outros. Finalmente eu havia entendido como, sob muitos aspectos, a união de palavras + imagem poderia dar um resultado tão sui generis.
Qual não foi minha surpresa, então, quando me veio parar nas mãos o mais novo trabalho da Elvira Vigna, escritora que descobri em 2010 com o romance Nada a dizer.
Elvira é dessas escritoras cuja obra tira o nosso chão. Pegue qualquer livro dela, e você será chacoalhado. Todos são romances pouco convencionais. Ler Elvira Vigna é saber que nada é o que parece; têm-se a impressão de estar num jogo de espelhos. A narrativa vai, volta, volta mais ainda, corre lá pra frente – e o leitor vai montando os pedaços e construindo os sentidos. Quando tudo se encaixa, a certeza que fica é que quem determina muito do que está ali, impresso sobre o papel, é o leitor. Porque é exatamente assim com a vida real: você faz a sua leitura diante dos fatos. Sofrimento, prazer, delírios, tesões, pancadarias e assassinatos: tudo depende do olhar, e cada olhar é regido pelo que há dentro do olhar de quem olha, e pelo que há fora, e isso muda quando quem olha sou eu, você, o Zé ou a Elvira Vigna.
Vitória Valentina (editora Lamparina, 128 páginas) não poderia ser diferente disso. O romance vai e volta no tempo, é construído com pedaços de um quebra-cabeça e aos poucos vai adquirindo corpo e sentido(s). Começa com uma tragédia numa favela: um casal mata um outro casal de vizinhos para roubá-los. Só que na fuga eles não encontram sorte melhor e também morrem num acidente de moto. Os filhos dos casais, (Carla) Vitória Valentina e Nando, terminam por ficarem amigos e crescem juntos. Nando é negro, é gay, e pra lutar contra seu medo atávico de motos, resolve ser motoboy. Carla torna-se professora, mas também trabalha como uma espécie de “babá-professora” pra ganhar mais uns trocados. E Nando, para complementar a sua renda, vende fotos de interesse para portais da internet. Nando e Carla tornam-se cúmplices, unidos pela força de uma enorme amizade construída a base das adversidades pelas quais passaram e passam na favela. Acontece que um dia Nando vê uma entrega de dinheiro, que sai das mãos de um empresário até então sem máculas e vai parar nas mãos de um traficante. Como fator complicador, temos o fato de que o dono do portal de notícias resolve armar um plano para pegar empresário e traficante em flagrante, só que o plano dá errado, claro, e é aí que os protagonistas têm que buscar usar da sagacidade e resiliência pra sair da enrascada. Nesse ínterim, surgem o desejo, a abnegação, a tolerância consigo mesmo e com os outros.
Num texto afiado repleto de humor e perspicácia, Elvira Vigna critica esses valores cada vez mais em voga na nossa sociedade, como o consumismo, a força do poder econômico que oprime os que dependem da sua vontade, e um libelo contra o machismo, e a favor da liberdade do ser e de ser, tudo isso numa junção perfeita entre texto e imagens em preto-e-branco que, como a própria autora define, são imagens “sujas”. Um deleite para os olhos, mesmo que muitas vezes representem aquelas velhas questões sociais que continuam aí, pra quem quiser ver, e que continuam doendo naqueles que ainda não se “icebergdificaram”.
O livro é curto, delicado e profundo, como tudo o que sai de dentro dessa autora que existe para tirar a literatura brasileira do marasmo, e que deveria ser muito mais reconhecida e lida neste país. Um dia será, mas enquanto esse dia não chega, temos a sorte de ter uma escritora de tal envergadura sempre criando, inventando e colocando para o mundo não as suas verdades, mas seus questionamentos e suas indignações. E é por isso que devemos ler Vitória Valentina. É por isso que devemos prestar muito mais atenção na arte desta escritora sem precedentes.

 

 

 

“Pensar com Heráclito”
(blog Nina e suas letras, agosto/2013)

O que é a arte? Pra mim, a melhor definição, a grosso modo, (se é que a arte pode ser definida) é: “A arte consiste em libertar a vida que o homem aprisiona”, do pensador francês Gilles Deleuze. Qual é a vida que andamos aprisionando por aí? Pois bem, acredito que “Pensar em Heráclito”, ajudou a libertar alguns que estavam presos em mim…
Um livro pra quem gosta de arte. É um livro “pequenininho”, como a própria ilustradora disse, mas, em minha opinião, de grande valor artístico. A obra é composta por pinturas de Elvira Vigna que, por sua vez, “conversam” com diversas citações de Heráclito que fazem uma combinação belíssima. Para Heráclito “tudo o que existe está em permanente mudança ou transformação”. Talvez seja esse sentimento de mutação que se instaurou em mim durante a leitura do livro.Ao apreciar o livro, deu-me uma vontade imensa de ver de perto os quadros e tocar as paisagens belamente representadas. Que coisa maluca um livro é capaz de fazer com a gente, não? Pinturas que te transportam para lugares encantadores, limpos, belos e puros. Pinturas que te dão vontade de pegar um pincel e pintar (mesmo você nunca tendo levado jeito pra coisa). Acho que a arte é para os loucos, os normais não entenderão.

 

 


 

Palestras:

Mesa-redonda “Uma viagem por diferentes países: a ilustração em diferentes contextos culturais (parte II)” com Elisabeth Teixeira, Eva Montanari, Renata Bueno, em 04/11/2014 na Feira do Livro de Porto Alegre.
Uma das tentativas de título dessa mesa era Feminino e ilustração’. Nunca topo esse tipo de recorte. Mas o que tenho para falar chega perto de ambos os títulos. Vou falar de uma mudança que vejo muito clara nas artes e que, caso a arte anuncie o futuro (o que acho que ela faz), será então uma mudança também e principalmente no social e cultural. A mudança que eu vejo pertence ao processo de morte do moderno, iniciado faz tempo.
E aí, nesse meu pensamento, não importa se você considera ilustração arte ou mera informação adicional ao texto. Porque a questão diz respeito ao processo de aquisição. E tanto faz se você está adquirindo uma informação sobre o texto ou tendo uma experiência artística transformadora.
No contemporâneo, e não no moderno, este é um processo não linear, não necessariamente racional e não autossuficiente. Vem de uma concomitância não hierarquizada e efêmera de situações, tempos, espaços. Você considera que você coabita com aquilo-outro. Você aceita isso.
Quando digo que a ilustração pode anunciar um mundo não ainda estabelecido, ou seja, que é ou pode ser arte, isso não quer dizer que toda a ilustração que se vê no mercado seja isso. Pelo contrário. Há mesmo uma resistência muito grande do velho, do confortável, de um “bonito” que acalma.
Separei dois grupos de livros de forma bem superficial, já que não me interessa aqui fazer uma análise do mercado, nem teria eu capacidade para tal.
Então, nesses dois grupos, o mais numeroso é o que traz uma velha e segura representação de heranças culturais comuns. São livros de luxo em geral traduzidos e já com uma produção estabelecida em seu país de origem, em obediência à lógica da economia de escala.
O outro grupo, que se pretende contrário ao primeiro, exibe imagens em geral equivocadas de formações identitárias locais.
Como exemplo desses últimos, estão os livros feitos por representantes de grupos indígenas sul-americanos, grupos étnicos de origem africana. Entre esses supostos representantes estão às vezes autores oriundos da academia que desses grupos se arvoram como porta-voz. São as reproduções dos mitos fundantes dessas culturas locais. Quando eu disse que há um equívoco nesses livros, me referia ao seguinte. São livros destinados a crianças. E os mitos fundantes originais desses grupos não se destinam a crianças. É a homogeneização ocidental que relega as culturas indígenas ou africanas ao público infantil porque é ela, a cultura ocidental globalizada quem qualifica esse outro, diferente dela de forma irredutível, a uma categoria próxima à ingenuidade, pureza, a um algo menor, disfarçado por uma idealização compensatória. Ou seja, algo infantil.
Nem o primeiro exemplo (o livro de capa dura com imagens oriundas de uma herança cultural comum) nem o segundo exemplo (o livro que se refere a formações identitárias específicas) dão conta da mediação, da presença de um meio comum que só reaparece no contemporâneo, e que é caracterizado pelo desaparecimento daquilo que foi, no moderno, limites ou fronteiras fixas.
Se eu comparo livro a museu, a coisa fica mais clara. Hoje, museus são meios de passagem, são ambientes em que se experimentam cruzamentos. Não são bastiões de defesa daquilo que foi, do passado. São aprendizado para lidar com o que é com o que será. Livros também deveriam ser isso. Museus ainda mantêm a arquitetura de um poder impositivo, masculino e moderno. Prédios enormes, ícones de um display de espetáculo público do poder, cada vez mais ridículos em meio à pulverização e diferenciação culturais crescentes de uma cidade atual. Livros também.
Posso inverter a comparação e em vez de mostrar livro como museu, mostrar museu como livro. Também dá certo, pois quando os museus surgiram, no século XIX, eles eram uma espécie de antologia literária. Estavam lá para ratificar a excelência de um cânone nacional através de uma espécie de catálogo demonstrativo. Existiam para estabelecer, sedimentar, o imaginário de uma dada comunidade. Guiá-la. E essa função de guia do imaginário é apenas um dos aspectos da arrogância característica da época. Hoje, livros ou museus que pretendam se alinhar a um projeto de excelência de tradição nacional ou global sofreriam, ambos, igual crise de legitimidade.
Chego aqui à principal característica do que considero uma ilustração contemporânea. Ela não é perfeita. Ela mostra seu processo, suas hesitações, e ela tem espaços que acolhem um diálogo com o leitor/coautor. A imagem “perfeita” que não dá entrada ao leitor é um museu onde ninguém vai.
Essa imagem contemporânea de que falo aqui tem uma especificidade de função e de processo. A função não se dá mais no coletivo, na massa, supondo um “nós” cada vez mais fluido, mutável, efêmero. A função é exercida sobre cada sujeito e é uma função dialógica, de transformação. Já o processo de como essa função se estabelece será um processo que, embora mire cada sujeito individualmente, se dará no espaço de uma intersubjetividade. O espaço comum de que falei no início. Além disso, além do processo se dar em um espaço comum, ele é transparente. Ou seja, como eu já disse, não se disfarça a tentativa e o erro, até porque não há exatamente erro.
Então, como eu vejo: a função do livro e do que tem dentro dele, assim como a do museu, hoje, não é mais de conservação ou de reafirmação cultural. Até porque isso não mais seria possível. Mas de abertura e diálogo. É um pensamento em andamento.
Um aparte. Trata-se de diálogo com um leitor educado na presença da tecnologia. Embora os livros com imagens tradicionais, oriundas da herança cultural comum, sejam os dominantes no mercado, o leitor a quem ele supostamente se dirige está acostumado com o contrário disso. Ele convive com imagens que flutuam no quadrado sem fundo da tela do computador. Imagens que não têm, em si, um valor ou um significado fixo. Imagens que dependem da leitura e do aporte de um outro para continuar o caminho nunca esgotado da significação. Dependem de um  leitor coautor.
O conhecimento mudou. Achamos que o mundo, hoje, é algo interpretável. Interpretações são sempre várias e trazem consigo uma mediação, um processo de significação. Não há um significado pronto. Não há nada pronto. Quando faço uma imagem preciso levar em conta qual é o grupo a que pertenço. Ou grupos, e por quanto tempo. Quem é o “nós”. Esse “nós” vai entender (ou não) o meu “o quê”. E vou deixar claro o  “como” e, com certeza, o “por quê” – já que a postura de distanciamento crítico é um saudável cacoete nosso de agora. Não tem nada pronto e não tem nada garantido.
Então estou falando de um alto grau de indeterminação, de falta de controle. Estou dizendo que composições ordeiras, disciplinadas, com estruturas corretas, tradicionais e rígidas, conteúdo explícito, são reflexo de uma ideologia que acabou com o século XX. Hoje, no lugar disso, entram as visões múltiplas, o acolhimento de diferenças, o livro como um lugar legítimo para dúvidas. O livro como uma zona de contato. Meu trabalho de artista ou de escritora passou a ser menos autoral e mais colaborativo.
Isso se dá pela convivência de formas elitizadas e vernáculas, por uma redenção do oral, por espaços abertos onde possam emergir aspectos suprimidos da história que está sendo contada, mostrada. Enfim, uma mediação cultural ou o “terceiro espaço”, termo do filósofo Homi Bhaba onde se enuncia a diferença.
Esse mundo que a arte nos permite supor é um mundo sem linhas retas, sem espaços de fronteiras rígidas, competições entre campos, hierarquizações, Ou de narrativas fechadas na linha reta das causas, ações, consequências. É um espaço abrangente, includente e de influências horizontais sem fim. Mais feminino, por assim dizer. Ou, melhor dizendo, sem a marca de gêneros – quaisquer gêneros – que era o que determinava o moderno. Ou ainda, sem a marca de países, mas de grupos que se formam e tornam a se formar.

 

 

 

Palestra no evento Literatura: arte em palavras, dirigida a adolescentes da rede pública do município de Osasco  em 08/08/2011, a partir da adoção de ‘Problemas com o cachorro?’

‘Caricatura’ vem de carregar; é a mesma palavra de ‘charge’, em francês.
E isso porque se ‘carrega’, se condensa algum detalhe para obter o riso.
Você pode fazer isso de duas maneiras: a maneira anamórfica e a maneira metafórmica.
– anamórfica é você caracterizar um nariz como sendo um nariz muito grande, maior do que é, mas ainda assim um nariz;
– metafórmica é você caracterizar o nariz como tromba de um elefante, ou seja, como outra coisa que não é um nariz.
Mas uma ou outra maneira sempre vai estar baseada em uma insuficiência, uma falha.
E aí você pode fazer duas coisas: ou rir dessa insuficiência que você acha que é do outro ou rir dessa insuficiência porque você acha que ela também pode ser sua. É a diferença entre rir de alguma coisa e rir com alguma coisa (ou alguém).
Há um aspecto importante nessa coisa de descobrirmos falhas (só nos outros ou em nós também).
É que só através da descoberta de falhas vamos poder entender as coisas de forma diferente daquela que estamos acostumados.
Por exemplo, o nariz. Só quando descobrimos que narizes nunca são iguais podemos descobrir que há muito mais coisa que não é igual, e que isso não quer dizer que um nariz seja ‘melhor’ do que outro.
Inclusive, o nariz considerado bonito aqui pode ser feio em outra região da terra.
Se você desenha uma caricatura de um nariz muito grande, você estará fazendo uma coisa muito importante: você está saindo da cópia do real. Você está exprimindo uma maneira pessoal de ver as coisas. Um desenho exagerando o nariz de um colega vai estar mostrando muito mais sobre quem desenhou do que sobre quem foi desenhado.
Há um problema com quem faz isso (desenhar caricaturas dos outros). As pessoas viciam. Todo mundo sempre vai esperar por mais caricaturas. Mesmo quando você preferir que as pessoas te vejam de outra forma (lembre-se, é você quem se mostra mais, quando desenha o outro). Você cria um padrão para você mesmo: aquele que caçoa dos outros.
O riso fixa um momento no meio de uma história muito mais longa. Fixa um momento em que você ria dos outros. Você é muito mais do que isso. Mas será este o momento que ficará fixado. Fixa também o momento do ‘assunto’ do riso. Por exemplo: um tombo. O tombo começa antes do tombo. Começa com o buraco que provocou o tropeção. E continua depois, com o machucado. Mas o que fica são as pernas para o ar.
Momentos fixos nunca são bons. Impedem que se vá para a frente.
Tanto é assim que mesmo os quadrinhos de jornal evitam o momento fixo.
Garfield, Snoopy, Mafalda.
Cada tira a cada dia tem um humor dela própria, uma piada que acaba ali mesmo.
Mas o quadrinho não acaba. Há um enredo que continua. O dono do Garfield arranja uma namorada, sai para jantar, o primo do Garfield vem visitar. Isso evita que haja um momento assim, tão fixo. Uma maneira de falar sobre essa parada no tempo que o riso pode dar é dizer que o tempo virou espaço. Ou a espacialização do tempo. É quando aquilo que já falei acontece: some o antes e o depois, fica só um momento fixado, imóvel.
Há uma diferença entre humor, piada e comicidade. O humor está sempre diluido em uma história longa e única; a piada é uma história bem curta, também única, e cujo desfecho é imprevisto. A comicidade é quando o desfecho é previsível, porque é uma história ou situação que é sempre igual. Humor é o que eu faço nos meus textos para jovens e crianças. Piada é separada, cada uma é uma, e não tem nada a ver com outra. E comicidade é programa de televisão, quando você já sabe que este ou aquele personagem vai sempre agir desta ou daquela maneira.
É claro que isso não quer dizer que riso seja ruim. Não. Imagina. Mas é sempre bom entender por que mesmo estamos rindo.

 


 

Trabalhos acadêmicos:

 

TIETZMANN SILVA, Vera Maria. Rede de Leitura/Cátedra UNESCO junto à Universidade Federal de Goiás, setembro 2011. Poesia juvenil, Roseana Murray.
trecho:
“(…) O seguinte livro que iremos aqui comentar é O mar e os sonhos, editado em 1996, quatro anos depois de Receitas de olhar. A ficha catalográfica classifica O mar e os sonhos como poesia brasileira, mas o formato e o projeto gráfico indicam pertencer ao catálogo infantil da Editora. Portanto, ainda que explicitamente não se rotule como poesia juvenil ou infantil, o livro mantém essa ambiguidade em relação ao seu leitor potencial, dada pelo contraste entre formato e linguagem. Isso também pode ser constatado em outros livros da autora. A dicção estetizada dos poemas tem seu contraponto também estético na linguagem pictórica das ilustrações, ambas distanciando-se das facilitações de leitura próprias do texto infantil.
Este livro tem ilustrações de Elvira Vigna, que já havia ilustrado Receitas de olhar com imagens não figurativas, manchas difusas e coloridas sobre o fundo branco do papel, compondo o que se convenciona chamar de arte abstrata. A técnica usada por Elvira Vigna na ilustração de O mar e os sonhos ainda parece ser a mesma de Receitas de olhar, mas neste novo livro o estilo tende para uma representação mais impressionista do que abstrata. Nas manchas de tinta podem distinguir-se imagens do universo marinho, como gaivotas, barcos, peixes, ondas, espumas. Marinhas também são as cores, em que predominam os tons de verde e azul, com incursões das cores do sol e do céu em algumas pranchas.
De contornos indefinidos, as imagens pintam o cenário em traços rápidos, sem contornos, não mais que impressões, em perfeita sintonia com os poemas de Roseana, também visões fugazes e fugidias de cenas mais sugeridas do que descritas.”

 

 

ANDRADE PARAÍZO, Mariângela. Mestrado em Estudos Literários.  Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Brasil. Título: Silêncio e Eco – uma leitura do narrador na obra de Elvira Vigna, Ano de Obtenção: 1990. Orientador: Maria Luíza Ramos.

Este texto está disponível online

 

Vitória Valentina – excerpt

ELVIRA VIGNA: VITÓRIA VALENTINA (graphic novel) – Lamparina editora, 2013, 120p.

infavitoriag

 

 

Excerpt (trans. David Lehmann):

Imagens – críticas, entrevistas, apresentações

ELVIRA VIGNA: IMAGENS – críticas, entrevistas, apresentações.

 

 

 

 

 

apresentação do ‘Cinco sentidos e outros’ (Roseana Murray, Abacatte, 2014, 39p.) no catálogo da Feira de Bolognha/2015:

The lovely verses describe our five senses and other ones we are not able to define. In contact with the inner self, through the senses, the reader under a  spell will find the other, to feel, see and hear the sound of longing, of time, of life, of love and so on. On top all, to take us to our most human part, the poems are magnified by the colors and the absence of them, in cartoons, in patches of elaborate illustration’s composition, in a elaborate composition of signs that transcend the sense of sight.

 

 

 

 

Projeto Duas Casas, apresentação na São Paulo Review em 01/09/2014

Esse projeto de ilustração é de um poema longo chamado Duas casas, da Roseana Murray. Sua publicação, pela editora Lê, está prevista para o ano que vem.
A história, muito simples e dirigida a adolescentes, fala de duas crianças. Elas precisam dividir seus dias entre duas casas, após a separação dos pais. Ora estão em uma, outra noutra, nenhuma das duas, em princípio, satisfatória. Justamente por não conter a outra.
Fui encarregada das ilustrações para o poema.
O poema é de leitura simples, mas é rico, como em geral são os textos de Roseana.
Me interessou o caminho de ligação entre as duas casas.
Tem uma teoria, abordada por Agamben em seu livrinho O que é o contemporâneo?, que diz que o escuro não é o escuro.
Ele baseia isso em várias instâncias, incluindo uma biológica: as células cones e bastonetes de dentro do olho, na presença da luz, implementam uma destruição de pigmentos. Essa destruição gera uma energia que vai para o cérebro e é lida como “visão”. A ausência desse processo é a ausência de uma destruição. Ou seja, duas negativas resultando em um positivo. Ou seja (pela segunda vez), há uma possibilidade de se entender uma outra “visão”, ativa, ou já lá anteriormente, que se relaciona com o escuro da mesma forma que a primeira se relaciona com a luz. Ou seja (pela terceira vez): o escuro não é exatamente uma ausência de algo, é algo. Esse trecho do Agamben faz parte de sua teoria da potência do não. O “não” sendo uma ação tão efetiva quanto aquela que de fato se realiza.
Lembrei disso para fazer o projeto.
Pois, está claro, o poema da Roseana “acaba bem”, no sentido que as crianças aprendem a ver as duas casas ao mesmo tempo, aprendem a perceber que há um “pigmento” do escuro a ligar as duas casas:

(…) quando estão numa casa, / também estão na outra”)

Nas imagens que então fiz, o preto não é apenas o fundo das figuras coloridas. Ele de fato existe. Inclusive, se imiscui nas cores. Isso porque usei tinta a óleo. Essa tinta, grossa, existente, nunca é passiva. Ela nunca esconde o processo de se deitar no papel. Assim, em cada cor, há um preto que antes estava por trás e que, com a pincelada feita sobre ele, se apresenta como ativo, como fazendo parte daquela luz, daquela cor. O preto sobrevive à pincelada, é parte dela.
Além disso – que é algo que diz respeito ao processo, à feitura -, o conteúdo expresso das pinturas também dirá a mesma coisa: o preto nessas figuras não é um vazio, é efetivamente o caminho que liga as duas casas.
É o preto, é sua aceitação como possibilidade, que permite a existência das casas.

 

 

 

Vitória Valentina
(por César Brandão, no blog cultural Motirô, 18/12/2013)
Sujas garatujas aos anjos
Vitória Valentina, de Elvira Vigna, lançado em novembro de 2013 pela Lamparina Editora é o novo livro dessa escritora e ilustradora; que ganhou o Jabuti 2013 pelas ilustrações de Primeira Palavra de Tito Freitas.
Vitória Valentina é mais desenho que texto, ótimos desenhos que transitam entre o esboço e a precisão da linha a formarem as imagens. Talvez sujas garatujas aos anjos, puros e impuros personagens que compõem a história.  Seria quase “graphic novel”, se Elvira Vigna não optasse pelo experimental, pela liberdade de riscar e rabiscar, e de transcender limites do território das ilustrações.
Viciado em imagens, viajei nos desenhos, vendo no texto, não a escrita a traduzir idéias; mas desenhos também. Afinal, cada letra é um desenho, que se convencionou em “signo”, e que enfileirados ou acoplados, constroem tentativa de tradução da palavra, transformam-se em “significados” de imagens, talvez, de pensamentos complexos, exatos ou incorretos.
E desenho não precisa de texto, existe solitário, independente… e provoca leituras diversas e opostas, entre comunhão e contradição.
E os desenhos em Vitória Valentina estão em harmonia ao cotidiano contemporâneo e  urbano: moto a subir morro de favela em confronto a porcos na rua, gambiarras nos barrocos e postes de luz da favela em contraste aos imponentes prédios ao longe cheios de torres no topo, vacas do Cow Parede, pessoas no sinal de pedestres… Lindo desenho de bar, em perspectiva tridimensional, com placa na calçada, mesas com foco do alto, e o balconista ao fundo, em frete às prateleiras…
Desenhos também em sintonia com a forma de organizar os quadros, ou os blocos, dentro das páginas, e que apresentam diagramação ou design bastante inovador, e em diálogo com tanta forma diferente e experimental que surgiu para “instalação” de imagens em qualquer espaço após o digital, a internet, os sites…
Isso sem falar no desenho que ao invés de ilustrar o caótico trânsito na cidade, torna-se o próprio engarrafamento.  E a última página é genial: apenas o desenho e o… silêncio.
Vitória Valentina não é pura literatura no sentido estrito dessa linguagem. Vitória Valentina é, antes de tudo, artes visuais.
Embora haja caligrafia, identidade, unidade autoral nos desenhos de Vitória Valentina, Elvira Vigna não se filia a estilos, escolas, manias e maneiras que quase sempre se repetem na edificação de imagens. Se a mão direita se viciou a seguir os mesmos caminhos, parece que ela usa a esquerda para buscar alternativas de novas trilhas, onde tudo é desconhecido no caminhar, e aventuras perigosas estão camufladas no espaço a ser explorado, entre rasuras e rascunhos.
“Para mim Vitória Valentina é basicamente os desenhos”, declaração em e.mail de Elvira Vigna.  E concordo plenamente com ela neste texto que aqui publico.

 

 

 

Pensar com Heráclito
(por Janaína de Souza Roberto, no blog literário Nina e suas letras, 06/08/2013)
O que é a arte? Pra mim, a melhor definição, a grosso modo, (se é que a arte pode ser definida) é: “A arte consiste em libertar a vida que o homem aprisiona”, do pensador francês Gilles Deleuze. Qual é a vida que andamos aprisionando por aí? Pois bem, acredito que “Pensar em Heráclito”, ajudou a libertar alguns que estavam presos em mim…
Um livro pra quem gosta de arte. É um livro “pequenininho”, como a própria ilustradora disse, mas, em minha opinião, de grande valor artístico. A obra é composta por pinturas de Elvira Vigna que, por sua vez, “conversam” com diversas citações de Heráclito que fazem uma combinação belíssima. Para Heráclito “tudo o que existe está em permanente mudança ou transformação”. Talvez seja esse sentimento de mutação que se instaurou em mim durante a leitura do livro.
Ao apreciar o livro, deu-me uma vontade imensa de ver de perto os quadros e tocar as paisagens belamente representadas. Que coisa maluca um livro é capaz de fazer com a gente, não? Pinturas que te transportam para lugares encantadores, limpos, belos e puros. Pinturas que te dão vontade de pegar um pincel e pintar (mesmo você nunca tendo levado jeito pra coisa). Acho que a arte é para os loucos, os normais não entenderão.

 

 

 

Em “Primeiras Palavras”, Tino Freitas trata da violência urbana com poesia
(por Bia Reis, Estado de São Paulo, 23/09/2012)

 

Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas adorava entrar em um sebo que ficava no cruzamento de uma rua movimentada no centro da cidade. Gostava de olhar as enormes estantes de ferro que formavam um labirinto e guardavam os livros usados que faziam sua imaginação correr solta. Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas contava até 20. Era o número de dedos que havia em suas mãos e pés; a quantidade de passos que dava do semáforo até o sebo. Nunca havia ido à escola, porém, a necessidade lhe obrigara a aprender. Contava os trocados que recebia no cruzamento daquela rua movimentada.
A dura vida da menina que não sabia ler, mas desejou ganhar o livro da bruxa atrapalhada quando completou 8 anos, é também a realidade com a qual o escritor Tino Freitas se depara. Voluntário do projeto Roedores de Livros, em Ceilândia, periferia de Brasília, Freitas viveu o sofrimento de crianças cujos pais estão presos, foram mortos ou simplesmente desapareceram.
Amiga de um gato siamês que morava na livraria, a garota resolve, no seu aniversário, se dar o livro de presente – afinal, ninguém mais lhe daria nada. E arma um plano para consegui-lo. A partir dai, Freitas mistura desejo com violência urbana.
Primeira Palavra, recém-lançado pela editora Abacatte, vai na contramão dos outros livros do escritor. Nos anteriores, Freitas tinha no humor o ingrediente principal. Em Primeira Palavra, utiliza a dor e o sofrimento, com muita delicadeza e poesia.
“Muita gente acha que as crianças não devem ler histórias tristes, mas precisamos dar a elas a oportunidade de se emocionar. É importante entender o sofrimento do outro, mesmo que seja por motivos diferentes, e é esse sentimento que faz com que a criança estabeleça uma conexão com a personagem”, diz Freitas.
A escritora Ligia Cadermatori, doutora em Teoria Literária, destaca a coragem de Freitas para tratar de um tema tão pouco explorado na literatura infantojuvenil: a morte. “A morte só aparece de maneira estereotipada – são os avós que morrem – ou em narrativas folclóricas. Em geral, escritores e editoras estão preocupados em fazer livros para entrar em programas governamentais, ganhar prêmios, agradar professores, a família. A criança fica em último plano.” Freitas, diz Ligia, consegue inovar e surpreender.
Jornalista e músico, Freitas começou a escrever para crianças depois que entrou para o Roedores de Livros. “Fiquei com vontade de fazer minhas próprias histórias”, conta. Nas grandes cidades, entre a classe média, diz, ir à livraria se tornou um passeio em família, mas não é o que ocorre no Brasil profundo. Com o Roedores, Freitas faz um trabalho de incentivo à leitura com leitores com pouco acesso aos livros. Foi onde se descobriu contador de histórias e de onde retirou a estratégia de repetição, própria da literatura oral, que utiliza em Primeira Palavra.
Além de inovar no tema, o livro também apresenta um tipo de ilustração utilizada com pouca frequência em obras destinadas a crianças: a pintura a óleo. Ilustrar Primeira Palavra, conta a escritora e desenhista Elvira Vigna, foi desafiador. “É um texto difícil e, quando o li pela primeira vez, o que se destacou foi a violência urbana. Na segunda leitura, percebi que o livro também fala de como a educação pode transformar uma criança de rua.”
Elvira buscou na memória referências de sebos, com seus livros velhos e pouca luz, e se debruçou em uma “pintura violenta”, em uma clara referência à história. “Usei tinta a óleo com cores primárias, intensas, e pinceladas grossas sobre papel linho – ele não é suave, tem texturas.” Imperfeito, como a vida de uma criança que aos 7 anos não teve a chance de aprender a ler.

 

 

 

Prefácio de “Língua Nua”, de Oswaldo Martins

(por Júlio Diniz, professor de literatura e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio)

 

A noção de parceria, em particular no campo das artes, tem sofrido constantes modificações. Realizar um projeto que envolve distintas mãos não se resume a uma soma de esforços e busca de complemento. Mais do que isso, a necessária comunhão entre linguagens e estruturas distintas se afirma na suplementaridade de suas diversidades e objetivos.
Há uma tradição de diálogo já firmada entre o livro e as artes plásticas, em especial o desenho e a pintura. São inúmeros os exemplos de clássicos da literatura ocidental ilustrados por artistas consagrados. Mas poderíamos ainda afirmar que traços, figuras e formas apenas ilustram e adornam a obra, a escritura, o corpo textual?
Se tomarmos como exemplo uma das edições de Les fleurs du mal de Baudelaire, primorosamente rasurado pelo delicado traço de Matisse, veremos que há muito não se aplica a esse constructo de artistas conceitos como ilustração e adorno. Matisse relê Baudelaire e reescreve em níveis distintos e suplementares as suas/dele flores do mal.
A constatação exposta acima aplica-se com propriedade ao livro Língua nua, uma bem urdida trama de conceitos, textualidade e imagens poéticas concebida e construída por dois artistas contemporâneos. A parceria entre o poeta Oswaldo Martins e a desenhista Elvira Vigna reafirma a vocação desta obra para a dialogia, a pluralidade e o apagamento de fronteiras rígidas entre diferentes estéticas.
O livro é dividido em dois grandes movimentos, em duas partes, que são, e podem não ser, independentes do todo. Como numa peça musical, o tema que atravessa a obra é o erotismo, suas variações, improvisos e repetições. Poemas e desenhos estão colocados lado a lado em harmônica dissonância, seja pelo viés do gênero, seja pela distribuição espacial dos versos.
O primeiro movimento do livro centra-se no que poderíamos denominar “série feminina”. São vinte e cinco poemas e desenhos que, sob o signo hegemônico da economia verbal e da potência de uma poética do menos, desnudam o desejo, o corpo e a linguagem do prazer e da dor, sendo a mulher a personagem da cena e da obscena. O erotismo transforma-se num exercício minimalista na afiada linguagem do poeta e da artista plástica.
A “série masculina” constitui a outra metade deste livro. A verticalidade dos poemas da primeira série é praticamente substituída pela horizontalidade quase-prosa dos vinte e cinco textos e desenhos desta parte. Oswaldo imprime aos seus escritos um ritmo acelerado, sem nenhuma pausa prevista nem pontuação indicada, marcando pela respiração acelerada o lugar do gozo da nua língua de sua poética.
O resultado final é produto de uma refinada artesania de palavras e imagens. Os traços dos desenhos de Elvira adentram e se confundem no corpo dos poemas de Oswaldo, provocando distintas leituras sobre o lugar do erotismo no espaço dos afetos. Uma parceria em tom maior, sem dúvida.

 

 

 

Celia Abicalil Belmiro. Entre modos de ver e modos de ler, o dizer. In: Educação em Revista, vol. 28 #4. Belo Horizonte: UFMG, dezembro 2012  
(…)
Do ponto de vista pragmático, a tarefa de ilustração em O que o coração mandar, texto de Ayêska Paulafreitas e ilustração de Elvira Vigna, pode fornecer um trabalho exemplar. Tanto na concepção quanto na técnica, Vigna tem em mente a importância do leitor. Ele é seu norte e, por isso, todo o tempo o leitor está presente no seu trabalho. As ilustrações partem de fotos suas de casarios de Jequié, BA, que são redesenhadas com um trabalho de cor. O desenho é uma tomada de posse, não mimetiza a narrativa, pois se tratam de dois tipos de comunicação distintos e servem a finalidades diferentes. A propósito de situações escolares, Elvira Vigna3afirma que o educador deve estar atento a esse fato, para melhor situar seus objetivos, sem perder de vista a importância da palavra. Como escritora que é, observa também que ler imagem não é necessariamente ler conteúdo da narrativa e que os professores têm se detido nesse aspecto da leitura da imagem. A artista apresenta três níveis de atividade do ilustrador: num primeiro nível, ele reproduz o que está escrito; num outro nível, o objeto reproduzido tem um olhar do ilustrador; e, num terceiro nível, mais profundo, o ilustrador cria um clima, não precisa retratar o objeto propriamente. Sua crença é a de que, se o trabalho do artista consegue estabelecer com o interlocutor um valor de afeto, ele estará realizando um trabalho literário valioso. E se as crianças se relacionam afetivamente com o objeto, tudo valeu a pena.
A história que Vigna ilustra é a de uma personagem que está voltando à cidadezinha de Jequié, BA; sua figura é retratada com um lápis preto em volta, destacando-se do cenário. Na verdade, ele ainda está entrando na cidade e, por isso, essa sua forma de participação na história. A artista não apresenta uma imagem acabada, tanto no formato quanto nos conteúdos semânticos. O que ela propõe é a falha, a imperfeição, pois só aí, no seu dizer, é que ela invocará a presença do leitor para construir sentidos possíveis. “Tem que haver um ‘entre’. A rua acaba, não sei onde, o que tem atrás, não sei, a figura não se completa, está solta no espaço, na capa a terra escorrega, está solta […]”. A essa situação Bakhtin (2000, p. 43) chama excedente de visão e que permitirá construir seu conceito de exotopia, uma posição exterior que condiciona o excedente de visão.

Esse excedente constante da minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim. (BAKHTIN, 2000, p. 43).

Essa constante solicitação da presença do outro é o que Elvira Vigna deixa para o leitor e permite melhor compreender o trabalho de quem não concebe a ilustração como imagens fechadas. A convocação à atividade estética de acabamento de sua obra é o que propõe a ilustradora e o leitor terá espaço para ratificar o projeto bakhtiniano de produção de sentidos.
(…)

 

 

 

A fada que tinha ideias
(por Célia Regina Delácio Fernandes, na monografia Imagens de leitura na literatura infanto-juvenil brasileira, da Universidade Estadual de Londrina)

 

“De modo geral, as conotações associadas à leitura são quase sempre positivas. Mas, é possível encontrar representações críticas da leitura. Em A fada que tinha idéias, por exemplo, há uma idéia negativa da leitura escolarizada que pode ser percebida já na ilustração de Elvira Vigna para a primeira capa dessa obra (ALMEIDA, 1971), publicada pela editora Bonde, que destaca a figura de uma menina que não está lendo em oposição as outras que estão sob o olhar da Rainha. Há, portanto, uma contestação do discurso pedagógico vigente no mundo das fadas tanto na narrativa textual quanto visual.”

Vitória Valentina, 2013

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Vitória Valentina (graphic novel)  – fora de catálogo

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar

críticas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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escute o início do livro em áudio de dois minutos.

texto e voz: elvira vigna; música e produção: rodrigo stradiotto

 

locução gravada no estúdio gramy, em curitiba, por denis nunes.

produção da eletroficção.

Nada a dizer, 2010

ELVIRA VIGNA: NADA A DIZER  (Brasil, Companhia das Letras, 2010,  168p.; Portugal, Quetzal, 2013, 176p.; Itália, Gran Vía, 2016, 168p.) – trecho e vídeo

– prêmio ‘ficção’ da Academia Brasileira de Letras;

– finalista do Portugal Telecom.

 

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críticas

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Capítulo I

O dia 16 de novembro

No dia 16 de novembro, Paulo abriu os olhos e voltou-se para a nesga de luz que passava pelas duas cortinas – a mais pesada, de um plástico cinza, e a mais leve, de um tecido branco transparente que ficava por cima da outra. Permaneceu assim por alguns momentos, antes de iniciar o preparo para que o resto todo de seu corpo pudesse acompanhar os olhos e sair do quarto escuro, pequeno e já cheio de ruídos: alguém que ligava a televisão no quarto ao lado; o carrinho da arrumadeira, ameaçador, no hall; o tlim do elevador. Primeiro, fez uma inspeção mental básica no estômago e boca. Não, nenhum vestígio do mal-estar da noite anterior, em que depois de comer um X-tudo no bar da esquina, vomitou e cagou a alma. E ao falar para si mesmo essa frase, poderia ter achado engraçado: a alma. Seria oportuno, rá, rá, se livrar da alma na véspera. Mas Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões. Isso normalmente. Naquela hora, então, é que não havia de fato lugar para elas. Depois do estômago foi a vez do joelho e, nesse, a inspeção não poderia ser apenas mental. Então Paulo esticou a perna, dobrou e tornou a esticar. Nada de muito ruim. A dor nas costas, com a hérnia de disco, estava como sempre ao acordar: existente. Mas, no decorrer do dia, com os movimentos, tendia a se estabilizar. E, depois disso, como se já se sentisse cansado – e o motivo do cansaço seria, então, o fato de ter joelhos, estômago e costas -, ainda ficou, os olhos agora mirando a escuridão, a ouvir o tique-taque do relógio grande, feio, da mesinha de cabeceira. Ficou ouvindo o tique e o taque e o tique e o taque, em sua previsibilidade, enquanto dava um tempo para que a arritmia se manifestasse. Era o único sintoma de sua cardiopatia, para a qual tomava quilos de remédios cotidianamente.
O dia começava.
Depois, já andando na praia em direção ao Posto Seis, seu corpo e seus mais de sessenta anos ficaram esquecidos. Andar sozinho por cidades desconhecidas era sempre um imenso prazer. Andar de ônibus ou de carro por estradas que o levassem a lugares desconhecidos, mais ainda. O Rio de Janeiro não era desconhecido até bem pouco tempo. Tinha ficado. Saíra de lá, com toda a família, não fazia um mês. Mas se a cidade continuava a mesma, ele já era outro. E entre seus pés e as calçadas, agora surgia uma distância alegre de quem não tem mais nada a ver com aquilo.
Ia, devagar porque tinha tempo, para a casa de um ex-colega de um de seus inúmeros trabalhos. Melhor dizendo, profissões. Não que tivesse buscado isso. Não que em algum momento de sua infância tivesse se dito: vou ser o que pintar, fazer o que me der na telha. Simplesmente aconteceu assim. A vida volta e meia o tirando de uma trilha e o pondo em outra. Nesse caso, a trilha, ou melhor dizendo, a avenida Atlântica, o levava para a casa de um cara chamado Pedro Correa, mais conhecido por Pecê, seu fornecedor de maconha. Entre o Pedro e o Correa, e mesmo depois do Correa, havia mais nomes. Mas Pecê era uma palavra engraçada de ser dita nas salas de mobiliário com design ergonométrico e tapetes grossos da empresa de marketing em que trabalhava. E Pecê ficou. Era um sujeito baixo e gordinho, que morava em um grande apartamento de frente para o mar, com a mulher e, de vez em quando, com um de seus filhos já adultos e independentes, mas que, por um motivo ou outro, pernoitavam com frequência na casa do pai. Era ele o correspondente atual e possível das figuras da juventude de Paulo, todas muito mais fascinantes e românticas, com uma maconha também muito mais divertida e grupal. E, se Paulo fosse dado a pensamentos, aqui também haveria um. Pois o PC, Partido Comunista, para o qual Paulo militara em sua juventude, se via assim transformado em um aposentado rico, que curtia maconha menos do que dizia curtir, e que o fazia porque sentar-se na sala com um ou outro filho, e oferecer um cigarrinho, era sua maior possibilidade de se sentir próximo.
Não havia muito papo entre Paulo e esse seu ex-colega. Tinham trabalhado juntos – não há muito que falar sobre isso, além de um Você tem visto o fulano? Você soube que o sicrano. Quem? O sicrano, aquele do departamento tal. Ah. Pois ele, não sei se você soube. O que tem duração pequena por mais que se esprema. Até que Pecê se levante do sofá, diga o aguardado Vou pegar. E volte logo depois com um pacotinho e um cigarro já preparado na mão, para que fumem um pouco, os dois, conformados ambos de que a proximidade geográfica e aleatória é tudo que há. Ficarão por um tempo encostados no peitoril da enorme janela, vendo o horizonte, ali, imutável, do jeito mesmo que era quando ambos, ainda jovens, levavam, lá embaixo na calçada, uma vida muito diferente um do outro. E, frente a esse horizonte imutável, ambos fumarão essa maconha esforçando-se para que ela também fosse imutável. Ela ajudava-os a imaginar, mais do que o horizonte, que ainda havia, como antes, muito pela frente.
Mas Paulo pousava o peso do corpo ora em uma perna, ora em outra. Para obter a maconha de Pecê, ele precisava compartilhar o clima de Pecê – a janela, os móveis pesados, o apartamento antigo e caro – e Paulo não era essa pessoa.
(Muito do que aqui se está a falar será sobre que pessoa é Paulo.)
Mas Paulo, indo de uma perna à outra sem sair do lugar, falou afinal o que ele tinha para falar, a frase-troféu, a apoteose, o segundo motivo de sua visita:
“Tem uma mulher aí me enchendo o saco, querendo dar para mim.”
Pecê foi mais bem sucedido do que Paulo no emprego da multinacional que compartilharam por alguns anos. Nela, qualquer que fosse o cargo, o importante era ostentar perfil adequado à venda. Marketing. Com seu anelão, conversa mole e profundamente mainstream, Pecê e, aliás, todos seus colegas, eram melhores no papo com os clientes, nas risadas e nas batidinhas nas costas, do que Paulo jamais seria.
Rá, rá, riu Pecê. E deu uma batidinha nas costas de Paulo.
E depois, sério:
“Ah, quando elas se tornam muito insistentes é muito chato mesmo.”
Acabaram de fumar a maconha, agora Paulo se sentindo melhor, os cotovelos encontrando um nicho na madeira do peitoril, um pouco carcomida pela maresia. Paulo sempre tinha querido dizer o que acabara de dizer – e ele virava e revirava a frase na sua cabeça, gostosamente. Nos almoços das quintas-feiras que o grupo organizava no restaurante ali embaixo, havia sempre um ou outro colega que falava de seus casos com mulheres. Rara a semana em que não havia casos novos a serem aludidos, e que eram comentados apenas com frases curtas, jamais perguntas, e sem detalhes concretos, substituídos por risadas, muxoxos e o alcear de sobrancelhas. Paulo nunca tinha tido amantes. Algumas garotas de programas, sim, quando viajara, há muito tempo, com esse mesmo grupo para outras cidades, Brasília, Recife, e principalmente São Paulo. São Paulo, para onde agora tinha se mudado. Estar morando em São Paulo excluía até mesmo de sua imaginação – já que na prática garotas de programa não eram mais uma presença real em sua vida – o rico plantel de boates e putas da rua Augusta, a uma quadra de sua nova casa. Pois era importante para Paulo que seus escapes, como denominava trepadas ocasionais, se dessem em cidades diferentes daquela em que morava. Sentia-se mais seguro assim. Mais fácil de compartimentar, de escondê-las até de si mesmo.
Amante, ia ser a primeira.

Nada a dizer – críticas

ELVIRA VIGNA: NADA A DIZER  (Companhia das Letras, 2010,  168p.; Portugal: Quetzal, 2013, 176p.; Itália, Gran Vía, 2016, 168p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro.

– prêmio ‘ficção’ da Academia Brasileira de Letras;

– finalista do Portugal Telecom.

 

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Anotações sobre “Nada a dizer”, de Elvira Vigna

Por Carola Saavedra, revista Pessoa, setembro-2016.
Avesso
À primeira vista, o enredo: mulher de meia idade descobre que o marido tem uma amante vinte anos mais jovem. Mas não, logo fica claro, trata-se de outra coisa. É um texto que exige. À primeira vista parece fácil, mas não. A cada página, apesar da aparente acessibilidade, o que surge é uma construção complexa, porque o que o texto diz não é o que ele dá a entender, o que ele diz está costurado em seu avesso. Há dois livros.
O enredo
Mulher de meia-idade fica sabendo que o marido tem uma amante vinte anos mais jovem. Mulher de meia-idade, apaixonada pelo marido, fica sabendo que ele tem uma amante vinte anos mais jovem. Mulher de meia-idade, apaixonada pelo marido, depois de muito insistir, fica sabendo que ele tem uma amante vinte e anos mais jovem. Mulher de meia-idade, apaixonada pelo marido, depois de muito insistir, fica sabendo que ele, tem uma amante vinte anos mais jovem, também casada. Mulher de meia-idade, apaixonada pelo marido, depois de muito insistir, fica sabendo que ele tem uma amante vinte anos mais jovem, também casada, e que ambos riram às suas custas. Mulher de meia-idade percebe que nada era como ela imaginava. Mulher de meia-idade precisa encontrar palavras que deem corpo a essa outra história.
Narrador
À primeira vista, imagino que se trata de um narrador tradicional, terceira pessoa, discurso indireto livre, é o que parece: “No dia 16 de novembro, Paulo abriu os olhos e voltou-se para a nesga de luz que passava pelas duas cortinas […] Permaneceu assim por alguns momentos, antes de iniciar o preparo para que o resto todo de seu corpo pudesse acompanhar os olhos e sair do quarto escuro […]”. Mas logo um sinal de que há algo por trás dessa ilusão inicial: “Primeiro fez uma inspeção mental básica no estômago e na boca. Não, nenhum vestígio do mal-estar da noite anterior, em que, depois de comer um x-tudo no bar da esquina, vomitou e cagou a alma. E, ao falar para si mesmo essa frase, poderia ter achado engraçado: a alma. Seria oportuno, rá, rá, se livrar da alma na véspera.” O uso do verbo “poder” no condicional, ele poderia ter achado engraçado, ter dado a gargalhada, rá rá, mas não necessariamente achou. Ou sim? Logo a seguir, a confirmação: “Mas Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões. Isso normalmente. Naquela hora, então, é que não havia de fato lugar pare elas.” Provavelmente Paulo não pensou nada daquilo, não deu a tal gargalhada, rá rá, mas então, o que resta? Um narrador. Não um narrador convencional, até este momento, é tudo que minha intuição me permite.  Algumas páginas depois, ao se referir à amante de Paulo, nova pista: “’O nosso almoço vai ser de negócios?’ E riu os dentinhos de rato.” Um narrador que se coloca, que tem opinião. Mas ele, ou melhor, ela só se mostra no final do primeiro capítulo, de forma sutil, mas clara:
“Então, quando Paulo disse no telefone que ia dormir cedo porque estava cansado, ele se referia ao cansaço da passagem, entre sua vida anterior e a nova, e que era uma passagem que tinha durado dois dias.
E o Vou dormir cedo tinha outra utilidade, além de denotar essa passagem. Queria dizer Não me ligue de volta.
Bobagem. Mesmo sem isso não haveria ligações de volta. Nunca havia.”
E no terceiro capítulo, intitulado “A casa”, a narradora definitivamente se inclui, o uso do plural: “A casa ainda estava com os caixotes da mudança no meio da sala, porque havíamos chegado a São Paulo no dia 20 de outubro.” Mas o narrador é uma mulher sem nome.
Paulo
Seria Paulo um canalha? Um mentiroso, egoísta? Aquele que faz só porque pode? Ou seria ele apenas um homem deprimido em busca de algo que apaziguasse a morte? Ou nenhuma das opções anteriores? Ou todas as anteriores? Afinal, quem era Paulo? É a pergunta que a narradora, mulher dele, se faz após tantos anos de casamento. E é também, por motivos diferentes, a pergunta do leitor. Uma pergunta, para todos, sem resposta. Essa questão aparece na própria construção da narrativa: se o livro é narrado pela mulher de Paulo, tudo o que temos é esse testemunho, essa versão obrigatoriamente tendenciosa, já que ela não presenciou os encontros dele com a amante, não sabe o que eles realmente disseram ou sentiram, pode apenas supor, unir a pistas que encontra. Mas não só isso, mesmo que ela, munida de um olhar onisciente, tivesse acesso direto aos personagens, o resultado seria ainda assim apenas um relato, mostrando  que  não há discursos neutros, isentos, tudo é sempre interpretação. Ainda mais na literatura. O que nos resta então? Nos resta a palavra e o vazio, o que a personagem diz, o que ela silencia. Nesse sentido, ocupamos ambos, leitor e narrador, o mesmo lugar.  A narradora se pergunta, quem é Paulo, o seu marido, nós nos perguntamos, quem é Paulo, o personagem (talvez não haja diferença entre eles). Observamos as entrelinhas. Uma investigação. Inicia-se uma investigação fadada ao fracasso. Paulo permanece enigma, e no fim, só nos resta a ficção: “Mas Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões.” E mais adiante: “E se Paulo fosse dado a pensamentos, aqui também haveria um.”
A falta
Suspeito que a melhor literatura surge a partir da falta, da nossa capacidade de suportá-la.  Sem essa aproximação, essa coragem, não há verdade. E aqui não se trata de uma verdade exterior (inalcançável, talvez inexistente), mas de uma verdade interior, do personagem. Penso, há uma coragem assustadora nessa mulher. Ela, que habita a falta, que a escrutina, sem subterfúgios, sem adornos, maquiagem, ela que não tem sequer um nome. É dali que brota a sua força, a narrativa.  A mulher que narra o encontro do marido e a amante: “’Vamos almoçar juntos amanhã?’ E os peitos quase totalmente fora do decote, roçavam seu antebraço no quiosque deserto da praia. Os peitos sem ter nenhuma dúvida quanto à resposta.” Ela, que nada é tudo tem, a palavra:
“Treparam.
N. com mais desenvoltura que Paulo. Luz acesa, cortina semiaberta, uma nudez sem problemas, peitos, bunda, boceta, ali, às claras. Prometia. Mas Paulo iniciava com beijinhos, carinhos, palavras de afeto. Odiando-se por isso, sem saber como sair disso. N. também maneirava nesse primeiro dia, sem querer parecer puta, sempre um risco em situações como a sua. “(S. 13)
N.
N. é outro personagem sem nome. Este ao menos uma inicial. N. (nada, ninguém, nunca, não etc.), e me vem à lembrança as palavras de Mefisto, no Fausto de Goethe: “Ich bin der Geist der stets verneint!” (Eu sou o espírito que sempre nega). Associação não tão descabida como pode parecer, já que do decorrer da trama a narradora abordará sua suspeita de que N. talvez seja responsável pela morte do marido. N. é o nome que não pode ser pronunciado, talvez para não lhe dar uma concretude que ela não tem (pois ela mais representa do que é). N. é a outra, a outra mulher. N. poderia ser qualquer uma, e ao mesmo tempo, por que logo N.? Por que especificamente N.? O que ela tem? Que mistério é esse? Na busca por alguma resposta, a narradora tenta, num primeiro momento, se mimetizar com N: “Tentei mais uma coisa, eu ia ser N.” Mas ela, obviamente, fracassa: “Não consegui que sua presença no mundo encolhesse até coincidir exatamente com meu parco corpo, quando então ocuparíamos o mesmo espaço, eu seria ela e ela seria eu. Ela sumiria.” A segunda estratégia é apagar os vestígios de N. e seus significados. Por exemplo, o iPod que Paulo ganhara dela e que continua usando como se fosse “apenas” um iPod. Outra tarefa impossível. Mesmo que a narradora o convença a trocar por outro, há uma escrita indelével que se impõe. A terceira estratégia é “anulá-la no mundo”, que consistia em percorrer com Paulo os lugares em que ele havia estado com N. “Eu não era mais uma tentativa fracassada de N. Pelo contrário. Eu ia cobrir N. Passar uma tinta, meus passos sendo o pincel, sobre os passos dela.” Todos esses palimpsestos estavam, claro, destinados ao fracasso. Não era possível inscrever N. porque ela era um objeto perdido, irrecuperável. “Pois eu jamais saberia de suas lembranças. Só poderia saber dos anzóis pelos quais essas lembranças se vinculavam a um visível, era a única coisa ao meu alcance.”
O e-mail
A narradora descobre um e-mail de N. para Paulo, com senha. Paulo havia sumido, ela passara o dia à sua procura, o celular desligado. Pensa que talvez algum e-mail lhe dê uma pista. “Em estado e idiotice galopante, fiz o que já havia feito em relação aos telefonemas. Repeti a ação para ver se a consequência mudava. Tentei abrir esse e-mail várias vezes. Em todas as vezes, como sempre acontece em repetições, aqui também o resultado foi sempre igual: o computador queria a senha”. E o e-mail, mensagem cifrada, se transforma numa espécie de esfinge que a devora.
Enigmas
Quando moravam no Rio, a narradora e o marido costumavam frequentar um motel perto de casa, o motel Sândalo. Um lugar onde haviam sido felizes. É para lá que Paulo leva a amante.
“Perguntei e perguntei muitas vezes:
‘Você não lembrou de mim, ao entrar no Sândalo com N.?’
A resposta sempre foi não.
E isso eu nunca pude entender.”
A narradora se pergunta, que lugar é esse que ocupa se não é a única para esse homem? Mesmo que a única entre muitas. E o que significa essa atitude por parte dele, inércia, preguiça, falta de consideração, raiva? Nós leitores, assim como a narradora, só podemos traçar suposições. Imaginar que talvez, o próprio Paulo não saiba, como ela diz no início “Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões.”
Enigmas
A narradora pede a Paulo que abra o e-mail, ele se recusa. Nessa recusa uma resposta e também uma nova pergunta. Ela ameaça ir embora. Paulo não diz nada. Ela ameaça perguntar sobre N. ao grupo de amigos em comum, Paulo reage: “Pois, agora, com o dedo na minha cara, um Paulo nem um pouco impassível berrava que eu tomasse cuidado com o que fosse fazer. N. era casada, dizia, histérico. N. tinha filhos, e uma fofoca iniciada por mim poderia arruinar a vida dela.” Aqui mais um enigma, “E essa reação dele, de preocupação com a amante e não comigo. “ Mais uma vez, não há resposta, apenas interpretações: talvez a reação tenha sido provocada pelo medo, medo de algo que pode fugir totalmente do seu controle (como se ele tivesse controle de alguma coisa). Talvez.
Simultaneidades
Uma parenta faz uma visita à narradora, mulher da mesma idade que ela, o marido havia se apaixonado por uma aluna e saído de casa. A mulher repetia as palavras do analista: “Todos fazem isso, todos.” A narradora insiste que Paulo é diferente, a mulher ri sarcástica. “No momento mesmo em que eu dizia que Paulo não era homem de ter amante – e minha parenta ria -, Paulo metia seu pau na boceta de N., com todos os Ahn, Ai, Tesuda, correspondentes. Eram as minhas palavras a negar os Ais dele a se somarem aos Ais dele.”
Enigmas
A pregunta que está por trás de todas as outras, e que ela se faz várias vezes ao longo do livro: “[…] quem exatamente era eu para Paulo?” E que, imagino, poderia se seguir de: quem sou eu sem Paulo, e por último, quem sou eu? Para então, talvez, poder voltar a ser alguém (um outro alguém) para o outro.
Traição
Paulo e N. passam a se corresponder através de outro endereço de e-mail, e N. envia a Paulo uma mensagem destinada a ser lida pela narradora (e-mail antigo), uma mensagem fake. “Esse e-mail falso, sem senha, é um dos aspectos do caso de Paulo com N. que ficam, duros, com uma única explicação possível, que até hoje reluto em aceitar – a do meu total engano a respeito da minha própria vida. Paulo nunca foi Paulo.”
Paulo nunca tinha tido amantes
Até aquele momento, apenas algumas garotas de programa, nos diz a narradora. O que mudara então?, ela se pergunta, ela pergunta a Paulo (sem resposta), ela tenta a todo custo compreender. Disso depende tudo.
Hóspedes
“A resposta a essa pergunta, o que era eu para ele – e que acarretou de lambuja um questionamento sobre o que eu considerava até então uma verdade absoluta sobre o que ele era para mim (meu maior amor) -, nós levaríamos cerca de um ano para obter. E se trata de uma resposta temporária. E é essa a maior e mais certa e definitiva resposta. Não o que ela contém. Mas o fato de ser temporária.”
Nada a dizer
No romance de Elvira Vigna, a expressão “nada a dizer” tem ao menos duas abordagens. 1) Como suportar o silêncio do outro (Paulo)? Daquele que talvez conheça as palavras, palavras contra a dissolução, mas que, diante dos nossos questionamentos, nada tem a dizer. Talvez por falta de vontade, talvez por ele também não saber. A solução encontrada pela narradora é construir ela mesma esse discurso, um discurso por um lado, cheio de imprecisões, de incertezas, mas por outro, capaz de oferecer concretude onde há apenas silêncio, espaço vazio. O movimento da personagem é uma constante tentativa de compreender, de dar ao outro (que nada diz) uma narrativa que os sustente. 2) a outra acepção de “nada a dizer” é quase uma espécie de conclusão do livro, que nos diz que assim como não há origem (não há como saber o que realmente aconteceu) não há também desfecho, solução, ou seja, um fim para a narrativa, “Aqui, então, nestas últimas linhas do meu relato, entraria essa voz a levar, a mim e a todos em volta – as pessoas e seus duplos – até um fim perfeitamente tranquilizador. Seria a voz – que não mais tenho – das soluções dos problemas. […] Não vai acontecer. Não é mais possível.”
Simultaneidades
As palavras não têm significado em si mesmas, tudo é (re)interpretação o tempo todo. A protagonista lembra de uma vez que encontrou por acaso o marido e N. almoçando: “Pus-me frente à mesa, mãos na cintura, e falei:
‘Aí, hein! Que flagra!’
E caí na gargalhada no restaurante quase vazio. Paulo falou:
‘Ué, que surpresa!’
E os garçons também sorriram, discretos.
N. revirou os olhos, botou a mão no coração e me disse, rindo:
‘Ai, não me dá esses sustos que eu tenho trauma!’”
N. Conta que ninguém a leva em consideração como possível amante de alguém, que ela é sempre vista como amiga dos homens. Todos riem. A narradora vai embora feliz.
Datas
Com exceção de “A casa” e “A morte”, todos os capítulos têm por título uma data. Começando por “O dia 16 de novembro”, seguem: “O dia 17 de novembro”, “A casa”, “O dia 29 de novembro”, “O dia 30 de novembro”, “O dia 1o de dezembro”, “O dia 7 de dezembro”, “Do dia 7 de dezembro ao 8 de março”, “O dia 8 de março”, “O dia 9 de março”, “Abril”, “Maio”, “Junho”, “Julho”, “Agosto”, “Setembro”, “Outubro”, “A morte”.
Há nessas datas, uma clara busca por exatidão, a necessidade de reconstituir em detalhes os acontecimentos daquele ano. Quando começou a história? No momento em que Paulo abre os olhos? “No dia 16 de novembro, Paulo abriu os olhos e voltou-se para a nesga de luz que passava pelas duas cortinas […]”
Lamento borincano
Acompanha a protagonista, uma das personas que encontra para si: o porto-riquenho das montanhas. Musica escrita por um compositor de Porto Rico em Nova York, descreve as condições de pobreza dos camponeses. Borinquén, nome indígena do país, o nome que se perdeu, quando para a ilha, impôs-se uma outra história. “Borinquén, la tierra del Edén/ Y que al cantar el gran Gutier llamó la tierra de los mares/Ahora que te mueres con tus pesares/ Déjame que te cante yo também”.
Enredo e literatura
Um dos aspectos mais interessantes do livro é que ele nos oferece duas chaves de leitura, a primeira é o enredo: uma mulher tenta compreender os pensamentos e atitudes do marido, para isso ela nos conta uma história. A segunda chave é um discurso sobre as possibilidades da narrativa contemporânea, da literatura, algo que poderia estar num ensaio, mas surge de forma muito mais aguçada no romance, porque este nos traz mais perguntas do que respostas. Entre as possíveis perguntas: como narrar se perdemos a ilusão de uma verdade recuperável e única? Que lugar ocupa esse narrador, no caso narradora, que confiança lhe damos, ela, sem nome, sem neutralidade alguma? E por último, como narrar se não temos nada (de definitivo) a dizer?
“No quarto de hóspedes não engrosso a voz que não emito. Vejo, irônica, muito de longe, esse alguém que arredondaria ficções a serem feitas, como já fiz tantas. Alguém com lógica, acuidade, racionalidades.
Alguém que dissesse claramente quem matou, como matou, quando. Que mentisse. Que não dissesse, não claramente pelo menos, que quem mata sempre sou eu.”
Uma voz
A narradora se recusa a assumir um papel pré-estabelecido: “No olhar dos outros, inscrito o que minha mãe chamaria de destino de mulher. Nasceu com boceta? Vai ser enganada. Traída, humilhada.” O livro é também essa trajetória, esse caminho novo, assustador e necessário. “E precisava comprar um olhar com que eu pudesse olhar o mundo, uma voz com que eu pudesse, frágil e firme, falar de mim. Não contar histórias, menos do que isso. Só falar.”

 

 

 
César Brandão, placa da série Inaugurações/Obras Públicas, dezembro de 2010

 

(Esta placa, assinada pelo escultor mineiro César Brandão, é uma das leituras de que mais gosto do meu livro. Em cima da assertividade do metal e dos processos industriais, a imperfeição e o acaso de um lento desenhar de conteúdo.)

 

 

 

André de Leones, Jornal do brasil, caderno Cultura, 10/04/10

 

 

No romance Nada a dizer, de Elvira Vigna, temos a narrativa obsessivamente detalhada de um adultério. Surpreende que a voz que conta essa história em todos os seus mínimos detalhes seja não a de um dos amantes, mas, sim, a voz da mulher traída.
Com pouco mais de 60 anos, ela reconstitui cada passo do companheiro, Paulo, em sua malfadada aventura extraconjugal, bem como vários eventos anteriores e posteriores. A descrição cuidadosa, com toques masoquistas, de algo tão doloroso acaba se revelando um esforço da narradora no sentido de reconhecer ou, pior, vir a finalmente conhecer o seu companheiro, entender quem ele de fato é e como ele veio a se tornar quem se tornou.
Mais do que isso: ao não reconhecer ou desconhecer alguém com quem vivia há tanto tempo, a narradora também deixa de reconhecer ou passa a desconhecer a si própria: “Eu não esperava que isso fosse possível. Que eu pudesse não existir, que a minha existência pudesse não ser contabilizada pela pessoa que mais me conhecia no mundo”. Assim, além de administrar a dor pela traição, ela também se vê inteiramente esvaziada de sua identidade. Tudo aquilo que era ou julgava ser como que escorre pelos dedos de suas mãos.
Para além da crise conjugal, há uma espécie de mapeamento do que significa esse episódio para a narradora em função do que ela pensou e viveu desde a juventude, nos anos 60. Nas palavras dela: “Fomos nós, os que fizemos 60 anos no início do século 21, os que lutaram e enfrentaram hostilidades de todo tipo para que pudéssemos viver, todos, do jeito que quiséssemos (…)”.
Ao relembrar o percurso de sua relação com Paulo, ela chama a atenção para as mudanças ocorridas não só em seu relacionamento, mas no mundo. Há 40 anos, eles defendiam o ideário esquerdista e lutavam pela liberdade e pelos “direitos do proletariado”. Panfletavam, acolhiam fugitivos da ditadura, enfrentavam o calamitoso estado de coisas vigente no Brasil.
Não muito tempo depois, com o fim da repressão, ela vê o companheiro empregar-se em uma grande companhia e colocar em dúvida opiniões que eles sempre tiveram e “sobre as quais não havia como ter dúvidas”. No discurso, eles renegavam esses “papéis predeterminados”, toda a suposta imbecilidade pequeno-burguesa ou coisa que o valha.
Na prática, e aqui está a ironia, o leitor vê como eles, sobretudo Paulo, acabam se encaixando justamente nos papéis predeterminados. Vemos o descompasso cada vez maior entre o discurso e as expectativas de outrora e os rumos que suas vidas e o mundo tomaram e continuam a tomar.
A narradora, contudo, não suge

re que a decadência de seu relacionamento se deva, de uma forma ou de outra, seja direta ou indiretamente, à falência de todo aquele ideário. Não se trata disso. O que ela faz é conferir tridimensionalidade a esses personagens e às suas motivações por meio de uma contextualização histórica e também pelo registro dessas mudanças bastante significativas, de quem eles foram um dia e de quem eles se tornaram, tanto um para outro quanto em relação ao mundo.
Assim, os acontecimentos narrados ganham maior ressonância e Nada a dizer, longe de se tornar um exemplo de prosa confessional monocórdia e autoindulgente, exibe toda a riqueza de um ponto de vista consciente de si, do outro e do que os cerca.

 

 

 

 

Luiz Horácio, jornal Rascunho, abril de 2010
Traição é u m negócio complicado e caro. Pede a execução de planos mirabolantes e um razoável investimento financeiro. Re q uer uma ficção bem engendrada, obriga o mentiroso a manter uma rigorosa atenção. Exige a materialidade bem-paga de restaurantes, motéis, presentes, figurinos, etc. Esquecer em casa os escrúpulos também ajud a. Conheço inúmeras famílias que vivem essa comédia deprimente. Deprimente porque é traição e, se é traição, existe dor, alguém sofre. E estamos conversados. Quando tudo é feito de comum acordo – bem, então bom proveito.
Nada a diver é o título d a mais recente produção de Elvira Vigna, escritora dona de um dos olhares mais precisos acerca de nossa precariedade e de nosso imenso talento para o cinismo. E ela lança esse olhar sobre nós com todo o brilho de seu talento criativo aliado a uma ironia e a um humor dos mais corrosivos.
Do casal de protagonistas, Paulo e a narradora sem nome – devido ao passado de ambos, de ativistas políticos – bem que poderia se esperar alguma concordância quando o assunto fosse relações extraconjugais. Mas, quando a realidade bate à sua porta, sua fisionomia não é mais aquela que eles tão bem conheciam nos anos 1960. Agora, ela traz a maquiagem da mentira e dos subterfúgios, aspectos fundamentais que fazem, da deles, uma relação comum, igual a tantas outras naquela cidade, naquele bairro, naquele quarteirão, naquela rua.A história é narrada pela mulher traída, movida pelo ressentimento, pela frustração e pela decepção causada por seu companheiro de muito tempo. Casal e filhos adultos mudam do Rio de Janeiro para São Paulo. Logo, Paulo, o marido, se envolve em um caso com N., mulher 20 anos mais nova que sua companheira. Também casada, a amante vive no Rio.
Com precisão de datas, detalhes, horários, endereços e roupas, a autora nos apresenta um painel riquíssimo sobre as relações amorosas. Até onde nos conhecemos e o que conhecemos do outro? Fala sobre a liberdade, a lealdade, a mobilidade das relações. Até que ponto uma mulher traída também é culpada?
A mulher de Paulo, a traída, logo descobre o caso. Interpelado, o marido nega. Ela vasculha o computador dele, suas mensagens no celular, calcula o tempo do homem fora de casa, a que se prestariam aqueles minutos. O livro é de um realismo atordoante; infelizmente, a trama nos é familiar. Um exemplo: ao vasculhar o computador de Paulo, a narradora depara com um e-mail a exigir senha para sua leitura. Acende-se o farol da desconfiança e assim ele permancerá até o final, quando mais uma traição, a primeira de Paulo, virá à tona.
A senha era uma novidade nos e-mails dele. Questionado sobre o fato, Paulo nega que seu moitvo seja amoroso. Suas explicações não convencem a mulher e ela volta no tempo, passa a limpo os momentos compartilhados com o marido e, nessa arqueologia da relação, se vê ora acusada, ora acusadora.
Depois de um longo tempo como suspeito, Paulo assume a traição. Dá-se início a um período de escavações no relacionamento de ambos. Por onde andariam a confiança, o amor, o tesão, a liberdade, a independência? A separação é a solução vislumbrada pela mulher. Mas ela nào dura e, logo,  casal se refaz. E o que dói mais: a separação ou a tentativa de recomeçar com a pessoa que nos traiu? O amor brotará nesse terreno adubado pela desconfiança?
No livro de Elvira, o sofrimento da mulher traída vem envolto por um papel luxuoso de curiosidade. No mesmo embrulho, a poeira do masoquismo. Ela continua a investigar os e-mails de Paulo e, não satisfeita, lança seu olhar investigador ao blog mantido por N. O que busca? Detalhes? Referências ao marido? Talvez a tentativa de se descobrir vista por N.
Enfim, relação amorosa desfeita, marido e mulher também se desfazem, se desconhecem para o outro e para si. Triste, muito triste. O casal da história apresentada por Elvira Vigna continuará, mas a mulher traída talvez não pare nunca de contar essa história. Por quê? Ela responde: “Eu, que mato mesmo quando descrevo a morte como natural, acidental. E mato porque quem conta sempre mata aquilo que originou o conto”.
Nada a dizer pode ser examinado contra a luz, como uma radiografia da geração ativista dos anos 1960, como um diagnóstico destes cínicos tempos que nos envolvem, nos permitem expectativas e nos oferecem frustrações. Se, naqueles anos, a liberdade passou a ser sinônimo de alta rotatividade nos relacionamentos amorosos, atualmente a liberdade, no mesmo âmbito, guarda proximidade com a mentira, a traição ou, quem sabe, o faz-de-conta. Nada a dizer é uma narrativa seca, não há romantismo em suas páginas, sobra realismo. Corrosiva, permite que mudemos os nomes de seus personagens, lhes emprestando os de alguns amigos, parentes, vizinhos. Uma obra que brota do talento de uma de nossas maiores escritoras. Elvira Vigna redime a realidade.
 
esta crítica saiu junto com uma entrevista minha, republicada em:
PELLANDA, Luís Henrique. As melhores entrevistas do Rascunho, vol. 1. Curitiba: Arquipélago Editorial, 2010, 288p.

 

 

Paulo Paniago, Diversão & Arte, Correio Braziliense, 06/03/2010
É possível fazer uma prosa que seja ao mesmo tempo enxuta e detalhista. Elvira Vigna prova isso no mais recente livro, Nada a dizer. Um triângulo amoroso é o mote da história, mas contado do ponto de vista da mulher que descobre que o marido teve amante durante breve período. A narradora nunca tem o nome revelado. Ela é casada com Paulo, que desenvolve um caso com N. por três meses. Esse arcabouço dos nomes próprios é indicativo de hierarquias. Só quem tem direito a nome explícito é o macho, muito embora ele vá ser maltratado também pelo rancor da mulher. Logo na primeira página está dito, numa amostra de quão cortante pode ser o punhal das palavras: “Paulo não era uma pessoa de muitas reflexões”. A amante ainda recebe uma inicial. A narradora, nada.
A história avança em movimentos muito bem estipulados: o início do caso, quando Paulo volta ao Rio de Janeiro a pretexto de participar de uma festa de velhos amigos, de onde a família de tradutores acabou de se mudar, para São Paulo; as idas ao motel com a amante; a volta para São Paulo e para a vida aparentemente normal; a manutenção do caso; a descoberta; a crise que se instala; a saída de casa da narradora; a volta e a retomada do antigo relacionamento. Para entender: o casal de tradutores está na casa dos 60 anos, embora se diga aqui e ali que se trata de meia-idade, o que não me parece o mais adequado. A amante N. também é casada, separa-se em seguida do marido, sendo 20 anos mais nova.
Parte do conflito está nas diferenças de geração: a da narradora foi responsável por lutar por liberdades individuais e contra o regime militar, a da amante apenas se beneficiou com os ganhos. Isso, claro, do ponto de vista da mulher afrontada.
Não se espere uma prosa simplesmente ressentida. Há muito amargor na narrativa, sem dúvida, mas há sobretudo um retirar de véus em prol de chegar à verdadeira natureza dos fatos. A narradora fala as coisas como são, sem qualquer puder: “Depois do Então vamos – que deveria encerrar uma cena e, corte, ação, grudar em outras, eles já nus, gritos, pernas abertas -, ainda houve todo o intermediário, o mingau que a tudo arrefece”. O texto é, para dizer o mínimo, implacável.
Até mais da metade do livro, os capítulos têm datas específicas, dia do mês. Depois, os capítulos são relativos ao mês inteiro e passam a tratar do modo como a relação se deixou contaminar por esses fatos. As reações da narradora se modificam. Primeiro, ao deixar de existir para o outro, para o marido, ela deixa de existir para si mesma: “Não existente, me multiplicava por mil, milhões.” Passa a se reconhecer em todas as mulheres traídas de todos os seriados de televisão, CSI, Criminal Minds, SVU, Cold Case. Próxima etapa: o desenvolvimento de tramas cinematográficas na imaginação, cenas que ajudam a colocar as coisas no devido lugar.
Nada a dizer trata sem dó nem medo da fratura que certas atitudes masculinas são capazes de provocar e também trata do modo como a maturidade feminina termina funcionando como remendo dos estragos provocados pelo outro. Nesse sentido, o livro de Elvira Vigna é dotado de um discurso absolutamente rico e perspicaz, embora se saiba que para fazer tudo isso será necessária uma travessia pelo sofrimento. Se particularmente discordo da ausência de um aprofundamento das motivações do personagem de Paulo em relação às suas atitudes, é preciso entender, no entanto, que a trama foi extremamente bem-articulada para mostrar a perspectiva da mulher traída, e de fato ela não tem como entender motivações se o homem é incapaz de fornecê-las. De onde, suas insistentes e recorrentes perguntas.
Paulo não fornece respostas, prefere silêncios ou rompantes violentos de discussão, o que a princípio desgasta ainda mais a relação. Como se fosse desprovido da racionalidade que normal e talvez equivocadamente se associa à parte masculina, que é o que de fato acontece nesse livro. Paulo nega e nega, primeiro. Depois, quando as evidências são incontornáveis, age de maneira mesquinha, egoísta e não consegue ser maduro. Cabe à narradora, traída, o papel do perdão e das emendas dos pedaços fragmentados. Não é a alternativa mais fácil. Ela chega a sair de casa, alugar outro apartamento, mas depois volta. O tempo todo analisando cada passo, cada decisão, com a coerência e o amargor necessários, mas também com capacidade incrível de superação.
A ironia que o texto tem – em grau elevado – está contaminada por esse agridoce que a situação sugere. Aliás, é talvez o tom mais apropriado para a ironia, como quando a narradora diz que, se tivesse pensado a respeito, Paulo teria entendido que pensou com cinismo ao agir como agiu. “Mas acho que não pensou, nem com cinismo nem sem.” O homem nessa trama se movimenta sobre reflexo, sem elaboração. Cabe à mulher a tarefa de processar. Há também um final em aberto que só aumenta o poder da narrativa de Vigna e que não é o caso antecipar aqui. Mais uma vez, ela fez um livro poderoso.

 

 

 

Ubiratan Brasil, Caderno 2, O Estado de São Paulo, 02/03/2010
O prazer da leitura de Nada a Dizer é semelhante ao de se admirar um quadro hiper-realista, em que as aparências enganam. O novo romance de Elvira Vigna (Companhia das Letras, 168 páginas, R$ 38) conta uma história aparentemente corriqueira: sexagenário, Paulo inicia uma relação extraconjugal com N., mulher 20 anos mais nova. O adultério logo é descoberto pela esposa de Paulo, que assume o papel de narradora da trama. Ou seja, o caso é apresentado sob o ponto de vista da figura traída que, inconformada com as falsas negativas do marido, disseca todos os momentos a ponto de expor a verdade com uma tal nudez que a palavra se torna desnecessária: não há mais o que se dizer.
“Eu pretendia algo quase estereotipado, em que a técnica da narração se comparasse ao hiper-realismo da pintura”, conta Elvira, autora também de Coisas Que os Homens Não Entendem e Deixei Ele Lá e Vim. “Assim como quem vislumbra uma tela, o leitor/observador tem uma primeira impressão da trama que não lhe apresenta novidades, pois ali está algo que lhe é familiar, como uma cena de boteco. Ao fazer uma revisão, no entanto, acontece o mesmo quando diante de um quadro hiper-realista, em que as pinceladas perdem a hierarquia e o principal e o secundário têm a mesma importância.”
Esse momento acontece quando a narradora descobre um e-mail de N. no computador de Paulo. Como o acesso ao texto exige uma senha, ela desconfia: jamais Paulo havia imposto tal limitação. Interpelado, o marido nega qualquer envolvimento amoroso. A versão, porém, não convence a mulher, que inicia uma sacrificante filtragem do passado, revendo minúcias aparentemente banais e descobrindo nelas partículas acusadoras. Ou seja, a realidade ganha um novo formato. “A narradora se apropria da versão contada por Paulo e a devolve para ele, sem mudar uma linha, mas com todos os detalhes evidenciados que o deixam sem palavras.”
A escritora exemplifica com a obra do pintor americano Edward Hooper (1882-1967) e seu universo de pessoas solitárias diante de portas e janelas, com o olhar desesperançado em um horizonte vazio. “Hooper parte de um recorte neutro ou até positivo da realidade e o transforma em algo perverso. Sua atitude é desestabilizadora.”
Algo semelhante acontece à medida que progride a leitura de Nada a Dizer. Mentira e adultério tornam-se o tema principal do livro, assuntos que envenenam a relação de Paulo com sua mulher a ponto de descobrirem uma estranha liberdade afetiva e sexual na relação, algo tão poderoso que os leva ao fundo do poço, com tudo zerado. É chegado, portanto, o momento de um recomeço.
A trajetória de Paulo e a mulher representa ainda um balanço dos ideais de uma geração que foi jovem durante os anos 1960, época libertária que contrasta com as instáveis relações atuais. “A geração de hoje, ligada à internet, apresenta uma brutal mudança de paradigmas, pois comprova ter memória”, comenta Elvira. “O fato de utilizarem a rede mundial constrói uma visão com resíduos históricos que vão se chocar (e destruir) essa fragmentação.”

 


 

 

Palestras e mesas redondas:

 

palestra de 08 de outubro de 2010 na Bienal de Curitiba, com Luiz Ruffato, sob o tema Literatura e resistência.

áudio disponível na internet (clique aqui)

 

e o texto que preparei para o evento:

Tenho formação em literatura e também em artes. E é pelo viés das artes que vou chegar em uma literatura contemporânea que tenta ir além dos preceitos do modernismo, de suas promessas e falências – e que é a literatura que leio em Ruffato e na qual também me vejo pertencendo.
Houve, nas artes, uma chegada na própria estrutura do seu fazer, com a abdicação do assunto e até da materialidade. A razão para que isto acontecesse foi a necessidade de se descobrir, no século XX, uma política de resistência mais eficaz do que outras estratégias tentadas até então. A arte sempre foi, em algum grau, política, e se posicionou a favor ou contra o poder. Em geral, em uma primeira leitura, a favor. E, em uma segunda, contra, roendo pelas beiradinhas. São muitos os exemplos. Não vou dá-los. A palestra não é sobre arte. Uso a arte nesta introdução apenas porque seu caminho teve uma clareza maior do que, por exemplo, a literatura. Na literatura, se a estrutura de seu fazer sempre foi muito aparente, a materialidade ou mesmo seu assunto nem tanto. A materialidade da literatura é feita de signos abstratos em papel ou, agora, em tela. E o assunto pode dar ensejo a discussões infinitas. Com a música também há problemas, na materialidade – o som some assim que é emitido, para dar lugar ao próximo som, ou nota. E idem quanto a seu assunto, pelo menos na música instrumental, sem palavras. Você tem o título, uma pastoral, Valquírias e tal. Mas é mais uma situação básica do que propriamente um assunto, uma história.
A obsessão da arte visual com sua própria estrutura é mais clara. E passa por um despojar-se do que é considerado supérfluo no questionamento radical a que ela se propôs. Por exemplo: em vez de pintar um bonequinho segurando uma bandeira em que se lê ‘yo soy contra’, você usa o próprio processo de pintar um quadro para atacar o que há de estrutural ou tradicional nisso. Sempre lembrando que estrutura é uma palavra que pode ser substituída por poder a qualquer momento. Ao questionar a estrutura, ou o método do fazer artístico, você questiona e ataca o poder. Bem simples. E para que isto aconteça com sua máxima eficácia, você abre mão do assunto: não haverá mais uma representação de algo que exista fora da arte. E, depois, você abre mão do próprio material artístico: adeus mármore, bem-vindos gravetos, cera, caixinhas de fósforo, performances, e todo o resto que some assim que a eclosão da arte acaba.
Eclosão.
Digo eclosão porque o artista também some: a arte passa a ser percebida como um momento, um acontecimento que se dá, um encontro. Sai, portanto, do espaço físico: aquilo está lá, naquele lugar e lá permanece. E vai para o tempo. Sai do eixo em que se realizou desde que o mundo é mundo, e que é o espaço. E vai para outro eixo, que não lhe era próprio, o tempo. E volto mais tarde para esta ida do espaço para o tempo que a arte fez, porque uma ida contrária, do tempo para o espaço é o que caracteriza em grande parte o que os escritores atuais fazemos. É coisa muito falada, hoje: a literatura foi para o espaço – no bom sentido da coisa. E a arte ficou no tempo, igualmente no bom sentido. Mas o que é preciso reforçar, é que essas idas e vindas podem ser entendidas como um ataque à estrutura conservadora de ambas as expressões artísticas. Igual à entrada da arte no tempo, a entrada da literatura no espaço significa uma tentativa de resistência ao tradicional, convencional, ao poder vigente.
Significaria. E volto depois a isso, à pergunta se deu certo.
Ou se dá certo, no presente do indicativo.
Então, resumindo em uma só frase alguns séculos e dezenas de tendências e linhas evolutivas diferentes: houve nas artes essa tentativa, que foi o projeto modernista, de que a arte pudesse, despojada de seu corpo material, atacar e modificar as estruturas do poder, ampliando assim a velocidade das transformações sociais. No mesmo século XX que foi o apogeu e o fim do modernismo, a literatura saía também de sua casa tradicional, que era a temporalidade. O antes e o depois, a linha lógica da causa e do efeito, a sintaxe de sujeito-agente, sua ação-verbo, e um predicadozinho para dar cor local. Saiu disso.
Vou repetir. Estou fazendo um grosso abuso aqui, ao falar de arte e de literatura como corpos homogêneos, claramente visíveis e rotuláveis, seguindo, qual cordeiros, um caminho florido e reto. Não. A coisa vai e vem, são vários. Estou me referindo a uma visão. E que é uma visão que fala a partir de um ponto de vista político – tema da nossa mesa. Então tá.
Foi uma estratégia bem sucedida, esta, que já havia dado em fracasso no modernismo e que foi, de um certo modo, reatuada na contemporaneidade?
Não. Primeiro, o fracasso no modernismo. Nem as artes nem a literatura atacaram de fato o poder durante o modernismo. Não houve desestabilização das estruturas e processos nem no campo social nem no artístico.
O modernismo não conseguiu realizar o que prometia nas artes, na literatura e nas revoluções sociais. Nas liberdades individuais, principalmente no que concerne a posição da mulher, houve alguma conquista nas sociedades em que o movimento se instalou. Mas é possível argumentar que tais conquistas se deveram a circunstâncias que passam ao largo do projeto. Foi por causa, como sabemos, da mobilização masculina nas guerras do século XX que as mulheres conseguiram obter alguma brecha na vida econômica e pública. Não por causa do modernismo, então, como valor positivo. Mas por causa do modernismo em seu valor negativo, a guerra. A mesma coisa pode ser dita da posição dos negros e mesmo dos gays. Foram espaços vazios provocados pelas contradições inerentes à ideologia dominante que possibilitaram o entrincheiramento desses grupos e sua subsequente melhora relativa de posição social.
E no campo das artes, especificamente, sem o sensorial, a arte ameaçou virar filosofia. Acabar, simplesmente.
O fracasso do projeto modernista, do qual somos todos herdeiros, se deveu entre outros motivos porque,  ao se deparar frente à estrutura – fosse ela de um quadro, de um comitê revolucionário ou de uma vida alternativa de paz e amor, bicho – o homem modernista deixou-se seduzir pela própria estrutura que ele devia atacar. Então ficamos com a arte construtiva, com Stálin ou com fazendas comunais e seu sonho reacionário e anti-urbano.
Então, fracassados todos, chegamos ao século XXI e a esta mesa sobre literatura. Que é o que nos interessa.
A estratégia contemporânea retoma a tentativa de questionar a estrutura, que foi própria do modernismo. É uma espécie de segundo round. Eu, por exemplo, descontruo o romance policial em meus livros. Em todos eles. Sempre haverá, num livro meu, ao contrário da estrutura tradicional do romance policial, uma transgressão que jamais é punida. Meu último livro, o Nada a dizer, tem a história de uma morte que não é contada por inteiro, apenas esboçada. E quem mata, como sempre em meus livros, provavelmente é quem narra a história. Digo provavelmente, porque o narrador raramente sai confessando aí para qualquer um o que ele faz ou deixa de fazer. E, muitas vezes, ele simplesmente mente, e diz que não matou. Matou. É sempre ele. Ou melhor ela. Meus narradores são em geral mulheres.
No Nada a dizer então tem este ataque à estrutura básica de um romance policial. Tem outra coisa. A narradora é a mulher traída de uma situação de adultério. É o narrador quem, historicamente, se presta ao papel de modelo identificatório para o leitor. Há uma espécie de função edificante ou de glorificação nos narradores do cânone ou da mídia. Já uma mulher traída é alguém com quem ninguém quer se identificar, ela é descrita em geral como feia, desinteressante, diabólica na sua vingança, má, desprezível. Eis, então, o segundo ataque à estrutura do romance: a narradora não exerce seu papel. O terceiro ataque será aquele que já citei, a mudança do eixo temporal para o eixo espacial.. No Nada a dizer, a narradora, sem lugar para existir, sem corpo para usar, rua para andar, explicita estar escrevendo aquilo em um quarto de hóspedes, assumindo um não-lugar.
Li, do Ruffato, o Estive em Lisboa e lembrei de você, que fez parte do projeto Amores expressos. Ao ler, me lembrei do meu livro. Ruffato nos apresenta uma Lisboa como o não-lugar que existe em todas as grandes cidades. Seu narrador também é problematizado ao extremo, uma pessoa periférica na ação do livro e na sociedade.
Acho que escrevo assim por causa da minha infância. Meu pai foi caixeiro viajante. Minha mãe nasceu em uma casa de pau-a-pique com chão de terra em uma cidade chamada Capim Fino. Nem a profissão de caixeiro viajante existe mais, nem Capim Fino, engolida por Jaú. Fora da classe média, pensar a estrutura do poder me foi mais premente. Deixei desde logo os enfeites de lado.
Termino repetindo a pergunta que já fiz. Se funciona, em termos de resistência, este questionamento de estrutura. Acho que não. Não funcionou no modernismo e não acho que funcione agora. Por outros motivos. Não existe mais a sedução pela estrutura que encobriu e solapou os ataques que a ela deveriam ter sido dirigidos pelo homem modernista. E também vejo este novo fracasso de uma muito necessária resistência como independente do fato de que se trata de uma estratégia já vista, portanto conhecida. Até porque não se trata de uma repetição exatamente. A ideia de retirar cascas superficiais para chegar a um núcleo não se sustém em uma época de pouco apreço intelectual a essências e centralidades. E, de qualquer forma, a recepção dos procedimentos mudou. Portanto, não. Não é a mesma coisa. E há mais uma coisa que mudou. Há uma falência de todas as críticas, de todas as resistências. Aconselho um livro, A falência da crítica, de Wladimir Safatle. Nas artes, há uma cooptação anterior à sua própria fatura artística. Hoje, artistas, e acho que escritores também, estão institucionalizados antes de se tornarem artistas e escritores. Eles pertencem à instituições pedagógicas. Depois, ao exercerem sua atividade-fim, o fazem buscando patrocínios ou interatividades. Um fazer junto que exclui qualquer possibilidade de confronto. De antemão. E, ao, apesar disso tudo, tentar atacar estruturas e fazeres, recebem o acolhimento social. Há um lugar já preparado para nós, nos estudam e aceitam enquanto resistentes. Fazemos parte enquanto berramos que não fazemos parte.  Nos aplaudem.

 

 

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palestra de 24 de agosto de 2010, no 8o Festival Recifense de Literatura – auditório da Livraria Cultura, com Schneider Carpeggiani.

Separei algumas das perguntas que mais me fazem em relação ao Nada a dizer. Pensei em começar respondendo a elas.

1 – Se o Nada a dizer se refere a fatos reais.
Sim, fatos, pessoas e lugares. Mas estes três grupos de realidades não estavam necessariamente juntos antes de eu pô-los juntos, no livro. Quer dizer, vou pegando coisas que se passaram comigo ou que não se passaram comigo, mas das quais eu soube e não pude esquecer. Vou condensando sua carga emotiva, um pouco como um ator se preparando para um papel. E desloco tudo aquilo para um fio narrativo que, este sim, é minha única invenção. Então, o cenário básico do Nada a dizer é real. É o cenário em que vivi quando cheguei a São Paulo, vinda de mudança com toda minha família do Rio de Janeiro.
As pessoas, bem, não vou dizer quem são as pessoas porque sequer tenho este direito. Trata-se da vida privada de outros. Mas, sim, são reais.
E a ação – que é o adultério – é mais do que real. Peguei no ar.  É mais que um acontecimento, é um estereótipo, em geral masculino. Não tem nada mais banal, medíocre, corriqueiro e cotidiano do que a traição descrita neste livro. Quanto ao meu comentário de que se trata de um evento em geral masculino, é importante notar o “em geral” que vem antes. Para evitar leituras simplistas de gênero, pus a amante N. como uma mulher casada. Ou seja, ela, mulher, também pertence ao mesmo estereótipo. Há mais um motivo para minha decisão de fazer a amante ser uma mulher casada. É para aumentar a intensidade dramática. Uma mulher sem nada a perder, que desse em cima do personagem Paulo, não produziria um adultério importante, se é que se pode dizer isso.
Então há, sim, fatos reais sem parar no livro. Faço isso desde sempre. Misturo a autenticidade do vivido com a representação, mímesis, em todos meus livros. Então, por exemplo, no primeiro deles, O assassinato de Bebê Martê, mato uma amiga. O “eu” do livro mata sua melhor amiga. Este fio narrativo, o da tensão da narradora até a morte que ela provoca, é uma invenção. O resto não. Aqui também há pessoas reais, ações reais e cenários reais. São dois, os cenários: Jaú, que é a cidade do interior de São Paulo onde passei minha infância; e o escritório de uma empresa onde eu trabalhava na época. Não matei minha amiga, é claro, do contrário estaria presa. Ou a caminho da cadeia assim que saísse aqui da livraria, por causa da confissão de que escrevo o que vivo. Mas a descrição da morte no livro é a descrição de uma tentativa de assassinato real, ocorrida, e de meu conhecimento. Aliás, a descrição das mortes, no plural, porque tem mais de um morto em O assassinato de Bebê Martê.
E assim vai em todos os outros que já escrevi.

2 – Por que escolhi a personagem da mulher traída para o papel de narradora.
Escolher o narrador é resolver o livro. O resto é trabalho braçal. Quando descubro quem está contando aquilo que, sim – e isso eu sei desde sempre – é o que eu quero contar, quando fica claro quem conta, o texto está pronto. Mesmo que não tenha nem uma linha escrita. O narrador determina a linguagem, determina a própria história, tudo. Em geral é difícil escolher o narrador. No Nada a dizer foi fácil. Eu tinha três personagens. A da amante logo ficou de fora porque não entendo nada dessa mulher. Não entendo sua opção pelo adultério, em vez de simplesmente largar o marido. Já disse antes porque era importante para mim que ela fosse casada. Então, vivi um impasse com essa personagem. Eu a construí de um jeito que me fez não entendê-la. Minha única base para mantê-la existente é seu pertencimento a uma classe social das mais acomodadas. Estável, sem problemas de excesso ou falta de dinheiro, sem mudanças à vista, e tendo mesmo horror a mudanças, é uma classe social acostumada a esconder seus impasses e a se esconder de crises. O personagem do marido, o Paulo, também não me atraía, em vista de sua psicologia rasa, de quem não reflete sobre si mesmo. E também porque não gosto de pôr narradores masculinos em meus livros. Acho que a literatura já privilegiou de montão os homens. Gosto da voz feminina. Então, só restava mesmo a opção da mulher traída. Com mais uma vantagem. Em geral, este tipo de personagem é pintado na ficção como alguém sem nenhum mérito. Mulheres velhas, chatas, feias, desinteressantes. Ou simplesmente patéticas. E eu gosto de pintar perdedores.
Contudo, minha escolha embutia um problema, digamos, técnico. A mulher traída precisava narrar algo de que ela não participou, que foi a traição de seu companheiro. Como contar o que não se sabe? Resolvi isso através da explicitação de duas fontes de informação: o próprio marido, que conta para ela como as coisas se deram; e o blog online da amante. A presença da tecnologia no livro também vem de algo vivido. Passo o dia em cima de um computador. Além dessas duas fontes de informação, havia uma terceira. E, em dado momento, digo no livro: “e o resto, inventei.” Nunca me afasto muito do real em nada do que escrevo e, sim, estava inventando coisas, suprindo lacunas que as várias realidades retratadas não me davam.

3 – O que me fez escolher esse assunto, o da traição.
Cheguei em São Paulo em outubro de 2007. Em março de 2008 entrei num curso em que analisavam, detalhadamente, um filme, um clássico do cinema francês, que eu já conhecia e que já me incomodava. É o Hiroshima, mon amour. De Alan Resnais, roteiro de Marguerite Duras. Rever, estudar a fundo este filme, foi o empurrão que faltava para eu escrever o livro. O filme fala de algo que me incomoda desde sempre. Apesar de ter sido o começo do livro, a referência ao filme acabou ficando no último capítulo. Acontece. Você acha que vai começar com alguma coisa, outras se interpõem, e o começo acaba no final. No Nada a dizer, o primeiro capítulo foi uma das últimas coisas que escrevi. Nele está o incipit – que é a entrada na ficcionalização, o começo do começo do discurso narrativo. O incipit vai até a entrada do “eu” no texto. Você, ao começar a ler o livro, não sabe que haverá um narrador na primeira pessoa.
Fiz um vídeo de apresentação do Nada a dizer, que está no meu site pessoal, e em que falo que não entendo o adultério. Muita gente supõe, por causa disso, que faço uma apologia do casamento. Não. Pelo contrário. No livro mostro que o grande engano da personagem narradora é que ela acredita ser íntima do seu companheiro. Não é. Se a motivação dela para ficar casada é a proximidade com outro ser humano, se o casamento para ela é uma espécie de aposta na intimidade, o livro mostra que, pelo contrário, ela fez a aposta errada. Isso é dito claramente no livro. E justamente no trecho em que está citado o filme Hiroshima, mon amour. Este filme mostra dois desconhecidos que se encontram em uma cidade também desconhecida, e rapidamente decidem ir trepar em um hotel.  Nesse hotel, eles trocam confidências, segredos do passado, coisas que jamais falaram para ninguém, sequer para seus respectivos cônjuges. Ou seja, adquirem uma intimidade instantânea, ausente em seus casamentos. No livro, então, fica claro que a opção pelo casamento, para quem procura intimidade, é uma opção no mínimo muito arriscada. Intimidade pode ser conseguida em dois minutos, num motel, com um desconhecido. Este assunto, que é central no livro, me incomoda há muito tempo, como já disse. Eu, pessoalmente, na minha vida privada, fiz a opção por relacionamentos longos. E é isso o que questiono.

4 – Por que fiz essa espécie de postfácio, publicado pelo suplemento Pernambuco, aqui do Recife, em que o personagem narrador é o Paulo.
Primeiro porque havia um pedido – muito claro às vezes, e implícito em outras – para que eu justificasse a ação do Paulo. Vinha principalmente de jornalistas e leitores homens.
E segundo porque achei interessante aproveitar a oportunidade para reforçar um pouco algo que acho importante no livro, e que é que não se trata de uma lição de moral. A ação descuidada de Paulo é, basicamente, contra ele mesmo, contra seus próprios interesses. Os três personagens do livro são muito parecidos, sob este aspecto: nenhum se coloca por inteiro em nada do que faz. E, dizem os psicanalistas, você só tem um jeito de não se arrepender profundamente em sua vida. É tentar sempre fazer o que quer. Assim, mesmo que as coisas não dêem certo, você saberá que não deram certo, acontece, mas você estava perseguindo um desejo seu. Seu, não o da sociedade ou de um outro. O problema é que, primeiro, você tem de descobrir o que você quer. Não é muito fácil. E isso Paulo não fez. Ele agiu a partir de um não-pensamento. Não pensar é a maneira mais fácil de atender ao desejo do outro, e não ao seu. E segundo, uma vez descobrindo o que você quer, você tem de ir à luta. E ir à luta também é coisa que Paulo não fez. Se ele quer a amante, ele terá que viver uma crise inevitável. Se ele quer a mulher dele, haverá outra luta, a de obter com ela um grau de satisfação emocional que no momento ele não tem. Se ele quer as duas e quem mais pintar, ele terá de enfrentar os costumes sociais, e instituir um casamento aberto. Ou nenhum casamento. Seja lá o que ele escolher, se a escolha for uma escolha íntegra, haverá luta, sofrimento, mudanças, crise.
O livro localiza a juventude dos personagens na década de 60, que foi uma época de luta pessoal e política muito grande. Mas ainda com esse passado, é possível supor que Paulo se deixou levar pelo ambiente universitário de sua juventude. Que, mesmo neste período da sua vida, as opções feitas não foram muito coerentes, na medida que, mais tarde, ele não as manteve, pelo menos não integralmente.

5 – Quanto tempo levei para escrever o livro e qual o meu processo de escrita.
Sou lerdíssima. Em 2008, levei o ano inteiro escrevendo uma primeira versão que ficou uma merda e que eu joguei fora. Em 2009, escrevi uma segunda, que, mais ou menos, foi o que acabou sendo publicado.
Meu processo de escrita é de sempre buscar um balanceamento entre a autenticidade e a verossimilhança. Ou seja, entre o realmente vivido e a representação ficcionalizada desse vivido, necessária para que haja um sentido. O vivido, em estado bruto, nunca tem sentido. Você precisa formar uma narrativa para obter sentido.
Todos nós fazemos narrativas sem cessar. A respeito dos outros e a respeito de nós mesmos. Uma narrativa autorreferenciada e incessante, que é o que nos dá a ilusão de identidade.
Aliás, é esta a vingança da personagem narradora. O companheiro, ao traí-la, destruiu sua autonarrativa – aquela em que todos nós nos dizemos sem parar como nós somos legais e tal. Ela devolve o favor. Ao exigir dele a narração detalhada do caso que ele teve com a amante, ela destrói qualquer possibilidade de ele se ver, em sua autonarrativa lá dele, como um cara legal. O livro é uma guerra de narrativas.
Todos perdem. O livro acaba com a impossibilidade de se contar uma história, que é a história básica que deveria ter sido contada e não foi. A história da morte de Antonio Carlos, o marido de N., a amante de Paulo.
Dentro do escopo da pergunta também sempre falo um pouco da minha biografia e dessa posição que eu tenho, frente a dois instrumentos de trabalho artístico, a palavra e a imagem. Nunca pude me dedicar só a um ou ao outro. Sempre os dois. São muito diferentes para mim. E acredito que a palavra é mais importante, é através dela que chego mais perto de um eu que costuma fugir assim que viro para o lado. Mas tenho obsessões visuais, uma necessidade de fazer coisas, como passar uma determinada tinta de um determinado jeito. Ou o lápis. Meus livros se acompanham quase sempre de um conjunto de imagens que costumo manter secreto. Este também. Foram fotos. Uma em particular. Ela não existe mais fisicamente. Aliás, nunca existiu fisicamente, foi uma foto de celular, digital. Mas estava se materializando sem cessar na minha frente, enquanto eu escrevia o livro.
É isso.

 

 

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palestra do evento Viagem Literária, organizado pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo entre os dias 21 e 25 de junho de 2010, nas cidades de Cerqueira César, Itapuí, Pederneiras, Macatuba e Lençóis Paulista.

Vou falar para vocês sobre meu projeto literário.
Isso não quer dizer que, quando sento para escrever, sei de antemão que o que vai ser escrito pertence a um projeto literário.
Não.
Sei que tenho um projeto literário porque ao ver meus livros já escritos percebo que são todos iguais.
Não sei se vocês conhecem um crítico literário e professor de filosofia chamado Juliano Pessanha. É dele o seguinte trecho:
“Mas eu não sofro de auto-observação. A auto-observação implicaria em pensar que algo jorrasse antes para ser depois observado. Haveria uma precedência do gesto e da opacidade inomeada sobre o que é, ali, clarificado. Mas não é assim que me acontece. Os nomes precedem tudo.”
Ele se refere ao fato de nós, humanos, só sermos capazes de entender o que já estiver dentro da linguagem. O que escapa, a gente não entende. Sequer é capaz de descrever, de apreender.
Isso é teoria da significação. Que foi o que estudei. Para você captar alguma coisa, é preciso que essa coisa já esteja, um pouco, presente dentro de sua estrutura de pensamento.
Só que existe, sim, o que escapa.
E são essas coisas de que fala a arte. Qualquer arte. Literatura inclusive. Então, vejam só, a gente fala daquilo sobre o que não dá para falar.
Então a gente mente.
Escrevo ficção – ou seja, minto – e escrevo, ou seja, minto, a respeito da própria mentira.
Porque meu tema, desde meu primeiro livro, é a mentira.
Ou seja, escrevo a respeito do processo de escrever.
Meu último livro, o Nada a dizer, razão de eu estar aqui com vocês hoje, é uma história de adultério.
O cara trepa com outra mulher, a mulher dele descobre, ele diz que se arrepende, blábláblá.
Uma história banal.
Mas é sobre a mentira.

Os livros
Meu primeiro livro de adultos foi o Sete anos e um dia.
E lá eu também falo das mentiras que os personagens vivem para fingir que suas vidas não estão limitadas pela ditadura.
O assassinato de Bebê Martê é a história de uma morte sobre a qual todos mentem. Todos sabem, ou intuem, o que aconteceu, todos fingem que não sabem.
Às seis em ponto conta como uma filha mata o pai sem querer ou talvez querendo, mas isso não dá para dizer. Em todo caso, tanto faz, porque todos sabem, ninguém diz, todos mentem.
Depois do Às seis em ponto, veio Coisas que os homens não entendem.
Esse título é uma citação de Camões, canto V.
“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”

Contar histórias é grande erro, diz o Camões.
É o começo de seu famoso excurso, em que se queixa da vida para o leitor.
Mas o mais importante da citação fica mais embaixo:
Contar-te longamente as perigosas coisas do mar, que os homens não entendem.
As coisas que os homens não entendem.
Aquilo que eu disse lá no começo.
É essa a verdadeira mentira do escritor.
Ele estará sempre falando de algo que não tem como explicar.
E fala isso para alguém que também não tem como entender.
É uma missão impossível.
Porque a gente fala sobre as quebras lógicas.
A gente fala sobre o que não fez sentido.
E tenta dar um sentido.
Nunca consegue.
Eu repito esse drama que é o meu, de escritora, em um eco, dentro do próprio livro que escrevo, fazendo com que um de meus personagens também minta sem parar, para enfrentar o que ele, o personagem, também não tem como entender.
Uma solidão radical, o impulso sem sentido de matar alguém por quem nada sente, nem ódio, nem amor. Ou simplesmente, a falta de sentido total de uma vida banal.
Em geral, o personagem escolhido para encarnar essa mentira que é a minha, de escritor, é o personagem narrador.
Os narradores dos meus livros não são confiáveis. Em geral, são eles que matam, roubam, fazem coisas que não podem explicar. E mentem para você. Não dizem, de jeito algum, o que foi que eles fizeram.
Você que tem de desconfiar do que está lendo.
É minha maneira de avisar. Ó, esse personagem aí, cujo ponto de vista é o que você está sem querer adotando como seu ao ler o livro, ó, esse cara aí pode estar mentindo. Ele não tem como te dizer a respeito da falta de sentido da vida ou da ação dele.
E é isso o que eu – o escritor do livro – está na verdade dizendo para você:
Há uma falta de sentido. É dessa falta de sentido que eu quero falar. E essa é a única maneira que há de falar dela.
O livro que vem depois do Coisas que os homens não entendem é o A um passo.
Trouxe ele para vocês.
Nesse livro, um personagem conta a história de outro.
Pode ser a história verdadeira, pode não ser.
São quatro personagens na festa de inauguração de um apartamento.
Um deles destá atrasado, não aparece. E, no entanto, é o dono da casa.
No final ele aparece.
Se chama Própero. E foi ele que inventou tudo aquilo que você leu até então.
É uma referência à peça A tempestade, de Shakespeare.
A tempestade é uma história de como se inventa uma história.
Isso em 1600.
Ou seja, não estou inventando aqui nada de novo.
Meu método de trabalho é muuiiito antigo.
Na peça de Shakespeare, um cara é exilado em uma ilha deserta.
Só ele e a filha dele.
Há uns seres estranhos que também habitam a ilha.
Aí esse cara, que se chama Próspero, inventa uma tempestade.
E um naufrágio.
No navio naufragado, ele inventa, estão seus inimigos políticos.
Ele os vê chegarem, quase mortos, após o naufrágio.
É sua vingança e é também o seu perdão.
Ele está muito cansado de tudo.
Nada mais faz sentido, essas brigas, esses jogos de poder.
A peça acaba com esse personagem, o Próspero, pedindo palmas à platéia.
Ele quer ir embora. Ele não aguenta mais a sua vida. Ele está muito cansado de tudo.
Ele acha que ficar inventando coisas para resolver outras coisas não tem mais sentido.
É a última peça que Shakespeare escreveu.
Continua tudo igual até hoje.
Como falar da quebra da lógica, da ausência de sentido, daquilo que não cabe na linguagem.
Hoje temos palavras para fingir que sabemos o que é isso: metalinguagem, desconstrução do contrato ficcional, excurso do escritor.
Depois de A um passo, fiz Deixei ele lá e vim.
Mais mentira.
Shirley, a narradora, se apresenta como mulher, mas é um travesti.
O que não faz muita diferença para o que acontece no livro.

Nada a dizer
E chegamos ao Nada a dizer, meu último livro.
Lá no começo citei um trecho do Juliano Pessanha.
Vou repetir um pedacinho daquele pedacinho:
“Mas eu não sofro de auto-observação. A auto-observação implicaria em pensar que algo jorrasse antes para ser depois observado. Mas não é assim que me acontece. Os nomes precedem tudo.”
E aí vem o problema de que eu falo no Nada a dizer.
É um problema bem contemporâneo, e aí sim há uma diferença da época de Shakespeare, e que é o problema da anomia.
Tem um outro cara de que eu gosto muito.
O nome dele é Wladimir Safatle.
É professor de filosofia.
Ele diz que a gente vive uma espécie de patologia social.
Que, com a anomia da contemporaneidade, os nomes – e, portanto, os conceitos – não tem mais um uso claro, hegemônico.
O que é hegemônico é o uso cínico, racionalizado, dos conceitos.
Hoje podemos usar um nome com seu significado original e com o significado contrário, ao mesmo tempo, sem que isso se apresente como uma impossibilidade lógica.
Trata-se de  uma racionalização que é aceita pelo indivíduo – e pela sociedade – como normal e legítima.

Um exemplo, a liberdade
Por exemplo, a palavra liberdade.
Todo mundo aqui não duvida nem por um instante de que sabe o que quer dizer liberdade.
Mas podemos torcer esse significado, cada um, a partir de seus interesses.
Até poder chegar em uma liberdade que inclui a negação da liberdade.
Para você mesmo e para os outros.
É esse o meu livro.
Já disse, uma história banal.
O cara trepa com outra mulher, a mulher dele descobre.
Acontece todos os dias.
Então é assim:
Você, ao trepar, usufrui de uma liberdade que você considera sua.
Sai e trepa com quem bem entende. A vida é sua, raciocina você.
Para manter essa sua liberdade de agir, então, como você quer e como você considera ser seu direito, você é obrigado a estabelecer muitas regras e cuidados, para você mesmo.
Obedecer agendas, cronogramas e esquemas bastante elaborados.
Tudo para defender o que você acha que é o seu direito de liberdade.
Adeus impulsos.
Não, tudo tem de ser muito bem planejado.
Você não pode fazer o que pinta na hora porque é preciso ter cuidado.
Cuidado para manter a liberdade que fica menor a cada sofisticação extra nos cuidados para sua manutenção.
Você não pode seguir pela rua que tem vontade, porque é muito movimentada. Precisa inventar outro caminho.
Não pode ficar o tempo que quiser nos encontros. É preciso que os horários sejam cuidadosamente calculados. Precisa controlar até mesmo seu comportamento, para não levantar suspeitas.
Você precisa de desdobrar para atender às aspirações e exigências das outras pessoas envolvidas, para que elas não fiquem insatisfeitas, reclamem ou, pior, espionem e destruam a sua possibilidade de viver aquilo que você definiu ser sua liberdade.
Só que você não tem liberdade alguma, segue horários, cuidados, faz o que não quer na hora em que não tem vontade. Você perdeu a liberdade.
Isso você.
Agora o outro, a pessoa a quem você engana.
Ao mentir para esse outro, você também retira dele a liberdade que você, no entanto, considera como um direito seu, alienável.
É um direito seu, mas você retira esse mesmo direito do outro.
Porque ao omitir um aspecto importante da vida dela – qual seja, a que ela está sendo enganada por você – você impede que esse outro decida o que quer fazer da sua vida.
Que é um direito que você defende para você, exaltadamente.
Ou seja, o exercício da liberdade se transforma em um exercício de autoritarismo e cerceamento, próprio e alheio.

O autoconceito
Meu livro não é ético.
Quer dizer, não me preocupo com as consequências dos atos de um personagem sobre outro personagem.
Embora essas consequências, desastrosas, estejam lá.
Mas o ponto focal é a construção psíquica de quem mente.
De quem admite a fragmentação psíquica como uma possibilidade viável de vida.
É antes da ética, portanto.
Mais uma vez voltando ao começo.
A questão da auto-observação de que fala Juliano Pessanha.
Ele tem razão, a auto-observação já se dá a partir de uma narrativa prévia que a gente faz para a gente mesmo, sem parar, recorrente.
Você se observa e se nomeia sem parar, mas sempre a partir de um conceito prévio, a partir de um nome que você já se deu, antes, você para você mesmo.
Só que estamos em uma época cínica, conforme diz meu outro citado, Wladimir Safatle.
Então há essa possibilidade nova, típica da nossa época.
Para você manter o seu nome, o conceito que você tem de você mesmo, é preciso um esforço e um processo constantes de autoconstrução. Dá trabalho. Obriga a atitudes, escolhas. Você precisa tomar decisões para manter uma noção minimamente estável a respeito de quem você é, de como você se vê.
Mas temos, hoje, à disposição, um atalho.
Podemos, hoje, sem muito trabalho, manter o conceito que temos de nós mesmos, sem precisar a todo momento fazer escolhar aborrecidas.
E só nos fragmentarmos para acomodar, em pedacinhos do eu que nunca serão um eu inteiro, o que nesse conceito não caberia.
Podemos assim ser ultralegais e fazer calhordices à vontade, porque nas calhordices, nós dizemos para nós mesmos que não estávamos verdadeiramente lá. Ou que não estávamos inteiros. Que foi uma coisa de momento. Uma necessidade das circunstâncias. Nada de muito importante.
O contexto fica mais importante do que o texto, do que a palavra, o conceito.
Nos constituimos como um lugar de impacto. Impactos não produzem conceitos.
Se algum ato executado por nós não se encaixar na pessoa ultralegal que achamos que somos, é porque continuamos ultralegais, e aquilo lá foi um acidente não importante.
E será sempre não importante porque nesse ato não estávamos inteiros.
Voltando ao exemplo que dei com a palavra liberdade:
Paulo mente para a mulher – e para a amante também, aliás – porque ele é ultralegal. E aquilo que poderia ser considerado como não-legal foi apenas uma necessidade para ele se manter ultralegal. Ele mentiu porque precisou, porque não teve outro jeito, porque ele é ultralegal.
Se Paulo falasse com sua mulher que na verdade tinha passado o dia no motel com a amante, a mulher dele ficaria arrasada. E como ele é ultralegal, achou melhor não falar nada. Até porque estar no motel com N. não é importante para ele. Nada é importante.
Quer dizer, ele usa sua autodefinição de um sujeito ultralegal de maneira a se defender de qualquer necessidade de ter de reavaliar esse conceito. Vai ser ultralegal sempre. Ou não vai ser nada nunca. Não vai sentir nada importante, nunca.
É esse o meu livro.
Como é a formação psíquica de indivíduos que levam a vida de forma fragmentada.
O personagem Paulo faz isso com seus sentimentos e também com suas atividades profissionais.
É o que permite a ele evitar conflitos.
Os dele, os internos. Os com a mulher ou com a amante são só a capa aparente daqueles.

O não-dito
O que é mais importante na mentira é sempre o que não é dito.
Por exemplo, o que Paulo jamais diria para ele mesmo é que sobreviver sem estar inteiro em nada é exatamente o que o impede de viver.
É uma das leituras possíveis para o título Nada a dizer.
Paulo não tem nada a dizer.
Há um adendo a esse livro, que fiz dois meses depois do lançamento.
Esse adendo foi publicado pela revista Pernambuco, editada no Recife, em maio de 2010.
Nesse adendo, eu escrevo o que seria a fala de Paulo.
Como seria essa história do adultério, se fosse contada por ele e não pela mulher dele.
O Nada a dizer tem 168 páginas. Esse adendo tem 5.000 caracteres, contando os espaços em branco.
É mais ou menos o correspondente a uma página do livro, ou a uma tela de computador.
Paulo não conseguiria falar mais do que isso.
Ele não viveu intensamente a história dele mesmo.
Ele não estava lá, não por inteiro.
É esse questão que o livro descreve.
Não o problema ético de mentir para o outro.
Mas o problema existencial de mentir para si mesmo.
Já falei, o mais importante na mentira é o que não é dito.
E já falei também que escrevo ficção, ou seja, minto, e que a ficção que escrevo é sobre a mentira.
Então, o principal do livro é o que fica de fora dele.
O tema do livro é a mentira.
A verdadeira história que inventei para falar dessa mentira não é o adultério.
A verdadeira história desse livro é a de um assassinato.
Não está descrito, é apenas aludido.
Quem morre é o marido da amante do marido na narradora.
E quem mata é a narradora.
Sempre, nos meus livros, quem mata é a narradora.
E é claro que ela não diz isso assim, de cara, para o leitor.
Ela mente.
Não há um motivo forte, claro, para esse assassinato.
Em geral, os assassinatos dos meus livros não tem motivo claro para terem acontecido.
Ninguém odeia ninguém. Ninguém quer nada de ninguém.
As mortes são um impulso possível, uma transgressão sempre lá, prestes a acontecer com qualquer um.
É essa a quebra de lógica.
E o resto são as mentiras que inventamos para encobrir o que não dá para explicar.
Então é isso. Meus livros falam de uma verdade que está fora da lógica, fora da linguagem. Falam da transgressão.
É esse o assunto.
E mentira será sempre a manutenção de um status quo.
No entanto, no contexto da criação de uma obra de ficção, é a única maneira de nos aproximarmos por pouco que seja da quebra da lógica – que é o nosso assunto.

 

 



Trabalhos acadêmicos:

 

RAABE, Camilo Mattar. Objetos simbólicos. In: Leituras de literatura brasileira contemporânea, PUCRS: Porto Alegre, 2015, pg. 89-102;

 

NASCIMENTO, Fabio Varela. A constante presença de personagens ligadas ao campo da cultura em narrativas brasileiras publicadas entre 2008 e 2010. In: Leituras de literatura brasileira contemporânea, PUCRS: Porto Alegre, 2015, pg. 123-134;

 

AMABILE, Luís Roberto. O que fizemos de nós? A geração de 1968, quatro décadas depois, em Azul-Corvo e Nada a dizer. In: Leituras de literatura brasileira contemporânea, PUCRS: Porto Alegre, 2015, pg. 149-162.

 

GÓIS, Edma Cristina. Papéis criados, papéis forjados no romance Nada a dizer de Elvira Vigna. In: Diacrítica, revista do centro de estudos humanísticos da Universidade do Minho, # 27/3, 2013. pp. 235-252.

 

GÓIS, Edma Cristina. Cartografias dissonantes: corporalidades femininas em narrativas brasileiras contemporâneas. Tese de doutorado do Instituto de Letras na Universidade de Brasília, sob orientação da professora doutora Regina Dalcastagnè, 2013, 106-120.

 

FUX, Jacques e ABREU, Débora Salomão. O feminino e a psicanálise em Nada a dizer, de Elvira Vigna. In: E-escrita, revista  do curso de letras da UNIABEU, volume 3, 1A, São Gonçalo, R.J., maio de 2012, pg. 67-76;

 

GONÇALVES, Tanay. Uma trilogia de balanços afetivos. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura da UfSC;

 

NEVES, Márcia Moreira. “A Influência de Hesíodo na formação do pensamento ocidental – a marginalização da mulher”. Dissertação de mestrado do programa de pós-graduação em filosofia da Universidade Gama Filho, área de concentração: Ética. Sob a orientação da Prof. Dr. Maria da Penha F.dos S. de Carvalho. Cnpq: http://lattes.cnpq.br/2675048315117251

 

Nada a dizer – excerpt

ELVIRA VIGNA: NADA A DIZER (Brasil, Ed. Companhia das Letras, 2010,  168p.; Portugal, Quetzal, 2013, 176p.; Itália, Gran Vía, 2016, 168p.) – reviews.
– Literary Fiction Award from Academia Brasileira de Letras

internal files:

nada a dizer – reviews

 

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Excerpt (trans. Magdalena Nowinska):

Der 16. November
Am 16. November machte Paulo die Augen auf und schaute zum Lichtspalt, der sich zwischen den beiden Vorhängen öffnete – dem Schwereren, aus grauem Plastik, und dem darüber hängenden Leichteren, aus weißem, durchsichtigen Stoff. Er blieb so einige Augenblicke lang liegen und setzte dann Vorbereitungen in Gang, die dazu führen sollten, dass auch der Rest seines Körpers seinen Augen folgen und das dunkle und kleine Zimmer verlassen würde, welches sich bereits mit Geräuschen zu füllen begann: im Zimmer nebenan schaltete jemand gerade den Fernseher ein; im Korridor ratterte bedrohlich der Wagen des Zimmermädchens; vom Lift kam ein Pling. Paulo begann mit einer theoretischen Grunduntersuchung seines Magens und Mundes. Nein, kein Überbleibsel der Misere des gestrigen Abends, an dem er sich, nach einem Riesensandwich in der Eckkneipe nebenan, beinahe die Seele aus dem Leib gekotzt hätte. Als er dies zu sich selbst sagte, hätte es ihm eigentlich komisch aufstoßen sollen: die Seele? Das wäre doch nur allzu passend gewesen, haha, am Vorabend die Seele los zu werden. Doch derartige Reflexionen waren nicht eben Paulos Stärke. Normalerweise. Und jene Stunde wäre erst recht kein guter Zeitpunkt dafür gewesen. Nach dem Magen kam das Knie dran, das jedoch nicht nur theoretisch untersucht werden konnte. Paulo streckte das Bein aus, beugte und streckte es wieder. Nicht allzu schlimm. Der Schmerz im Rücken hingegen, noch vom Bandscheibenvorfall her, war so wie immer beim Aufwachen: nämlich fühlbar. Im Laufe des Tages würde er sich mit den Bewegungen des Körpers abschwächen. Mit einem jetzt schon einsetzendem Gefühl der Müdigkeit – die nicht zuletzt von der Tatsache stammte, dass er eben Knie, Magen und Rücken besaß – blieb Paulo noch ein wenig liegen, betrachtete die Dunkelheit und hörte dem Ticken des großen, hässlichen Weckers am Nachttisch zu. Das Tick und das Tack, und das Tick und das Tack gaben in all ihrer Vorhersehbarkeit seiner Herzrhythmusstörung Zeit, sich zu stabilisieren. Diese war das einzige Symptom seiner Herzkrankheit, für die er täglich tonnenweise Medizin schlucken musste.
Der Tag hatte begonnen.
Als er später die Copacabana entlang ging, waren sein Körper und seine mehr als sechzig Jahre vergessen. Unbekannte Städte allein und zu Fuß zu erkunden bereitete ihm immer ein großes Vergnügen. Ein noch größeres Vergnügen bereitete es ihm, mit dem Auto oder dem Bus Straßen zu unbekannten Orten zu folgen. Dabei war Rio de Janeiro bis vor Kurzem noch kein unbekannter Ort gewesen. Es ist aber dazu geworden. Vor nicht mal einem Monat war er von hier mit seiner ganzen Familie weggezogen. Und auch wenn die Stadt sich nicht verändert haben mochte, so war er bereits ein Anderer. Zwischen seinen Fußsohlen und dem Bürgersteig spürte er eine angenehme Distanz, wie einer, der nicht mehr dazu gehört.
Da er noch viel Zeit hatte, näherte er sich langsam der Wohnung eines seiner Kollegen von einem seiner unzähligen Jobs. Oder vielmehr: seiner Berufe. Nicht, dass er es so gewollt hätte. In keinem Moment seiner Kindheit hatte er zu sich selbst gesagt: Ich werde das sein, was sich gerade ergibt, werde das tun, war mir gerade in den Kopf kommt. Es hatte sich einfach so ergeben. Immer wieder hat das Leben ihn von einer Schiene auf die andere umgeleitet. Gerade jetzt führte ihn eine solche Schiene, die Avenida Atlântica, zur Wohnung eines Mannes, der Pedro Correa hieß, besser bekannt als Pece; er versorgte sich bei ihm mit Marihuana. Es gab noch mehr Namen zwischen dem Pedro und dem Correa, und auch noch nach dem Correa. Doch das Kürzel Pece hatte in den mit ergonomischen Möbeln gefüllten und mit schweren Teppichen ausgelegten Räumen der PR-Agentur, für die er gearbeitet hatte, witziger geklungen. Also war es bei Pece geblieben. Pece war nun ein kleiner, dicker Mann, der in einer großen Wohnung mit Meeresblick wohnte, zusammen mit seiner Frau und gelegentlich auch mit einem seiner bereits erwachsenen und selbständigen Kinder, die aus welchen Gründen auch immer manchmal beim Vater übernachteten. Pece verkörperte gewissermaßen, wenn auch nicht ganz, Vorbilder der Jugend von Paulo, die allerdings viel faszinierender und romantischer gewesen waren, und auch den Marihuana fröhlicher und gemeinschaftlicher geteilt hatten. Und hätte Paulo eine Neigung zu Reflexionen gehabt, hätte sich auch hier die Möglichkeit dazu ergeben. Denn in der Person von Pece hatte sich die PC, die Kommunistische Partei Brasiliens, für die sich Paulo in seiner Jugend mit Leib und Seele eingesetzt hatte, in einen reichen Rentner verwandelt, der Marihuana zwar weniger genoss als er behauptete; der Stoff bot ihm aber die einzige Möglichkeit, das Gefühl der Nähe zu spüren, wenn er sich nämlich mit dem einen oder anderen seiner Sprösslinge ins Wohnzimmer setzte und ihm einen Joint anbot.
Zwischen Paulo und seinem ehemaligen Arbeitskollegen gab es nie viel zu reden. Sie hatten zusammen gearbeitet – das ergibt nicht gerade viel Gesprächsstoff, außer Hast du Diesen mal gesehen? Von Jenem gehört? Von wem? Von Jenem, aus dieser und jener Abteilung. Ah. Ich weiß nicht, ob du schon gehört hast, er hat nämlich. Man kann es wenden und drehen, sehr viel mehr kommt dabei nicht heraus. Und dann erhebt sich Pece endlich vom Sofa und verkündet das erwartete Ich hol’s dann mal. Bald darauf kommt er mit einem kleinen Paket und einer bereits gerollten Zigarette in der Hand zurück, an der beide ein wenig ziehen und sich dabei damit abfinden, dass nichts außer geografischer und zufälliger Nähe sie verbindet. Beide bleiben eine Zeit lang an die Brüstung des gigantischen Fensters angelehnt und betrachten, schau mal, den unveränderlichen Horizont, der sich nicht verändert hatte seit sie beide, noch jung, unten auf der Straße ganz andere Arten von Leben führten. Angesichts dieses unveränderlichen Horizonts werden sie ihren Joint rauchen in der Hoffnung, dass auch er unveränderlich bliebe. Und dies hilft ihnen sich vorzustellen, viel mehr noch als der Horizont, dass noch immer, genauso wie früher, ein ganzes Leben vor ihnen liegt.
Paulo verlagerte das Gewicht des Körpers von einem Bein aufs andere. Um den Marihuana von Pece zu bekommen, musste er an der Lebenswelt von Pece teilhaben – dem Fenster, den schweren Möbeln, der alten und teuren Wohnung – und Paulo war nicht der richtige Typ dafür.
(Vieles von dem, was hier noch gesagt werden wird, wird sich darauf beziehen, was für ein Typ Paulo eigentlich ist.)
Nachdem er eine Weile also von einem Fuß auf den anderen getreten hatte, ohne sich von der Stelle zu rühren, sprach Paulo endlich aus, was er zu sagen hatte, den Triumphsatz, die Apotheose, den zweiten Grund seines Besuches:
“Eine Frau geht mir neulich auf die Nerven, will unbedingt mit mir ins Bett.”
In der multinationalen Firma, deren Angestellte beide einige Jahre lang zusammen waren, war Pece in jeder Hinsicht immer viel erfolgreicher als Paulo gewesen. Es kam dort immer darauf an, ein guter Verkäufer zu sein. Marketing halt. Und mit seinem Ring, seinen glatten und zutiefst mainstreammäßigen Unterhaltungen hatte Pece, hatten eigentlich alle Kollegen von Paulo, beim Gespräch mit Kunden, beim Lachen und beim Schulterklopfen immer wesentlich mehr Talent bewiesen als Paulo.
Haha, lachte Pece. Und klopfte Paulo auf die Schultern.
Fügte dann hinzu, etwas ernster:
“Ja, wenn sie allzu zudringlich werden, gehen sie einem wirklich auf die Nerven.”
Der Joint war zu Ende und Paulo fühlte sich besser, seine Ellenbogen hatten sich in einer Nische der von der Meeresluft ganz zerfressenen Fensterbank eingenistet. Schon immer hatte er sagen wollen, was er gerade gesagt hatte – und nun drehte er den Satz genüsslich auf der Zunge herum. Bei den gemeinsamen Mittagessen, zu denen sich die Gruppe jeden Donnerstag im Restaurant unten traf, erwähnte immer wieder der eine oder andere Kollege eine Affäre. Es gab kaum eine Woche, in der nicht auf irgendeine neue Affäre angespielt wurde, was mit kurzen Sätzen kommentiert wurde, ohne Nachfragen, und ohne konkrete Details, die dann aber durch Gelächter, Schnalzlaute und das Hochziehen von Augenbrauen ersetzt wurden. Nur Paulo hatte nie eine Geliebte gehabt. Prostituierte, das kam schon vor, damals, als er noch mit eben dieser Gruppe in andere Städte reiste, Brasília, Recife, und vor allem São Paulo. São Paulo, wo er gerade hin gezogen war. Und die Tatsache, dass er jetzt in São Paulo wohnte, verschloss selbst vor seiner Phantasie – zumal Prostituierte in der Praxis keine reelle Präsenz mehr in seinem Leben darstellten – das reichhaltige Angebot an Clubs und Huren der Rua Augusta, nur einen Block von seinem neuen Zuhause entfernt. Es war Paulo nämlich wichtig, dass seine kleinen Eskapaden, wie er das gelegentliche Vögeln zu nennen pflegte, nie in der Stadt stattfanden, in der er gerade wohnte. Auf diese Weise fühlte er sich sicherer. So war es auch einfacher, die Dinge zu trennen, und sie auch vor sich selbst zu verbergen.
Zum ersten Mal würde er sich also eine Geliebte nehmen.

A pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café, 2010; 2013

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – A pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
primeira edição pela ed. Miguilim em 1983; segunda edição pela editora Positivo em 2010; terceira edição pela editora Positivo em 2013.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

em catálogo

 

 

capa-apontinhamenorzinha

 

 

 

início do texto:

“Era uma vez três passarinhos.
Num dia de sol como este o ninho deles caiu.”

Problemas com o cachorro?, 1982; 2010

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Problemas com o cachorro?
primeira edição pela ed. Miguilim em 1982; segunda edição pela ed. Moderna em 1998; terceira edição pela ed. Positivo em 2010.
– menção Altamente Recomendável da FNLIJ;
– prêmio Melhor Obra Infantil, da APCA

 

 

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar

vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

em catálogo

 

 

início:

Era uma vez um lugar lá longe onde morava um menininho.
Esse menininho tinha um problema.
“Já sei qual é o problema” – diria seu pai, se seu pai estivesse escutando esta história. “O problema dele é que ele fica inventando que seu cachorro fala. E cachorro não fala.”

 

Às seis em ponto – críticas

ELVIRA VIGNA: ÀS SEIS EM PONTO (Companhia das Letras, 1998, 128p.) – uma seleção de críticas do livro publicadas na imprensa
– prêmio Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance.

 

 

arquivos internos de ‘às seis em ponto’:
trecho do livro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jefferson de Andrade – Estado de Minas, seção Livros, 22/11/1998

Ano passado, ao comentar O assassinato de Bebê Martê, de Elvira Vigna, começamos dizendo que existem escritores que realizam seus romances buscando o que pode determinar uma atmosfera. Ao finalizar o comentário, sinalizamos que o livro era um esboço para novas tentativas da autora, mas que o caminho escolhido era um longo e árduo percurso.
Ainda no ano passado, Elvira Vigna foi premiada no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte com o romance Às seis em ponto. No Brasil, muitas vezes, os livros são premiados e mesmo assim não são publicados imediatamente. Mas ela teve a sorte de ver seu novo livro editado logo, em 98. Como a leitura do anterior está viva na lembrança, mais fácil fica determinar a diferença fantástica entre uma e outra obra.
Elvira Vigna mereceu o prêmio. Às seis em ponto atesta seu crescimento como escritora. Ela domina a história e a narrativa da primeira à última frase. “Haroldo, eu estive em Miracema sexta passada. Eu sei que ele já sabe. O papelzinho.” – a descrição da vida de Maria Teresa surge entre confissões, lembranças e uma história forte.
Como a história está centrada em torno da pintura de Velásquez, diríamos que as pinceladas da escritora para resumir situações e descrever anos de ocorrências são extremamente agudas e definitivas, perfeitas. Surgem algumas histórias paralelas na narrativa como se fossem contos inseridos no romance. E todos giram em torno de uma só personagem – a mulher.
Um comentário infeliz de quem escreveu as orelhas do livro faz com que o leitor inicie sua caminhada pela obra com uma falsa impressão. Sugere-se que a narradora, Maria Teresa, mente e é cínica. Nada disso. Em tom confessional, com o ressaltado estilo elíptico, Elvira Vigna narra a história de uma mulher e seus relacionamentos com o homem. E o homem primeiro da vida de Maria Teresa é seu pai. Na verdade, o pai é o primeiro homem na vida de todas as mulheres. São relacionamentos humanos muito fortes que não comportam mentiras, no máximo frases dissimuladas para empreender fugas. Às seis em ponto entra para a galeria dos importantes livros brasileiros. Prêmio maior é a sua leitura. E Elvira Vigna é de fato uma grande escritora nacional.

 

 


 

Às seis em ponto, 1998

ELVIRA VIGNA – ÀS SEIS EM PONTO (Companhia das Letras, 1998, 128p.)
– prêmio Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance.

arquivos internos de ‘às seis em ponto’:
críticas

 

 

 

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Capítulo 1:

Não estou bem. O perfume me enjoa. Fome também. E os camparis. E a Baixada, cuspindo ônibus, carro velho, kombi, de supetão na frente do carro, soltando fumaça negra, o carro no máximo a sessenta, às vezes menos, porque Haroldo é prudente e freia antes, bem antes, e não ultrapassa quando não dá. Na dúvida ultrapasse. Mas ele não, não sai de trás da fumaça mas se eu fechar a janela piora.
É bem simples. É só contar.
Haroldo, eu estive em Miracema sexta passada.
Eu sei que ele já sabe. O papelzinho.
O papelzinho balança pendurado no guidon, não é guidon, é direção. Coisas que ficam. Guidon, eu repito minha mãe nas suas palavras tão finas, aprendidas tardiamente e por isso mesmo colocadas nas frases como jóias — das que ela comprava uma depois da outra, em prestações. E que depois observava, virando e revirando a jóia e o português, a concordância, a pronúncia nos esses, erros sempre à espreita, imperfeições a serem banidas, inadmissíveis carvões em diamante. Uma vez ela foi operada. Deitada na cama, perguntou à enfermeira que entrava: a senhora agora vai fazer minha toalete? E a mulher ficou olhando para ela, sem entender. Aí entendeu. Ah! raspar os pentelhos? É, é agora. E saiu rindo — toalete! — para pegar a gilete.
Haroldo, sexta-feira passada eu levantei às seis em ponto.
Um bom título para uma história: A mulher que levantava às seis em ponto.
E é também por isso que não estou bem. Cansaço, acordei cedo, seis horas é cedo. Se eu pudesse desgrudar os olhos das casinhas com seus tetos abaixo do nível da estrada, varal, antena, árvore, luzes que se acendem, garotos tardios empinando ainda suas pipas, eu olhava para o relógio — deve estar na hora do uísque — mas não posso fazer nenhum movimento. Qualquer movimento e tudo se precipita, perguntas, olhares e vômito. O papelzinho balança preso no guidon e eu sei, sem olhar, sem me mexer, que seus números estarão repetidos. Também não é necessário que eu olhe Haroldo para saber: as duas mãos na direção, o olhar na estrada, a velocidade constante sempre que dá porque às vezes não dá e na Baixada nunca dá e eu tenho a impressão que tanta constância não mais dará, mesmo depois, o carro estacionado, a sala, nós dois de pé na sala.
Haroldo, foi médio, nós.
Mas esta história não é para ele, esta faz parte de outro repertório, um que é apresentado e reapresentado em salas, outras salas, frescas, com plantas, almofadas, mulheres de saias compridas, chá.
Hoje eu acordei às seis horas.
E não pensei em como seria essa minha ida à Miracema que acabou sendo não minha ida mas nossa ida, minha e de Haroldo, à Miracema. Eu acordei e tornei a fechar os olhos e não pensei em Miracema, pensei em ontem. E pensei: foi médio.
A mulher que achava médio (seria o título).
Acordei às seis e eu sei que acordei às seis porque acordo todos os dias às seis, mas apesar de saber disso confiro, mesmo assim, os numerozinhos verdes – marcianinhos afinal, do jeito mesmo que sempre nos disseram que existiam. Um certo prazer em me dizer: ainda seis. E em não conseguir dormir outra vez, mesmo assim.
Torno a fechar o olho de qualquer maneira porque gosto, quando acordo, de fazer uma espécie de contabilidade do dia anterior: devo começar este novo dia triste? alegre?
E a contabilidade de hoje, minhas amigas de saias compridas, foi a seguinte: foi médio.
Olho para o horizonte de onde poderiam surgir vultos conhecidos, andando como nuvens deslizam. E quando eu digo isso: foi médio, lábios se apertam, olhares me fuzilam e a mais sincera — Lúcia? Vera? — berra histérica que eu sou doida, completamente doida.
Porque, é verdade, depois da primeira que, como sempre, foi muito boa, ainda consegui extrair uma segundinha aos ganidos despudorados antes de desabar sem fôlego – um dia desses eu fico definitivamente velha – em cima do peito dele.
Consenso geral verbalizado pelas nuvens no horizonte: eu não dou valor ao que tenho.
E estivera eu em uma dessas salas frescas, com plantas, almofadas, e uma de nós levantar-se-ia declarando categórica: vou esquentar a água do chá. E, ao passar por mim, esbarraria violenta no suporte do vaso na parede, no vaso e não em mim, porque faltou coragem de me empurrar, me unhar, homem é tão raro e eu fico esnobando.
Contamos tudo de nós, nós, nessas salas. Dizem que nós, mulheres, somos assim, contamos. Dizemos que sim, é verdade, contamos tudo. Mas não é bem assim. Contamos histórias. Não é a mesma coisa. E são histórias específicas, pertencem não bem a nós mas a estas salas, saias, samambaias, chá ou vinho branco. Um homem presente e as histórias não aconteceriam.
Haroldo, eu não vou contar.
Fiz um erro. Mais de um. Mas vou me ater ao erro de hoje, está sendo um erro eu neste carro, Haroldo na direção, o papelzinho na direção, a Baixada ao meu dispor e eu sem conseguir prestar atenção à Baixada, perdendo portanto a oportunidade de prestar atenção à Baixada, gosto tanto de, andando de carro, ficar olhando tudo. Não estou dirigindo, poderia olhar, seria tão bom deixar o olhar na Baixada ao longe, tão longe, a distância ideal: a do carro que passa na sua velocidade hipnotizante e repetitiva mesmo quando não constante, os ritmos diferentes se repetem afinal – igual a estar parado mas longe. E ao longe a Baixada. A vida inteira neste equilíbrio de uma velocidade que não se move, e a Baixada.
Acidentes de trânsito, diz a placa, você também é responsável. Cinto de segurança – seu amigo do peito, Luminosos Vitória, Pneus Michelin, Assembléia de Deus – culto às sete.
Haroldo pode escolher entre Penha, Região Serrana e Brasília mas ele segue reto. Atenção ao cruzar a pista mas ele não cruza. Bob’s, Benfica Pneus, Stoptime Hotel.
Eu sei qual foi meu erro de hoje. Foi o mesmo erro de sempre, o erro lagoa da conceição.
A mulher que era uma lagoa da conceição.
Quando eu acordo, hoje de manhã, abro os olhos, fecho os olhos e torno a abrir os olhos. Entra uma luz pela cortina. A luz vem por trás dos pelos do peito de Haroldo e eu fico parada olhando os pelos que a luz torna dourados e a poeira do ar que a luz também torna dourada. Fico muito quieta pensando que o universo acabou e só resta isso: uma luz, pelos e poeira que, para existirem, precisam de olhos que por sua vez só estão ainda vivos porque há a luz, os pelos e a poeira e que todos – olhos, luz, poeira e pelos – estão com muito medo, imobilizados pelo medo. Porque por um nada que seja, um movimento mesmo que só em pensamento, e tudo termina em um nanossegundo, incluindo os peixes, grandes, brancos e também imóveis, igualmente evitando qualquer movimento, lá no fundo sem luz do mar, os peixes sendo a antimatéria desta matéria matinal. Eu poderia ficar assim para sempre. E saber que eu efetivamente posso ficar assim para sempre me enche de um outro tipo de medo, este bem real. O antídoto é, claro, eu me mexer. Mas se me mexo, detono o oizinho, meu benzinho, cafezinho, sorrisinho. E então, hoje de manhã, achei que eu ainda merecia um tempo.
Me enganei.
O telefone toca.
Eu penso: não é possível.
Não outra vez.
E é neste momento que me dá o primeiro – de uma série que, temo, ainda não acabou – mal-estar do dia. Porque na segunda-feira passada a empregada da minha mãe disse alô com sua voz aguda mais aguda ainda, como é possível alguém ter uma empregada com uma voz tão aguda.
E este alô, como hoje de manhã, veio não eram nem sete ainda.
E ela disse, na segunda-feira passada, que quase teve um troço. Quase tive um troço dona Tequinha. E emendou sobre como ela não teve nenhuma culpa de ter chegado tão tarde na noite anterior, uma desgraça dessa, dona Tequinha, e ela não estava em casa para acudir mas que eu não sabia o que ela passara, imagine eu que a colega dela tinha tido um problema e aí. Mas que eu ainda nem sabia o que tinha acontecido com meu pai e ela me aborrecendo com os problemas dela. Mas que ela chegou muito tarde de fato, embora não tivesse sido culpa dela, e como era tão tarde ela foi direto para o quarto dela e por isso ela nem viu e só naquele dia de manhã então viu.
E estava me telefonando porque dona Clotilde tinha pedido para ela telefonar.
Então, quando o telefone toca, hoje de manhã, eu fico achando que eu vou ouvir a empregada com sua voz aguda num paroxismo recorde de agudez dizer outra vez: uma desgraça, dona Tequinha.
Fica a pergunta que desgraça teria restado. Minha mãe pendurada no teto.
Minha mãe pendurada no lustre pelo pescoço. Que mau-gosto, Maria Tereza. Que coisa de mau-gosto. Imagine se eu iria ficar pendurada no lustre, as pernas penduradas. E depois a troco de quê? Não fiz nada.
Lady Macbeth em montagem pós-moderna, os lustres da casa de Miracema são de formiplac.
Me ocorre que eu teria uma impossibilidade técnica de produção: em formiplac os lustres se quebrariam com o peso do corpo pendurado e, por conseguinte, da lógica contemporânea, a mesma que nunca atrapalhou Shakespeare.
Mas mesmo sem montagem, Lady Macbeth tem razão. Não fizemos nada. Nenhum de nós, nem mesmo ele, o morto.
Haroldo, sexta-feira passada eu estive em Miracema e não fiz nada.
O Hotel Palmeiras, o Hotel Luxemburgo, o Capri Motel e Hotel — suítes, hidromassagem, e o Las Vegas Motel — R$15,00 — o amor ao alcance de todos, entram e saem da minha janela, em fila indiana. Mas hoje de manhã, ao contrário de agora quando nem os olhos, Haroldo ainda se movia.
Hoje de manhã o telefone toca, o universo volta a existir, e Haroldo se mexe na cama ao meu lado. Não são nem sete e ele levanta a cabeça, perplexo, me olhando como se fosse eu a fazer trim.
Ele pula da cama levando o lençol para se enrolar, pudico, mas eu chego a ver uma fatia de bunda branca flutuando em direção à minha estante, os lençóis sendo pardos, branca só a bunda.
Haroldo já foi um cachorro, começo, me dirigindo às nuvens do horizonte, saias laranja – que vão ficando vermelhas – se agitam e eu escuto as vozes de minhas amigas: lá vem a Teca outra vez, cachorro, imagine, um homão daquele.
O homem que começou sendo um cachorro.
Domingos pela manhã eu acordo e faço sempre tudo sempre igual: café, cama, gata e planta. Saio para andar e ando. Canso e sento, um coco.
Em um domingo, eu ando, canso e sento. No meio-fio. Passa o Haroldo, devagar, língua para fora, sem a menor pressa. Pára na minha frente e fica me olhando, as orelhas em pé mas não muito, a cabeça grande mas não muito, de um branco meio sujo, fica lá, só me olhando, simpático, solidário. A dona puxa papo.
Chama-se Haroldo, o cachorro. E está procurando noiva.
Dia seguinte, dez horas, na minha sala, a secretária bate o telefone, o senhor Plocó, que está fazendo um trabalho na empresa, precisa falar comigo um instantinho.
Ele entra, me estende o cartão, H. Plaucowzski Consultoria em Telecomunicações. Fica parado na minha frente, sem pressa. Eu tento ler o nome. Sorri simpático: pode me chamar de Haroldo. E fica lá, me olhando, a cabeça ligeiramente inclinada, os cabelos grisalhos mas não muito. Tenho vontade de perguntar se está procurando noiva mas quem fala primeiro é ele: está procurando um lugar para colocar o cabo dele.
Quase que eu acerto.
Os trins continuam, imperturbáveis, quando Haroldo, hoje de manhã cedo, já de volta da estante e sem bunda aparente, sem nada aparente (ele toma, pelo visto, mais cuidado com o nu frontal do que com o nu dorsal), me estende o telefone para que eu atenda, sempre tão cavalheiro. Meu alô sai forte, defensivo, para o caso de alguém perguntar se é da borracharia da esquina ou se for outra vez — nem sempre ficção é ficção — a voz da empregada da minha mãe, alô, é dona Tequinha? uma desgraça, dona Tequinha, imagina a senhora que.
Me ocorre que, caso seja de fato a empregada da minha mãe outra vez, eu teria a liberdade de ser absolutamente sincera, por uma vez pelo menos: dona Tequinha? sê-lo-ei eu, a dona Tequinha? Eu não tenho a menor idéia de quem é dona Tequinha, minha senhora, deve ser engano. Dona Tequinha será a mulher que está nua na cama pegando o telefone de um homão parado na frente dela? As unhas de uma dona Tequinha deveriam estar pintadas de vermelho, acho. E talvez ela fosse um pouco gorducha.
E tem mais: quando digo que uma dona Tequinha — esta, aquela, a das unhas pintadas de vermelho e um pouco gorducha e nua na cama — pega no telefone e o encosta em sua boca ainda com restinhos do baton da noite anterior, estaremos falando de telefone-telefone? acho que sim, não tenho paciência para metáforas, não antes das sete da manhã mas é o Beto.
Devolvo o telefone para o Haroldo e digo, é o Beto.
Haroldo atende, diz sei, sei, olhando para mim e acho que foi aí, bem aí, que eu comecei a errar. Entrei neste momento — estava distraída, seis da manhã — no meu papel de lagoa de conceição.
Porque Haroldo diz, sei, sei, não tem importância, filho, claro, claro – e olha para mim e foi nessa hora que eu deveria ter tido um olhar de distanciamento brechtiano bem cafajeste, é impressionante como o que foi considerado cultura, ontem mesmo, vira cafajeste num piscar d’olhos. Mas meu olhar foi, ao contrário, solícito, o que foi?
Eu sempre digo que o Beto precisa de uma surra. Camisa social branca de bolso, noiva virgem, meia preta, colégio militar em regime de internato ou emprego em fábrica, seis da manhã o apito uóóóó, todo mundo na fila do refeitório para ganhar o pão com manteiga e polenguinho, o copo de café com leite, fábrica de concepção empresarial moderna, dá café da manhã para quem chega cedo e o filho do Haroldo é músico.
Música new age.
Very cool, man.
Tem 16 anos, brinco na orelha e me olha de igual para igual, bem dentro dos olhos, me chama de A Tereza, fico me sentindo uma corda. Ele não tem nem vestígio de cerimônia. Os sábados são passados com o pai. Com o pai, não. Com o sampler, o processador de sinal, o vocoder, o digital audio tape ao qual ele chama de o meu (meu-dele) velho dat, o seqüenciador, o minidisc Sony, todos computadorizados, que Haroldo comprou, depois da separação, uma isca.
Beto vai puxando as teclinhas de volume devagar para cima, a mão firme, lenta, o rosto concentrado, o olhar fixado em mim impassível, cada milímetro para cima são vários milhares de decibéis a mais. Faz isso toda vez que eu, estando lá, tento alguma conversa. Um refinamento sádico. Se esse garoto chegar à idade adulta vai dar um bom amante.
Hoje o Beto não vai poder, me informa Haroldo.
O Beto está chegando naquela hora na casa da mãe dele. A festa foi ótima. As pessoas adoraram. Ele é o máximo. E agora vai dormir porque mais tarde vai ter outra festa e ele tem de passar o som com a banda dele até no mais tardar o final da tarde.
E então Haroldo diz que se eu quiser, ele pode vir junto.
Não.
De jeito nenhum, não se preocupe, o que é isso, não tem sentido, imagine, você só vai se aborrecer, descansa aí, aproveita para resolver o que mesmo? qualquer coisa, pode deixar, eu vou bem, que besteira, são só duas horas, mas o que é isso, sei o caminho de cor, deixa de ser bobo.
Mas não adiantou, eu já tinha iniciado a derrapagem com meu olhar não brechtiano quando Haroldo falou sei, sei, no telefone com o Beto.
Era melhor ele vir junto porque eu estava nervosa, disse ele e acrescentou: é natural.
E sorriu.
E deu uns tapinhas de leve na minha cabeça e disse boniiiiita e coçou atrás da minha orelha e me estendeu meu biscoitinho favorito de ração: galinha com atum.
Não estou nervosa.
(Noto minha voz um pouco alterada.)
Mas, Tezinha, vou ficar aqui à toa.
A mulher que tinha muitos nomes.
Não quero.
Assunto meu — e soei um pouco mais dura do que precisava mas desta vez funcionou.
Então está bem, Tirica, está tudo bem.
E ele pergunta, ressentido, se eu voltava a tempo do japonês ou se eu queria que ele desmarcasse por mim.
Ele e eu sabemos que ele pergunta isso apenas para que fique bem claro o quanto ele é gentil e disponível e como eu sou agressiva não querendo que ele venha junto comigo à Miracema. Ele sabe perfeitamente que dá tempo para ir e voltar – como está dando aliás, acabamos de passar o pedágio, R$ 2,38, obrigado, e o pau levanta, que prático, por míseros R$ 2,38 – e ainda receber o japonês.
Quando eu marquei com o Mr. Nakayama, é verdade, eu ainda achava que iria a Miracema só no domingo. Disse que não haveria problema de ele deixar a mala na minha portaria e passar antes do vôo para apanhar. Depois minha mãe ligou dizendo que no domingo ia ter a missa de sétimo dia, uma surpresa, já que não fôra a banheira por três dias sequer enterro teria havido, mas cremação, meu pai não sendo uma pessoa religiosa.
Então neste caso, não é mami, com missa não valerá à pena, não vamos ter tempo de conversar. Melhor eu subir no sábado.
E transferi minha ida à Miracema para o sábado mantendo o japonês, daria tempo, o japonês sendo mais um motivo e tudo isso eu expliquei para o Haroldo.
Eu vou mas não demoro — a vontade de não ir.
O japonês embarca à noite para Tóquio, eu vou, eu volto, mais um motivo para a visita ser rápida porque o dia, hoje – eu disse – vai ser pesado.
Você fica, eu disse, vou porque não dá para não ir, já não fui ao enterro.
O momento da ocorrência deve ter sido há uns três dias, declarou o vizinho que é médico, chamado às pressas, calculando por alto e fazendo o favor de assinar, de pijamas, o atestado de óbito.
Não precisou chamar legista, o enterro foi imediato, três dias.
A mulher que fazia uma coisa espantosa.
Um começo de história é dizer que minha mãe fala com estranhos no telefone.
Haroldo, minha mãe fala com estranhos no telefone.
A pessoa liga, é engano, em vez de dizer, é engano, quando é homem e quando a voz é bonita, minha mãe puxa papo.
Ela comentou isso comigo uma vez, faz algum tempo, no meio de uma outra conversa. Comenta en passant e naquele momento, ela contando, a voz afinou na imitação inconsciente da voz que ela faz quando fala com estes estranhos no telefone, alou, uma voz de garotinha, coquete. Ela me diz isso, eu digo, ah é, rio polidamente, e o assunto muda. É engraçado como coisas sem importância ficam às vezes tão importantes. Poucos dias antes de meu pai morrer ela volta ao assunto pela primeira e última vez. Diz que sem querer, dessas coisas que a pessoa faz sem saber por quê, ela tinha deixado escapar no meio de um desses papos com desconhecidos, o nome certo de Miracema e também o nome da rua da casa dela e que ela estava nervosíssima. Mas com minha mãe nunca se sabe, ela — ao falar isso — parecia estar nervosíssima, mas podia ser só que ela estivesse fazendo o papel de nervosíssima. Mas ela disse: estou nervosíssima.
E acrescentou um comentário muito estranho: estava nervosíssima porque tinha medo de que o desconhecido, de posse dessas informações, pudesse localizar a casa e fazer alguma maldade. Mas o quê, mami?
Ela não sabia dizer que maldade e enveredou por uma lista de coisas ruins que acontecem hoje em dia todos os dias, basta ler os jornais, Maria Tereza.
E eu, não naquela hora e não quando meu pai morreu e não mesmo hoje durante todo o almoço, até chegar a hora do café que eu, ela e minha irmã tomamos e que foi, a cada minuto tenho mais certeza disso, um café de despedida, eu não atinei com a estranheza de ela me dizer que temia alguma maldade de um desconhecido. Só no final da tarde, já quase na hora de ir embora, na hora do café, olhando para as paredes, para os objetos empilhados, para o nada, só no café, olhando o nada para não olhar para minha irmã e minha mãe, só então fui me dando conta. O sujeito verdadeiro da frase às vezes é o advérbio. Para uma história que começou do jeito que começou, com um engano, só podia acabar mesmo com outro igual.
Não faz mais do que poucos minutos que eu percebi que Haroldo adivinhara da minha ida anterior à Miracema. Na hora fiquei coberta de suor frio. Agora, lembrando do café no silêncio daquela sala que eu acho que nunca mais verei, o suor volta. Está escuro lá fora, se eu fecho o olho não faz muita diferença. Então fecho. Abro. Promoção, suíte com sauna a R$ 14,00. Meu ombro dói, eu teria que me mexer um pouquinho. Tento, devagar. Acomodo as costas no banco e agora puxo o corpo um pouco para a frente, vai melhorar, meu estômago é um buraco mas vai melhorar, Ponte sobre o rio Sarapuí.
Quando minha mãe me liga a semana inteira, por isso e por aquilo, para que eu desse opinião sobre isso e aquilo e mais sobre a mudança quando eu nunca dou opinião sobre nada, quando ela me liga só para dizer que está tudo bem e para perguntar se está tudo bem, quando ela liga até para dar o relatório de quem ligou e de onde, para dar os pêsames, sempre terminando o telefonema com a pergunta sobre a que horas eu vou no sábado a Miracema, e se está certo de eu ir, eu fico pensando, porque — me digo — conheço bem minha mãe, eu fico pensando que tanta ansiedade para garantir que eu de fato vou a Miracema neste final de semana só pode ser porque ela quer me dizer:
Imagine, que bobagem a minha, aquilo que eu comentei com você, sabe, dos telefonemas, depois me lembrei, nem o nome certo da rua eu na verdade disse, eu me enganei, não sei onde estou com a cabeça, esquece isso.
Mas ela não tocou no assunto.
Haroldo costuma deixar o carro dele na rua, em frente ao meu prédio, nas noites em que ele passa comigo. Hoje de manhã chegamos ao acordo: ele não viria — e eu entro na garagem para tirar meu carro.
Tiro meu carro de ré, Haroldo me esperando lá fora para um último ciaozinho, benzinho, beijinho, mas só escuto a freada. O outro carro vinha rápido, cedo ainda, rua vazia, e não, eu não olhei pelo retrovisor.
A batida é leve mas suficiente.
O motorista, um rapaz de seus 30 anos, sai gingando o corpo, fazendo gestos de indignação, caras de que assim não é possível. Não tenho paciência para teatro de homem.
A mulher que não tinha paciência
Abaixo o meu vidro, nunca ande com o vidro abaixado, e digo que ele tem toda a razão: o senhor tem toda a razão. É um raio paralisante. Interrompe os gestos, me olha sem compreender. Mas como!, e a ceninha já treinada à perfeição da indignação masculina frente à mulher barbeira no volante. Ele escolhe não ter ouvido e continua: assim não dá, minha senhora.
Eu repito, o senhor está coberto de razão.
Mais um olhar de incompreensão e eu começo a achar que o rapaz tem um problema qualquer, de fato, em seu sistema cognitivo. Tento ser bem clara: eu pago.
Pego no porta-luvas um dos meus cartões de visita com o logotipo da firma.
Meu cartão. Agora estou com pressa mas amanhã o senhor me liga, vamos juntos a uma oficina, eu pago.
O rapaz olha o cartão com expressão em branco e eu começo a ficar exasperada. Haroldo está ao lado, a chave do carro dele já na mão. Antes que eu comece a gritar, ele interfere e voz de homem, como sempre acontece, é mais bem compreendida e neste caso também. O rapaz passa a se dirigir a Haroldo e me esquece.
Olha, bem uns trezentos, viu (pausa para ver a reação de Haroldo que é nenhuma). No mínimo. Pintura nova, feita mês passado, sabe como é.
Haroldo sabe como é e diz: está bem, trezentos.
Mas o rapaz fica inseguro diante de tanta facilidade.
Mas eu queria de repente resolver logo, não que eu esteja desconfiando, que é isso, mas a gente resolve logo e não se aborrece.
Haroldo acha que isso também está bem. Pega o talão de cheques do bolso.
Olha, acho que bem uns quatrocentos.
Haroldo enche o cheque sem responder, dá para o rapaz e, se inclinando na minha janela, diz: chega para lá. O rapaz está segurando o cheque com as duas mãos, tentando entender como foi que ganhou quatrocentos reais.
Às vezes eu canso.
Não é para cansar, eu sei. Consegui aprender pelo menos isso na vida: todo mundo perde mas quem cansa perde mais rápido. Mas às vezes eu canso. E então eu chego para lá.
Nestas horas em que, menina boazinha, eu obedeço e pronto, costumo dizer que eu sou a lagoa da conceição. Não conheci uma lagoa da conceição de todas as lagoas que conheci. Mas imagino. Uma lagoa católica, de xale e missal, as águas sempre paradas, o sol bate mas mal esquenta a superfície, nenhum ruído, nem de grilo.
Eu chego para lá.
A mulher que era uma lagoa da conceição.
Eu chego para lá, a bunda engordando a cada segundo, um desenho animado, mal consigo me arrastar, penosa e deselegantemente por cima do câmbio, até o banco do carona onde me deposito com um suspiro. O problema não é só a morte do meu pai, o Haroldo, os meus muitos nomes, mas é também meu sobrenome. Na semana passada meu ex-marido tornou a se casar e não me convidou para o casamento e eu sempre achei que nós éramos diferentes, que eu não era uma ex-esposa mas uma amiga, a melhor amiga, a companheirona, a mulher mais importante da vida dele, a única, aquela que na hora da morte, quando perguntam quem realmente foi importante na vida dele ele fala que sou eu, eu, a que sempre, em qualquer circunstância. E agora isso, seremos duas madames Souza. Soiza. Ela não parece ter senso de humor, acho que ela não vai entender a graça de ser chamada de madame Soiza. Menos mal, eu serei a madame Soiza e ela será a madame Souza. Do contrário, seríamos duas madames Soiza. Eu e uma mocinha de uns 20 anos. E até aí tudo bem, estamos separados há muitos anos, eu e meu ex-marido, mas eu não participei do nascimento desta segunda madame Souza-Soiza, algo na vida dele de que eu não participei.
A mulher que era uma completa imbecil.
E então nesta semana que eu não digo a mais confusa da minha vida porque minha vida é pródiga em semanas confusas, mas uma das mais, com certeza, com tanto para pensar, passei boa parte do meu tempo pensando em como, por que, meu ex-marido foi fazer isso comigo.
Então foi por causa disso tudo que eu cheguei para lá.
E foi por causa disso tudo também que não pensei em nada quando Haroldo parou no posto de gasolina, o de sempre, o que tem a melhor gasolina, e que fica na esquina, para encher o tanque, olhar o óleo e ver os pneus. Ele tomou nota pela primeira vez no dia dos litros de gasolina colocados e a quilometragem correspondente no papelzinho do guidon, que ele me força a ter. E naquela hora, o começo da estratificação do meu erro lagoa-da-conceição, só me ocorre dizer o que ele já sabe:
Depois a gente acerta tudo — eu me referindo ao dinheiro da gasolina e ao dinheiro do rapaz da batida do carro.
E Haroldo sorri, ele não tem nenhuma dúvida de que eu vou acertar tudo, não sou mulher de ficar com o rabo preso por causa de dinheiro de homem, quantas vezes ele me ouviu dizer isso, e ele engrena a terceira com um ar de que agora a viagem começa. E, sim, ele olhou por todos os retrovisores do mundo antes de entrar na pista. E, sim, ele sabe que eu só não passo o cheque imediatamente porque eu enjôo andando de carro e se eu me abaixar, pegar o cheque, encher o cheque, que dia é hoje, eu vou enjoar na certa, embora, agora sabemos todos disso, eu iria acabar enjoando da mesma maneira, se não na ida, na volta.
Então naquela hora, o dia começa, eu olho pela janela igual como faço agora e tento não pensar em mais nada e muito menos no que eu vou fazer em Miracema. Porque eu enjôo às vezes mesmo andando a pé, mesmo parada sem fazer nada, então o melhor é fingir que não sou eu que estou ali, e eu finjo agora que não sou eu que estou aqui, tem uma moça, aqui dentro do carro, olhando para o anoitecer na Baixada.
A moça que passou em um carro
Eu, durante um período da minha vida, ficava pensando que quando meu pai morresse eu enfim iria poder olhar para ele, eu digo, olhar bem, com calma, para cada detalhe e então eu iria saber que cara ele tinha. Pensava que algo, talvez uma curva para baixo de seus lábios finos e duros, uma nesga esquecida aberta do seu olho azul frio, o formato, quem sabe, de suas bochechas não mais sangüíneas mas cerúleas, algo iria preencher os hiatos que existiam na minha história. Ele morto eu iria olhar até me fartar sem ter medo de ter de volta o olhar dele.
Isso foi por um período.
Depois eu mesmo comecei a compor, de longe, sem olhar, porque por muitos anos, mesmo quando eu ia a Miracema, eu via meu pai só de longe, ele na porta de seu quartinho dos fundos, me acenando, já meio entrando, como que apressado. Então, depois, eu fui compondo eu mesmo uma cara e ficava pensando que, quando ele morresse, eu iria conferir. Saber, por um pescoço enrugado, por uma mão manchada cruzada em cima do peito, se o que eu tinha composto estava certo. Mas não deu, eu sou impaciente. Fui antes. Fui fazer a averigüação antes mesmo de ele morrer, ele estava demorando para morrer.
Não foi só impaciência. Foi falta do que fazer também, que quando minha vida pára eu tento fazer com que ande.

O que deu para fazer em matéria de história de amor, 2012

ELVIRA VIGNA : O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR (Companhia das Letras, 2012) – trecho & vídeo

– finalista do prêmio São Paulo e do Jabuti.

 

 

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críticas

 

 

 

 

 

 

 

 

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vídeo de apresentação de quatro minutos.

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1
Chega um cheiro de cigarro da mesa ao lado. Aspiro. Não fumo, nunca fumei, se me perguntarem, não gosto de cigarro, não perguntam, já sabem. No entanto, gosto. E podia parar por aqui. Porque é nisto que penso. Nessas histórias que parecem uma coisa e são outra. Se forçar a barra, chego no suspense, no será que. Por exemplo. Espero Roger. Já sei. Oi. Oi. E aí. Tudo bom. E quando afinal ingressarmos no pós-introito, ele vai falar do Guarujá. De eu ir ao Guarujá. E eu vou dizer que não quero. E no entanto, quero.
E quero porque preciso da história. Precisamos. Digo, não eu e Roger. Apenas. Mas todos. Um suspensinho para, uma vez resolvido, acharmos que tudo está resolvido. E pior. Suspensinho resolvido e o ahhh subsequente embora todos – eu e o resto do universo – saibamos: suspense nenhum. Adeus suspense. Já sabemos tudo. Antes. Antes de acontecer já sabemos. Não é nem o vai dar merda. Não vai dar. Já é. Acho que é coisa de pós-guerras. Assim no plural. Não mais guerras, mas batalhas pulverizadas em cada momento de todos os dias. E é isto o que eu quero/não quero. Não mais o suspense. (Porque matou, viu, digo logo: matou sim, é o que eu acho.) Mas a história. Já que, sem nada além de batalhas corriqueiras, todas iguais, só nos resta inventar: interesses, palpitações – e sentidos.
Invenções modestas, é bom que se saiba. Porque depois do nine-eleven dos gringos, tão cinematográfico, tão mas tão, devemos ter a humildade de nos recolher a produções menores. Guarujá pois.
Invenções menores e parciais, vou avisando. Quase que não, as invenções. Porque depois de tantos superpoderes, um em cada esquina, é o que funciona: o contar apenas, como se fosse uma história. Mesmo quando não é. Ou quase não. Ir me contando, como se não fosse eu, como quem fala dos outros.
No caso, os outros são Rose, Gunther, Arno.
Os três pais de Roger.
No Guarujá, eu indo ao Guarujá, como quer Roger, poderia aperfeiçoar a história que quero contar e que não é bem uma história, mas duas. E cujos nomes não são bem estes, só parecidos. E, contando-os, o que me vem por trás destes nomes, talvez me conseguisse contar, eu, a quem não vou dar um nome.
E não sei o final. Ao começar, não sei como acabo, como ficarei, eu. É meu suspensinho particular.
Este final que não sei qual vai ser, quando vier, se vier, será meu pagamento, aquilo que espero receber pela minha estada por lá. O “lá” que, sim, conheço. Um apartamento fechado por muito tempo, e que estava caindo aos pedaços mesmo antes de ficar fechado. E cujas tomadas nunca souberam o que é internet. E numa praia deserta: é agosto. Meu pagamento será, assim espero, um quase ponto final na minha história, a real, com Roger. E aí, a partir deste quase ponto final, como um dominó ao contrário, uma vez este quase ponto final obtido, tudo se levantará ordenadamente na minha frente. O quase ponto final uma vez obtido, trrrrrrr, um barulho das peças se levantando, em ordem, tão em ordem, ah, uma ordem, sequencialmente, ah, uma sequência, até a maiúscula inicial. Ficarão lá, os bloquinhos de pé, perfeitamente visíveis, inteligíveis, formando um caminho claro, veja só, acaba aqui, começa portanto ali. Fazendo o maior sentido.
E é um quase ponto final, e não um ponto final inteiro, redondo, indissolúvel, perfeito, porque a história, por mais que eu (me) imponha uma Rose, um Gunther e um Arno há muito extintos, nunca poderá ser só minha. Só contada por mim. Dela, meu controle é bem relativo. Pois me faltará sempre o conluio dos outros. Um “é sim”.
“Foi sim! Foi assim mesmo!”
Não tenho como obter de antemão uma coisa dessas. Me garantir. Por mais que de fato eu não invente. E mostre: aqui, ó, a foto. Aqui, veja, o documento. É verdade. Juro. Roger, por exemplo, nunca aceitou minhas tentativas anteriores de dominó. Ainda que eu mostrasse: mas vem cá, pensa comigo.
Me escudo em uma vantagem, ao contar. Histórias são recebidas, hoje, sempre com um meio ouvido. Todos meio ouvintes que, mal se iniciam na narrativa, já pensam em outra coisa. Claro, vontade, sim, eles têm, de umas pequenas férias da vida lá deles. Umas pequenas férias de si mesmo, quem não quer. Mas entram (entramos) sem acreditar muito em nada. Tentam (tentamos) uma meia-entrada com nossa atenção a meio-pau em uma seminarrativa sobre o que, mesmo? Ah, sim, vidas alheias que talvez sejam as nossas. Fazem isso (fazemos) para tentar recuperar, à distância e sem grandes esforços, a vida. A nossa. Mas sem acreditar muito que vá de fato funcionar. Eu sei. É igual para mim. Mesmo em se tratando de vidas – estas, as contadas – com certificado de simplicidade, pois se são contadas. Apresentadas frase após frase, elas ficam, as vidas, se não lineares, pelo menos sequenciais. Necessariamente mais simples que as que de fato temos. Mesmo esta aqui. Nem um pouco simples. E que é a que de fato tenho, mesmo quando, o dia cheio, não a conto, nem para mim.
Não me queixo desse meio ouvido que me espera. Já disse. É uma vantagem. Preciso desse meio ouvido em vez de ouvidos inteiros, pois sequer sei como começar.
Posso dizer que Roger está atrasado. Claro. Sempre está. Um começo ready-made.
Ou posso começar pela década de 60. Década de 60 me parece melhor. Década de 60 explica sempre muita coisa (embora o atraso de Roger também explique muita coisa). Década de 60 explica os petrodólares que surgiam como mágica, o início da ditadura militar, esta outra mágica, também bem besta. E é mágica porque as coisas não mais começavam, duravam e acabavam. A ditadura, por exemplo, começou em 64, e depois outra vez em 68. E acabou sem acabar, de tão aos poucos. É o que eu dizia, batalhas diárias, anônimas, quase sem existir. Em vez de guerras.
E década de 60 também é bom por causa da trepada no chuveiro.
Me parece um bom começo, trepadas no chuveiro.
E esta foi uma trepada no chuveiro enquanto as pessoas tomavam cerveja na sala, e diziam aos cochichos, em risadas, mas será que eles estão trepando no chuveiro? Estão. Estávamos. Mas não é nem certo eu falar sobre isso agora, de entrada, porque ainda não sei, neste momento, como podem ser entendidas essas coisas daquela época. Como posso entendê-las, eu, hoje. Preciso criá-las, recriá-las, para saber ou, melhor, para achar que sei.
Quem dirá saber como é trepar no chuveiro enquanto pessoas tomam cerveja na sala, o disco da Elis Regina. Quem dirá saber como é escutar Elis Regina com o braço levantado e aquela cara de animadora de festa infantil que, não, desculpe, mas tinha. Porque as coisas mudam.
As coisas não mudam. Justamente.
Porque poderia contar a história de Arno, Rose, Gunther, Roger – e, em menor escala, da mulher de Gunther – no pós-guerra da década de 40, 50. Como poderia contar a minha, na primeira pessoa, no final da década de 60, início da de 70, a trepada no chuveiro, as pessoas bebendo cerveja na sala. Entre uma e outra, uns vinte anos de diferença. E – acho eu aqui e agora, antes de começar – bem poucas outras diferenças. Por exemplo, em ambas as histórias, nada de tão bombástico. Porque as coisas mudam, as coisas não mudam, mas bombástico definitivamente não é mais uma possibilidade. Mesmo quando o foram. Ao contar não mais o temos. Bombástico é, já disse, o nine eleven. Bombástico, agora, só em inglês.
Perdemos o bombástico, nós. Nosotros.
Até o mar, quando sobe, o faz devagarzinho, ressaca por ressaca, ninguém de fato percebe. E tornam a consertar a calçada. O apartamento do Guarujá não é de frente para a praia. Só perto. Mas dá para escutar a ameaça surda, contínua. Daria. Ninguém escuta. Acostumaram.

 

 

 

 

 

 

Textos na íntegra

Textos na íntegra para uso pessoal e acadêmico.

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coluna ‘morrendo de rir, minha vida de intelectual’
só besteira
sete anos e um dia
‘n’ de nada disso (esse texto, publicado aqui em português, tem copyright em espanhol – ver detalhes em biografia)

 

 

 

 

 

 

Morrendo de rir, minha vida de intelectual foi uma coluna mensal, iniciada em novembro de 2015 na revista pessoa.

Sete anos e um dia é meu primeiro romance para adultos, publicado em 1988.

Só besteira é um texto de humor em blocos curtos, feito especialmente para esse site  no início dos anos 2000.

‘N’ de nada disso é uma comedinha em três atos e dois atores, publicada no livro  Narrar San Pablo, pela editora do Mackenzie em 2014, mas cujo esquete original data dos anos 1970 e foi publicado pela revista A Pomba.

 

 

Aqui, uma crítica do Só besteira:

Prosa Online, jornal O Globo;  em 27/04/07; Guilherme Freitas

Os Novos Escritores Brasileiros (N.E.B.) são a entidade mais secreta que existe. reúnem-se periodicamente em uma espelunca de índole duvidosa chamada Repolho Cultural, de onde observam o movimento no Centro Cultural, do outro lado da rua. Observam, mas nunca entram. Também não gostam de ver seus nomes nos jornais.”Ter nome em jornal é falta gravíssima. Significa expulsão imediata. Quiçá la muerte”, alerta no romance “Só besteira” a autora…
Sob pena de colocar sua vida em risco, publicamos aqui seu nome: Elvira Vigna. Não que seja a primeira vez que o nome da Elvira aparece na mídia: autora de outros seis livros, teve os últimos quatro publicados pela Companhia das Letras, entre eles Deixei ele lá e vim, lançado ano passado. Mas este Só besteira não pode ser encontrado nas livrarias. Foi escrito “especialmente para a internet”, segunda a autora, e está disponível apenas em seu site: elvira.vigna.com.br (na seção “Fora de catálogo”)
O título adianta as duas características principais de Só besteira: desprentensioso e auto-irônico, o romance é antes de tudo um divertido exercício de provocação literária. O fiapo de trama acompanha a rotina de uma narradora neurótica que divide seu tempo entre a composição de um romance em eterna mutação e as sessões de duas entidades muito semelhantes a grupos de auto-ajuda: Os N.E.B., onde os escritores partilham as angústias da vidinha literária, e o Vivenda e Aprendenda, caótica organização de mulheres mal-amadas que se reúnem para falar mal do mundo, dos homens e das outras.
Os relatos das reuniões dos dois grupos dão a Elvira a chance de atacar em duas frentes. Com o Vivenda e Aprendenda ridiculariza clichês da literatura “feminina” (a lista dos cursos oferecidos pelo grupo inclui Sistema de Visão para Dimensionamento da Coisa Preta em Tempo Real; Câmera Hiperbárica, Recorde em Produndidade e Depressões: Tiro Tudo Daquele Puto etc.). Com os N.E.B. ela caçoa da vida literária contemporânea: “Apesar de todos os cuidados, não é difícil reconhecer um N.E.B. Em geral carregamos nossa obra embaixo do braço e somos muito sentimentais. Damos estes livros para qualquer um que nos trate com o mínimo de simpatia. O guarda de trânsito que faz ponto em frente ao Repolho, por exemplo, já tem uma estante cheia.” E não sobra só para escritores. “Hoje guarda-trânsito, amanhã editor, nunca se sabe.”
A crítica também ganha seu quinhão de farpas. A narradora, que se define como “homem de letras”, guarda em um arquivo de computador uma coleção de frases feitas, jargões e clichês literários para usar em caso de emergência, como quando elogia o próprio texto pelo “pleno aproveitamento da intertextualidade com desvio semântico dos sintagmas.”
Só besteira é cheio desses comentários metanarrativos: personagens enaltecem o romance por sua “estrutura moderna” e pela forma como a autora “deixa aparente todo o processo de gênesis”. É como se Elvira tentasse embutir no texto sua própria defesa deixando-o imune a crítica, ironizando de antemão qualquer tentativa de análise mais profunda. Mas às vezes esses comentários são reveladores, e que parece tentar justificar a fragmentação da narrativa: “O problema é que eu acho chato. A falta de transcendentalidade da expressão burguesa, mais um casinho, uma traminha, será sempre mais uma historinha.”
A falta de apreço por “traminhas”e “historinhas” gera um romance que vai sendo escrito praticamente diante do leitor, enquanto a narradora se desdobra para incluir no enredo elementos como um anão extemamente sexualizado e um coronel com tendências assassinas, em tentativas cada vez mais desesperadas de dar rumo à história. Mas também esses esforços são desmoralizados: “Enfim, crime, sacanagem, crítica política: as coisas melhoraram muito por aqui.”
Quase no fim do romance, porém, num rompante de simplicidade, Elvira deixa de lado toda a parafernália literária pós-tudo para arriscar uma definição singela de literatura: “Então é isso, espero que vocês tenham gostado. Escrevi esses textos não sei por quê. (…) Não entendo quase nada do mundo. Por isso escrevo. Quem sabe lendo depois, entendo.” Mas uma observação tão sincera e desarmada não escaparia da consciência vigilante da narradora, que logo manifesta uma visão amarga, ainda que cômica, do futuro dos escritores: “Pois é esta nossa meta, minicontos, microtextos, pílulas poéticas, palavras-ícones, e por fim design das letras do alfabeto. Não todas, apenas as mais comuns, para não cansar.”

 

 

A orelha da edição original de Sete anos e um dia:

Sete anos e um dia – apresentação; Aloísio Branco; setembro de 1987

Elvira Vigna, já conhecida por seus livros não convencionais destinados ao público infantil, estréia, aqui, com total segurança no romance. O estilo ágil, que foge à rigidez gramatical ou à lógica insossa, revela-se cheio de inventiva, presenteando-nos com surpresa sobre surpresa. O rumo inesperado da narrativa ou de certas frases alternadamente nos coloca dentro deste ou daquele personagem, sem reservas. A linguagem é repassada de informalismo e de um coloquial que no entanto jamais incidem em qualquer lugar-comum.
Ficção legítima, Sete anos e um dia expressa ao mesmo tempo um pedaço vivo arrancado do Brasil real, um Brasil que experimenta mudanças sociais e políticas através de processo quase sempre doloroso. O personagem Caloca, com rasgos de otimismo ingênuo, pronto a exercer o escapismo por meio da mais espontânea fantasia, é bem o retrato do brasileiro típico ou mediano. Essa face do Brasil verdadeiro, de dias recentes, é vista pela ótica de um pequeno grupo de pessoas; vítimas de algum modo do esquema represssivo e com as quais os leitores certamente se identificarão. Não menos expressivo é Pedro, propenso mais do que ninguém a conceituar e verbalizar, intelectual preso a formalismos, máscaras de sua verdadeira identidade; e Tânia, figura um tanto enigmática, com a biografia marcada por um trauma irremediável; e sobretudo Catarina, mulher moderna, liberal e liberada, voluntariosa e decidida, mesmo quando envolvida pela emoção mais arrebatada. Convivendo na mesma casa-símbolo, são todos eles seres de carne e osso – cabeça, estômago, sexo – captados em sua mais recôndita intimidade, com seus sonhos e pequenas misérias cotidianas, momento a momento seres carentes, cheios de expectativas, vivenciando anos de espera, às vezes de maneira intensa, às vezes inconscientemente.
Este livro de Elvira Vigna apresenta ainda um desfecho inesperado, embora de absoluta coerência com o desenvolvimento da história. Um desfecho pungente, comprometido com o que há de mais lidimo e inquietante na verdade humana: a solidão e a busca do outro.

 

 

 

Imagens

ELVIRA VIGNA: IMAGENS

 

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críticas

 

 

último trabalho publicado e seu spin off:

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como acontece com frequência, esse projeto ‘toallhinhas’, da rose, teve um spin off.
uma capa pra um ex-professor da uemg.
e como acontece, também com frequência, é pelo spin off que me apaixono.
aqui, o projeto original fala de uma visão minha dos textos da rose:
rose é dura, pode mesmo ser brutal.
mas tem em si todas as toalhinhas rendadas do mundo, uma antiguidade.
o spin off é um girassol de costas pro sol.
fiz sem notar o que fazia.
fiz sem notar o quanto esse girassol era eu.

Deixei ele lá e vim – críticas

ELVIRA VIGNA: DEIXEI ELE LÁ E VIM (Companhia das Letras, 2006, 152p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

 

 

 

 

Lucas Peto (graduando em psicologia na Unesp-Assis), por email, 02/10/2012

terminei de ler o ‘deixei ele lá e vim’, é, levei uns meses por conta de coisas da faculdade.
enfim, em alguns partes eu me senti meio bêbado, talvez tenha sido por conta da próprio ambiente que cercea as
personagens somado à sua estética de capítulos curtos e sentenças curtas misturadas a parágrafos mais longos, meio proust e graciliano ramos! foi minha impressão.
o que mais me pegou foram os momentos de ‘vou’! sabe?! vou, sem saber para onde, mas vou! mesmo que depois, por conta de barreiras e lareiras e pesares e bares, ela não vá, o momento do ‘VOU’ me pegou!
é que, enquanto lia o seu, reli o ‘a situação da classe trabalhadora na inglaterra’ do engels e ‘berlim, 1945: a queda’ do beevor e essas duas obras, uma pelo seu posicionamento crítico, e outra pelo período narrado, me impeliram a perceber as cidades, seu fluxos, suas discrepâncias, as desigualdades, as mazelas, enfim … as linhas que compõem as cidades, de uma outra forma. e, por isso, é que o movimento do ‘vou’ me pegou. o ‘vou’ do ônibus, o ‘vou’ dos pedestres, o ‘vou’de todo mundo, sabe?!
em uma passagem, o engels diz: ‘para que as duas correntes da multidão que caminham em direções opostas não impeçam seu movimento mútuo – e ninguém pensa em conceder ao outro sequer um olhar’. uma das músicas da minha banda favorita diz: ‘pessoas em todas as direções sem trocar nenhuma palavra, sem tempo para trocá-las’. entende? esse moinho diário brutal do capitalismo que esmaga todo mundo.
não expliquei nada, eu sei, mas, enfim, o que me pegou foi o ‘vou’! eu fico me perguntando, às vezes, quando tô na rua ou no ônibus, e tal, eu me pergunto: ‘para onde vai essa formiguinha? será que ela também só quer ir?’
obrigado pelo livro, pela dedicatória, e me perdoe pela demora!
abraços!

 

 

 

Luiz Paulo Faccioli – jornal Rascunho, seção de críticas e resenhas, edição de fevereiro/2006

Copying Beethoven de Agnieszka Holland, no Brasil rebatizado de O segredo de Beethoven e em cartaz nos cinemas, traz uma história fictícia que retrata os últimos anos da vida do compositor. Anna Holtz, brilhante e imodesta aluna do conservatório de música, é contratada para passar a limpo (ou “copiar”, como indica o título original) a partitura da Nona Sinfonia à medida que o mestre vai concluindo a orquestração em páginas garatujadas e indecifráveis a copistas menos treinados. Estamos a quatro dias da estréia de sua obra mais célebre, quando um Beethoven iracundo e quase totalmente surdo sobrevive de uma glória passada e desacreditado pela elite vienense. Numa cena emblemática, o genioso compositor recebe de Anna as primeiras transcrições e descobre uma ligeira “correção” que ela ousou fazer em sua música. O trecho em questão aparecia todo ele escrito em Si maior, mas a copista decidiu alterar um dos compassos para Si menor, dando-se ainda ao desplante de explicar à fera boquiaberta com tamanha audácia que a intenção dele era ter feito isso mesmo, mas se confundiu na hora de fazê-lo! Indiferente à tempestade que se aproxima, Anna vai ao piano, toca o trecho como o encontrou e diz que daquela maneira comporia Rossini ou Boccherini. Toca de novo, agora modulando para Si menor o compasso da discórdia, e là voilà: uma quebra na seqüência natural de forma a criar uma expectativa e conseqüente tensão, retornando em seguida ao porto seguro da tonalidade original. Segundo Anna, essa seria a autêntica e genial solução beethoveniana. (É possível que toda Viena tenha ouvido a explosão, mas a passagem com a fantasiosa intervenção atribuída à aprendiz consta de fato do último movimento da Coral.)
Eis aí o conceito que se quer resgatar aqui: a previsibilidade, no enfoque da criação artística. Imagine-se uma escala em que, num de seus extremos, esteja o que o cérebro humano interpreta como natural e previsível segundo um ordenamento-padrão e, no extremo oposto, o paroxismo de nada vir na forma ou lugar esperados. Os diferentes graus dessa escala são pontuados de acordo com o quanto há de ruptura em relação a uma ordem preconcebida ou lógica. Nos dois extremos a tensão é nula; para que ela exista é necessário, não apenas o imprevisto, mas também que o cérebro possa reconhecer o padrão atrás da ruptura. Aplicando-se a sabedoria popular a este caso, é mais uma vez a dose que diferencia o remédio do veneno, sendo que a arte quer distância de ambos. Obviamente, há que se considerar também a evolução: o que um dia foi o inesperado, o tempo se encarregará de tornar previsível – e o caso do Si menor constitui um exemplo perfeito.
Há um outro aspecto interessante relacionado à mesma idéia: a tendência do leitor/espectador é acreditar sempre e sem restrições em tudo o que o narrador conta. De resto, o “confiar desconfiando” pode até servir como um objetivo a ser perseguido pelo ser humano, mas não é essa a atitude mental natural. No contexto da ficção, um narrador não confiável é por si só um elemento dos mais imprevisíveis. E, justamente por esta razão, um desafio constante à perícia do autor.
Em seu mais recente romance, Deixei ele lá e vim, Elvira Vigna constrói uma narrativa que foge do previsível valendo-se de um narrador não confiável. Como se pôde ver até aqui, é uma aposta alta. Primeira conseqüência: trata-se de um livro difícil de ser resumido sem que se corra o risco de antecipar num descuido aquilo que competiria ao leitor ir descobrindo paulatinamente. Restrinjamo-nos, pois, ao mínimo necessário.
Quem narra a história em primeira pessoa é Shirley Marlone. Desempregada, ela mora num cômodo alugado na favela do morro do Vidigal carioca e está decidida a mudar-se para São Paulo. Na véspera de viajar, vai à procura da amiga e vizinha Meire, que trabalha no restaurante de um hotel cinco estrelas à beira da praia, levando consigo uma grande e inusitada soma em dinheiro. Poucos são os hóspedes e estranhas as criaturas que gravitam em torno deles numa suposta baixa temporada. Shirley decide jantar no restaurante enquanto espera que acabe o expediente da amiga, quando então se junta a elas uma terceira personagem, Dô, e as três resolvem passar a noite no hotel, instaladas sob um caramanchão de frente para o mar. Bebem vinho, fumam maconha, jogam conversa fora, dormitam. Na manhã seguinte, Shirley descobre ter havido uma morte e chega ao cúmulo de não ter certeza se foi ela ou não a responsável. Segue-se a investigação do caso, cujo desfecho está longe de ser conclusivo. A partir desse tempo presente, várias passagens da vida da protagonista-narradora são contadas em flashback, trazendo à tona situações que só reforçam as muitas incertezas da história. Aliás, incerteza e imprecisão são recursos que pautam toda a narrativa e continuam instigando após o ponto final.
Com uma nítida queda pela ficção policial, consenso formado a partir de seus quatro títulos anteriores voltados ao público adulto, Vigna acompanharia a tendência atual de subversão do modelo clássico. Mas o que existe de policial na trama de Deixei ele lá e vim limita-se à morte misteriosa e a alguma ação para elucidá-la. O grande movimento é de uma ordem diversa da esperada: o leitor logo vai se dar conta de que importa menos descobrir a identidade do assassino do que desvendar quem é de fato a narradora – este, sim, o verdadeiro enigma. Parte do mistério se resolve, ainda que de maneira cifrada, na última página, e por um detalhe que bem poderia explicar a personalidade errática de Shirley. Fica-se tentado a voltar ao início e refazer a leitura depois de resolvida a charada, pois de um golpe a história ganha um novo sentido. O pulo-do-gato traz, sem dúvida, um charme adicional à trama. Ele chega a ser insinuado em alguns momentos antes do final, quando a percepção do leitor está habilmente desviada para outro ponto e não consegue flagrá-lo. Ainda que cenário, personagens ou mesmo a linguagem não coincidam, há aspectos que chegam a evocar o espanhol Manuel Vázquez Montalbán do belo e provocante Quarteto.

Vacilo inicial
Vigna demonstra segurança e técnica suficientes para sustentar uma narrativa que apresenta, pela própria concepção, um alto grau de complexidade. Isso não evita que o livro abra de maneira algo confusa, custando alguns capítulos para afinar e dizer enfim ao que veio. Não se trata obviamente de uma questão secundária, uma vez que ela tem o poder de afastar na arrancada um leitor menos paciente. Mas o vacilo inicial acaba diluído e entra na conta da atmosfera de incerteza à qual a autora se propõe. Vencido o obstáculo, a mão é firme, própria de quem sabe aonde e como quer chegar.
Chama a atenção a naturalidade com que Elvira Vigna compõe seu elenco com tipos quase todos tirados da escória social, estendendo-lhes um olhar sem preconceito ou compaixão. Ela não fica alardeando aos quatro ventos de onde eles vêm ou quem eles são, muito menos lastimando a sorte que não tiveram na vida, e o leitor acaba por esquecer esses detalhes. Aliás, a autora quer que a desvalia de seus personagens fique exatamente nisso: um mero detalhe da história.
O discurso é seco, construído com frases curtas, muitas vezes sincopadas, onde os adjetivos raramente são bem-vindos. Antes de sugerir a crueza própria de quem pretende atingir o leitor no estômago, a economia resulta num texto limpo e direto que dispensa filigranas e artimanhas estilísticas. Há uma evidente preocupação com a eufonia dentro de uma estética contemporânea e muito bem adequada ao universo retratado. O pragmatismo da linguagem não exclui a possibilidade de surgirem belas metáforas, como a que aparece no trecho em destaque.
A capa de Deixei ele lá e vim, assinada por Kiko Farkas sobre foto de Mônica Vendramini, traz uma imagem suburbana que diz muito do enredo: uma janela aberta para o interior de uma peça onde se vê uma cortina, um eletrodoméstico, um quadro, uma cadeira, uma figura humana. Na perspectiva da fotografia, nenhum desses elementos aparece por inteiro: meia janela, um pedaço da cortina, outro de um provável freezer horizontal, a quarta parte do encosto da cadeira, a cabeça e um dos ombros de um ser indefinido e de costas. Pode ser tanto um boteco de periferia como uma cozinha improvisada. Ou, o mais provável, uma casa de único cômodo. Do solitário personagem não se distingue idade ou cor; presume-se que seja uma menina pela pequenez e pelo que parece ser um decote feminino. Tudo combina nesse ambiente do qual se vê apenas uma parte e quase que por uma fresta. Haverá um detalhe escondido – um Si menor – que a seu tempo mostrará não ser o quadro tão óbvio como se pensou à primeira vista.

 

 

Sérgio Rodrigues – NoMínimo, seção Todo Prosa, 28/12/2006

Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna, outro bom livro de 2006, dialoga com a tradição do romance de modo inteiramente diferente: idiossincrático e sacana. Mais madura que Galera, a autora está claramente interessada em demolir – e não em erguer – o barraco ficcional. Exige participação tão ativa do leitor, trabalha com tantas elipses, pistas falsas e puxadas de tapete, que em mãos menos habilidosas sua prosa correria o risco de se tornar ilegível. O mais bacana é isto: não se torna nunca. Pelo contrário, para resistir à escrita de Elvira só mesmo sendo um crítico brasileiro médio, desses que ignoraram a pequena jóia que, já a partir do título, é Deixei ele lá e vim. (O Todoprosa também frangou o livro, cerca de três meses atrás, mas tem o álibi da falta de tempo; terminei de lê-lo há duas semanas, e espero que sua inclusão nesta lista seja redenção suficiente.)

 

 

 

Elias Fajardo – 0 O Globo, caderno Prosa e Verso, 23/12/06

Não se trata de um típico romance policial. Tem um crime, é claro, mas o mais importante não é descobrir quem matou, e sim a verdadeira identidade da protagonista.
Um enredo desse tipo poderia facilmente desandar, tornando-se incompreensível e sem sentido. Mas não é o caso do livro de Elvira Vigna: ela tem mão firme, escreve bem e consegue prender a atenção do início ao fim, mesmo sem usar a forma clássica da narrativa policial. Ao longo do texto, vai espalhando pistas, como nesta frase: “Não tem como saber que tramo mortes a três por dois e que são sempre a minha, mesmo quando não sei disso”. Mas as pistas podem ser falsas e cabe ao leitor imaginar o resto, montar ele próprio o quebra-cabeça.
Não existe também um detetive esperto, e nem é necessário.
À autora interessam sobretudo os mecanismos obscuros, o fio tênue que separa a verdade da mentira. O que foi mesmo que aconteceu? Quem está mentindo, afinal? Seria a protagonista uma prostituta de certo nível cultural, ou é uma roteirista escrevendo na primeira pessoa como se fosse uma prostituta? A ambigüidade pode ser boa conselheira desde que acompanhada da verosimilhança. Ou seja, o personagem pode ter um comportamento esquisito ou se expressar de maneira não usual, desde que tenha tal carga de verdade que possa convencer o leitor.
Assim sendo, os verdadeiros heróis desse livro são os deserdados e desprotegidos: uma lésbica nordestina que trabalha num grande hotel, as prostitutas que freqüentam as rebarbas desse hotel, os homens que transam com elas, os seguranças, o menino que recita dados históricos sobre o morro do Vidigal, na Zona Sul do Rio. São seres extremamente fragilizados pela marginalidade e, ao mesmo tempo, fortalecidos por ela. O que lhes dá força para subir o morro a pé quando não têm dinheiro para pagar a Kombi é o mesmo sentimento vital que os faz amar, praguejar, se drogar, se divertir e até, eventualmente, ser solidários no meio da barra pesada da batalha pela sobrevivência. Um olhar compassivo sobre tais seres não significa idealizá-los, mas, sim, tentar se aproximar daquilo que eles realmente são.
Chama a atenção o fato de que uma escritora de classe média consiga descrever este universo como se estivesse sendo visto de dentro.
Não existem jargões sociológicos ou antropológicos sobre os personagens: apenas suas aflições, angústias e pequenas alegrias.
E se trata de literatura feminina, no sentido de refletir uma sensibilidade capaz de enxergar o lirismo no meio da degradação, do vômito e da miséria. 

 

 

Eric Novello – Aguarrás, 03/11/06

O universo literário está cheio de interpretações. Os escritores mastigam o mundo ao seu redor e cospem os resultados no livro. Elvira Vigna é uma escritora peculiar nesse sentido, pois consegue pincelar o fato por trás da interpretação, dando às suas histórias um caráter de realidade raramente visto em outras obras. Mais do que estatura e corte de cabelo, as personagens têm vida, passado, presente e futuro para povoar o livro, sendo tão (ou mais) orgânicos quanto eu e você.
Seu estilo, para quem curte rótulos, é o policial sem polícia. O mistério não nasce da pista largada no chão, da saliva na guimba do cigarro ou do mágico teste de DNA. A densidade narrativa surge do interior dos personagens, do eu incontido que anseia marcar seu território mas decide manter para si (e para o leitor) os próprios mistérios. O policial aqui é o da motivação do crime. O instinto primordial substitui o circo detetivesco já desgastado nos livros e seriados.
“Segue com sua bunda em direção ao caminho das pedras. Chamo por ela. Pára no meio de um cinza quase opaco. Corro até ela. Dou mais um abraço. Ela ri, também me abraça. Depois, o que lembro é de voltar e pensar que tenho que fazer algum plano. É bom fazer planos. Nunca funcionam, mais distrai”.
Quando escreveu O assassinato de Bebê Martê, Elvira criou um dos grandes personagens da literatura brasileira. Riquíssimo, Bebê Martê evocava uma aura de sedução e perversidade inerente a todo ser humano que se encara diante do espelho. Em Às seis em ponto, Elvira armou em torno de As meninas de Velásquez a mítica que desnudava pouco a pouco a delicada relação e os segredos de uma família. Coisas que os homens não entendem deu de presente para o leitor um recorte de Santa Teresa, onde Nita, personagem principal, influenciava em sutilezas as vidas que se tocavam com a sua. A um passo, uma obra vanguardista, surpreendeu pela história de vingança que tangencia A Tempestade de Shakespeare e pela estrutura que cuidadosamente trabalha os espaços narrativos, num estilo de dar inveja a Abbas Kiarostami.
Chega então às livrarias Deixei ele lá e vim, seu quinto trabalho policial. Agora a narradora é Shirley Marlone, alguém sem um lugar pré-determinado no mundo. Com o pé fora do quartinho no Vidigal e a idéia fixa de ir para São Paulo – o lugar onde as coisas acontecem, Shirley tenta fugir não mais do passado, mas do presente. Alguém que margeia classificações sociais e sexuais (ela é um travesti), que se confunde da base ao topo da pirâmide, Shirley é do tipo que anda sem querer chegar ou partir. O seu lugar é a viagem, é o caminho, esse meio do percurso que nos atrai. A fuga de si mesmo, na verdade, é a revolta por não entender como tudo parece tão arrumadinho, como as pessoas podem adequar-se às situações (não importa quais), como o loiro do cabelo combina tão bem com o brilho do sol, como os sorrisos podem ser milimetricamente encaixados nos rostos daqueles que se dizem felizes. A fuga de si mesmo é metalingüística da narrativa cíclica de Elvira Vigna, pois põe a personagem numa busca da própria identidade.
Quando decide ir embora e sai do Vidigal, Shirley passa em um hotel na praia para se despedir da amiga Meire. Da favela para a Zona Sul, acompanhamos Shirley em um dia de indecisão, e nos envolvemos com seu jeito agradável de ver o mundo. É inevitável se identificar com a atmosfera do livro, o deslocamento de Shirley pelas páginas. Quem nunca se sentiu fora do lugar ou achou a vida alheia perfeita demais? Quem nunca se sentiu melancólico e depois extraiu humor da melancolia?
Quem lê toda a obra percebe um detalhe curioso. O Assassinato de Bebê Martê e Às Seis em Ponto são livros claustrofóbicos, daqueles em que o carro, o apartamento transbordam sentimentos, lembranças, aquele lodo familiar depositado anos e anos pelo tempo, feito de folhas mortas, fotos queimadas na tentativa de apagar o que não se pode. Coisas que os homens não entendem coloca a personagem dividida entre dois pontos. É Nova Iorque, é Santa Teresa e uma vida nesse meio. Me lembro das caminhadas pela rua e de um pedaço em que a personagem assiste TV sem som, lá pro final, e a sensação de claustrofobia estava de volta, um momento rápido, minutos antes da conclusão.
Em Deixei Ele Lá e Vim não há mais claustrofobia, não há dois pontos para se perder entre, os cenários são abertos, há uma praia, um deque num hotel, e uma personagem buscando seu espaço, alguém que adoraria estar perdida entre dois pontos, de ter dois pontos, um de bom tamanho, que se sentiria feliz na claustrofobia. Sem ter onde pisar, só com a areia – que nunca é firme – servindo de apoio, um chão e quatro paredes que desabam sobre si podem parecer reconfortantes. É uma ilusão claro, mas uma ilusão desejada quando se luta tentando encontrar
A força de Elvira Vigna está no drible do óbvio. As personagens do livro estão ao nosso lado na rua, no bar, no escritório. A parede imaginária que separa o leitor do território policial é rompida. Ele se identifica com os cenários, encaixa nas situações fragmentos de memória, sons e cheiros do cotidiano. Discretamente, enquanto narra, surge o ciúme, a traição, o bolo de dinheiro. E o melhor é que no meio disso vem o tiro, o assassinato que sacode bases, faz tremer as pernas do viajante e as mãos do leitor.
“Meire está ali, de pé na minha frente. Sua cara é a única coisa que muda num mundo em que nada muda há muito tempo. Então acompanho cada músculo, é o que há para olhar. Ela tenta, com a bochecha que incha e desincha, a velha brincadeira sobre o aventalzinho. Porque é ridículo, o aventalzinho de babadinho. Mas tanto eu como ela já sabemos disso, e então ela pára. Depois olha para os meus peitos chatos. Ridículos, os peitinhos”.

 

 

 


 

palestra, junto com o psicanalista lacaniano Romildo do Rêgo Barros, na livraria Argumento de Copacabana em 25/10/06, como parte dos “Diálogos” que antecedem o encontro anual da Escola Brasileira de Psicanálise.

 

Boa noite. Vou começar falando o que – ao meu ver – une obras criativas, seja em literatura ou em artes visuais. E que é também uma tentativa de me apresentar como alguém viável: faço as duas coisas desde sempre.
Bem, é uma quebra.
Na minha experiência de como surgem meus livros, e que é também o que encontro quando analiso obras de arte de outras pessoas, há uma quebra lógica, uma saída de estrutura, de linguagem – e uma recuperação dela. O livros e as artes visuais são essa recuperação.
Mas começa com algo que não se encaixa no seu entendimento de algo banal. Você não entende, fica fascinado e com medo e cria então um contexto para compartilhar esse não-entendimento. Você pode fazer isso de dois modos, um tentando dar uma explicação para a quebra e no outro tentando repetir, fazer com que o outro também vivencie ou chegue perto dela. O primeiro caminho é o dos romances caudalosos do século XIX e da arte referenciada, figurativa. O segundo é o da arte contemporânea e o da literatura sem enredo de começo, meio e fim, urbana, atual.
Não funciona bem e não funciona bem porque não pode mesmo funcionar. Se a quebra está fora da linguagem, fora do tempo e espaço, ela não é dizível. Você pode no máximo dizer das circunstâncias em que ela ocorreu, não dela. Quando eu digo que é um outro espaço e tempo quero dizer que nada que aconteceu antes a provoca e ela não determina nada do que ocorrerá depois. E se você repetir as mesmas circunstâncias outra vez não é certo que ela se repita.
Não estou falando aqui de nenhum ET que aparece e desaparece.
Não. Para o que é, uma assustadora possibilidade de uma vida não-humana, não inserida em uma linguagem, é até bem comum.  O que acontece é que nem todo mundo, uma vez se deparando com essa falta total de sentido – porque não me refiro a um sentido que falhou mas à ausência dele – nem todo mundo, eu dizia, sai dali para fazer um quadro, um livro. Você pode simplesmente rir. Volto ao riso daqui a pouco.
Primeiro o amor, tema desse Diálogo.
Bem, temos então a quebra e a recuperação da quebra. A recuperação da quebra, com a obsessão e a construção que a envolvem,  pode ser comparada a uma atitude amorosa. Você envolve a quebra, o objeto da sua obsessão, nas melhores roupas, ou a despe de tudo que é inútil mas de qualquer modo dedica a ela todos os carinhos. Não pode viver sem.
É comum levar essas metáforas um passo além e incluir o gozo sexual na categoria de quebras de sentido. E, de fato, aqui também você estará fora do espaço e do tempo, fora das estruturas lógicas que te fazem humano. Há mesmo a expressão ‘entrega’ e em geral se acredita que essa entrega é a entrega ao outro, o que não é verdade, pois se o ato sexual está sendo bem sucedido o outro estará tão entregue quanto você. É a entrega, pois, a isso, ao não-estruturado. Chama-se mesmo de ‘fazer amor’ ao ato sexual em uma não mais metáfora mas metonímia. O amor é o que está perto, o que, aqui também, é uma recuperação de uma quebra.
Só que não gosto da comparação.
Não acho que seja a mesma coisa do que eu vejo como o que provoca uma obra criativa. O gozo é o resultado de umas tantas coisas – gestos, atos, afetos – que, sim, podem ser repetidas para a obtenção de resultado similar, embora, claro, acidentes e percalços aconteçam. É menos do que a quebra lógica de que eu falava, há menos gozo e menos perigo na cama.
Outra comparação comum é com o sonho e eu também não gosto. O sonho já vem estruturado em linguagem. A quebra está além, escapa dele.
Porque há um aspecto terrível nisso que vale ressaltar. A quebra, que é a que você vai se dedicar obsessivamente por longos períodos, que é o que você ama e odeia, é coisa perigosíssima para a tua sobrevivência. A quebra, sendo a quebra de uma lógica, de uma linguagem, faz com que você não seja mais você, já que você só é você com linguagem e lógica. É de fato uma espécie de morte, a pior delas, a que não é sequer imaginável – no sentido etimológico mesmo – porque justamente nela não pode haver palavras nem imagens. Só as que você, obsessiva e rapidamente, põe.  Um adendo a essa história de não-humano, de fora de linguagem: a quebra como constitutiva do que a ela se opõe, seu uso pela linguagem à qual escapa.
O processo de recuperação de uma quebra só termina quando cessa a obsessão com ela. É isso o “ficar pronto” em uma obra de arte. E esse é o momento em que você está apto a se deparar com alguma outra nova quebra que gerará uma outra obsessão. É um processo que não tem objetivo algum além dele mesmo. Você faz porque é isso o que resta a fazer. Se vão comprar, se vão elogiar o objeto – e em arte contemporânea nem sempre se trata de um objeto – é já uma camada posta em cima, uma necessidade que se agrega àquela, inicial.
As pessoas falam muito em linguagem artística. Eu acho que essa palavra induz a um engano. Linguagem sempre supõe comunicação, pontos em rede. E não é assim que a coisa vai. No caso da quebra, o que acontece é uma tradução e a partir daí, dessa tradução, sim, há uma possibilidade de compartilhamento. Não é linguagem porque a pessoa – fruidor ou leitor – não fala de volta no mesmo nível em relação ao referente, que não é açambarcável. O que a pessoa vislumbra, e que já é muito, é a possibilidade de quebras. O intercâmbio, ali, entre quem vê/lê e quem fez, é que existe algo que não é posto em linguagem. A pessoa, frente à obra criativa, se depara com, vislumbra, a ocorrência de uma quebra. E o entendimento de que a rede que nos faz humano não cobre tudo, já dá para mudar uma vida, é uma pedrada. A noção de que aquela quebra, ali inferida, pode se assemelhar com uma quebra já vivida por você é uma sensação orgásmica. Mas a pessoa não troca quebras com o criador da obra. Ela não é passada para o outro por o que seria uma linguagem artística, algo que você poderia compartilhar. O que você compartilha é o depois. É a tradução da quebra em uma linguagem. A quebra está além, escapa. E – mais uma vez – ela ocorre, inclusive, em um outro tipo de tempo, em um outro calendário ou relógio. Nada do que estava antes teve influência direta na ocorrência, nada do que veio depois apresenta resquícios dela. E não tem duração.

O riso
Há uma comparação que pode ser feita, e que é com o riso. Você ri como reação a também uma quebra da lógica, da linguagem. Ao mesmo tempo que você, ao rir, você declara perceber e aceitar a presença de um outro que, como você, está inserido em uma mesma cultura, lógica, linguagem. Você, ao rir, está dizendo que percebeu que aquele outro, o que te fez rir, de algum modo suportou a existência de algo fora da cultura, lógica, linguagem a que vocês dois pertencem. Mas, mesmo nessa diferença absoluta, pelo motivo de você também perceber a quebra, você – que não a vivenciou em primeira mão – você se torna parecido com aquele que, por um tempo não mensurável, se viu fora da rede que te define e o define.
Essa proximidade enorme frente a uma distância enorme é o que busca o autor da obra criativa – literária ou visual. O que a gente quer é rir junto.

Aos exemplos. O leite derramado:
Vou ler um parágrafo da pag. 62 do meu último livro, o “Deixei ele lá e vim”:
“Uma menina que ela conheceu diz que todos os dias, quando põe o leite do filho para ferver, pensa que no dia em que ela for se suicidar, em vez de apagar o fogo quando o leite levantar fervura, deixará derramar e aí então ela se joga da janela. Isso porque se ela não se jogar terá de limpar tudo – fogão, panela e chão – e a limpeza a ser feita é o impulso adicional, e definitivo, para que se jogue.”
Quem fala isso é Shirley Marlone que, junto com Meire e Dô, passará uma noite na praia. O livro é a história dessa noite.
Agora, como o parágrafo entrou no livro:
Década de 70, eu grávida, precisando de uma faxineira, nenhuma servia. Até que veio essa, tudo bem, mas sempre chegava atrasada, inventando as desculpas mais dramáticas. A última foi que o leite que ela fervia todos os dias para o filho tinha derramado e ela precisou ir até a padaria, comprar outro, ferver outra vez, e por isso, chegara tarde e que, pelo mesmo motivo, ia sair cedo: precisava limpar tudo aquilo antes de o marido chegar, e ela fazer o jantar.
Eu disse que se eu fosse ela eu aproveitava a oportunidade e me suicidava de vez, que era melhor eu me atirar pela janela do que voltar para uma casa onde eu tinha de limpar o leite de um fogão antes de fazer um jantar para um marido. Eu ia achar melhor me atirar pela janela.
Nunca mais esqueci o episódio. Nunca soube por que não esquecia.
Depois de muito tempo, fui júri de um concurso literário e entre os textos concorrentes havia um que descrevia o leite derramado como adjutório de suicídio – o que me mostrou duas coisas. A primeira é que leite derramado no fogão era uma experiência traumática mais comum do que eu imaginava. E depois, que a frase continuava viva na minha cabeça. Depois de mais um tempo, esccrevi esse livro e a frase entrou nele. E no entanto não existe mais, esse tipo de leite que você precisa ferver. Mas a vivência da quebra lógica é tão forte que mesmo com esse erro, a frase ficou. E tem um outro erro, as personagens da minha história são faveladas. Mas ao repetir exatamente o que eu havia dito há mais de 30 anos, eu escrevi “pular pela janela”. Ao se atirar por uma janela de favela, a pessoa no máximo, rala o joelho. É tudo grudado.

 


 

Trabalhos acadêmicos

 

CAMPOS, Cynthia Funchal; ZOLIN, Lucia Osana.  “O narrador não confiável como estrátegia para a desconstrução de gênero em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. Universidade Federal de Sergipe: Revista Forum, Ano VIII, v. 15, n. 15, 119-136 pgs.
CAMPOS, Cynthia Funchal. “Identidade de gênero em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. Monografia em literatura do Instituto de letras da UnB, 2o semestre 2014.
Este texto está disponível online

 

AZEVEDO, Maria da Glória de Castro. “A personagem travesti em três romances brasileiros”. In: A mulher na escrita e no pensamento, ensaios de literatura e percepção, UFG, 2013, 181-195.

 

DALCASTAGNÉ, Regina. “Literatura brasileira contemporânea, um território contestado”. Rio de Janeiro: UERJ, 2012, 208p.

 

NEVES, Lígia de Amorim. “Gêneros não inteligíveis em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. In: Segunda Jornada Internacional de Estudos do Discurso, UEM – Universidade Estadual de Maringá / PLE – Programa de Pós-graduação em Letras, Maringá, março de 2012,  pp. 01-14.
Este texto está disponível online.

 

LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. “Corpos, gêneros e identidades nos romances de Elvira Vigna”. In: ZOLIN, Lúcia Osana; GOMES, Carlos Magno. Deslocamentos da escritora brasileira. Maringá (Paraná): ed. da universidade estadual de Maringá, 2011. pp. 217- 229.
LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. “O gênero em construção nos romances de cinco escritoras brasileiras contemporâneas”. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo, ed. Horizonte, 2010. pp. 65-96.

 

MIRANDA, Adelaide Calhman de. “Gêneros indefinidos, corpos inadequados em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo, ed. Horizonte, 2010. 114-123.

 

Deixei ele lá e vim, 2006

ELVIRA VIGNA: DEIXEI ELE LÁ E VIM (Companhia das Letras, 2006, 152p.)

arquivos internos de ‘deixei ele lá e vim’:
críticas

 

 

 

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Capítulo 1:

Meire está ali, de pé na minha frente. Sua cara é a única coisa que muda em um mundo em que nada muda há muito tempo. Então acompanho cada músculo, é o que há para olhar. Ela tenta, com a bochecha que incha e desincha, a velha brincadeira sobre o aventalzinho. Porque é ridículo, o aventalzinho de babadinho. Mas tanto eu quanto ela já sabemos disso e então ela pára.
Depois olha para meus peitos chatos. Ridículos, os peitinhos.
Quase ouço: e quando é que vai aumentar esse siliconezinho, que aliás está torto?
Mas ela disse isto não faz muito tempo. Me pegou nua, saindo do banho. Então não repete.
Ficamos lá, só isso.
Lembro de cada coisa. Revivo. No fim, nada teve ou tem muita importância. É só uma história. Vai ver, é esta a história, a da falta de importância. Deve ter muitas assim, ninguém fica sabendo realmente o que aconteceu, nem se importa. Eu é que fico com isso na cabeça, acho que não há um dia em que não pense. Entre outros motivos, porque gosto de histórias, sempre gostei. Mas há os outros motivos.
Ficamos um tempo assim, então, eu e a Meire. Ela parada em frente à minha mesa, o restaurante vazio. Lembro da música ambiente. Tinha sempre. Tem sempre. Faz parte da suavização geral de tudo. Pena que não funcione. Não funcionava. Não teve nada suave, não tem.
Lá pelas tantas, ela pergunta:
“O que você está fazendo aqui?”
O que é algo difícil de responder. Em qualquer tempo e local. A velha pergunta sobre nós e o mundo. E o que o mundo está fazendo aqui.
Até então ela não havia olhado uma única vez para minha mochila esborrachada na cadeira. Ela tem disso, a Meire, uma força de vontade férrea. Não quer olhar, não olha.
“Jantar.”
Chega um pouco para trás. Cara de ofendida. Vai ver ofendi. Sai, pega um menu. Volta.
“Semana Jorge Amado. Badejo à Gabriela. Camarão do Turco.”
Aí também já é demais e a gente começa a rir. Primeiro só uma risadinha, a cabeça baixa, disfarçando. Depois risadas incontroláveis. Depois a gente chora. Mas nessa hora ainda dava para dizer que o choro era de riso.
Não estou com fome, o badejo entra no quesito lazer. Sei lá há quanto tempo não como.
Badejo, então.
“Caro pra cacete.”
“Foda-se.”
Os palavrões rearranjam a cena.
Vem com pimenta, o badejo, e demora. Restaurante vazio, fogão apagado. Era tudo assim, nessa época, depois piorou. Ruas escuras, vitrines atrás de portas de ferro, carros passando à noite só de vez em quando. Eu estava com o bolo de dinheiro no sutiã. O único dinheiro da cidade, afora o dos bancos, futucava minha pele toda vez que eu curvava as costas.
Meire senta em uma pontinha de cadeira, está de serviço. Olha o badejo, eu também olho. Um retângulo marrom. Ponho a pimenta. Mais. Agora temos retângulo marrom com detalhes em verde. O verde brilha. Azeite. Pimentas vêm sempre em azeite. Não parece comestível não fosse o cheiro, nauseabundo, a dizer que, sim, é comestível.
Na mesma hora em que enfio o garfo na boca, Meire fala. É de propósito, não posso responder com boca cheia. Só falta saber com quem fica o de propósito, se com ela a falar na hora em que encho a boca ou se comigo a encher a boca quando pressinto que ela vai falar.
“Então você vai mesmo.”
Faço um sim com a cabeça. Depois acrescento mímica de muito quente, muita pimenta, muito espinho, ataque de epilepsia, qualquer coisa que justifique meu olho que lacrimeja e meu tempo, grande, até a resposta.
Acaba que engulo. E ainda assim não falo, só balanço a cabeça, sem dizer o que eu não ia conseguir escutar.
Ela se levanta, vai para a cozinha. Nunca deixa que alguém saiba o que está sentindo. (Nunca deixe.)
Esse é o primeiro momento em que fico sozinha no restaurante. Em que achei que estava. Naquela noite fiquei sozinha (ou achei que estava) algumas poucas vezes, e então aproveitei para olhar em volta com mais afinco, cadê o mapa, qualquer mapa. Sinal, seta, guarda apontando: é por aqui.
Aí notei o cara de meia-idade na mesa do canto. Bebe. Me olha. Bebe mais. Já devia estar lá desde a semana passada, o mês passado.
Estou na mesa mais perto da porta. Como sempre. Qualquer lugar que seja e fico perto da porta, de costas para a parede. Nunca me protegeu de nada, mas continuo.
O cara de meia-idade então não estava muito perto. Uma desculpa por não tê-lo visto antes. Tenho outras. Já disse: não estava muito bem. Ou não disse. E mesmo quando estou bem. Presto atenção em algumas coisas e em outras não. Em geral escolho as que não me serão úteis.
Então, saiba: minha história tem falhas, buracos. E pior: vou preenchê-los.
Meire volta do jeito que foi. Tinha ido para a cozinha não porque houvesse algo a fazer mas porque não queria ficar. Foi, olhou o cozinheiro fumar, limpar o nariz, palitar os dentes, limpar o ouvido com a ponta de um garfo, ler jornal, coçar a barba de três dias, os culhões de dois tamanhos, se suicidar com a faca de carne, apostar em cavalos. E depois, que remédio, volta.
“Estive lá, hoje”, digo.
Ela me olha.
“Aquele negócio que eu ia ver, daquele carinha.”
Continua a me olhar. Sei que se lembra, não quer é falar, quer me obrigar a dizer a frase inteira, ridícula.
“O cara do teste de cinema.”
“Ahh. E aí?”
“Furada.”
Ela tinha dito, não vai, é furada.
“Ahh. Furada? Que pena…”
E depois:
“Tem um pessoal desses, de filmagem, hospedado no hotel. Permuta. Não deixam um puto de gorjeta. Para ninguém. As mulheres são gostosonas, loironas.”
“Loironas? Vai ver é a mesma equipe.”
“São sempre loironas, ou você ainda não reparou?”
O que eu reparei é que o peixe caiu mal. A garfada, aquela, a única, parou no meio do caminho e ameaça um retorno triunfal. Peço água.
“Água?”
“Água.”
Meire ri.
“Com bastante gelo e limão?”
“Pode ser.”
Ela ri mais.
“Na-ne-ni-no-não.”
Que se o gerente entrar e ver eu tomando vodca trazida de casa, ela está na rua. Meire não tem dúvida de que dentro da mochila está a vodca. Que eu, último dia, última passada em frente ao armário, afanei vodca e o que mais houvesse. Digo que não. Meire sempre me achou babaca. Eu também. Ela confirma, confirmamos.
“Duvido.”
Abre minha mochila.
“Porra, tu é babaca mesmo.”
E sai, em busca da água com gelo e limão.
Ou porque o cara da outra mesa está prestando atenção, ou porque às vezes acho que comer disfarça babaquice, o que só prova o quão babaca eu sou, ou porque se há um peixe na frente de uma pessoa é porque um vai comer o outro, o caso é que ponho nesta hora a segunda garfada na boca.
E, claro, não passa da garganta. Tenho de pôr ele para fora. Tem mais coisa para pôr para fora. Minha infância infeliz, a injustiça do mundo, o por quê de eu não ter nascido loirona. O negócio é eu fazer lista, distribuir senha, organizar o vômito. Ou partir para a ação, começar a resolver as coisas pelo peixe. Escolho o peixe. O problema é que Meire, de sacanagem, me deu serviço completo, pão, patê cinza, patê rosa, patê amarelo, picles e guardanapo de pano. O cara da outra mesa me olha sem curiosidade. Acho que ele sabe que eu tenho uma fila de coisa para pôr para fora, a começar por um peixe e que eu não sou porca o suficiente para cuspir comida em guardanapo de pano.
Cuspo em guardanapinho de papel. Veio embrulhando os talheres, très chique. O cara observa. Foi esta nossa primeira relação, foi isto que ficou e que marcou todo o resto: eu cuspo peixe, ele me olha como se não esperasse outra coisa.
Meire largou minha mochila aberta. Fecho. Lá dentro não tenho vodca mas tenho a chave do meu ex-quarto. Plano B. Qualquer coisa, volto. Não sei se ela viu, prefiro que não veja. Ela já volta com a água. Quando tomo, tomo sabendo que não é para tomar, que só vai piorar tudo. Piora. E piora mais ainda porque lembro de todas as coisas que já fiz na vida sabendo que só ia piorar e que fiz mesmo assim. Fiz, não, faço. Ainda faço.
No caminho para o banheiro passo pelo cara que continua não esperando outra coisa do que me ver correndo na frente dele em direção ao banheiro.
Eu vomitava por qualquer coisa, naquela época. Acho que melhorei. Na verdade, não tenho certeza. Escrever isto não está me fazendo muito bem.

Coisas que os homens não entendem – críticas

ELVIRA VIGNA: COISAS QUE OS HOMENS NÃO ENTENDEM (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.; Suécia, ed. Tranan, 2005, 220p) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

 

arquivos internos de ‘coisas que os homens não entendem’:
trecho em português críticas no exterior

 

Beatriz Resende – Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 16/03/02

Há escritoras e escritoras – Questão da identidade feminina nas obras de Elvira Vigna e Simone Ostrowski

Se já foi politicamente importante criar um Dia Internacional da Mulher, marcado por protestos, atos de solidariedade e de luta pelos direitos humanos, entre nós, as sem véus, a data provoca hoje uma atitude um tanto dúbia. Por um lado, cumplicidade através de sorrisos e e-mails, mas, por outro, certa impaciência. As que lidam com a data através do humor são, em geral, as mais bem-sucedidas, ainda que raras. Se aproveitamos para reiterar as campanhas contra a opressão que chega a ameaçar a vida de ”irmãs” submetidas ao autoritarismo de regimes políticos e/ou religiosos, sentimos também algum incômodo, como se saíssemos à rua com uma roupa fora de moda.
Parece-me que este pouco à vontade surge, principalmente, diante da generalização totalizante com que o termo mulher vai sendo absorvido por campanhas publicitárias ou qualquer outra forma de expressão dirigida ao grande público que pretenda atingir a minoria que, por aqui, é numericamente maioria.
Aí temos desde ”desejos de mulher”, ”bolsa de mulher”, ”coisa de mulher” até ”candidata de mulher”. E percebemos o quanto tais generalizações podem ser perigosas em vez de unificadoras.
Ética e sobrevivência – Apresentando Critical passions, Mary Louise Pratt e Kathleen Newman, editoras deste último livro de Jean Franco, apontam, no trabalho da ensaísta, dois conceitos fundamentais: ética e sobrevivência. Ética proposta não como uma forma fraca de moralidade, mas como estrutura de pensamento e valores ligada à prática e ”capaz de exercer uma força epistemológica contra a extrema instrumentalidade dos regimes”. Sobrevivência não como o estado mínimo, mas como categoria analítica e existencial surgida de confrontos entre autoritarismo e sistema de gênero. Através da chamada ”análise de gênero” do autoritarismo, sobrevivência adquire sentido, para Jean Franco, como categoria existencial, analítica e ética. Segundo a dupla de editoras, torna-se então necessário redefinir sobrevivência em termos positivos: sobrevivência versus desintegração social, versus etnocídio, versus vitimização, morte, passividade.
Pensando nesta oposição entre sobrevivência/ética e vitimização/passividade e tentando o humor, eu poderia afirmar que, mais diferente de uma mulher do que outra mulher, somente um homem.
É assim com consumidoras, com amantes, com eleitoras ou candidatas e com escritoras. Foi assim que me senti diante de dois romances escritos por mulheres: Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, e A arte secreta do desejo, de Simone Ostrowski.
Os dois romances têm como personagem principal uma mulher. No romance de Elvira Vigna esta personagem é a narradora, sujeito portanto. Em Simone Ostrowski não, há o tradicional narrador onisciente, sabe tudo. As duas mulheres se deslocam espacialmente e, nessa viagem, buscam mais que uma mudança de lugar, buscam uma compreensão de sua identidade. Provavelmente por haver estes pontos iniciais em comum, as duas obras revelam-se tão profundamente diferentes.
Diferenças – A principal diferença diz respeito justamente à questão da identidade . Elvira Vigna cria um romance em que se percebe que a identidade contemporânea é plural, contraditória por vezes, e que o sujeito – da vida, do romance, da experiência cultural – pode assumir identidades diferentes em momentos diferentes. Já a personagem de Simone Ostrowski quer convencer o leitor de que existem indivíduos (neste caso uma jovem mulher) dotados de razão e sensibilidade reunidas num núcleo contínuo e imutável, detentores de critérios de valores universais.
Coisas que os homens não entendem é um livro arrojado, com uma técnica de condução da narrativa tão elaborada quanto pouco arrogante. A escrita que não teme o fragmentário também não se apóia, em momento algum, nos ”efeitos especiais” que andaram perturbando a ficção contemporânea. A mesma coloquialidade que aproxima o leitor da história contada traz para a narrativa o repertório de referências da autora desde o título, saído de poema de Camões – ”coisas do mar, coisas que os homens não entendem” – mas que se faz familiar ao ser ressemantizado de forma a evocar a oposição homem/mulher.
Nita, a narradora personagem, sai de Nova Iorque, onde mora com a namorada Eva, garçonete de um Brooklyn empobrecido e de mau gosto, e volta ao Brasil, em viagem que deve ser rápida, sob desculpa de trabalho, mas na verdade em busca de algum tipo de acerto de contas. No Rio, divide o pouco tempo de que dispõe entre o sujo apartamento de temporada emprestado e as ruas de Santa Teresa. Essa Santa Teresa, minuciosamente descrita, é a Santa Teresa decadente, de uma classe média rebaixada aos limites mínimos, vizinha do narcotráfico. Mas Nita é artista gráfica, seu olhar, sua sensibilidade vão revelando sem mediadores as seduções dos becos e das pessoas.
O acerto de contas que marca esta volta passa pela morte de Lio, o marido da Lia, assassinado ao abrir a porta do apartamento em Santa Teresa. Lio é o ex-traficante que decidira ”ano que vem vou ficar pobre” para poder se casar com a Lia, na verdade Suélia. Mas a violência está na história como está no nosso cotidiano carioca, brasileiro. Receber um bala no peito é questão de acaso.
Plano B – A viagem de Nita, mochileira, viajando com três blusas boas e uns cacarecos, é uma espécie de ”plano B” para a própria vida, na busca de uma independência que a arrasta por hotéis baratos, televisões sem som, bares e caminhadas sem muito destino pelas ruas do centro do Rio tanto como pelas de Nova Iorque. ”Eu sempre acho que minha vida eu mesma invento, eu sempre acho que eu ainda não cheguei”. Se o pretexto é descolar ”alguma picaretagem com a festa dos 500 anos”, mostrando bem que ”uma coisa eu aprendi nesse tempo em que passei entre os gringos e foi não discutir com dinheiro, se você quer, você pega, se não quer não enche o saco” , o sentido da volta vai sendo descoberto na própria viagem. Não deixou Nova Iorque por causa da ”mulher cor-de-rosa e rebolativa” e nem vai ficar por causa do amor de Nando: ”não foi esse o motivo de nada, imagine, um homem, tão pouco”. Porque não procura termina achando. Porque afirma que ”só conseguimos enxergar o que já vimos”, o encontro é um reencontro. Reencontros com Nando e com Nita, ela mesma.
A arte secreta do desejo lembra, várias vezes, Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes. Mas lembra pelo contraste. Enquanto Roland Barthes, reconstruindo o discurso que afirma ser ”de uma extrema solidão”, se utiliza de um repertório de citações e referências literárias e filosóficas para criar uma composição absolutamente original, num trânsito entre a tradição e inovação antecipadores das criações pós-modernas, o romance de Simone Ostrowski não passa de uma exibição gratuita (será gratuita mesmo?) de erudição. Ou melhor, de conhecimentos que parecem sair dos Gênios da pintura e outras obras de divulgação.
Pretensão – Obras mais autênticas e sinceras que o exercício de pedantismo deste romance dedicado a São Judas Tadeu em que o leitor é submetido a breves lições como: ”Segundo Platão, aquilo que não se tem, aquilo que não se é, eis os objetos do desejo e do amor.” Ou, mais adiante: ”Vamos ver suas origens. Vindo do grego metamorphosis, assinalava a transformação de um ser em um outro, tão habitual na mitologia.” Pois é assim mesmo que fala a personagem principal, Kandinsky, historiadora da arte e conservadora de um grande museu, que deixa a Itália, vem para o Brasil e se envolve com o blasé Goya, mistura de marchand com playboy e o encanta em momentos tão espantosos como este: ”Por exemplo, existe um ponto na teologia, explicou Kandisnsky, bastante interessante. É o que se chama de apofaticismo.” Mas, na verdade, o que quer é vingar a mamãezinha, seduzida e abandonada, com dois filhos para criar num palacete renascentista qualquer.
Pensando bem, se o leitor é submetido a tão maçantes lições e louvações à alta cultura – ”Eu não gosto de inconsistências, só a obra autêntica me interessa” – a culpa é toda dele. Afinal, Antonio Olinto avisara, no prefácio, que se trata de ”romance de um misticismo intenso, mas também, lírico”.
Chegamos à conclusão de que Paulo Coelho não é para qualquer um. Mais uma página e faço a defesa veemente da candidatura do mago à ABL.
Para piorar a situação, ao publicar este manual de citações para encontros românticos, a simpática editora Revan parece ter despedido o revisor e a linguagem da autora, em sua opção pelo registro erudito, ignora as mais básicas regras de colocação de pronomes ou regência verbal.
Acabando com quem merece a atenção do leitor, faço uma ressalva a Coisas que os homens não entendem. Pessoalmente, preferiria que o romance terminasse com a radicalidade com que se inicia, mas isso não chega a ser um problema. Talvez, neste ”Brasil de bunda solta e ritmado, o Brasil da música americana”, não dê ainda para contar a história dos índios de Campo Grande, ”índios prostitutos, de michê, à noite, na praça” nem o romance da artista brasileira com a garçonete americana. Talvez ainda seja necessário afirmar muita igualdade para se indagar sobre as diferenças. Afinal, como diz a narradora em determinado momento: ”A guerra não acabou, É só uma trégua. Assinado Primo Levi.’

Carlos Graieb – Revista Veja, seção Veja Recomenda, 20/02/02

Há vezes em que um título é apenas um título. Em outras ocasiões, ele é uma boa chave de interpretação. Coisas que os homens não entendempertence ao segundo caso. Ele ajuda o leitor a perceber que o que está em jogo no quarto romance da carioca Elvira Vigna é a questão da identidade feminina. E o lembrete é importante porque essa questão de identidade, ainda que central, aparece de maneira encoberta no texto.
Ostensivamente, Coisas que os homens não entendem gira em torno de uma morte. Ao voltar para casa uma tarde, Aureliano é atingido por um tiro e morre estirado na escada. O disparo será creditado a um assaltante. Mas o fato é que ele foi feito por uma das pessoas que estavam na casa: a mulher e o filho de Aureliano, seu pai e uma amiga da família – Nita, que é também a narradora. De volta ao Brasil depois de uma temporada nos Estados Unidos, as circunstâncias desse assassinato são um assunto que persegue Nita, e que ela tenta abordar de várias perspectivas.
A verdade, porém é que a morte de Aureliano é apenas um elemento do enredo. Aquilo que realmente importa é a caracterização de Nita. Bissexual, desprovida de quaisquer laços familiares, profissionais ou afetivos firmes, estrangeira em Nova York e desenraizada no Brasil, ela é uma mulher de meia-idade que não se encaixa em nenhum dos papéis que mulheres de meia-idade costumam ocupar – na sociedade e na literatura. Impaciente com as convenções, exasperada com as “coisas que os homens não entendem”, é o enigma de como construir sua liberdade o que realmente interessa a ela. E é esse “enigma” que Elvira Vigna de fato tenta explorar em seu livro. Fragmentário, opaco, às vezes até mesmo cansativo, Coisas que os homens não entendem não é um livro de leitura envolvente. Nita, porém, é seu trunfo: um dos personagens femininos mais inusitados da ficção brasileira recente.

Patrícia Rocha – Zero Hora, segundo caderno, 20/03/02

Coisas que os homens não entendem, romance de Elvira Vigna, não é uma versão brasileira de best-sellers à moda Bridget Jones nem um desabafo feminista.
É a história de um crime e de uma dor contados por uma mulher de meia-idade, Nita, embora em nada se pareça com uma trama de suspense. O mistério revelado em uma mala com três blusas boas, muitas lembranças e uma conversa são as coisas do passado de Nita que os homens de sua vida não entendiam. Nem ela.
No início do livro, tudo o que o leitor consegue descobrir sobre essa mulher intrigante é que a fotógrafa brasileira havia encontrado refúgio e o ombro de outra mulher em Nova York. E que finalmente era hora de viajar ou voltar ao Brasil. Ela não saberia qual o verbo certo a usar, porque temia chegadas e decisões definitivas. Mas Nita infim chega ao Rio de Janeiro e se aproxima de seu destino e de suas lembranças, o tradicional bairro de Santa Tereza. Lá, havia morrido Aureliano, o Lia, no momento em que chegou a seu apartamento, onde o aguardavam a mulher, o pai, o filho e a amiga da família, Nita.
O tiro disparado em Aureliano vai sendo reconstituido aos poucos, pelas lembranças e ironias da personagem. É quando o leitor descobre que ela teve parte na morte de Lia, um criminoso regenerado, filho de Barbosa e irmão de Nando. E que Barbosa era um antigo caso de Nita, que nunca pôde ser chamado de amor, e Nando, o único homem que sempre esteve ao lado da protagonista e provavelmente quem mais a compreendia.
Nesse emaranhado, Nita descobre a si mesma, e finalmente revela o que há por trás de seu olhar mórbido e seco ao descrever pessoas e lugares e ao assistir televisão sem som. Mas a fotógrafa tem somente três blusas na mala, e com tão pouca roupa e tão poucas certeza, nenhuma chegada pode ser para sempre.
No romance, a jornalista carioca Elvira Vigna desarma o leitor a cada capítulo com uma trama original e envolvente. O leitor se envolve nas memórias e contradições de Nita, por vezes se impacienta com seu tom mordaz, e é incitado a acompanhá-la até o fim das 160 páginas. O crime se desvenda muito antes disso, mas o grande desafio do livro não é descobrir o assassino e sim entender Nita. E seus homens.
Elvira formou-se em literatura pela Universidade de Nancy, na França, e tornou-se mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela assina uma coluna mensal no jornal O estado de São Paulo e lançou três títulos anteriores – O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto e O jogo dos limites (juvenil).

 

Carlos Herculano Lopes – Estado de Minas, caderno Pensar, 23/03/02

O centro narrativo de Coisas que os homens não entendem, novo romance de Elvira Vigna, carioca que nasceu em 1947, passa pela personagem Nita, uma fotógrafa que vive em Nova York, onde divide um apartamento e a intimidade com uma modelo. Só que, de um dia para o outro, Nita resolve voltar ao Rio de Janeiro, com a desculpa de que faria uma viagem rápida, de tabalho, para assim despistar a amiga. Mas o que ela quer mesmo – e à medida que vamos nos aprofundando na leitura, isto também vai se tornando claro – é fazer uma espécie de acerto de contas com o passado.
Este volta com força quando Nita, já no Rio, vagando pelo bairro de Santa Teresa, com seus velhos casarões e ruas íngremes, tenta entender o assassinato de Aureliano, o Lia, um ex-traficante que um dia, nandando contra a maré, resolveu que queria ser pobre. Como a morte de Lia, que também é casado com a Lia, cujo nome de fato é Suélia, está no epicentro do romance, Elvira Vigna vai levando o leitor, aos poucos, a não só ir se embrenhando na obra, como também a querer saber o mais rápido possível o desfecho do romance. Por trás de tudo está Nando, irmão do morto, que não tem interesse em ver o crime esclarecido, “pois será melhor para todos”. Ele não se importa, inclusive, em dar grana a alguns policiais, para que as investigações não andem.
O livro de Elvira Vigna, que se formou em literatura pela Universidade de Nancy, e é autora, entre outros, de O assasinato de Bebê Martê e Às seis em ponto, no entanto, não tem nada a ver com os promances policiais clássicos, com aquele tradicional e esperado princípio, meio e fim. Não é este, também, o objetivo da autora, cujo interesse principal é levar o leitor até o último instante a participar com ela da trama, que seduz e intriga ao mesmo tempo. E mais: a descobrir as normas de um jogo cujas peças, nem sempre convencionais, podem ou não se encaixar.

 

Ligia Cademartori – Correio Braziliense, caderno Pensar, 31/03/02

Um livro de Elvira Vigna é para se ler devagar, sem risco de perder nada. A linguagem, no primeiro momento, parece simples e informal. Mas logo se percebe que no texto não há nada fora de lugar. A autora escreve como se macerasse cada palavra, para conhecê-la no íntimo, antes de liberá-la no fluxo do narrado. Nenhuma a mais nem a menos. É preciso conhecer e trabalhar muito a língua para escrever assim. Simplicidade? Não, estilo. Apurado, meticuloso, sutil. Mas nunca pedante.
Pouca gente do ramo consegue isso. Comprove na leitura de Coisas que os Homens não Entendem. Nada da tal escrita espontânea, de quem acredita demais no próprio talento e considera acabado o que ainda está em processo. Ou de seu contrário, os pretensos experimentalismos, não raro apenas contorções formais que pretendem efeitos que não alcançam. Tampouco se trata daquela escrita asséptica de quem morre de medo de emocionar e esquece por que, afinal, se abre um livro de ficção.
No romance de Elvira Vigna, a precisão da linguagem e o equilíbrio artesanal da forma encaminham a descoberta e o exame dos meandros de gentes e coisas, prestam-se à investigação de fatos e sentimentos contraditórios.
Há uma morte, uma saída repentina do país e um retorno em busca de algo que Nita, a protagonista, vai descobrir, passo a passo e com esforço, em parceria com o leitor. A maneira como morreu um homem, no pequeno apartamento do bairro Santa Teresa, é lembrança recorrente mas fragmentada. Precisa ser esclarecida. E, com ela, a identidade da narradora e dos que a cercavam na época, em teia de cumplicidades silenciosas.
O tempo na narrativa é tratado de modo impreciso, frontal e recusa à linearidade e à confiança no que guardou a memória. Narra-se no subjuntivo, o modo da incerteza. Um dos recursos desse processo é a repetição de frases que já foram ditas. Algo permanece na consciência e, no entanto, não é claro. Escapa. Resiste. E volta a desafiar. Mas a cada vez que retorna a ele, Nita consegue remover uma camada fina do enigma. Precisa continuar a fazê-lo para que o mistério se desfaça: ”Percebi que esse contar para ver se entendia o que ele próprio contava era um pouco o que eu fazia, sem parar, me contando, sem parar, a mesma história.”
Ela volta de uma sombria Nova York, onde trabalha como fotógrafa, para se pôr diante de um edifício decadente de Santa Teresa. Nele se espreme, em cômodos estreitos, uma classe média empobrecida, vizinha do narcotráfico. E, então, é como se uma lente invadisse o apartamento de subsolo, onde a morte ocorreu, para esquadrinhar minuciosamente aquilo que se entrega fácil à vista e também minúcias em que ninguém repara, pois não despertam interesse. No destaque de pormenores, uma arte de olhar, exercício de entender. A percepção e a explicação dos detalhes é parte do fazer literário dessa escritora para quem uma toalha de xadrez vermelha e branca não é só uma toalha de xadrez vermelha e branca. É um simulacro: o que as pessoas que a usam julgam que significa e foi a razão da escolha.
Nada é estável nem inequívoco nesse mundo romanesco: ”A única coisa real sendo sempre a coisa inventada, eu sei disso.”
Não se entenda pelo título, extraído de verso de Camões, que a perspectiva da narração exclui o mundo masculino. O terreno não é o das dicotomias. Nem incorre a autora nos desconcertantes estereótipos de relação amorosa presentes, hoje, em boa parte da literatura dita feminina. Lugar-comum e gosto folhetinesco nela não têm vez. A protagonista não é figura fácil. Na contramão da tendência conservadora de muitas autoras recentes, Coisas que os Homens não Entendem vem afirmar a pluralidade do feminino e seu transbordamento.

 

André Luis Mansur – O Globo, caderno Prosa & Verso, 04/05/02

Tudo começa numa Nova York onde as pessoas mal se falam e continua num bairro perdido no passado, a Santa Teresa boêmia de sempre, dos casarões antigos e das ruas de paralelepípedos. Num dos casarões houve um crime, contado de várias formas pela protagonista, que está sempre em busca de “um começo, um ponto de partida” e nunca sabe se suas viagens são de ida ou de volta.
Antes que se pense que este é um livro dirigido apenas às mulheres, como poderia sugerir o título, é preciso admitir que muitas das observações da fotógrafa Nita, que conta a história de um modo todo pessoal, sem obedecer aos cerimoniosos “começo, meio e fim”, serão entendidas de uma forma toda particular pelo público feminino. Mas o livro não discrimina ninguém.
Os detalhes são acrescentados aos poucos e dão a impressão de que tudo o que foi dito pode mudar completamente de sentido entre um parágrafo e outro. Parágrafos, aliás, muitas vezes separados por pequenas lamentações, observações críticas ou frases de impacto.
Com uma prosa leve e atraente, Elvira Vigna desvenda o sóbrio irritante das declarações de quem não tem o que falar na hora da morte (“para morrer basta estar vivo, dessa vida nada se leva, mais vale a nossa saúde…”) e descreve um domingo ensolarado e entediante, véspera de um exame de próstata às sete da manhã, como o pior dos infernos.
Um elemento estranho na narrativa é a extensa descrição do que aconteceu durante o noticiário de TV, visto de um apartamento de temporada numa noite solitária. Além da linguagem nada literária da decupagem de um programa de TV, o tom excessivamente irônico destoa do restante do texto, que muitas vezes é de uma informalidade típica das mesas de bar que retrata: “E que a verdade é que o fulano tinha tido um terrível piriri por causa de uma rabada na casa do sicrano, aonde ele fora sem avisar a mulher, porque ele estava de saco cheio da mulher”.
Na memória de Nita, que iniciou a carreira no antigo Correio da Manhã, o crime de Santa Teresa funciona como referência para uma vida resgatada nos aparelhos de TV sempre sem som, nos apartamentos vazios e nas dificuldades quase intransponíveis de relacionamento entre as pessoas. Uma busca constante por afeto, por entendimento, que tanto pode se dar no calçadão da orla, em Santa Teresa, no Acre ou na fria Nova York.
Os momentos felizes não duram muito e parecem cercados de uma tragédia iminente. O ritmo é dinâmico como as reviravoltas na vida da protagonista, que muitas vezes parece resumir seu cotidiano como se estivesse escrevendo um irônico diário feito às pressas: “Chegou de manhã bem cedo, fomos para o hotel, trepamos e depois saímos. Andamos, falamos bobagens, comemos porcaria”. A própria descrição do sexo deixa de lado qualquer tipo de lirismo e parece justificar o título do livro: “eu notando pela primeira vez a existência de centímetros quadrados de mim que antes me eram insuspeitados e que, para minha surpresa, pareciam ser importantíssimos para ele”.

 


 

 

palestra realizada na embaixada do Brasil em Lisboa em 17/01/2012;
a mesma palestra, em outra versão, já havia sido apresentada no evento Viagem Literária, organizado pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, entre os dias 17 e 20 de outubro de 2011, nas cidades de Bastos, Getulina, Pelápolis, Pacaembu e Tupi Paulista
;
a palestra de Lisboa foi publicada pela revista Navegações, da PUC-RS, volume 5, # 2 (jul-dez. 2012), pp. 228-233
.

Não estou vendendo nada.
Não tenho desculpa mercadológica para estar aqui hoje. Não tenho livros editados em Portugal nem sequer estou lançando obra nova no Brasil. Vim porque pedi. Pedi à professora Vânia Chaves, da Universidade de Lisboa, a oportunidade de discutir com vocês um aspecto do meu “Coisas que os homens não entendem” que não foi visto nas várias análises que o livro mereceu da academia e crítica brasileiras. Nele, me aproprio de versos de “Os Lusíadas”. Por apropriar quero dizer que os tomo e os ponho, como são, sem aspas ou quaisquer indicações da famosa autoria, em meio às minhas frases comuns. Quem conhece a obra camoniana irá logo identificar o ritmo, a quebrada na sexta sílaba, o vocabulário. Quem não, pensará que o talento é só meu.
Faço isso não porque tenha especial deferência por nacionalismos e tradições ou por estar a me empenhar em recuperações de valores há muito desaparecidos. Não. Acho mesmo que tal atitude, em mim ou outrem, seria descabida e mesmo reacionária. Também não pretendia, ao escrever o livro dessa forma, inseri-lo a fórceps em uma linhagem nobre dentro de algo chamado literatura lusófona, até porque me sinto no mínimo hesitante com a classificação usual que põe no mesmo saco o que é escrito no Brasil, em Portugal e em ex-colônias africanas. O que me move é o assunto. A viagem. E mais precisamente, a volta da viagem.
E isso porque viagens têm a ver com minha vida desde sempre. Jornalista, e depois como escritora, viajo sempre e muito. E, mais do que isso, viagens são um tipo de metáfora para o que faço: escrever. Digo, escrever como escrevo. Pois primeiro vivo, depois conto. Sempre.
Também consigo construir um eixo diacrônico em que viagens e, principalmente, voltas de viagens, se inserem à perfeição na formação, sempre em andamento e às cambulhadas, das condições sociais em que produzo meus textos. Quero dizer: o Brasil é feito e refeito de gentes que vêm e vão. Faço aqui a ressalva necessária de que eixos diacrônicos estão lá para servir-nos. Se precisamos de um determinado, sempre será possível puxá-lo, e ao seu contrário também. Mas, Brasil a partir das gentes que se movem, eis uma diacronia que me parece das mais visíveis.
Poderia, é claro, ter escolhido outro patrono. Afinal, o tema é comum na literatura universal. E aí entram gostos pessoais. Ulisses, por exemplo, seria uma alternativa. Mas Ulisses me parece que viaja para amansar-se. Amarra-se, resiste ao perigo (aqui, como na maioria das vezes, apenas um sinônimo para “novo”). E volta. Na verdade vai só para voltar. Seu destino final é Ítaca, que é também seu ponto de partida, para sempre perdido. O contrário de Camões. Que vai, como um louco, a enfrentar ira de deuses e monstros, em mais de oito mil versos entusiasmados e entusiasmantes. E volta à contragosto, volta porque não tem outro jeito, em apenas catorze.
São eles:

“Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.”
(Canto X, 143/144)

Não são catorze versos retumbantes. Pelo contrário. Mais para mornos. Nada de muito, ou mesmo pouco, heroico acontece. Aliás, nada acontece. Além disso, tais versos murchos sequer fecham a obra. Depois deles, Camões ainda leva boas estrofes a se queixar da vida em um dos trechos mais célebres da sua obra, aquele que começa com o “Não mais, Musa, não mais”.
Sou escritora e sei bem que aquilo que nos é difícil o escrevemos depressa. Quando a frase sai arrancada, ela também é curta. A dificuldade de Os Lusíadas é a volta. A dificuldade de Camões não é viver aventuras. É, na volta, falar delas a quem não as viveu.
É por isso que escolhi esta estrofe para titular meu livro:

“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”
(Canto V, 16)

Noites tenebrosas e bramidos de trovões que o mundo fendem, não digo que os tiremos de letra. Mas nem se comparam à dificuldade de, tendo vivido algo de muito novo, fazer com que outros (e nesse “outros” estão, inclusive, nós mesmos ou, pelo menos, partes de nós), acreditem, aceitem e integrem o novo vivido.
“Coisas que os homens não entendem” relata minha experiência com viagens. Com uma delas, especificamente. Minha estada por dois anos em Nova York. No livro, uma fotógrafa de jornal popular, uma mulher não muito culta, sai do Brasil achando que, com sorte, não mais volta. Razões profissionais a fazem voltar. No início do romance, ela conversa, em Nova York, com uma jovem modelo que se tornará depois sua amante (Nita, a fotógrafa que narra a história, é bissexual). Na cena, ela fala da vela redonda que, no tempo de Camões e das grandes viagens portuguesas, aumenta a possibilidade de os navios regressarem ao seu porto de partida. Essa vela, capaz de trabalhar mesmo com ventos contrários, impede que naus fiquem presas em calmarias de alto mar ou sejam impelidas a costas hostis, não planejadas. Chama-se vela redonda, mas na verdade é uma vela quadrada.
Cito o trecho:

“Mas agora, porque preciso começar, tento lembrar mais uma vez da cara de Eva dizendo hã, hã e o que me vem não sei mais se é o que era a cara dela ou se sou eu, montando uma cara, restauração de pintura renascentista porque isto eu sei: ela era gorda e rosa, renascentista. E no entanto, do Brooklyn. Eu disse a ela que  adorava o século XVI, ela respondeu hã, hã.
Eu tenho vontade de rir quando lembro o hã, hã e o olhar em branco. Século XVI? Eu estava falando em algarismos romanos para uma americana do Brooklyn. Eu, para variar, estava de sacanagem.
Na época eu fazia uma pesquisa nas bibliotecas americanas já pensando em aproveitá-la, depois, para alguma picaretagem da festa dos 500 Anos, quem não teve alguma picaretagem com os 500 Anos? Bem, eu tive. Naquele primeiro dia com Eva falei muito, estava mesmo gostando de chamá-la de burra sem usar a palavra burra mas seus sinônimos: astrolábios, monções e genoveses: mais hãs, hãs. Quando cansei dei uma mordida, não nela, ainda não nela, mas no sanduiche com cebola.
E aí eu disse, ih, cebola, fingindo que não sabia que tinha cebola no sanduíche que eu comia todos os dias, igual todos os dias. Ela diz que também não gosta de cebola e eu continuo meu jogo: eu gosto.
Eu gosto, disse. E completei:
‘O problema é o hálito’,  e dei uma baforada na sua cara.
Ela ri desarvorada.  Eu gosto, gostava, quando ela ficava desarvorada, olhando em torno, não foi tudo sacanagem, teve coisas de que eu gostei.
E continuei, naquele primeiro dia, implacável como sempre sou e fui:
‘A vela redonda.’
Ela me dá outro olhar em branco e eu explico, dulcíssima, que a vela redonda na verdade era quadrada, coisa de português, como será que se diz coisa de português em inglês.
Ela pergunta o que eu vou fazer de noite.
Eu ia beber, e porque tanto fazia, termino o nosso joguinho: se ela quer ir. Quer. Então vá se arrumar. E ela levanta, fechando pudica o roupão branco.”
(p. 8-9)

Separei este trecho por causa da expressão “coisa de português”. Caçoar de portugueses é, como eu e vocês sabemos, um traço bem mais geral da cultura brasileira, bem mais do que uma frase a ser lida em um perfilzinho de personagem de livro, que, aliás, faz igual em sua própria estrutura narrativa. Meu livro também não respeita, à primeira vista, o português Camões, já que lhe nega autoria de alguns de seus versos. Caçoamos de portugueses, que são um dos nossos principais fluxos de formação cultural. Caçoamos não só de portugueses. Não temos respeito por herói algum, elemento fundante, mito de origem. Por nada. Para o bem e para o mal. Posso dar um exemplo sem portugueses à vista, embora igualmente formador. Mário de Andrade. Encantado pela modernidade que lhe vinha da Europa, foi um dos principais nomes da Semana de Arte Moderna. Certo? Mais ou menos. Isso foi em uma primeira fase. Em uma segunda, preocupado com o impacto que tais novidades causariam em práticas culturais do Brasil profundo, dedicou-se a recolher e pesquisar tais práticas, em um esforço ao qual até hoje agradecemos. Sem ele, danças e poesias populares não teriam sido recolhidas da maneira como o foram. Nessa segunda fase, portanto já com aguda sensação de que haveria algo de “brasileiro”, de arcaico, coletivo, a ser preservado e contraposto à estética do modernismo importado, Mário de Andrade também escreveu o que muitos consideram nosso único mito fundante, o romance Macunaíma. Mas, macunaimamente, Mário de Andrade não inventou Macunaíma. Ele o roubou de outrem. Trata-se de personagem mítico de uma tribo de Roraima. Aliás, o acento tônico correto da palavra Macunaíma é a prova do crime. O nome deveria ser lido como em Roraima, com ênfase no “ã”. Não no “i”.
No livro Macunaíma, o herói de Mário de Andrade perde uma pedra mágica, o muiraquitã, por se negar a cumprir um destino já traçado. A deusa Vei tinha lhe dito para escolher uma das suas três filhas, com a condição de que se casasse e à moça escolhida fosse fiel. Macunaíma engana a deusa, transa com as três, não casa com moça alguma. E perde o muiraquitã, uma espécie de presente de núpcias antecipado da ex-futura sogra. Aí se inicia sua viagem, uma viagem para recuperar a pedra e a sorte, para buscar o novo, sair de situações pré-estabelecidas. Macunaíma vai para São Paulo. Anda de ônibus, se mete em confusões no mercado de arte, transa com mais uma meia dúzia, foge de quem o quer prender.
E aí volta para seu porto de partida, a Amazônia. Tanto quanto em Camões, essa volta não é gloriosa.
Mário de Andrade mata seu herói-não heroico. Em dia de muito calor, ele se atira em um lago que sabe estar infestado por piranhas. E é comido pelas piranhas. “Piranhas”, em 1928 (data da publicação do livro) tanto quanto hoje, é palavra dúbia. Pode se referir a peixes ou putas, à escolha.
Mais um exemplo. Machado de Assis. Nosso autor maior é outro a repetir o mesmo padrão de recusa a construções heroicas. Ele caçoa de seus personagens da primeira à última página em tudo que escreveu. Dou um exemplo, o Pestana de “Um homem célebre” que, por desejar ser célebre, fazer algo grandioso, não é de jeito algum aplaudido ou louvado, modelo a ser seguido. Rimos dele:

“Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem método.”
(p. 497)

Camões não tinha pouco apreço por seus personagens, muito pelo contrário. Mas tinha pouco apreço pelo resultado possível daquilo que ali estava sendo escrito. Ele, tanto quanto Mário de Andrade, não achou que inserir o novo no arcaico – ou vice-versa – fosse algo que estivesse de fato a seu alcance. Já para Machado, a questão nem se coloca, já que o novo não é lá muito novo e é, com certeza, risível. A técnica que impede o estabelecimento da espetacularização da narrativa, no entanto, é a mesma para os três.
Machado, tanto quanto Camões, introduz excursos que quebram, fragilizam e questionam a narrativa principal. Nele, não se trata de se queixar, como em Camões, de uma adivinhada (mal adivinhada, por sinal, pois passam-se 500 anos e cá estamos a falar dele) falta de apoio de futuros leitores, até porque Machado foi popular já em vida. Mas ele interrompe seus contos e romances para lembrar que o leitor é exatamente isso, leitor. E que, portanto, tudo aquilo é invenção ficcional de quem, como o Brás Cubas, “não tem nada a perder”.
Já Mário de Andrade muda a cada momento de registro narrativo. São cinco. 1) A do mito – com personagens-deuses; 2) a romanesca – com personagens humanos, mas que detêm poderes especiais, mágicos; 3) a chamada “imitativa elevada”, típica das epopeias, incluída aí a camoniana, em que há grandes homens, que se não são deuses nem têm poderes mágicos, representam monumentos de moral e coragem; 4) a “imitativa baixa”, que é uma crônica realista, cotidiana, de personagens comuns; e, finalmente, 5) a irônica, com o autor mostrando seu personagem em situações ridículas, decadentes e malsucedidas. Ao mudar de registro como quem muda de cenário, Mário de Andrade se apresenta ele mesmo como autor daquilo que faz. Digo, põe a presença física dele, como autor, no seu texto. E não permite, tanto quanto Camões e Machado, a imersão do leitor na história. É a mesma desconstrução heroica de que eu falava no início, na medida que nenhuma tragédia ou grande momento dramático resiste à entrada do seu autor em cena a apontar que aquilo é um grande momento dramático, e ficcionalizado.
Nesse não se levar muito a sério ou não se sobrevalorizar, não se achar o máximo, é onde eu entro. Eu e muitos de meus companheiros, escritores e criadores de hoje. Antes de sair do Brasil para esta minha viagem, recebi um livrinho de uma moça que não conheço pessoalmente. Ela me manda seus livros há algum tempo. Este último a chegar, eu o trouxe comigo. Quis mostrar a vocês o que me pareceu um bom exemplo de excurso camoniano em livro atual. Deixei o exemplar para a biblioteca da universidade. A autora se chama Luci Collin e ela conta uma história. O livro é o “Com que se pode jogar”. E lá pelo meio tem o seguinte parágrafo:

“Me vejo andando um passo rápido que eu nem precisava me vejo tomando decisões e dizendo frases frases ridículas e comendo e bebendo pães e águas que nem gosto e declamando parágrafos frios parágrafos fictícios parágrafos inteiros que parece eu sempre soube de cor. E fazendo movimentos tristes com o corpo e pensando em multidões marchando dançando correndo fugindo e eu querendo ser.”
(p. 36)

Ao incluir em uma suposta autoria minha alguns versos de Camões, não o estou, na verdade, desrespeitando. À la brasileira, o incluo desta maneira porque não tenho melhor forma de mostrar o que tanto me surpreende em sua leitura, e me surpreende a cada vez que pego Os Lusíadas para folhear, como fiz no preparo desta palestra. O que me surpreende é sua absurda atualidade. Camões é, ou poderia ser lido, como um autor contemporâneo. Ouso dizer que o próprio Camões, a justo título o nome maior das letras lusitanas, ele próprio me permite agir assim. Ao não se ver herói de seu próprio texto (e poderia falar aqui de seus múltiplos e encavalados narradores, o que também denota uma autoria “compartilhada”, includente, não autoritária, mas isso fica para uma próxima palestra), Camões tem o que a arte – qualquer uma – apresenta hoje de melhor: a não fronteira entre autor-leitor, ficção-não ficção, literatura-testemunho do vivido. Ao contrário de um modernismo de que Mário de Andrade desconfiou, e Machado caçoou, e que hoje se mostra, com suas certezas e empáfia, tão a nu, a contemporaneidade, aí incluída a camoniana, traz o que já sabíamos ao lê-lo: somos frágeis, muitos, e não temos certeza de nada. E, em lidando com a produção de bens simbólicos – que é o que nos interessa aqui hoje – alguns dos processos pré-modernos, preservados às custas, é verdade, de muita pobreza e religiosidade, caem à perfeição para espelhar tais condições e pô-las, vivas, em uma nova discussão através da estética.
Por exemplo, o Brasil.
Cito o pesquisador de música popular brasileira Henry Burnett, em seu livro “”Nietzsche, Adorno” que, por sua vez, cita Mário de Andrade:

“No final de 2004, um grupo chamado A Barca empreendeu uma viagem nos moldes daquelas organizadas por Mário de Andrade, desta feita em busca de material musical recente pelo interior do Brasil. Entre o que a Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade coletou em 1938 e o que os pesquisadores do grupo A Barca registraram entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005 pouca coisa se modificou na sonoridade e na dimensão terral dessas manifestações musicais. Podemos especular sobre essa estranha preservação. Um tipo de autoconsciência das comunidades, que sabem a essa altura que suas festas são consumidas nos centros econômicos do país como um produto exótico; o já mencionado subdesenvolvimento ou, por fim, uma força de permanência ligada ao vínculo dessa música com a religiosidade popular, sempre intacta no interior do Brasil; ou nenhuma das anteriores.”
(p.178-179)

“Coisas que os homens não entendem” não é meu único livro em que faço referências diretas a obras canônicas. É o único, contudo, em que emprego diretamente fragmentos da obra famosa. Em “A um passo”, uso a mesma estrutura que Shakespeare usou na sua peça “A tempestade”, ao inserir uma cobertura ficcional abrangente encobrindo a ficção propriamente dita. Em “A tempestade”, o personagem Próspero é quem se revela o criador da trama narrada, estando ele na própria trama. Faço o mesmo em “A um passo”. Mas, para minha defesa, cito Próspero nominalmente no final. Em “Às seis em ponto”, a referência é mais velada, indireta. Uso a dicotomia, que sempre muito me espanta, entre a vida e a obra de Velásquez e introduzo dicotomia igual, embora em registro de farsa, na minha trama. Como se sabe, Velásquez se apresentava como cidadão exemplar, amigo do rei, seguidor fiel da Igreja, com ambições modestas e nenhum traço de rebeldia. Até começar a pintar. Aí vemos a caricatura do poder nos vários retratos que fez do Conde de Olivares, sempre com a cabeça ridiculamente pequena para um corpo disforme de tão grande. Vemos, pela primeira vez na história da pintura ocidental, a classe operária merecer o tratamento nobre da tinta a óleo no quadro “As fiandeiras”. E temos um verdadeiro tratado revolucionário no quadro “As meninas”, com o vira-lata em primeiro plano, as empregadas domésticas em segundo e, no espelho do fundo, o reflexo do rei e da rainha no papel de admiradores do quadro. Ou seja, uma inversão espantosa. Serviçais e animais domésticos merecedores de uma representação em material nobre, e a nobreza máxima no papel de povo anônimo. Mas, na vida cotidiana, Velásquez era a cordura em pessoa. Shakespeare e Velásquez são, portanto, outros criadores canônicos de quem me aproprio porque os vejo como contemporâneos. Em mais de um aspecto. E aqui entro em uma consideração da política da arte. Tanto quanto Camões, nenhum dos dois desejava, na sua vida cotidiana, nada além do aplauso, da remuneração financeira. Velásquez pediu a Felipe IV que lhe pagasse por mês em vez de por obra, para garantir um dinheirinho certo, constante. Shakespeare não hesitava por um segundo em incluir trocadilhos os mais grosseiros, frases de duplo sentido escatológico, lado a lado com sua sofisticada poesia, em troca de risadas de sua plateia inculta. Nenhum deles queria derrubar o poder.
O artista de hoje também não é revolucionário em sua vida cotidiana e, mais frequentemente do que eu gostaria, também não em sua literatura. Quer sucesso e a inserção social em um dos poucos segmentos que ainda garantem uma certa durabilidade em termos de reconhecimento. É em geral oriundo da classe média, vive nos grandes centros urbanos, branco, heterossexual, universitário, homem. Conhece e pratica a seu favor as leis de mercado.
Acabo de ganhar o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras por outro livro meu, o “Nada a dizer”. Vou falar um pouco sobre esse livro e sobre esse prêmio.
“Nada a dizer” também fala de uma viagem, embora curtíssima. A narradora do livro sai do quarto de dormir e vai para o quarto de hóspede. Trata-se de uma traição. Um casal de meia-idade, juntos há muito tempo. O homem tem um rápido caso, se arrepende, mas o desastre está feito. A viagem narrada pode ser curta, mas é dolorosíssima. Aqui também o narrador, aliás a narradora, se mete em meio à trama para dizer que não vai conseguir contar a história a que se propôs: um possível assassinato. Toma a palavra como quem de fato inventa e não apenas vive o inventado.
Cito o trecho com que termino o livro:

“No quarto de hóspedes não engrosso a voz que não emito. Vejo, irônica, muito de longe, esse alguém que arredondaria ficções a serem feitas, como já as fiz tantas. Alguém com lógica, acuidade, racionalidades.
Alguém que dissesse claramente quem matou, como matou, quando. Que mentisse. Que não dissesse, não claramente pelo menos, que quem mata sempre sou eu.
(Aqui, nesse caso específico, poderia dizer, essa voz, que inclusive eu estive várias vezes na clínica da família de N. Pois, por gentileza dela, peguei, logo quando nos conhecemos, um trabalhinho de redação para o site que eles mantêm no ar. Eu poderia ter voltado. Conhecia os corredores.)
Eu, que mato mesmo quando a morte é descrita como natural, acidental. E mato porque quem conta sempre mata aquilo que originou o conto.
Aqui, então, nessas últimas linhas do meu relato, entraria essa voz a levar, a mim e a todos em volta – os seres reais e os imaginários – até um fim perfeitamente tranquilizador. A voz – que não mais tenho – das soluções dos problemas. Dos problemas reais. E dos inventados – para que fiquem mais fáceis, os reais.
Não vai acontecer. Não é mais possível.
Não tenho a menor ideia de como Antônio Carlos morreu. Deixo esse crime assim mesmo, pela metade.
Sem histórias pela primeira vez na vida, estou bem assim.”
(p. 161)

Revolucionário? Não. Mas vejam bem. Qualquer criador, apenas pelo fato de existir, traz, hoje, uma presença desestabilizadora para o sistema ao qual ele deseja tanto pertencer. Somos excedentes. Somos muitos. Ninguém precisa de nós. A economia não nos absorve. Escrevemos sem parar, pintamos, armamos instalações, performances, fazemos objetos esquisitos que ninguém entende. É na nossa existência que está nossa declaração política. Se, além disso, não pertencermos às camadas mais próximas do poder – seja na sociedade ou no campo literário ou artístico em que atuamos profissionalmente e que, sempre, espelha a sociedade que lhe deu origem – então nosso grau de resistência política aumenta em muito. Eu, por exemplo, não pertenço a tais camadas. Sou mulher em um campo profissional dominado por homens. Venho de um país sem importância cultural, escrevo em uma língua que, embora disseminada por todos os continentes, têm falantes que pouco leem. E, na minha biografia, apresento, não sem um certo orgulho, uma origem em regiões e classes sociais distantes do poder. Ganhei esse prêmio, acho, muito por causa disso. Ana Maria Machado, que foi eleita presidente da Academia logo depois da concessão do meu prêmio, tem uma política includente de segmentos tradicionalmente alijados. Ela própria é consequência e causa desta tensão. Basta lembrar que até pouco tempo mulheres eram proibidas de entrar na Academia.
“Nada a dizer” talvez seja editado aqui em Portugal pela Quetzal, ainda não sei ao certo.
Ganhei um prêmio raramente atribuído a mulheres. Edito meus livros, no Brasil, por uma editora que me suporta nos dois sentidos que a palavra suporte pode ter: é uma editora que me dá apoio e que me aguenta. Pois pouco vendo. Em termos puramente mercadológicos, eu não deveria ser publicada por ela. Trata-se de uma grande editora, talvez a maior do meu país, acaba de se associar a um grupo poderoso internacional. Não está lá para brincadeiras. E no entanto eu pouco vendo. E eu pouco vendo há muitos livros. E ela continua a me editar, e me editará, mais uma vez, assim que eu voltar. No meu caso, a Companhia das Letras, tanto quanto o prêmio da Academia, são brechas que, sim, existem. Eu estar aqui hoje falando com vocês é outra. Como diz um professor meu de história da arte, o Renato Brolezzi, antes de suas longuíssimas e sempre maravilhosas aulas sobre Renascença, Barroco: estamos aqui para perder tempo, nada do que falaremos hoje serve para absolutamente nada.
Só que não há nada mais revolucionário do que agredir os conceitos de eficácia, rapidez e produtividade que nos submerge a todos no caos que hoje vemos.
Bem, vim aqui para explicar por que me apropriei de Camões. É por isso. Porque ele é absolutamente atual. Faz parte da minha vida, hoje. Digo hoje mesmo, dia 17 de janeiro de 2012. Amanhã saio de Lisboa e volto para o Brasil. Essa volta não poderia ser mais camoniana. Ao lá chegar terei de enfrentar a inserção de um novo. Trata-se de um novo texto, que entrará em preparação para edição. Sim, este novo livro fala mais uma vez de uma viagem. Desta vez uma viagem já acabada há muito. A viagem de migrantes europeus chegados ao Brasil devido à Segunda Guerra. Estão mortos quando o livro começa. É da vida de seus descendentes que se trata. E o narrador, mais uma vez uma mulher, ao se deparar com o luto e a morte que foram trazidos por esta viagem antiga, inventa uma nova, ficcional. Inventa uma história de amor para quem provavelmente não a viveu. O livro vai se chamar “O que deu para fazer em matéria de história de amor” e já há velhos-do-Restelo a me dizer ao pé do ouvido que eu não deveria enfunar essa vela, que eu só vou me arrepender. Mas lá vou eu, a convencê-los e a mim mesma de que não.
Vou terminar citando um português, o Lobo Antunes, e fazendo um comentário mais para o técnico. Espaço e tempo são dois conceitos que volta e meia trocam de lugar. Na arte religiosa da Idade Média, havia uma eternidade ao fundo e uma contingência em primeiro plano e era essa dupla temporalidade que produzia significado, mais do que o fato de serem dois espaços em separado. No século XX, ao contrário, tudo virou impactos imagéticos dos quais não se exigia ligação temporal para a formação de sentido. Acho que, no século XXI, estamos vivendo outra dessas trocas. Culpa da internet, da física quântica ou de ambas. Mas experimentamos uma vaga sensação de onipresença (a onisciência talvez demore mais um pouco). Isso equivale a dizer que o espaço parou de produzir sentido e que passamos a procurar, esse sentido, a partir de noções temporais, temporalidades. Descrições espaciais se tornaram, na literatura, descrições de temporalidades, às vezes concomitantes, como no romance “As naus”, do autor a que me refiro. Lá, uma Lixboa, grafada com um atemporal “x” no lugar do “s” atual, existe ao mesmo tempo hoje e nos tempos das caravelas de Camões. É muito bom, verdadeiro, é como de fato a percebemos. Ou pelo menos, como eu a percebi, hoje de manhã, a andar por suas ruelas tortas.

Referências bibliográficas:

BURNETT, Henry (2011) Nietzsche, Adorno. São Paulo:Unifesp
COLLIN, Luci. (2011) Com que se pode jogar. Curitiba: Kafka.
LOBO ANTUNES, António. (1988) As naus. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. (1994) Um homem célebre. In: Obra completa, volume II. Rio de janeiro: Nova Aguilar.
VIGNA, Elvira. (2002) Coisas que os homens não entendem. São Paulo: Companhia das Letras.
VIGNA, Elvira. (2010) Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras.

 


Trabalhos acadêmicos

 

 

MIRANDA, Adelaide. “Desterritorialização, refabulação e a cidade literária em movimento em Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna”. In: Nau literária, crítica e teoria de literaturas. Porto Alegre: UFRGS, volume 8, # 1, 1-19p.
este texto está disponível para download

 

 

MIRANDA, Adelaide. “A amnésia no campo minado: o papel do esquecimento na literatura brasileira de autoria feminina”. UnB, Instituto de Letras, programa de pós-graduação em literatura, abril 2011.
este texto está disponível para download

 

 

DA MATA, Anderson Luís Nunes. “As fraturas no projeto de uma literatura nacional: representação na narrativa brasileira contemporânea”. UnB, Instituto de Letras, programa de pós-graduação em literatura, maio de 2010, orientação Regina Dalcastagnè.

Coisas que os homens não entendem, 2002

ELVIRA VIGNA: COISAS QUE OS HOMENS NÃO ENTENDEM (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.; Suécia, ed. Tranan, 2005, 220p.)

arquivos internos de ‘coisas que os homens não entendem’:
críticas no exterior
críticas no brasil

 

 

 

 

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Epígrafe:

“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”
(Canto V dos Lusíadas, Luís da Camões)

 

 

Capítulo 1:
Já faz muito tempo e é dessas coisas que a gente conta e reconta até perder completamente o que queria dizer e nem que soubesse. Porque é dessas coisas que você nunca soube bem o que queria dizer, mas apenas que queria dizer algo, o que já é muito num mundo em que tão pouca coisa quer dizer alguma coisa. Mas enfim, é uma dessas coisas então. E faz muito tempo. Mas eu estava em Nova York e eu já voltei a esta cidade muitas vezes, depois, a ponto de não haver mais nada daquela Nova York, a primeira, nas Novas Yorks posteriores que eu fui colando por cima. Então só ficou isto. Um conto, um caso, algo que eu já vou contando sozinha, sem nem precisar lembrar, no piloto automático. E é este o único espanto: que uma coisa que foi tão marcante hoje seja contada assim, no piloto automático. E eu conto como um começo, um prólogo de algo que ainda está por vir, porque eu nesta manhã tão igual a todas as manhãs, com meu casaco de lã que eu não agüento mais nem olhar, eu ainda acho que vai haver algo, acontecer algo. Talvez na festa de hoje à noite. Ou depois. Mas agora, porque preciso começar, tento lembrar mais uma vez da cara de Eva dizendo hã, hã e o que me vem não sei mais se é o que era a cara dela ou se sou eu, montando uma cara, restauração de pintura renascentista porque isto eu sei: ela era gorda e rosa, renascentista. E no entanto, do Brooklyn. Eu disse a ela que adorava o século XVI, ela respondeu hã, hã.
Eu tenho vontade de rir quando lembro o hã, hã e o olhar em branco. Século XVI? Eu estava falando em algarismos romanos para uma americana do Brooklyn. Eu, para variar, estava de sacanagem.
Na época eu fazia uma pesquisa nas bibliotecas americanas já pensando em aproveitá-la, depois, para alguma picaretagem da festa dos 500 Anos, quem não teve alguma picaretagem com os 500 Anos? Bem, eu tive. Naquele primeiro dia com Eva falei muito, estava mesmo gostando de chamá-la de burra sem usar a palavra burra mas seus sinônimos: astrolábios, monções e genoveses: mais hãs, hãs. Quando cansei dei uma mordida, não nela, ainda não nela, mas no sanduiche com cebola.
E aí eu disse, ih, cebola, fingindo que não sabia que tinha cebola no sanduíche que eu comia todos os dias, igual todos os dias. Ela diz que também não gosta de cebola e eu continuo meu jogo: eu gosto.
Eu gosto, disse. E completei:
“O problema é o hálito”, e dei uma baforada na sua cara.
Ela ri desarvorada. Eu gosto, gostava, quando ela ficava desarvorada, olhando em torno, não foi tudo sacanagem, teve coisas de que eu gostei.
E continuei, naquele primeiro dia, implacável como sempre sou e fui:
“A vela redonda.”
Ela me dá outro olhar em branco e eu explico, dulcíssima, que a vela redonda na verdade era quadrada, coisa de português, como será que se diz coisa de português em inglês.
Ela pergunta o que eu vou fazer de noite.
Eu ia beber, e porque tanto fazia, termino o nosso joguinho: se ela quer ir. Quer. Então vá se arrumar. E ela levanta, fechando pudica o roupão branco.
É uma das tais coisas boas que afinal as teve, a lanchonete vazia, lembro de ela indo embora, a bunda grande embaixo do roupão branco e lembro gostando mais da lanchonete vazia, como sempre ficava, naquela hora. As cadeiras agora mudas, depois do arrastar contínuo, o dia inteiro, no chão de ladrilho. E o som também emudecido da televisão que, sem som o dia inteiro, só ficava gritantemente sem som agora que os outros sons sumiam, a lanchonete vazia. Era tarde. O rapazinho me espera para poder ir embora, todos os dias a mesma coisa. Um primeiro sanduiche, e depois o segundo. Nesta época, já no fim, ele aceitava me dar o sanduiche do jeito que eu queria e o queria igual há tanto tempo, mas ele me obrigava, quente ou frio?, com picles ou repolho?, aberto ou fechado?, para levar ou comer na hora?, e eu respondia, até o fim eu respondia. Mas no fim, o segundo sanduíche — não o primeiro, mas o segundo — ele aceitava me dar sem perguntar como eu o queria, mas acrescentava, qual a bebida?, como se houvesse diferença entre um ou outro líquido doce gaseificado. Eu cumpria o ritual, obediente: frio, picles, fechado, mas na bebida eu me encalacrava, qual a bebida, e eu ficava olhando para ele, perplexa, quase em pânico, qual a bebida. Não vendiam álcool, como estipular diferenças se não vendiam álcool?
Naquele primeiro dia, Eva saiu rebolando e eu pedi o segundo sanduiche porque queria mostrar ao rapazinho que tudo continuava igual e pela primeira vez disse repolho. Quem mandava? Quem estava no controle? Eu, seu idiota.
E quando afinal fui embora, não só da lanchonete, mas das ruas com os sacões pretos de lixo e as poças piscantes de néon, quando eu fui embora do edifício velho e do barulho do elevador velho, eu devia ter tido o ataque de gênio de dizer:
“Mas Eva, o que está acontecendo é a continuação daquela nossa primeira conversa, a frase que você não me deixou terminar. Que a vela redonda, agora você já sabe, possibilitou a volta, foi isso o grande feito português, foder com a viagem de todo mundo. Adeus sonho de ir, ir, e não voltar jamais. Pois então é isso. Voltei, vou voltar, estou voltando.”
Mas eu não estava para ataques de gênio quando saí de lá achando que voltava de vez para minha terra e me enganando, que de lá voltei para cá e daqui voltei para lá antes de voltar para aqui e agora nem sei se aqui estou, ou se lá, como diria o Camões. E a única coisa real é o meu casaquinho cuja lã, velha, faz bolinhas, e que eu visto pelas manhãs e que eu não lembro mais se já o vestia por lá, mas provavelmente não. Provavelmente vestia outro, porque isto tudo faz muito tempo.
Este caso, então, o “Prólogo” e que vai ver nem é prólogo, porque tem sempre um antes e um antes do antes, mas este caso eu gosto de contar como tendo começado naquele dia em que eu achei de convidar Eva para beber por puro desfrute, por tédio, por acinte, convite feito em uma lanchonete que melhor ficaria se sem ela, se vazia, é assim então que eu começo, naquele dia, nós pelas ruas, mas minto. Eu na verdade, quando voltei para cá, como voltei, não achava que ia voltar para sempre. Eu comprei passagem de ida e volta, acabo de me lembrar disto, eu tinha uma passagem ida e volta. Ou seja, voltava, dizia que voltava, mesmo para mim me dizia que era a volta e me despedia das coisas, dos cantos, do lixo, mas no bolso uma ida e volta, um plano B.
Mas naquele dia, eu e Eva fomos pelas ruas molhadas, seguindo outras pessoas que davam passos largos e falavam e riam, à vontade nas ruas, elas, e lá pelas tantas, na nossa frente, um grupo de japoneses, e eu fiz uma brincadeira, o papo rolando difícil.
“Já reparou como calção sempre fica largo em japonês?”
“Há, há.”
Era verão em Nova York. A subida da Quinta fazia seu recorte no vermelho sangue do céu de verão de Nova York, nem tudo foi ruim, houve coisas de que eu gostei.
Naquele dia, os japoneses que iam na frente de mim e de Eva pelas ruas tinham saído de alguma academia de ginástica e um deles, de vez em quando, dava uma raquetada no ar, mortal, o zzzzz interrompido por gargalhadas ininteligíveis, de japonês.
Eva queria vir comigo para o Brasil, queria ir para qualquer lugar, na crença americana de que basta ir a qualquer lugar do mundo para se dar bem, ganhando muito dinheiro dos nativos. Então era Brasil porque ela tinha descoberto que eu era brasileira, mas podia ser Pago-Pago. Naquele primeiro dia, depois, já no meu apartamento, ela soluça. Bebeu demais e agora soluça e a cada soluço a alcinha caía mais um pouco. E ela diz:
“Me leva para o Brazil! Me leva para o Brazil!!”, isso em inglês – e eu pensei na hora e ainda penso que foi a primeira vez na história do planeta que esta frase foi dita em inglês, acho que as ondas sonoras ainda devem estar por aí modificando para sempre as condições fisico-químicas da atmosfera. Eu só podia rir, e ri.
Aí fui colocar uma água para esquentar e ela perguntou se tinha decaf, sempre admirei isto neles, esta capacidade de, mesmo com o olho cheio de lágrima e o nariz escorrendo, continuar pensando rápido sobre o que quer e o que não quer, e ela queria decaf. Como depois quis sempre quiche de espinafre, açúcar mascavo e tomates dos amishes sem agrotóxico. E este é o segundo motivo de eu ter entrado naquele avião, naquele primeiro, não foi o primeiro, enfim, naquele, no que me fez voltar, a primeira volta. Foi, além de tudo mais, porque eu queria fazer o que fiz assim que desembarquei, o sol pela janela do frescão, oito horas da manhã e eu só pensando em sentar num quiosque e mandar descer, a empadinha de camarão, o cachorro quente com bastante molho. E a birita.
Antes de Eva descobrir que eu era brasileira, ela achava que eu era alemã. Sempre contava isto para as pessoas mas não acrescentava a explicação que eu lhe dei para este seu engano e que era a seguinte: falava, falo inglês com raiva, o que fica parecendo alemão.
A raiva: o passeio, por exemplo. Lá pelas tantas fui convidada para um passeio campestre. Um parque das redondezas, deserto. Nosso grupo na beira de um lago, também deserto, passa por nós uma família de patos selvagens, com seus filhotes, e eu estico a mão para tentar pegar um deles, mas só eu. As outras pessoas estavam imóveis e se encolhendo para não invadir o espaço dos patos, uma leve censura pelo meu gesto, perdoável apenas porque sou um ser primitivo, fazendo o que fiz por ignorância. As pessoas tinham um sorriso petrificado na cara, e esperaram os bichos passar para voltar a se mover. Contatos não admitidos. Depois de uns dias, falando com um vizinho, me animo — decorrência sem dúvida de ter sido convidada, antes, para o programa no parque deserto — e toco em seu ombro. Ele se encolhe com o mesmo sorriso petrificado, eu, o animal de outra espécie com quem ele momentanea e desconfortavelmente se via obrigado a conviver.
Então teve isso, a raiva — o maior motivo de ter havido Eva. E quando começa uma raiva? difícil saber, mas foi antes, muito antes. Então o prólogo verdadeiro é a raiva, o que me fez chamar, psiu, aquela mulher cor-de-rosa e rebolativa, na lanchonete quase vazia. Já a conhecia, claro, e ela a mim. Ela era a autora das poses ridículas, dos pastiches de sensibilidades das terças e quintas. Era daquele rosa de anilina que eu extraía traços pretos de carvão a quase rasgar o papel rough, reciclado – a escola, de arte, seguia o esperado do bom-mocismo vigente: papel, só reciclado. Tem uma hora que de fato tanto faz e então eu fiz psiu.

Eva preferia, em sua atuação de modelo, as poses que exigiam braços para cima, sobrancelhas idem. Depois fiquei sabendo do seu sonho de criança, de bailarina de tutu e long cou, no francês rimado e intrinsicamente errado de uma judia do Brooklyn. Mas não conseguiu, primeiro os croissants dos lanchinhos. Depois Daniel. Então ficou naquilo que eu conheci, os cisnes mortos que eram matados outra vez com a frase de atenção, pessoal, à curva do braço. As mãos de capelas sistinas mas as unhas às vezes sujas, e para terminar, ou melhor, para o grand finale, joelhos ao chão nas pietás das duas e meia – sempre muito rápidas porque Eva se atrasava mas o homem que vinha depois, não. O homem que vinha depois era um negro com o sexo também negro, embora de tom arroxeado, testículos e pênis em um degradé sutil chegando ao roxo batata que eu, estrangeira a mais não poder e não só do ponto de vista geográfico, olhava avidamente, tentando buscar lembranças cromáticas, olfativas, (obs)cênicas. Inutilmente. Cheguei a insistir comigo mesma por um bom tempo, depois desisti, e fiz o psiu, no foda-se.
Este modelo masculino fazia bem mais sucesso do que Eva, e era este o problema, me explicou ela entre seus soluços de bourbon — que ela, falsa abstêmia, tomou “só para me acompanhar”. As poses do homem não pertenciam à categoria sensibilidade, pelo contrário, pernas abertas, cara de tédio, talvez peidasse. O homem olhava os alunos nos olhos enquanto, não só eu mas todos, nos esforçávamos para olhar pênis, testículos e o resto todo da negritude como se — uma impossibilidade ôntica — natureza morta fôra. Natureza morta sendo o assunto da aula seguinte, destruíamos assim, cotidiana e firmemente, a ordem linear, científica, anglo-saxônica do currículo do curso, cujo nome correto, o do folheto, eu já esqueci.
Freqüentei esta escola só no primeiro ano em que fiquei por lá. A finalidade das aulas era ampliar as técnicas offline do curso acadêmico de animação em 3D. Eu trabalhava como assistente da sala de fotografia e, com isso, ganhava o direito de freqüentar um dos cursos, à minha escolha. Peguei modelo vivo porque queria chegar perto, nem que fosse só com o fio – queimado, já tornado carvão – a ligar a natureza mais, ou menos, morta ao papel necessariamente reciclado.
Não posso dizer que não tenha dado certo.

Na minha frente, naquele primeiro dia, no meu apartamento, Eva soluçou sobre a falta de caráter do diretor. Porque, em que pese o esforço de considerar pênis e testículos natureza morta, ou por causa mesmo deste esforço, todos preferíamos o modelo masculino. Só a necessidade politicamente correta de haver um homem e uma mulher na aula de modelo vivo ainda mantinha Eva no emprego. E, conforme me explicou entre soluços/arrotos etílicos, a professora que tinha indicado o nome dela para a escola acabara de cair em desgraça por pura implicância do diretor, um fascista, e eu concordei, fascista, fascinada. E ela então queria ir para o Brasil. Bem simples. E o filho, se apressou a me dizer, ficaria com o pai por uns tempos. E me olhou esperançosa.
Nós, os que temos um sonho, os que nos inventamos a cada dia, os que fazemos as nossas viagens sem saber se são de ida ou de volta mas que desejamos que seja para sempre. Foi neste momento que gostei um pouco, o pouco que deu para gostar até o fim, dela.
No bar onde tínhamos ido beber naquele primeiro dia, pedimos sushis. Eu, uma cerveja escandinava, depois vários screw drivers. Ela, uma bebida não alcóolica indiana, depois bourbon. O bar era uma imitação de pub inglês, e o bartender, que falava um inglês australiano, mexeu por muito tempo no telão até achar um clip do Haiti. Falavam uma língua eslava perto de mim, dava para fechar os olhos e viver em lugar-nenhum, nem sempre foi ruim.
Não sei quando Eva começou a desistir, a perceber que não ia acontecer, essa viagem de sonhos comigo para o Brasil. Foram vindo outros sonhos, um deles na forma de um rapaz, um cara que prestava serviço no escritório onde ela acabou por arranjar um emprego de digitadora, depois de ter sido despedida como modelo. Eu o conheci, um rastafári tecnocrata. É um tipo comum por lá: uma fera no computador, mas de trancinha e olho vidrado. Mas não foi este o motivo de nada, imagine, um homem, tão pouco.

No último dia, antes de eu sair pela porta mal pintada, ainda sozinha na mesa de fórmica, comi um pão preto com queijo sem gordura pensando que aquela era a última vez em que eu ia comer pão preto com queijo sem gordura. Não esperava ninguém. Achei que iria levantar, sacudir os farelos, sair, tlec. Daniel, minha sorte, passando uns dias com o pai, Eva só devendo chegar do trabalho – um extra que fazia aos sábados – depois de eu sair. Chegou antes. Se Daniel estivesse lá seria pior, acho que não ia conseguir sair sem dizer ciau, sem dizer, bem, querido, até daqui 15 dias, de qualquer maneira a gente vai se ver. Ou qualquer coisa assim, sem conseguir parar de falar e de passar a mão no seu cabelo sempre tão curtinho que chegava a espetar. Se fosse Daniel seria difícil, mas Eva?, foi fácil.
Chegou antes da hora em que devia ter chegado, tomou um banho, colocou uma blusa decotada e ficou lá, sem fazer nada, me olhando para ver se eu falava alguma coisa que permitisse a ela gritar, falar, me apontar o dedo. Já vinha ensaiando há algum tempo. Trazia às vezes uns plásticos — mais de mil anos para se decompor — de salvem as baleias. Num dos últimos fins de semana disse que ia, junto com o rastafári e sua turma, abraçar uma árvore perto da usina nuclear. Chegou morta de frio, aumentou o termostato. Eu nem rio. A Amazônia tinha virado assunto de uns comentários enviezados. Se Eva fosse mais esperta eu ia pensar que ela estava já preparando o fim, ajudando, de uma certa maneira. Mas como não era esperta, acho que ela realmente achava tudo o que falava.
Compro então a passagem, ida e volta, o plano B: qualquer coisa e eu voltava, oi, oi, foi tudo bem na viagem, e aqui? Mas tiro todo meu dinheiro da conta, o aluguel já estava em nome dela. E fiquei pensando, já com o verbo no passado: foram dois anos. Eu tinha tido só dois relacionamentos longos em toda minha vida, e este — em termos de tempo corrido — foi o mais longo dos dois. Dias antes ela tinha perguntado, perguntou sem perguntar, afirmando, que eu não precisava viajar, que não havia uma necessidade real e objetiva para vir para o Brasil, e era verdade. A encomenda podia ser feita perfeitamente no computador.
Perguntou nesta mesma ocasião se eu ia ficar em Seinta, caprichando na pronúncia que ela sabia errada, e querendo dizer com isto que eu ia para um lugar ridículo, vagabundo, com o nome de Seinta. Disse que sim, surpresa de ela se lembrar da palavra, e na hora em que eu disse que sim — para contrapôr uma seriedade ao seu Seinta ridículo, acrescentei: é, Santa, sim, Santa Tereza — embora eu naquela hora ainda não soubesse que era para isto que eu vinha.
Como se pudesse ser diferente, como se desse, se houvesse alguma chance de ser diferente. Eu nos meus enganos, sempre achando que o próximo passo eu que invento, me enganando, não querendo lembrar o que já sei desde o Século XVI, que a chegada está já na partida. E ainda hoje, no meu casaquinho, tentando descobrir se o vice-versa também é verdadeiro.
Mas sim. Mesmo depois de ela dizer Seinta e eu corrigir Santa, ainda achei, por um tempo, que eu vinha para nada, para andar na praia, empadinha de camarão. E criei para Eva uma Seinta/Santa de TV, a imagem mais babaca e estereotipada que há e que estava lá, na minha cabeça, pronta desde sempre. Eu disse e dá até vergonha:
“Um lugar onde pobres e ricos se misturam em bares onde a qualquer hora do dia e da noite há sempre um samba sendo executado por gênios, verdadeiros gênios, alguns desconhecidos, outros famosos na Europa, no mundo inteiro. Negros, viu, negros de pau enorme. E índios, também de pau enorme. E cobras.” Nosso apartamento é no Village, ela franze as sobrancelhas, se perde um pouco, hein?, só falta olhar em volta.

Casas ricas lado a lado da favela, todos irmãos. Casas, lindas, antigas, de tijolos vermelhos e telhados inclinados de ardósia, bem inclinados, por causa da neve, dentro os pisos de tábua corrida em jacarandá. No terreno baldio uma goiabeira ou uma maple tree. E minha tia e um piano. E as grades de ferro trabalhadas, e as ruas de calçamento em pedras pé de moleque. Street boys’ feet stones on the street. Eu olho pela janela, um tratamento de imagem, em layers, e eu poria Nova York em Santa Tereza. E um rinoceronte, por motivos cênicos, dentro da rain forest, macacos, onças pintadas e rinocerontes.
“Rhinos, big rhinos.”
E eu ia ter de tomar cuidado com os rinocerontes que invadem, quando chove, a cidade. Garanti, e vim.
Antes peguei a mochila amarela, botei umas coisas dentro. Passo por ela na sala e de pé, perto da porta, não digo ciau. Ela também não. Saio e fecho a porta, o tlec. No táxi, naquele dia que era o último, eu pergunto ao motorista se ele conhece o caminho do aeroporto que evita os pedágios.
Ele se vira para trás com um sorriso nos dentões amarelos e um brilho no olho:
“Yes ma’m.”
O táxi daquele último dia balançou macio pelas ruelas e descampados da Nova York dos sem-dinheiro. Era quase noite. O vermelho ficou ainda por um bom tempo, à minha direita, recortando a cidade, e eu senti um pouco de frio.
Durante todo o tempo em que freqüentei a escola de arte, havia sempre uma exposição dos alunos no corredor da lanchonete. Naquele primeiro dia, quando Eva se levantou, ajeitou o roupão a caminho do vestiário e seguiu rebolando sua bunda grande, o fez por uma galeria de exercícios de agit-prop pretos e vermelhos, e seu andar bem nutrido e desatento por entre os cartazes de agit-prop era, ele em si, um agit-prop sobre a inutilidade das agitações/propagandas políticas, o andar dela falava de uma das minhas inutilidades, eu tinha outras. Tenho.

O assassinato de Bebê Martê – críticas

ELVIRA VIGNA: O ASSASSINATO DE BEBÊ MARTÊ (Companhia das Letras, 1997, 128p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

 

 

 

Bernardo Ajzenberg – Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, 22/02/97

O assassinato de bebê Martê sobrevive pela ambiguidade. Por mais atento que seja, o leitor ficará em dúvida quanto a um ou outro detalhe do enredo criado por Elvira Vigna numa narrativa curta, montada sobre sugestões – e esse é o maior mérito da autora.
Abstraindo sua ordem cronógica, uma mulher de meia-idade (a narradora) intercala eventos relacionados a duas festas, uma no presente da narração e outra no passado. Em torno de cada uma ocorre pelo menos um assassinato. Vigna lança iscas, atiça a curiosidade, constrói hipóteses ambíguas, mas os detalhes de tais mortes ficam por conta da imaginação do leitor.
A entrelaçar os eventos está a personagem Lúcia, também cinquentona e amiga da narradora. Ela participa das duas festas, de suas consequências e se envolve diretamente nos crimes, inclusive como vítima.
Sua existência, em contraponto com a própria narradora, permite a Elvira Vigna explorar tematicamente as vicissitudes femininas da meia-idade, as transformações impostas pelo tempo e pelo espaço cambiante, ao longo de quatro décadas, ao corpo e à alma, por assim dizer, de uma mulher no mínimo ambiciosa.
A capacidade de retratar o universo mental de mulheres que, embora emotivamente atadas a homens que nem sempre amam, fazem questão de coordenar seus destinos, eis, então, o segundo pilar da obra.
Além dele, registre-se a capacidade da autora de expor sem máscaras a sordidez – nada ambígua – que muitas vezes alimenta as relações entre as pessoas, mesmo em momentos os mais delicados, mesmo entre amigos ou familiares.
Dois aspectos, porém, limitam o encanto potencialmente enorme do livro.
Em primeiro lugar, abusa-se do flashback, transformado em recurso de aplicação quase gratuita. Tem-se a impressão, muitas vezes, de que, após escrever de modo linear o que tinha em mente, a autora picotou o texto e, com a ajuda do computador, redistribuiu pedaços aleatoriamente. Não se faz sentir uma lógica narrativa própria que imponha tal ou qual ordem ou rememoração.
Da mesma maneira, falta em O assassinato de Bebê Martê uma sintaxe identificável, uma combinação de palavras e de ritmos nas frases que permita considerar o tom coloquial usado pela autora como sendo fruto não de algo espontâneo e bruto, mas sim de um estilo conscientemente burilado. A coloquialidade, assim, viceja sem molho, empobrecida.
Tal fragilidade leva, em suma, a que sutilezas da narrativa não encontrem eco no automatismo da linguagem. E esse descompasso, entre forma e conteúdo, acaba por fazer de O assassinato.., um livro que cai bem mas fica devendo algo ao leitor.

Danielle Corpas – O Globo, Prosa & Verso, 29/03/97

De imediato, o título do terceiro romance de Elvira Vigna cria no leitor a expectativa de uma história policial. Assassinatos são associados a investigação, mistério, suspense. Mas a escolha das palavras faz soar uma nota de estranheza que não passará desapercebida ao leitor atento: por que o assassinato de Bebê Martê, se o natural seria “do” Bebê Martê? Essa ausência do artigo é o primeiro sinal de que o jogo de ocultação e desvendamento da verdade não se limitará ao crime mencionado.
A técnica da narrativa policial tem sido bastante empregada em romances contemporâneos. Numa época em que a leitura se torna uma atividade cada vez mais rara, o suspense pode ser um recurso precioso para seduzir leitores. A investigação mantém vivo o interesse pelo texto e dá margem à exploração de dimensões temáticas independentes da situação policial. É este o artifício de Umberto Eco em “O nome da rosa”: criar o mistério a partir de elementos que se interligam em outras redes de significação, como a História. Ao invés de reduzir-se a um relato sobre detetives às voltas com um serial killer, o romance adquire a complexidade de uma perscrutação de zonas variadas da experiência humana.

O assassinato como uma alternativa à banalidade

No caso de O assasinato de Bebê Martê, é sobretudo a esfera das relações interpessoais que está implicada no crime. O trabalho do leitor-detetive consiste em desvendar as analogias que se estabelecem entre duas histórias intercaladas: um assassinato ocorrido há anos e o presente da narradora. Em ambos os planos, a tensão entre ocultamento e revelação sobressai no jogo das aparências sociais. Os sentimentos sórdidos, os desejos mesquinhos que estão ocultos sob as convenções de comportamento são desamascarados pelo tom ácido da narrativa.
É bem verdade que esse tom acaba ficando monocórdio, e o excesso de acidez corrói os matizes das motivações das personagens. Nenhuma atitude escapa à crítica implícita na ironia com que as cenas são descritas, tudo é posto sob suspeita. Mas não deixa de ser instigante a identificação das máscaras. Com uma linguagem que incorpora bem o trânsito das percepções sensoriais e flui num ritmo quase oral, a narrativa é capaz de revelar, através de um gesto banal como o “Bom diiiia!” da secretária, o tom de farsa e o automatismo de pessoas que temem o autêntico contato como uma possibilidade de contágio.
A generalização das expressões filtradas pelos disfarces sociais confere ao sujeito o anonimato, condição da impunidade. Na era moderna, a valorização da individualidade acentua a função desfiguradora dessas máscaras, na medida em que a singularidade, produzida em escala industrial, multiplica o isolamento, tornando todos incógnitos uns aos outros. O homem moderno, como o personagem da novela de Edgar Allan Poe, é o homem das multidões: um criminoso em potencial, protegido pelo muro movente da massa e o escudo de uma indivualidade insondável. Na narrativa de Poe, o fascínio do mistério provém da possibilidade de se encontrar o incomum, algo que se destaque da normalidade repetitiva. É isso que fascina a narradora anônima do romance de Elvira Vigna. Ela se deixa envolver cada vez mais com a história do assassinato porque esta lhe parece uma alternativa à banalidade e à falta de perspectiva de seu cotidiano: “Eu devia ter matado meu pai, Lúcia matou. Daria uma história ótima para minha vida.”
Ëm movimentos circulares de repetição e alteração da cena do crime, que tornam discutíveis a hipótese de assassinato, a narradora pouco a pouco se apropria da história de Lúcia, e o presente de uma vai ao encontro do passado da outra. É pena que, no momento em que os planos se fundem efetivamente, haja um esvaziamento na tensão da narrativa. A linguagem perde a vivacidade e a fluência iniciais, e os conflitos se dissolvem com a dispersão provocada pelo excesso de novas referências na trama. Ainda assim o desfecho do romance é inusitado. A idéia de que um assassinato daria “uma história ótima” para uma vida anônima se desmente na medida em que o crime deixa de ser situação insólita para aparecer como conseqüência natural da farsa cotidiana. Estamos nos assassinando a toda hora na covardia, no egoísmo, na sordidez de nossas relações – é o que parece constatar a narradora com uma tranqüilidade cínica.

Jefferson de Andrade – Estado de Minas, seção Crítica, 01/04/97

Existem escritores que realizam seus romances buscando o que pode-se determinar de uma atmosfera. Não raro, deparo-me com autores com um tipo de narrativa que não vem a ser minha predileção. Sou honesto em confessar, por não poder me separar de certas preferências. O escritor opta por uma maneira narrativa e se gostamos ou não são outras histórias.
Como um leitor atento, tenho de descobrir, além de minhas preferências, se um determinado escritor realizou, na direção escolhida, um texto que realmente salta como um valor literário.
Para citar exemplos, faço uma comparação. E busco na literatura norte-americana três autores que leio com prazer. John Steinbeck, Hemingway e Willian Faulkner. Os dois primeiros realizam a literatura que normalmente leio com mais gosto. Mas nem por isso deixo de considerar Faulkner como absolutamente genial, um dos maiores expoentes da literatura. Ao me lembrar de Absalão, Absalão! consigo vislumbrar profundezas poéticas. Um crítico saudou o livro como a realização mais intensa de Faulkner, já que a estrutura ficcional da narrativa existe como se não houvesse outra forma de realizá-la.
Encontro em uma crítica de Jean-Paul Sartre, a respeito de Faulkner, a afirmação de que “uma técnica romanesca leva-nos sempre à metafísica do romancista.”
Como o nosso velho e conhecido dicionário registra que metafísica também é o adjetivo a significar sutileza e/ou transcendência do disccorrer, fica bem posta aí a afirmação para me remeter ao O assassinato de Bebê Martê, romance de Elvira Vigna, publicado pela Cia. das Letras. Pois a escritora, nascida no Rio de Janeiro, tem aquele estilo feito por atmosferas. Ela conta uma história, e é seguindo um fluxo, um discorrer, que se é a sua técnica preferida, não o é a que me agrada enquanto leitor. Tenho de deixar isso muito bem registrado. Na mesma direção, por exemplo, é ao romance Estorvo, de Chico Buarque de Holanda. Creio que foi um best-seller porque nós, os seus fãs de sua poesia e música, compramos o livro, pois não há tantos leitores assim que escolhem esse tipo de literatura para as suas preferências. Como não lia Estorvo para uma resenha, não passei da metade do livro.


Trabalhos acadêmicos:

LEAL, Virginia.  Diálogos (im)possível entre Editora Malagueta e Elvira Vigna. Paris: Sorbonne IV. Révue Iberical #2, 2012, p.111.
este texto está disponível online.

GUIMARÃES, A. M. A. . Reflexo da persistência. Correio Braziliense, Brasília, 28 maio 1998.

O assassinato de Bebê Martê, 1997

ELVIRA VIGNA: O ASSASSINATO DE BEBÊ MARTÊ (Companhia das Letras, 1997, 128p.)

arquivos internos de ‘o assassinato de bebê martê’:
críticas

 

 

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Capítulo 1 :

terça de manhã, pode ser que chova

Ela telefona chorando que tem que resolver logo, se o fax está ligado. Não está. Ela chora mais um pouco que eu não sabia como ela tinha passado a noite, para eu ligar o fax. Eu falo que não quero ler nada, e agora a previsão do tempo, cala a boca que eu quero saber se vai chover. Mas por que você não quer ler?, outro choro, então eu vou te ler alto no telefone. Não, eu digo, ler alto não, você sabe que eu não consigo prestar atenção pelo ouvido, mas que saco, Lucia, você fica forçando. Uma invasão de aranhas assassinas aterrorizando toda uma cidade, versão brasileira Herbert Richers, perdi a previsão. Desligo. Subo a escada. Ligo o fax. Saio para o trabalho. Nas minhas costas o barulhinho do fax cuspindo um véu de noiva escatológico, aren’t they all.
O elevador, o espelho do elevador. A moça que trabalha comigo diz que a gente só deve olhar em espelho conhecido e que mesmo assim se um espelho conhecido se meter à besta e espelhar torto, com ruga, papada, beiço franzido, cabelo escorrido, é jogar o espelho fora imediatamente.
Esqueci da faxineira. Volto, me sento na poltrona e espero. O fax está lá em cima, eu sei, mas fica para depois.
Vou fazer barato: oi minha filha, o material de limpeza fica embaixo da pia, tenho certeza de que você vai acertar tudo, eu sou boníssima, até logo.
O espelho do elevador outra vez, outra vez uma papada maior de um lado do pescoço do que do outro. Se eu me encontrasse na rua provavelmente não me reconheceria mas o guardinha da porta me reconhece. Vou chegar lá e ele vai dizer bom dia.
— Bom dia, senhora.
O ar condicionado do hall de mármore no suor da caminhada. É o tempo exato de o suor secar enquanto espero um dos cinco elevadores que chegam e saem sem nenhum barulho, quem faz barulho é a luz de cima, piiiim, depois a subida, a chegada e abrir o armário, já sem suor e até com um pouco de frio para pegar o casaco-de-trabalho que vai por cima de qualquer roupa e me deixa com cara de tia velha. É bom, os homens relaxam quando acham que você não quer ir para a cama com eles.
Preciso pensar em algo mais do que a implementação da reengenharia do processo que requer um sentido de urgência compartilhado por todo o grupo de trabalho teamwork entre parênteses.
Um romance de tirar o fôlego, cujo primeiro capítulo não vou mandar em fax para a Lucia porque eu tenho que manter uma certa hierarquia aqui. Ela me manda texto, eu não. Meu texto poderia ser só diálogos.
— Bom dia, eu sou a Ana, a faxineira que a dona — quem foi mesmo que recomendou essa daqui?– recomendou..
— Oi, Ana, teve dificuldade em achar o endereço? (meu deus, eu sou boníssima).
— Não senhora.
— Bem (pequena hesitação tipo não sou infalível, saberei compreender eventuais falhas tuas mas a cozinha tem que ficar bem limpa). Bom, vamos fazer o seguinte, senta, toma um café, pega um pãozinho na geladeira que eu já te explico tudo. Mas não se preocupe, você vai pegando o serviço aos poucos.
— Obrigada.
Mas ela não quer pãozinho.
— Pega um pãozinho, o que é isso.
— Não, obrigada.
— Ora, café puro. Pega um pãozinho.
Eu posso pegar o pãozinho e enroscá-lo boca adentro dizendo come, porra, você está estragando meu papel de boníssima.
A moça que trabalha comigo está parada na porta da salinha ascética cinza claro com detalhes cinza escuro. O Bom diiiiia que ela dá com a mesma entonação todos os dias é uma tentativa de imposição. Embora seja uma terça-feira tão chata quanto qualquer outra, oito e meia da manhã, estamos decidindo – ela ao dizer o bom diiia e eu ao responder – que está tudo ótimo, que estamos todos muito contentes, que nos damos maravilhosamente bem e que o dia vai correr com muitas alegrias.
— Bom diiiiia.
E ela me mostra a cicatriz da operação de gengiva que ela fez na sexta-feira passada, ontem não veio trabalhar, eu queria ser assim, ir matando o trabalho por qualquer operaçãozinha de reconstrução de gengiva e estrutura óssea de raiz de quatro dentes bom diiiiia, coração. E entorto um pouco a cabeça em mimetismo automático de fragilidade, vai ser difícil sair do papel de boníssima. Mas também serve, daqui a cinco minutos começo a contar para ela mais um pouco da minha vida passada, homens, dinheiro, epopéias, histórias dramáticas, engraçadíssimas, marcantes, um que outro personagem famoso, cenários exóticos, na verdade você ainda não sabe disso mas. Às vezes me preocupo com a congruência, mas só eu, ela devora tudo igual. Eu devia escrever. Quem sabe hoje ela retribui com um pouco de realidade, sabe, eu sou lésbica, ninguém aqui dentro sabe disso. Eu ia adorar mas entra o Evaldo, por que não tem flor negra? porque preto não é flor que se cheira e ele rola de rir, o lábio grosso escancarado, é baiano, se disser que é mulato, mata. Eu tenho que dar um jeito na minha vida.

 

A um passo – críticas

ELVIRA VIGNA: A UM PASSO (Lamparina, 2004, 188p.) – uma seleção de críticas e entrevistas sobre o livro.
– projeto Mais Leitura, 2014.

 

 

Maria Esther Maciel, orelha da edição de 2004, editora Lamparina

Uma obra pode ser medida, como já mostrou Paul Valéry, pela soma ou pelo rigor de suas recusas. E a palavra “recusa”, aqui, não designa apenas o ato de “não aceitar” ou de “rejeitar” alguma coisa, mas também o de “não se subjugar”, de “não fazer concessões”.
Em um tempo em que o exercício do óbvio, a repetição de fórmulas e a sujeição às conveniências do mercado tornaram-se dispositivos por excelência de boa parte da narrativa contemporânea, A um passo, de Elvira Vigna, destaca-se como um dos raros livros de hoje a fazer da recusa nos vários sentidos e rigores da palavra uma de suas linhas de força. Mesmo ao privilegiar como matéria-prima o prosaico e o banal, enfocando o aqui-agora do mundo e da realidade brasileira, a violência do cotidiano e a hipocrisia das relações sociais, o romance mina (recusa), através dos “ácidos, gumes e ângulos agudos” da linguagem, toda a previsibilidade que subjaz a essa mesma matéria. Sem deixar de contar uma histõria (no caso, uma história de vingança), recusa-se às facilidades da lógica linear e da referencialidade, optando por um enfoque elíptico e fragmentário das coisas; e sem se furtar ao coloquialismo não se presta à mera reprodução espontânea do falar diário, mas deste ousa extrair, pelo trabalho da escrita, uma sintaxe inusitada, uma dicção babélica, uma articulação de viés experimental. A um passo recusa-se, ainda, ao que comumente se espera de um romance: ele pode ser lido tanto como uma narrativa sequencial, composta de capítulos curtos e concentrados, quanto como um conjunto de contos avulsos que se articulam num jogo entre o sucessivo e o simultâneo, onde cada peça se basta e se encadeia às demais, abrindo várias entradas e saídas no texto. Para não mencionar o poema do final que, a título de posfácio, faz uma espécie de “desleitura” do próprio livro.
Tendo já publicado vários outros romances, todos marcados por um estilo perculiar (a autora é uma dentre os poucos que conseguem criar uma linguagem própria, inconfundível, dentro da literatura contemporânea), Elvira Vigna radicaliza, em A um passo, a sua leitura corrosiva da vida urbana brasileira dos dias de hoje, vida tempestuosa onde quase todos são exilados, estrangeiros dentro de seu próprio território.
Não por acaso, um dos personagens do livro se chama Próspero, em uma oblíqua (e irônica) alusão ao protagonista de A tempestade, de Shakespeare, só que agora visto como uma espécie de “náufrago urbano”, que vive seu drama ao mesmo tempo em que o transforma em uma ficção que, por sua vez, se nega como tal.
Assim, na soma e no rigor de suas recusas, o livro de Vigna pode ser considerado um salto, um ir mais longe da escrita, que também desafia o leitor a dar o seu próprio passo, ou salto, para o século XXI.

 

 

 

 

Mayra Corrêa e Castro no blog As melhores partes dos livros que li, agosto de 2012

O texto da orelha do livro diz:

A um passo recusa-se, ainda, ao que comumente se espera de um romance: ele pode ser lido tanto como uma narrativa sequencial, composta de capítulos curtos e concentrados, quanto como um conjunto de contos avulsos que se articulam num jogo entre o sucessivo e o simultâneo, onde cada peça se basta e se encadeia às demais, abrindo várias entradas e saídas no texto.”

Foi optando pela segunda maneira que li A Um Passo, romance publicado em 2004 pela carioca Elvira Vigna (1947), que também possui outros sete livros adultos e já foi autora de livros infantis, além de ensaios e traduções.
Para testar a teoria da autora da orelha, Maria Esther Maciel – que o livro poderia ser lido como contos – , abri primeiramente o 5º capítulo. Então li de 5 em 5 capítulos, até o 85. Voltei ao capítulo 2 e passei a ler de 2 e 2, pulando, evidentemente, os capítulos com dezenas cheias (10, 20, etc) por já os ter lido anteriormente. A experiência foi bizarra, mas os temas de Elvira e sua escrita também o são – estávamos empatadas.
Nessa altura, eu mais ou menos entendi o enredo da trama: tinha um assassinato, dois amantes estavam envolvidos, havia um casal gay, um caso de pedofilia. Quando eu deveria ter lido o capítulo 88, não li: não queria saber o final do livro. Por isso, voltei ao capítulo 1 e li todos os que faltavam: 1, 3, 7, 9, 11 e assim por diante, até chegar ao 88 e, depois dele, ao posfácio. Ah, finalmente as coisas fizeram mais sentido: tratava-se da história de vingança que uma menina do interior perpretava contra o antigo professor que abusava dela. Os demais envolvidos no crime (tinha havido crime?), eram apenas outras peças num tabuleiro de xadrez, funcionais, mas não responsáveis pelo xeque-mate. Este, o xeque-mate, só pude entender mesmo quando, lidas todas as páginas, reli aqueles capítulos múltiplos de 5, para terminar a leitura com uma certeza: Elvira não dá certezas e pra gostar do que se lê, tem que se gostar do estilo e dos temas, sempre aflitivos.
Mas acho que Maria Esther errou: mesmo na “dicção babélica” de Elvira, mesmo na ordem elíptica do romance, deve-se começar por uma das pontas – talvez a autora conte com este nosso hábito – o da linearidade – para dar conta da vida e das vidas que ela cria.
Abaixo transcrevo as melhores partes:

Enfado

“Não é só a bebida, o pó, o fumo, a vida inteira e mais uma porra de dia seguinte que sempre vem. Trata-se de fenômeno mais geral que atinge mesmo os sóbrios, os babacas, os que nunca pensam na vida, a humanidade inteira cada vez menos disponível para complicações.” (p. 16-17)

Morte/Vida

“Um fim. Fins são bons. Fim só acontece em ficção, nada na realidade tem fim, portanto um fim, quando acontece, significa que tudo que veio antes era ficção e é bom pensar a própria vida como uma bela e compreensível ficção.” (p. 28)

Abaixo da linha do Equador

“A sombra de um telhado oferece uma linha inclinada na paisagem. Outras inclinações, hesitantes, ficam por conta de postes que deviam ser cartesianos mas não o são, pois Descartes nos trópicos entorta. A culpa nem é de eventuais desastres de carro nas bases enferrujadas, mas da própria colocação deles, os noventa graus habituais sendo calculados no olho, um torto, o outro fechado, a ponta da língua de fora.” (p. 33)

– “pois Descartes nos trópicos entorta” é uma boa frase, não é? E não é que imaginamos mesmo o peão medindo a inclinação do poste fazendo a careta contra o sol que lhe bate nos olhos?

Interiorano

“Porque nestas cidadezinhas tudo é marrom, o marrom do solo subindo pelas pernas, pele das pessoas, pelas paredes das casas e tomando alento nos cantos das sarjetas, e os cachorros vadios e magros também são marrom, os pés dos meninos e os meninos e os calçõezinhos rasgados dos meninos, é tudo marrom.” (p. 34)

– Em Curitiba é o cinza que se tinta, mas não que nem São Paulo, pelo concreto. O cinza vem de lá, do céu que deveria ser azul no verão.

Complicações

“ ‘O que é?’
‘Não, nada, estou procurando uma coisa que eu perdi e que eu sei que não está aqui.’
Uma dessas coisas que se inventa para depois poder ter com o quê afligir na vida.” (p. 85)

– Lembra que as pessoas não têm disposição pra complicações? Pelo contrário! Viva a sarna pra se coçar, gente!

Urbe

“Ia ser domingo, o que se faz em um domingo. Haverá o barulho de um conserto ali na esquina, mesmo domingo, pois é fase de verbas. Quando as verbas acabam, interrompem, e por longos meses ficam os buracos transformados em lagos malcheirosos, e seus operários se sentam agachados na porta dos tabiques de madeira especialmente construídos para eles, não mais operários mas vizinhos, absorvidos pelo bairro. Mas agora não. Daqui a pouco haverá um silvo, a sirene avisando do começo da obra, e operários, ainda sob a luz bruxuleante dos lampiões feitos com querosene e latas vazias, passarão de lá para cá, com pressa, sem se falarem. E eles levarão, na cabeça e caindo por sobre seus ombros nus, sacos de estopa para proteção, como um capuz. E andarão para lá e para cá, um pouco curvados, sem se falarem, monges medievais a construir, não a unicidade espiritual do universo mas a perenidade universal das ações que se repetem. Como dízimas periódicas, obras de rua ou madrugadas.” (p. 94)

– Quando Elvira dá pra descrever o normal, é ótima.

A cidade da infância

“E percebe que é para isso que voltou, para ter certeza de que partiu.” (p. 117)

Calor

“(…) a chave caindo no meio de outros pontos brilhantes presos no asfalto, outras chaves, moedinhas que perdem valor a cada ano, tampas de garrafa, tudo semi-afundado no asfalto porque nos dias quentes não são só as coisas de metal que afundam, é tudo, o pé das pessoas, a vontade delas, em uma areia movediça, um pântano que inclui até o ar.” (p. 128)

– Apesar de vivermos num país sem invernos, o que ocorre que os efeitos do calor quase nunca são explorados nas tramas? Acho que precisa ser um escritor escrevendo fora do ar-condicionado para fazê-lo, como fazia Balzac, só que em temperatura inversa, em sua água-furtada.

 

 

 

 

 

entrevista ao site literário Paralelos, março/2005; repórter: Ronize Aline

1. Em seu recente livro, A um passo, em determinado momento você diz que o personagem vai fazendo correções na realidade, correções necessárias. Em outro momento você escreve que “histórias são chatas, se repetem como em um espelho, a única surpresa sendo a distribuição de papéis, quem fará o quê desta vez”. Que realidade é essa que aparece em seus livros e que precisa de correções? Estão todos, no fundo, tratando da mesma história humana e tornando-se únicos pela diversidade de
personagens que você insere neles?

A única maneira de a realidade produzir sentido é com as “correções” feitas pela ficção.
A ficção nossa, de todos, de todos os dias.
Isso é um lugar-comum.
Não é isso o importante no A um passo.
O processo de criação aqui é o de “correções” de momentos reais.
(Como em todos os livros de ficção.)
E mais a desfeitura das “correções”.
O que, acho, só começa a acontecer na literatura de agora.
Assim:
Eu tinha um arsenal de coisas vividas/ouvidas/vistas muito fortes, impossíveis de serem de fato compreendidas.
Todo mundo tem isso – uma cena que foi vista e jamais esquecida, ou o modo como alguém ria, ou o som de um tiro.
Adensei a carga emocional delas e fiz pequenos desvios, deslocamentos.
Entrariam assim em alguma história viável e passariam a ser, enfim, compreendidas.
(O que escritores fazem, todos, desde sempre.)
Aí entra o que eu acho só começa a existir agora.
Uma insatisfação com historinhas.
As coisas reais, vividas, duras, ficam apertadas, hoje, em historinhas.
Ao mesmo tempo, só elas sozinhas – reais, vividas e duras – não são literatura.
O A um passo é um conjunto de coisas reais, vividas e duras.
Mas é este conjunto depois que a história onde elas estavam foi esquecida ou dada por não ter jamais existido.
Então o conjunto contém a narrativa, embora ela esteja como se em off.
O A um passo não é exatamente, então, uma narrativa.
É mais o banco de dados emocional que resta depois que uma narrativa acaba.
Ou o banco de dados que existe sempre antes de uma narrativa começar.
Então, eu fiz uma história.
Depois cortei.
E fui cortando.
E estabeleci uma linha de chegada.
Se passasse e continuasse a dizer “não” para a história que havia feito, não teria mais literatura.
Teria uma performance.
Eu, num palco, cortando a última palavra de um texto.

2. Algumas resenhas sobre A um passo destacam a sordidez dos personagens nos seus relacionamentos. Você diria que há uma consciência dessa sordidez ou são apenas pessoas tentando sobreviver alheias a qualquer juízo de valor?
Não há preocupação no texto em relação à moralidade.
Não é este o assunto.
O assunto do A um passo é a própria ficção.
Como ela é feita.
Como pode ser feita.
Ou como foi feita, no próprio texto apresentado.
A frase fundante do A um passo é a penúltima, a que fecha o livro:
“Ela me olha e nos olhamos por um tempo, nos reconhecendo como ambos a um passo, eternamente a um passo, da realidade.”
O “ela” aqui é um próximo personagem.
De um eventual próximo texto ficcional.
E quem fala a frase sou eu.
(Ou – para os mais conservadores – o narrador, Próspero.)
Próspero é também o autor das pequenas histórias que integram a grande história do livro.
Foram por ele inventadas, adivinhadas ou manipuladas.
Sim, adoro A tempestade, de Shakespeare.
Quando disse que a desfeitura da ficção era coisa de agora, incluí algumas coisas do século XVI neste “agora”.
Shakespeare, por exemplo.
E seu monólogo de Próspero, pedindo palmas e avisando para as pessoas irem embora, que a peça tinha acabado.
Aliás, a dúvida de Próspero (o meu Próspero, não o de Shakespeare), se escreve outro texto, pinta um quadro ou arranja um emprego, era a minha dúvida.
No momento em que escrevia aquilo.
Ainda é.
Faço crítica de arte para o Jornal do Brasil.
Ajudo a Tereza na Lamparina.
E preciso retomar meu próximo texto.
Sempre me surpreendeu este destaque na “sordidez” dos meus livros.
Gosto muitíssimo das pessoas que moram neles.
Especialmente as do A um passo.
Por exemplo, neste exato momento.
Acabo de ver Nina – ou foi Tânia – passar pela minha parede branca.
Nos encaramos por um momento antes que ela sumisse.
E vou dizer: fiquei com os olhos molhados de saudade e fiz um movimento com a cabeça.
Tentei chamá-la.
Ridículo.
E eis o único juízo de valor possível.
A ficção (a que eu fiz para mim mesma, de que era possível uma personagem passar pela minha parede) é sempre ridícula quando acaba.
(Atenção, quando a ficção acaba, não quando o texto acaba.)
O A um passo teve essa característica.
Tem.
Nunca pude largá-lo.
Levei muito tempo tirando do texto toda gentileza, toda boa-educação.
Uma guerra contra adjetivos, conjunções, preposições.
Toda a cola, o grude, todo o mingau.
Nada de “es”, “maises” e “porques”.
Nu.
E presente como nunca.
Então não posso julgá-lo nem às pessoas que nele moram.
Não acabou.
E como tem a proposta de um eterno refazer, acho que esta ficção não vai acabar nunca.

3. Outra questão que vem sendo apontada diz respeito às identidades mútliplas de seus personagens, consideradas típicas da sociedade contemporânea. Essa é uma discussão que tem sido explorada pelos meios acadêmicos. A transposição dessa problemática da área ensaística para a área ficcional foi intencional de sua parte?
Não há nada que não seja intencional em A um passo.
Este texto é um projeto literário.
Não só na estrutura, em cenas que são farrapos, vestígios (ou fontes, inícios) de uma história.
Mas nas estruturas menores que estão dentro da estrutura maior.
E que são, estas pequenas estruturas, as histórias individuais das pessoas presentes.
Essas pequenas histórias também são estruturadas em farrapos (ou inícios) da “verdade” ficcional, do que teria “verdadeiramente acontecido” na vida de cada um deles.
As histórias pequenas seguem a mesma estrutura da história grande.
Como na história grande, as pequenas também podem variar dependendo de quem as conta.
De quem as escuta.
Ou do programa de televisão que acaba de passar.
Tânia conta a história de Nina que conta a história de Gringo que tem sua história e todas as outras contadas por Próspero, que só existe enquanto existem as histórias que conta.
E qualquer um deles poderia ser qualquer outro.
Poderíamos.
Prósperos que somos todos.
É, na sociedade contemporânea, com suas tempestades sempre virtuais, mesmo quando reais.
O A um passo traz várias possibilidades de final.
Ou nenhuma.
Quem ficou com os dólares que podem ter jamais existido?
Nina.
Tânia.
Gringo.
Ou foi Próspero.
Fui eu.
Que posso ser qualquer um deles.

4. Você é também artista plástica, tendo em seu portfólio ilustrações e capas de livros. Como vê as duas artes – a escrita e a ilustração – no ato de contar uma história?

Literatura não precisa de imagens.
Mas pode tê-las.
Será então uma criação intersemiótica.
Ou multimídia, para usar uma palavra menos arestosa.
Nada contra.
Pelo contrário.
Tudo a ver com uma nova riqueza.
A do convívio do lógico com o analógico.
Da linha reta com o círculo.
E de uma abrangência includente bem feminina que se impõe.
Qualquer outra possibilidade, sou contra.
A imagem como tradução do texto.
A imagem como resumo do texto.
A imagem como comentário do texto.
A imagem em vez do texto.
Detesto.
Acho uma diminuição da possibilidade polissêmica do texto.
E da nossa.
É lugar-comum dizer que vivemos em uma época do apogeu da imagem.
Não acho.
Acho que nossa época matou a imagem.
Fez isso ao elegê-la como a linguagem preferencial da comunicação social.
Nesta função, a imagem precisou se tornar cada vez mais eficiente.
Ter menos possibilidades de erro.
Precisou ficar mais rasa, mais rápida.
Ser entendida da mesma forma por mais gente.
Não propõe um diálogo. Segue normas.
De perfeição.
É autoritária. E burra.
O que nos salvará a todos é a arte contemporânea.
Opaca, complexa, dúbia.
Efêmera. Imperfeita.
E inteligentíssima.
Sempre com um texto escondido.
Às vezes com um texto às claras.

5. O seu texto não segue uma narrativa linear o que, apesar de não ser algo completamente novo, tem chamado muita atenção na literatura contemporânea. Na sua opinião, essa ênfase atual na não-linearidade do texto ficcional pode ser um reflexo dos novos suportes multimídias como, por exemplo, a internet?

No começo da entrevista disse que o A um passo não é uma narrativa.
É o banco de dados que restou de uma narrativa ou que propiciará uma narrativa. O A um passo traz, além disso, uma disposição das cenas em hipertexto.
Há desvios e focos secundários de atenção a partir de frases ou palavras da cena anterior.
Não acho que a não-linearidade da literatura atual seja um reflexo da tecnologia ora dominante.
A tecnologia é sempre filha de uma cultura ou ideologia e a ela presta serviço.
A internet e a literatura não-linear são ambas fruto de uma mesma situação histórica.
A situação é de quebra de paradigmas de uma ordem que ficou para trás.
Sem outra que se imponha.
(Não dá mesmo para estabelecer muita coisa depois da física quântica.)
Não vejo relação de causa e efeito entre a internet e a literatura fragmentada.
Mas vejo uma influência mútua.
Um realimentar contínuo do lugar-nenhum.
Uma tensão contínua entre identidades grupais não-geográficas.
Culturas em colcha de retalhos. Tribos compondo um todo único.
Um viver para sempre na fronteira.
“É porque somos ambos homens de fronteira, tinha dito um dia gringo a P., ou foi outra besteira parecida.”

6. Você tem um site no qual expõe seus trabalhos. De que forma você acha que a internet pode contribuir para uma maior divulgação e valorização do livro impresso?

Acho a internet um reduto de resistência do texto.
Canal de comunicação em linguagem escrita.
E também fábrica de novos dialetos.
(O que mantém viva a língua.)
Mais do que tudo, a tela repete a situação psicológica da página.
Ler é uma ação individual, solitária e alienante do seu em torno.
É seu maior problema e sua maior qualidade.
É o contrário do que se dá na tela anterior, a da televisão, que permite o “ver junto”.
Ninguém lê junto.
Ninguém senta junto no computador.
Ninguém pensa junto.
Compartilha-se.
É diferente.
E muito, muito melhor.
O mundo melhorou.
A tecnologia atual é melhor do que a anterior.
Por exemplo, a questão da imposição cultural.
Não há muita defesa contra sitcoms.
Mas enquanto se falar “eu deletei”, quem tem de se defender é o inglês.

7. A editora Lamparina, de cujo conselho editorial você faz parte, completa um ano neste mês de fevereiro. Como você situa a atuação da editora ao longo desse período?
Acho que acertou quase sempre.
Acho que age com coragem.
E acho que pensa a longo prazo.
Três raridades.
Mais uma:
Não tem certeza de nada.
O que facilita o se mover.

8. Percebe-se, nos lançamentos da Lamparina, um cuidado na produção dos livros. Há, por exemplo, ao final de cada um, uma citação da obra de um autor brasileiro na qual encontra-se a palavra lamparina, acompanhada de uma definição dicionarizada da palavra. Esse tipo de preocupação só é possível e é própria de editoras menores e, portanto, com menos títulos em catálogo?

Não.
A Cosac é sensacional.
A Companhia das Letras também.
A Iluminuras e muitas outras.
O editor brasileiro é um sujeito que faz livros porque gosta.
Vejo ele bem próximo do escritor.
Às vezes é escritor.
Jornalista, ex-gráfico.
Ou ligado à academia, um estudioso.
Respeitoso.
Acho que o problema de uma mercantilização descuidada vem com as grandes corporações internacionalizadas.
Despejam qualquer lixo em qualquer lugar.
E tem o livreiro, que é despreparado para o que faz.
E que emprega mão-de-obra mais despreparada ainda.

9. Dentro de um mercado no qual se destacam algumas poucas gigantes editoriais que têm, ultimamente, abocanhado editoras menores, como você definiria o papel dessas pequenas editoras que resistem e das que, como a Lamparina, têm ousado se lançar no mercado há pouco tempo?

Devemos isso ao Fernando Henrique, que permitiu a entrada das gigantes.

10. Quais são seus próximos projetos? E você pode comentar algo sobre o que a Lamparina reserva para 2005?

Não.

 

 

 

 

 

Luiz Horácio – Jornal Rascunho, maio/2005
(republicado em versão reduzida pelo Jornal do Brasil em 24/06/05, sob o título “Forma e conteúdo em Elvira Vigna”)

É bastante comum em nossa literatura acontecer de o enfoque sociológico sufocar o enfoque estético quando o ideal seria que este complementasse aquele.
No romance A Um Passo, ed. Lamparina, o leitor pode comprovar uma exceção à regra. Elvira Vigna, também artista plástica, se preocupa com a forma ao mesmo tempo que subverte a previsibilidade da lógica corriqueira, cujo manual diz que a forma destrói o conteúdo. Longe de ser panfletária, livre do apelo sentimental mesmo com a covardia, a carência afetiva e a solidão em primeiro plano, a leitura permite a conclusão que o social não é prerrogativa do coletivo e tampouco a arte se faça questão particular. Personagens que são refúgios de contradições, solitários, buscam platéias para encenar sua cena dramática de emoção contida embora sabedores que seus sofrimentos não podem ser compartilhados. Tentativa de ajuste, sempre impossível, de contas com o passado. Calma. Vingança não é a palavra mais adeqüada, ela sugere agressividade enquanto neste A Um Passo o objetivo é se defender. A agressividade fica circunscrita aos movimentos internos dos personagens. O resultado é uma tensão concisa e nada previsível.
Em seu romance anterior, Coisas Que os Homens Não Entendem, Elvira Vigna nos apresentou Nita, a fotógrafa narradora, enigmática e carismática, (vivia com Eva em Nova York – homossexualismo?). No romance em questão, a protagonista é Nina (ou seria Tânia?), um reservatório de insatisfações e angústias, sem o menor carisma, uma protagonista banal cuja consciência pouco vigorosa apaga a fronteira que separa o bem do mal. O homossexualismo fica por conta de P. e Gringo. Entre Nita e Nina, algo mais denso e grave que a quase coincidência de seus nomes, crimes como referências para a interminável viagem rumo aos afetos impossíveis. Retornos às cidades de origem, contas à ajustar. Os dois livros são fartos em personagens nada ingênuos, mas que também não alcançam o status de malandros, o combate à opressão masculina, assassinatos perpetrados por algozes improváveis, a história que começa morna para logo depois engrenar até alcançar um final digno das melhores histórias policiais. Coincidências ou receitas? Tanto faz. Tais características não desmerecem em nada a trama urdida pela autora. Apenas comprova o talento exigido para, em tais circunstâncias, produzir uma literatura com força de reflexão onde a estruturação narrativa e a gerência da linguagem legitimam a clarividência com que a autora invade os mundos de Coisas Que…. e A Um Passo. Elvira mantém o foco nas dificuldades (ou seria impossibilidade?) do relacionamento entre as pessoas, apimentando com doses nada módicas de hipocrisia, violência e banalidades, sem esquecer a frieza nas observações relativas ao sexo. Se em Coisas Que os Homens Não Entendem os momentos felizes são escassos, agora somos levados a testemunhar a ausência desses instantes.
A Um Passo exige a cumplicidade incondicional do leitor, tamanha a quantidade de sutilezas escondidas em suas 186 páginas, e caso a excessiva simplificação na orelha do livro incitar o leitor a ingressar numa provável história de vingança, não desista, não é só isso, não é bem assim. É muito mais. É a delicadeza e a sofisticação da escritora e artista plástica a serviço da rusticidade e secura dos personagens urbanos que conduzem o leitor a um cenário minimalista e árido.
É a possibilidade de conviver com um narrador que vai conduzindo os personagens, feito um diretor de cinema orientando os atores.
“Ele está mudo na cama e você vai beber água mesmo sem sede porque nestas horas você também prefere ficar sozinha e o apartamento é pequeno e, além do banheiro apertado e mal-cheiroso, o único outro lugar em que você não precisa ficar vendo a cara dele é a cozinha. Então você vai para a cozinha e bebe água no copo que ele mantém na pia e nunca lava. E depois, com nojo, você limpa a boca com as costas da mão.”
É a tensão permanente, da lembrança da última aula de Nina com o Gringo ao suspense que ronda a cidadezinha que será inundada, conseqüência de uma repres. De Nina quase violentada pelo pai à vida dos becos, dos buracos. Da agressão de Nina ao professor, da sua prisão e o custo da fuga, do bairro do centro, do marrom do chão da cidade pequena.
É o tempo psicológico, trabalhado com precisão pela inventiva romancista. O modo aparentemente anárquico de organizar os fios da tela, a correta e nada simples combinação das cores, o enredo não linear, onde os medos, a falta de esperança e a ausência de peculiaridades dos envolvidos fazem de A Um Passo muito mais que uma história de vingança, uma garantia de prosa leve, sedutora e irônica. Segredos, mistérios e misérias compõem a amarga calamidade do romance, peça emblemática da desintegração dos valores, existências em permanente conflito, terreno no qual ninguém pretende se arriscar a conhecer com detalhes a vida de quem quer que seja. A protagonista não é Nina, não é o Gringo, tampouco P., muito menos Gordo, o mistério gira em torno da solidão, nunca alegre, como um tango; e o sentimento predominante é o de incerteza. Esse tipo de narrativa, via de regra conduz o autor a tropeçar nas redundâncias. Não é o caso de Elvira que, mesmo preocupada com a forma artística, não priva o leitor dos efeitos das idéias e das emoções. No caso, as aparências enganam. Para melhor. Mas não aguarde o aparecimento triunfal do herói no desfecho da trama, desde o início a autora nos deu pistas da tragédia e o gênero não comporta a expectativa de um caráter elevado.
A Um Passo é um livro estranho. Na trama não se vislumbra o menor sentimento de culpa, muito menos de amor, carinho, amizade, o mais superficial exame do passado tenebroso dos personagens permite intuir um futuro sem muitas possibilidades, a prática humana é trágica. A esperança é o cachorro do cego.
Um livro estranho e fundamental. Talvez tenha me agradado tanto pelo simples fato de a única pessoa que talvez eu conheça bem também seja das mais estranhas. Então, o que dizer de um cara, um jornalista que gasta seus dias estudando e escrevendo sobre literatura, que ao pendurar no varal as roupas da filha nunca deixa de imaginá-la morta?

 

Furio Lonza – O Estado de Minas, caderno Pensar, 22/01/05

Há livros que já nascem rebeldes. Não se encaixam, fogem das estruturas bem comportadas, detonam as regras estipuladas pela época, não são propriamente escritos, eles brotam. São ervas daninhas, têm parte com o Demo, são engendrados nas encruzilhadas. Por mais que o autor queira domar seus personagens e sua narrativa, nada há para se fazer, é tudo inútil, eles crescem para os lados, multiplicam suas ramificações como um câncer, são um amontoado de células que rompem com os limites do bom senso e da biologia literária.
Essa mercadoria, muito rara nos tempos que correm, acaba de ganhar uma contribuição de peso: A Um Passo, de Elvira Vigna. Incansável em suas experiências, a autora ousa mais uma vez e comete outro pecadilho (no bom sentido). Elvira escreve como se pintasse uma tela abstrata. O ideal é curtir o texto como uma pintura, as camadas vão se sucedendo, cada qual borrando a anterior. Temos que prestar bem atenção nas palavras, nas ênfases, nas frases, nas metáforas, nas parábolas, nas sutilezas, na fluidez do texto. Pois, se bobear, o leitor corre o risco de entender alguma coisa. Não é esse o caminho. O texto dá a falsa idéia de que alguma coisa concreta está realmente acontecendo e que, se a gente prestar bem atenção, vamos encontrar seqüências de ação. Mas causa e efeito se anulam. A Física não é um bom parâmetro e definitivamente não determina a correlação de fatos. Presente e passado ensandecem os neurônios durante toda a narrativa. Começo, meio & fim, nem pensar. A autora não gosta disso. Não abre mão de nada, se lambuza. Quando algo se solidifica, como um ensandecido demiurgo franco atirador, o narrador liqüefaz tudo de novo.
Falar mal, falar bem, criticar excessos? Nessas alturas do campeonato, isso pouco importa. O que conta é a ousadia de ir contra a corrente, romper com o bom mocismo desta literatura do século 19 que campeia pelas livrarias. Que cada um garimpe aqui & ali o que bem entende por ficção. Que cada qual sonde dentro de si uma maneira nova de enfrentar este romance e a própria realidade. Se for bem sucedido, terá compensações. Se não, paciência.
De qualquer forma, uma advertência: não é um livro fácil. Quem pretende comprar o livro da moda ou do verão, que fique com os John Grishan ou os Harry Potter da vida. A Um Passo é coisa de gente grande, madura, que pensa, tem inteligência suficiente para saber que entretenimento se encontra na novela das sete. Mas, gozado, Elvira emprega um vertiginoso modelo de romance policial em sua trama, não propriamente para saber quem matou quem, mas sim deixando em todo o curso pistas (algumas falsas) que nos (des) norteiam até a loucura, à exaustão.
Lá pelas idas décadas de 60, numa festa altamente literária, perguntaram por curiosidade ao editor José Olympio como estava andando o trabalho de Guimarães Rosa, que já fazia um bom tempo que não publicava nada. A comunidade andava receosa. Afinal, o escriba mineiro já tinha editado o Sagarana, Primeiras Estórias, Grande Sertão e Corpo de Baile e o silêncio constrangia. Antes de responder, José Olympio fez um suspense. Depois, tomou fôlego, arqueou a sobrancelha esquerda ironicamente e disse: “O novo livro do Guimarães já está pronto. Mas vai demorar ainda um bom tempo: agora, ele tem que inverter as frases”.
Lá pelo meio do romance de Elvira, temos a nítida impressão de que a autora fez algo parecido: primeiro, escreveu o livro, depois, embaralhou os capítulos de propósito. Em seguida, nos parece que o narrador saiu de um livro do Samuel Beckett, tomou 35 LSDs e encarnou num personagem do Robbe-Grillet que, por sua vez, começou a dar voz a uma Hilda Hilst freneticamente possessa pelos demônios de Kafka.
Ou seja: é para poucos, assim como o Catatau, de Leminski, Avalovara, de Osman Lins, ou mesmo os primeiros livros do João Gilberto Noll, hoje todos considerados clássicos, mas que têm uma inerente dificuldade de leitura e fruição, como qualquer obra prima. Guardadas as devidas, Elvira Vigna não veio para explicar nada, ela curte um enigma, tem que ser decifrada aos poucos, metodicamente, é uma bárbara no meio de tantos filhotes do Bukowski, que parecem indomáveis a princípio, mas que, na verdade, são bastante conservadores em relação ao estilo.
Nesta selva selvagem de Elvira, não há nenhum Virgílio a nos guiar. Pelo contrário, cuidado com as placas: é bem provável que, quando está escrito, Berlim a 40 Quilômetros, a estrada nos leve direto para Nova Iguaçu. É nesse simulacro de Baixada que encontramos Nina, Gringo, tia Conchita, P. e Evelyn se debatendo com suas próprias identidades. Nos calabouços, nos subterrâneos da trama, uma terrível vingança está sendo engendrada. Há um cofre com muita grana. Tem suspense, tem um espelho, tem informantes, pistas de pouso iluminadas por tochas com querosene, delegacias fétidas, tem um clima noir.
Mas que ninguém se engane: isso não é explicitado nunca. O que temos é um patchwork demencial, onde Elvira vai colando rebotalhos, cenas curtas, roteiros cinematográficos, mal entendidos & perplexidades em geral.

Nem que seja para dizer “Não entendi, mas gostei”, leiam este livro, é uma pedra no sapato para quem já se aposentou da literatura de experimentação. Ela ainda existe e vai muito bem, obrigado.

A um passo, 2004

ELVIRA VIGNA: A UM PASSO  (Lamparina, 2004, 188p.).
– projeto Mais Leitura, 2014.

 

arquivos internos de ‘a um passo’:críticas

 

 

 

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Capítulo 1:

É um sofá velho e sujo e a moça está olhando para ele como quem pensa como o sofá é velho e sujo e o gringo então diz, ainda da porta:
“O sofá é velho e sujo.”
Mas a moça dá de ombros e, alteando as sobrancelhas, responde com desdém – não pelo sofá mas pelo homem baixo, seco, que surgia:
“É um chippendale.”
Só que o chippendale sai chipeindeile e o gringo sorri. Ahhh. É das suas. E vai se chegando já sabendo que por qualquer pulseirinha de ouro de baixa qualidade aqueles olhinhos maquiados irão brilhar e aquela boca grande cheia de baton fará o que ele mandar.
A boca fala e gringo, fingindo chegar perto para examinar melhor o sofá, vai chegando perto. Até sentir o cheiro do desodorante, porque é essa a sua medida: na primeira chegada, o limite de aproximação é o cheiro do desodorante.
A moça alisa o estampado com uns dedos nervosos, promissores e o gringo olha o estampado que o espantava sempre, jacarés de rabo levantado, marron, entrelaçados com enormes flores tropicais de todas as cores, e então fica fácil fingir o espanto que deveras sente.
“O fingidor.. o fingidor..”
E tenta recitar Pessoa usando cara de talk-show de tv, não porque acha que vai cair bem (não é o caso de se esforçar muito para impressionar a dama presente), mas simplesmente porque lembrou da estrofinha. Lembrou é maneira de dizer, além da palavra fingidor, não está saindo mais nada.
Gringo balança o uísque, a moça faz hein.

Viviam como gato e cachorro, 1978; 2005

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Viviam como gato e cachorro (primeira edição pela Paz e Terra, 1978, 48p.; segunda edição pela Dimensão, 2005, 48p.; edição em cd para deficientes visuais através do pnbe-especial, 2010)
– prêmio Melhor Ilustração da APCA, 1979;
– participação no Ciranda de Livros da Fundação Roberto Marinho, 1980 ;
– menção Altamente Recomendável da FNLIJ, 1979;
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2006.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

infaviviam02

(capa da última edição e da versão sonora para deficientes visuais, em cd)

 

 

Essa é a história de Joaquim e Alfredo.

Os nomes

Alfredo quando era pequeno também se chamava Fefê. Depois que cresceu, ele virou Alfredo, Barão von Alfred, ou só Barão.
Isso porque, além de ser muito antipático e besta, também diziam que ele era um herói de guerra. E os heróis de guerra às vezes acabam virando nobres: condes, viscondes ou barões.
Mas para Alfredo tanto fazia chamá-lo de Barão ou de Antunes, de Pedro, de Chato, Você aí ou Alfredo.
Qualquer nome que chamassem, ele não respondia mesmo.
Quinho sempre foi Quinho.
Depois, inventaram que Quinho queria dizer Joaquim pequeno, mas era mentira.
Inventaram isso só porque Quinho ia viver com Alfredo e não ficava bem um quinho qualquer ficar ao lado de um Barão.
Joaquim, então.
Ou, se é para inventar coisa, Joaquim fon Seca, Barão também. Barão português.

A história de cada um

Diziam que Alfredo tinha sido militar. Ele tinha lutado na guerra, do lado dos alemães.
Até hoje ele gostava de ficar na mesa do quintal, olhando para os lados, procurando os inimigos.
Cada folhinha que se mexia, cada nuvem do céu, todos os barulhinhos… Alfredo vigiava e espiava tudo.
Joaquim sempre tinha sido isso mesmo que se via.
Barulhento, comilão, sempre com uma pulga nas costas ou um carrapato grudado no pé.
Do seu passado, Joaquim só se lembrava do jantar de ontem.
Planos para o futuro? Só continuar com essa vidinha: dormir, comer, passear e se coçar.
Joaquim e Alfredo realmente não podiam se dar muito bem.

O encontro dos dois

Quando Joaquim chegou ele ainda estava meio enjoadinho da viagem de carro. Foi tropeçando se esparramar num canto para descansar.
Alfredo viu aquela cena e, sem dar uma palavra, subiu na cama e com um xixi grande e caprichado escreveu no travesseiro: detestei.
Em comparação com esse começo tão triste até que a amizade dos dois, depois, não pode ser considerada assim tão ruim.

A comida

Alfredo ganhava sempre os melhores pedaços.
Barão e herói de guerra, ele tinha se acostumado ao luxo. Se não ganhasse o melhor pedaço, não comia nenhum outro e ameaçava morrer de fome.
Ganhava então os melhores pedaços. Comia devagar e sempre deixava um pouquinho no prato.
Gente fina, dizia a gente.
Oba, pensava Joaquim, que sempre ganhava o restinho de Alfredo.
Joaquim não se importava de Alfredo ganhar sempre os melhores pedaços, de sempre comer antes dele e de usar um pratinho com enfeites vermelhos na ponta.
Ele não se importava porque ele comia de tudo, a qualquer hora e de qualquer jeito.
E comia tão depressa que nem percebia se estava comendo carne ou peixe, galinha ou casca de mamão.
Alfredo, quando acabava de comer, limpava os bigodes e ia dormir.
Joaquim, quando acabava de comer, saía sempre com a barba pingando molho e também ia dormir.

A casa de cada um

Joaquim morava num quarto e sala separado. O quarto era de papelão e apesar de pequeno, muito gostoso e quentinho.
A sala era de chão de terra e não tinha teto, ficava para os lados do quintal e era lá que Joaquim guardava as coisas dele.
Poucas coisas: um ou outro pano, um ou outro pedacinho de madeira, às vezes um osso velho de boi.
Alfredo não tinha casa.
Dormia uma noite no cobertor da cama, outra noite numa pilha de roupas de lã ou em qualquer outro lugar.
Mas a gente via que ele não estava à vontade em nenhum desses lugares. Parece mesmo que ele só estava contente e à vontade quando ele pulava. Ele dava pulos enormes, sem fazer o menor barulho, sem derrubar nada.
Vai ver até que a casa do Alfredo era o ar.
Vai ver que ele, na guerra, tinha sido piloto de avião e, pulando bem alto, matava as saudades dos seus tempos de herói.

Um dia inteiro na vida de Alfredo e Joaquim

Alfredo passava o dia inteiro espiando.
No começo ele espiava para ver se vinha algum inimigo.
Como o tempo foi passando e não vinha nenhum inimigo, ele começou a espiar as coisas que estavam em volta dele.
Ele espiava as formiguinhas e sabia onde elas moravam: elas moravam em um buraquinho.
Ele espiava as flores e sabia quando elas estavam com sede: elas olhavam para o chão quando ficavam com sede.
Burras, pensava Alfredo, elas acham que a chuva vem do chão.
Ele espiava tudo.
E espiava principalmente se Joaquim não estava por perto. Joaquim era muito barulhento e sempre inventava alguma coisa bem movimentada e bem barulhenta para os dois fazerem.
Joaquim era detestável, pensava Alfredo.
Joaquim passava o dia inteiro procurando Alfredo.
Quando encontrava, corria atrás dele e convidava-o para uma boa luta livre. Alfredo dizia não obrigado. Mas Joaquim era muito maior do que Alfredo. Isso fazia com que Alfredo às vezes tivesse que aceitar.
Então os dos rolavam pelo chão, levantando poeira e derrubando tudo que estivesse na frente.
Joaquim sempre dava um jeito de ficar em cima do herói de guerra.
O Barão fingia não ligar. Fugia correndo assim que podia, xingando o outro: “cachorrão!”
E Joaquim: “hi, hi, deste Barão eu faço gato e sapato…”

As lutas de Joaquim e Alfredo

Pois foi em uma dessas lutas entre Joaquim e Alfredo que começou a amizade dos dois.
Em um momento de descanso, Alfredo, preso embaixo de Joaquim, coçava a cabeça pensando: “mas que situação para um Barão!”
Coçou a cabeça e foi coçando, coçando … até que começou, sem perceber, a coçar o pé de Joaquim que estava ali do lado.
Joaquim adorou a coçada.
A partir deste dia Joaquim começou a lutar com Alfredo com mais vontade ainda.
A gente não sabia se ele lutava porque não gostava mesmo da cara do Barão ou porque gostava e muito do cafuné que coçava seu pé nos momentos de descanço.
Mas os dois iam ficando velhos e as lutas iam ficando mais curtas.

Cafuné sem luta

Durante muito tempo ainda, os dois tinham que lutar um com o outro só para disfarçar o carinho que aparecia nos momentos de descanso.
Pouco a pouco, a luta foi diminuindo e o carinho aumentando.
Até que um dia, ninguém sabe muito bem como, Joaquim e Alfredo começaram pelo carinho e esqueceram a luta.
O carinho deles era o seguinte: para Joaquim, cafuné no pé. Para Alfredo, uma coçadinha nas costas assim de leve.
E quem chegasse de repente sempre dizia não ter nunca visto gato e cachorro assim tão amigos.

Os barulhos

Agora que Joaquim e Alfredo quase não lutavam mais, eles passavam a maior parte do tempo fazendo cafuné um no outro.
Isso não quer dizer que eles não tivessem lá suas implicâncias, suas quizumbas, seus quiprocós, suas pendengas.
Um bom motivo para isso eram os barulhos que cada um fazia.
Joaquim tinha inventado vários barulhos novos, todos eles muito chatos.
Já não era só a barulheira de boas-vindas quando chegava alguém na casa.
Agora ele tinha inventado uma nova maneira de coçar as pulgas, com uns tapas, também bem barulhentos.
Isso para não falar dos barulhos mal-educados que ele sempre fez ao comer.
Alfredo começou, ele também a fazer barulho, pela primeira vez na vida.
Seu barulho era uma espécie de música que ele cantava aos berros, à noite, quando tinha lua.
Nessas noites nem Joaquim nem ninguém conseguia dormir.
E aí, para passar o tempo, eles brigavam.

Os banhos

(Outro bom motivo para briga eram os banhos)
Joaquim era quem mais tomava banho.
Ele era bem-humorado e não se irritava tanto quanto Alfredo quando a água estava fria.
Joaquim tomava banho quase todas as semanas.
Alfredo só tomava banho de mês em mês.
Ele tem medo da água fria, caçoava Joaquim.
Ele não gosta do cheiro do sabonete, dizia a gente.
E não gostava mesmo, pois assim que saía do banho, Alfredo se lambia todo, inteirinho, e só parava de se lamber quando o cheiro do sabonete virasse cheiro de lambida.
Tanto Alfredo quanto Joaquim, quando se molhavam, ficavam de perna fina. É que o pelo deles grudava todo e as pernas, antes tão bonitas, ficavam fininhas.
E como era Joaquim quem tomava mais banho, eram suas pernas finas as que mais apareciam.
Quando Joaquim tomava banho, Alfredo gostava de ficar passando por perto.
Ele não dizia nada, mas fazia cara de quem estava pensando oh! que perna tão fina!
Perna fina é sua avó!, rosnava Joaquim furioso.
E pronto! Se a gente chegasse de repente se espantava de ver aqueles dois brigando outra vez feito gato e cachorro.!

Gato e cachorro?

Gato? Cachorro?
Nós não sabíamos ao certo…
Às vezes nós nos perguntávamos: será que Alfredo é realmente um gato? Será que Joaquim é um cachorro?
Não sabíamos.
Quando eles ficaram velhos eles ficaram parecidos – é verdade – com um gato e com um cachorro.
Latiam e miavam e, reparando bem, dava para ver que eles andavam de quatro.
Ou será que éramos nós, também ficando velhos, e dando para enxergar as coisas de modo diferente?
Está bem. Se vocês quiserem, nós mudamos o começo desta história.
Fazemos assim:
“Essa é a história de um gato e de um cachorro.
O gato se chamava Alfredo.
O cachorro se chamava Joaquim.
Esse gato e esse cachorro, embora fossem muito diferentes um do outro, acabaram ficando amigos.
Eles eram muito parecidos conosco.

 


 

crítica:
“Elvira Vigna deu mostras de criatividade na série de histórias que narram as aventuras de Asdrúbal, o terrrível. Em Viviam como gato e cachorro, de 1979, a autora vale-se da tradicional disputa entre os animais para manifestar os conflitos perenes entre os seres humanos, dentro e fora da família.”
(Regina Zilberman em Como e por que ler a literatura infantil brasileira)

Lã de umbigo, 1979

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Lã de umbigo (Antares/INL-MEC, 1979, 64p.)
– prêmio Jabuti de literatura infantil

 

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a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

infaumbigo

 

O gigante Antão

Tinha um gigante fortão, mas muito burro.  Ele morava no meio de uma floresta no meio do mundo, e ficava pensando o dia inteiro qual era a vantagem de ser gigante sem ter ninguém por perto.

Gigante só é vantagem quando os outros sabem que a gente é gigante.
Essa foi a brilhante conclusão a que Antão (nosso gigante) chegou, depois de 56 anos de esforços mentais contínuos. Depois de outros 23 anos de indecisão, Antão resolveu que, neste caso, o mais aconselhável era ir para algum lugar habitado, onde as pessoas pudessem morrer de medo com sua presença.

Andou, andou, então Antão acabou chegando no mesmíssimo lugar, pois a terra já era redonda nessa época.

— Não é possível. Se eu existo, deve ter mais alguém. Eu não ia existir assim sozinho que isso não faria o menor sentido.

Deu outra volta e nada.

E teria passado a vida dando voltas se não tivesse um dia se abaixado para cortar a unha encravada do mindinho esquerdo e visto os serezinhos que se agitavam lá embaixo no seu pé.

— Aaaaahhhh!!!! Tem gente!!!

O aaaahhhh!! dele arrasou uma cidade inteira e devastou uma floresta tropical, provocando grande movimentação de ecologistas.

— Ei, bilu, bilu!

Mas os serezinhos não lhe davam a menor atenção. Antão podia matar milhares deles com um simples mau hálito, mas não conseguia que eles lhe dessem atenção.
— Psiu! Coisinha!

Mas nada. Até que, depois de várias fúnebres tentativas fracassadas, Antão conseguiu pegar unzinho todo peludo.

Agarrou o bicho pelos cabelos e disse:

— Oi! Eu sou um gigantão perigosíssimo!

Mas o cabeludo, de olho vidrado, só dizia pô, demais esse chazinho! pô! sem demonstrar o menor medo. Aliás, a bem da verdade, sem demonstrar absolutamente nada. E Antão teve que largá-lo para tentar melhor sorte. Com o segundo já conseguiu resultados um pouco melhores.

— Antão, o gigantão, muito prazer!

— Que Antão que nada, você é apenas um terremoto magnético intergalático igual ao dos meus joguinhos.
— Guiné de quem? Sou Antão!!

— E essa tua voz é apenas um trovão um pouco mais forte.

— Trovão?! Antão!!!

— E essa mão que me pegou não existe. É um fenômeno psíquico de realidade virtual-virtual, muito comum em gente como eu.

— Não!! A mão é de Antão, o gigantão!!

— Para com isso. Todo mundo sabe que não tem gigante. O senhor é uma imagem em três dimensões. Eu não posso lhe provar nada porque não tenho o conhecimento necessário das leis da eletrotransmissão magnetorreflexiva, mas qualquer um que já tenha comprado a nova versão desse programa lhe provará, em um minuto, que o senhor não passa de um conjunto de parâmetros de pixels com ilusão espacial. Sua presença é explicável direitinho com meia dúzia de algoritmos matemáticos, dois mapas metereológicos universais e três noções básicas de como mexer em um computador. E faça o favor de me largar!

Antão largou.

E passou mais 187 anos pensando qual era a vantagem de ser um gigante, com gente sabendo que ele era um gigante, mas explicando sua enorme presença por meia dúzia de algo, algo o quê mesmo?

E desta vez não conseguiu chegar a nenhuma conclusão.

 

A fada Neide e o sapo Nestor

A fadinha Neide mudava tudo que via com sua varinha mágica. O que, aliás, não passava de sua obrigação, sendo ela uma fadinha e sendo sua varinha uma varinha mágica.
Neide via, por exemplo, um copo d’água, mudava para xícara de leite. Assim, só pelo prazer de mudar.

As pessoas gostavam dela porque a gente aprende desde pequeno que se deve gostar das fadas. Mas no fundo, no fundo, não gostavam não. Mudanças sempre são um aborrecimento.
Tinha um sapo, então, que detestava a Neide. Na vida, já tinha sido – graças a artes e desartes dela – doce de abóbora, música e cobra. O tempo que viveu sendo cobra foi o pior, pois ficava sempre com vontade de se comer a si mesmo, o que lhe causava uma dor de cabeça terrível. Estava à beira da morte por suicídio e/ou inanição quando Neide desencantou-o e ele voltou a ser sapo, comedor de mosquito, inimigo de cobra.
O sapo se chamava Nestor e, no momento em que tudo aconteceu estava – galhos ao vento – filosofando sobre as amarguras deste mundo.

Para os distraídos, o sapo Nestor era uma mera mangueira e Neide apenas uma menina chupando manga-rosa à beira de um riachinho.

— Ô Neide! – falou um dos galhos.

— Que é?

— Ô Neide! Não está certo isso que você faz. Modifica tudo, mal a gente se acostuma com as coisas, vem você e modifica tudo outra vez!

— Nestor, o negócio é o seguinte: mudar as coisas é muito bom e a gente se transformar é muito bom  também, fique o senhor sabendo.

— É, mas acontece que você só fica na primeira fase. Você modifica as coisas – no caso eu, honesto sapo trabalhador, cumpridor de meus horários, com família para sustentar – mas se modificar, isto é, modificar você mesma, é coisa que eu nunca vi você fazer.

Neide não tinha o que responder a isso, de modo que jogou o caroço de manga dentro d’água e saiu fingindo que ia lavar a mão.

E nunca mais voltou.

Disseram que ela tinha virado professora do primeiro grau, aberto uma escolinha no interior, onde passava o dia ensinando “As maravilhas da transformação”. Curriculum reduzido, é verdade, mas, ao que parece, com muitos fãs.

Nestor, obrigado a permanecer árvore, foi transformado em uma mesa, mas suas frutas viraram outras mangueiras, todas muito verdes – e sempre à beira de algum riacho, por puro saudosismo. Com o passar dos anos, Nestor tinha – de tanto filosofar – descoberto que ser árvore ou mesa ou outra coisa qualquer não fazia assim tanta diferença e que as mudanças de sua vida tinham até um aspecto interessante.
Quanto à varinha mágica da Neide, esquecida à beira do riacho, aquele primeiro, lá ficou durante tantos e tantos anos que acabou fossilizando e virando pedra. O que foi, sem dúvida, um fim bem triste para uma varinha que tinha sido tão ativa na sua juventude.

 

A medusa do Butantã

Era uma vez uma Medusa muito boazinha.

Trabalhava de manhã no Instituto Butantã de Cobras e Lagartos, e de tarde cuidava de seu apê.

Para quem não sabe, Medusa é aquela mulher que tem cobrinhas em vez de cabelos na cabeça e que, mesmo se a gente corta a cabeça dela, nasce outra no lugar.
Pois bem, essa Medusa então de quem eu estou falando, era moça muito tranquila. E talvez fosse esse o seu maior problema: faltava emoção, faltava aventura em sua vida.
Suas cobrinhas, presas em um rabo de cavalo assim atrás, mal se mexiam e sua cabeça nunca tinha tido a oportunidade de nascer de novo, pois nunca alguém tinha se lembrado de cortá-la fora.

Um belo dia, Medusa (Duda para os íntimos) resolveu que isso não podia continuar assim. Pediu férias no trabalho e comprou uma passagem classe turística no pacote ‘Venha conhecer a Amazônia, o Inferno Verde’.

— Vou logo antes que acabe – pensou ela. E lá foi, preparada para enfrentar bichos selvagens, índios ferozes, enfim, o que desse e viesse.

As cobrinhas, quando souberam da viagem, não quiseram ir.

— Vou ficar com saudade das minhas amigas do Butantã…

— Lá é muito úmido, tem mosquito…

— Deixa eu ficar?

— Vai todo mundo e pronto. Eu não vou enfrentar essa expedição sem cobrinha na cabeça, careca, calva!

E lá foram Duda e suas cobrinhas.

Só que as cobrinhas não gostaram mesmo da viagem, reclamaram da comida do hotel, dos preços, acharam o sorvete de cupuaçu uma porcaria, os táxis eram velhos, os índios tinham um português péssimo e, no tour pela selva, elas tiveram que acompanhar em inglês as explicações que o guia da tribo fazia – inglês eles falavam um pouco melhor. E o jacaré do cercadinho dormiu o tempo todo e, o que é pior, de boca fechada. Enfim, não gostaram mesmo nem um pouco. E quando chegaram de volta fizeram, uma noite, um abaixo-assinado para a Duda nos seguintes termos:
“Duda querida,

Achamos melhor nos mudar definitivamente para o Butantã e constituir família com nossos namorados de lá. Esperamos que você não leve a mal nossa decisão e deixamos de presente de despedida essa linda peruca loura para você usar quando for ao cinema.

P.S. Medusa hoje em dia não dá mais pé.

Assinado: Bibi, Cici, Didi, Fifi, Gigi, Hihi, Jiji, Kiki, Lili, Mimi, Nini, Pipi, Quiqui, Riri, Sisi, Titi, Vivi, Xixi e Zizi.”

Duda leu a carta, passou a mão na cabeça, agora completamente lisa, suspirou, olhou a peruca loura, tornou a suspirar.
Era um sábado. Duda pôs a peruca (não ficou nada mal) e foi à liquidação de verão no shopping.
Depois de muito tempo veio a saber, por acaso, que essa crise de aventura, de cabeça cortada, essa falta de cobra-cabelo, de emoção, eram problemas comuns a todas as Medusas de nossa época. Isso consolou Duda um pouco.

Soube também que todas as outras Medusas da cidade tinham perucas louras como a dela e andavam nas ruas sem ninguém suspeitar de nada, a não ser por um ou outro suspirinho de tédio de vez em quando, mas isso era coisa muito pequena e comum para que as pessoas notassem que ali, falando no celular enquanto o sinal não abre, estava uma Medusa Verdadeira.

Algumas até se casavam!  E mais de uma vez!! E todas, quando ficavam com rugas, cortavam elas mesmo suas próprias cabeças para que viesse outra mais jovem. Tem medusa aos montes por aí.

 

O gênio do sorvete

Era uma vez um menino pobrinho, pobrinho…

Para ganhar uma bala era um problema: tinha que programar uma semana. Na segunda-feira:
— Sábado vou estar com vontade de drops de hortelã.

Aí começava: primeiro tinha que ir por aí catando coisas que pudessem ter algum interesse para os outros. Por exemplo, no fim do ano, ver se achava no mato galhos secos e folhas bonitas para vender como centro de mesa às madamas. Se não fosse fim de ano – e no caso não era – ficava mais difícil. Pegar umas flores no cemitério e vender na feira, ou abacate no abacateiro do vizinho e também vender na feira. Podia pegar a viola que o tio tinha feito e cantar nos bares. Jogar água suja no vidro dos carros parados no sinal e depois se oferecer para limpar.

Depois de ter se decidido por um desses métodos, o passo seguinte era tomar banho porque boa aparência é tudo nessa vida.

Ver onde tinha água limpa (do mar não servia), arranjar um tico de sabonete em algum bar amigo e prestar atenção no pé e na orelha. Depois, vestir o uniforme do colégio (que correspondia a vestir um terno se as circunstâncias fossem outras) e ir vender fosse lá o que fosse, galho seco, abacate ou besame mucho.
Isso feito, comprar o drops.

— Hortelã, por favor.
Era mesmo muito trabalho.

“Pois eu gostaria assim. De ter vontade de uma coisa na terça e conseguir na própria terça.”
O moleque tinha dito isso falando sozinho, uma tarde em casa. Estava de mau humor, pois no dia anterior tinha tido vontade de sorvete de groselha e não tinha a menor ideia nem o que era sorvete de groselha nem o que fazer para obtê-lo.
De repente bum! Uma nuvem escura lá na subida de cima, um som que não era funk, um frio de porta de banco, um cheiro de fumaça de coisa de má qualidade, meu deus, os homens subiram sem ninguém notar, estourou confusão e foi aqui perto!
Mas bem na sua frente, um Gênio de turbante, bigodões e sapatos dourados olhava para ele.

Moço, o terreiro da escola é lá embaixo – ainda pensou em dizer. Mas o Gênio falou antes:
— Sou o espírito do seu pensamento, também chamado de O Imponderável ou, em alguns ambientes, de Componente Variável Aleatório de Marketing Pró-ativo. Eis aqui o seu sorvete de groselha. Eu pessoalmente não gosto e esse daí já está meio velho, hoje ninguém mais quer sorvete de groselha. O que mais você deseja? Pudim de chocolate? Batata americana? Tênis importado? Temos aqui várias marcas, mas tem que ver se algum é do seu tamanho. Um bigmac só um pouco amassadinho? Boné de gringo? Óculos escuros? Hein? Hein? Que tal? E esse rádio estéreo duas cabeças com sintonia automática e captação sincronizada, caixa embutida, garantia de três, hum, dois, ahn, um mês?

O moleque pensou: posso muito bem dar um berro e sair correndo, me espantar, fazer um descarrego. Todo mundo iria me dar razão. “Coitadinho, que susto, que espanto você deve ter tido! Toma aqui um copo de água com açúcar ou vai de dietil?”
— Mas não vou me espantar não. Vou tomar esse sorvete de groselha que é bem melhor que água com açúcar e depois vou querer saber que bagunça é essa, quem é esse cara que está confundindo meu barraco com terreiro.

Isso posto, o garoto tomou rápido o sorvete – de fato não era grande coisa – e lascou:
— Bom, obrigado. E agora podia me dizer que negócio é esse de imponderável, espírito etc.?
— Ah, é assim. Quando a pessoa é pobrinha assim que nem você, só tem o pensamento, não é? Por exemplo, você não tem sorvete nem de groselha nem de chocolate chip que, aliás, é muito melhor. Quer dizer, você, resumindo, só tem o seu pensamento. Então é aí que eu entro: quando a pessoa tem só o pensamento, ele fica muito forte, aí eu acordo e apareço. Vejo no que a pessoa está pensando tanto e dou a ela o que ela quer. Depois sumo outra vez.

— Hã. Eu não sabia que o senhor existia.

— Existo sim, e tem uma vantagem. Esse sorvete aí de groselha que você tomou, fui eu que fiz, de modo que, tomando do meu sorvete, você deixou de comprar da vendinha ali de baixo e, quando isso acontece muitas vezes em seguida, dá um certo rebu nos planos dos gravatinhas do asfalto, mas depois eu explico isso melhor. Agora você me dá licença, eu vou voltando que tem muita gente só com o pensamento.
— Ciau então.

— Ciau, rapaz. Até a próxima. E olhe, quando o cara lá da venda te olhar de cima, suba num banquinho imaginário e olhe mais de cima ainda para ele, que você me conhece e ele acha que eu não existo. Ele acha que se ele for sempre bem esperto, inclusive, eu não vou existir nunca. E ele está enganado!

 

A professora de inglês da Torre de Babel

Há muito tempo, tinha uma Torre de Babel e uma professora de inglês que trabalhava na Torre de Babel.

Era uma chateação, pois quando ela ensinava inglês a alguém, esse alguém esquecia imediatamente sua língua materna e passava a falar e escrever só em inglês.
Então não adiantava nada. Em dois meses, todo mundo que tinha aula de inglês só falava inglês e todos os americanos que tinham tido aula de tupi-guarani só falavam com árvores. Mas as pessoas aprendiam línguas  para se entender umas com as outras e, deste modo, não adiantava mesmo nada.

Por exemplo Joaquim (português) queria convidar Mary (americana) para tomar uma limonada e aí aprendia limoneide. Mas Mary, nestas alturas, consciente da necessidade de conhecer novas culturas, se esforçava com um limoun que Joaquim, call me Jake, não tinha mais a menor noção do que era.

Vai daí que ninguém se falava. E como eles não se falavam, tinham muito tempo para construir a torre, que ficou pronta num instantinho.

A Torre de Babel, como todos sabem, foi feita com a intenção de unir o céu e a terra.
Pois bem. No seu 2.385.901° andar, a Torre finalmente chegou no céu.

— Oh!

— Ah!

Milhões de exclamações de alegria de todo mundo.

Aí eles perceberam que exclamações de alegria eram entendidas por todos – americanos, fundamentalistas muçulmanos e bósnios. Não precisava de tradução!
Com o tempo descobriram também que não precisavam traduzir careta, choro e piscar de olho. Perceberam que todos entendiam, sem exceção, a gargalhada geral!
— Hou! Hou! Fez o Joaquim.

— Ó, Ó! Respondeu a Mary. E os dois chuparam o canudinho da mesma diet coke.
Desse dia em diante, o pessoal começou a se preocupar mais com olhares significativos, dar-de-ombros, alcear de sombrancelhas, com risos e choros. E se esqueceram da Torre de Babel. Que foi fazendo brecha, rachadura, vazamento, infiltração e o diabo.

Um belo dia, a Torre toda desaba – em cima de uns desavisados que passeavam embaixo e o mundo fica mudo de espanto!

— Foi o cimento vagabundo! Quem é o engenheiro que fez essa droga?

— Abajo el gobierno!

— Le livre est sur la table.

— Game over. Do you want to play again?

Pronto. No afã de explicar, as pessas começaram a falar, a se desentender e a professora, que tinha ficado esse tempo todo desempregada, começou outra vez a ganhar rios de dinheiro com aulas particulares.

Ninguém entendeu nada das explicações sobre o desabamento, dadas em inglês com tradução simultânea para japonês, espanhol, francês, alemão e árabe. Mas, o que era pior: ninguém estava mesmo muito interessado em saber por que tinha caído a tal da torre.
Nessas alturas, todo mundo estava convencido de que ao céu se chegava por foguete, e que esse negócio de construir torre era bobagem dos antigos.

 

O garoto que tirava lã do umbigo

Tinha um garoto que tirava lã do umbigo.

Era assim: todo dia de noite, antes de se deitar, Jaques tirava um pouquinho de lã do seu umbigo e guardava num montinho.

Vivia disso.

Quando o montinho ficava grande, ele ia até a lojinha de linhas e agulhas e vendia.
O dono da lojinha não gostava muito, pois os montinhos de lã de Jaques eram sempre da mesma cor, isto é marrom.

Os outros meninos – pura inveja – diziam que era marrom por causa da sujeira.

Na verdade Jaques não tomava mesmo banho todos os dias.
É muito difícil para um menino que não tem mãe tomar banho. Vocês nem imaginam.
Pois bem.

Jaques também tinha outra coisa que era muito detestada pelos outros garotos: ele era dono de um cachorro. Não que ele fosse o único dono de cachorro da vizinhança, mas seu cachorro era o único que não tinha nome, não era bonito nem carinhoso. Mas que sabia de antemão quando qualquer coisa de ruim podia acontecer para Jaques.
Foi assim que um dia o cachorro começou a rosnar, bem do jeito de avisar sobre alguma coisa.

Jaques se levantou – era de manhãzinha, o sol nem tinha nascido ainda direito – e começou a procurar o que tinha de errado.

O montinho de lã estava no lugar, em cima do barril.

O barril estava com água.

A água estava limpa.

Jaques saiu. Lá fora tudo certo.

Mas o cachorro continuava a rosnar.

Jaques resolveu sentar e esperar. Mas nada aconteceu.

Que tristeza. Esse cachorro ficou maluco, está rosnando à toa.

Tinha um outro garoto que não ligava para Jaques. Esse se chama Luís e para ele tanto faz se Jaques tira lã do umbigo, se não dá nome ao seu cachorro, se isso ou se aquilo.
Pois nesse dia que o cachorro rosnou, Jaques, ao descer o caminho, deu de cara com Luís.
Não se cumprimentaram, mas ficaram se olhando. Jaques muito desconfiado, Luís por puro hábito (ele olhava tudo e todos com a mesma insistência, sem falar nunca nada).
— Eu tiro lã do umbigo.

— Eu sei. Já me disseram.

— Meu cachorro pressente as coisas.

— Hã, hã.

— Você não fica impressionado?

— Mais ou menos, mas é que eu já li tantas dessas coisas em livro…

— Não pode ser. Lã no umbigo, só eu.

— Eu sei. Mas tem gente que quando toca nas coisas, as coisas viram ouro puro. Tem gente que voa, gente que vive dentro de baleia, tem pato milionário. Ih, lã é fichinha perto do que existe por aí.
Isso dito, Luís seguiu seu caminho deixando Jaques, sua lã e seu cachorro completamente desenxabidos no meio do caminho.

Jaques então tomou uma decisão.

Continuaria a fazer lã de umbigo, porque esta é uma maneira prática e não trabalhosa de se ganhar a vida.

Mas nunca, nunca mais ia se considerar um cara especial por causa disso.

— E tem mais, seu vira-lata. Você vai passar a se chamar Totó.
Totó rosnou – aliás, ele não tinha parado de rosnar um só minuto desde a manhã cedinho. Mas desta vez rosnou mais forte.

Jaques olhou para os lados. Será que tem perigo por aqui? Cobra? Vai chover? Gripe chegando?
— Ai!!!

Impossível, inacreditável, espantoso! De se duvidar dos fatos! Mas os fatos são que Totó deu uma mordida no seu dono, bem nos fundilhos, rasgando um pedaço do bolso e deixando Jaques com o queixo mais caído do que já estava.
— Não!!

— E tem mais. Ou me chama de Adamastor ou leva uma dentada por dia.
Era a primeira vez que o cachorro falava e Jaques custou um pouco a entender sua voz.
— O que?

— A-de-a- adá. Mas-tor. Sem agá.

De modo que o cachorro, de Totó, passou para Adamastor, o que não era muito do agrado de Jaques. Mas tinha uma porção de coisa nova que não era muito do seu agrado, de modo que ele já estava ficando acostumado.

No dia seguinte era dia de levar o montinho de lã para a lojinha.

Lá, Jaques ficou na fila dos fornecedores, atrás do vendedor da firma Alfinetes, Agulhas & Irmãos ltda e na frente de uma senhora que fazia rendas. Rendas muito bonitas.
Depois de alguns anos, Luís se tornou prefeito da cidade e, querendo agradar os turistas, começou a dar muito apoio aos artesãos. Todos os fazedores de cestas, bonecos de barro e objetos de madeira se viram assim, com um lugar próprio para fazer feira, uma propaganda oficial em cima de suas artes e a simpatia geral do povo.
Jaques também lucrou com as ideias do novo prefeito (e ex-amigo de infância), pois ganhou uma placa para colocar na porta de sua casa:

“J. LANUDO – ARTESÃO TÊXTIL”

Adamastor nunca mais tinha latido – nem mesmo para pedir comida.

Nunca mais falou também.

Jaques se considerava feliz. Quer dizer, não tinha do que pudesse se queixar. Os negócios iam bem, a lã agora tinha atingido um tom cor-de-rosinha muito apreciado pela clientela do Armarinho Mão de Ouro (o nome da lojinha).
Mas, mesmo quando o prefeito Luís deu o nome de Jaques Lanudo a uma rua do subúrbio mais progressista da cidade, Jaques não ficou tão alegre quanto as pessoas esperavam.
Um belo dia, Jaques acordou e pensou que tirava caneta esferográfica do ouvido.
Mas era mentirinha.

Caneta esferográfica é coisa que Jaques não fazia.

De qualquer modo, era gostoso ficar imaginando essas coisas durante o café da manhã.

 

 

 

Uma história pelo meio

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Uma história pelo meio – em catálogo (ed. Positivo)

 

 

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críticas

 

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início:

O começo da história

Quando Rosely nasceu o mundo já ia a meio.
Ninguém mais se lembrava como é que as coisas tinham começado e, para falar a verdade, ninguém tinha muito tempo para se preocupar com essas coisas, coisas assim de começo.
(E quem não pensa no começo, também não pensa no fim… mas isso já é outra história!)
A própria Rosely, por exemplo, quando deu pela coisa, estava em um mundo cheio de carros, fábricas e até mesmo na sua família já havia um irmão mais velho.

 

Infanto-juvenis

Os livros que estão fora de catálogo têm aqui o seu texto integral.

Você pode usar estes textos – e mais o que quiser do site – para fins pessoais ou acadêmicos, mas o uso comercial ou institucional está proibido. Isso inclui a reprodução do material em outros sites, mesmo se culturais ou educacionais, pois ainda que o acesso a esses sites não seja cobrado, a presença do material de Elvira estará colaborando para a imagem institucional de uma empresa ou organização com a qual não temos vínculos.

arquivos internos de ‘infantis’:

 

 

 

LIVROS PUBLICADOS

 

texto:

VIGNA, Elvira. Kafkianas. (a sair, editor André Conti)

 

VIGNA, Elvira. Uma história pelo meio. (a sair, ed. ‘olho de vidro’)

VIGNA, Elvira. Uma história pelo meio. Il. Pic Cortesi. São Paulo: ed. Berlendis & Vertechia, 1982, n.p.

 

VIGNA, Elvira. Vitória Valentina. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro. ed. Lamparina, 2013, 128p.
– participação na exposição “Traçando histórias” da Câmara Riograndense do Livro/2014.
– inclusão na lista de obras literárias do vestibular/2017 da UFSC.

 

VIGNA, Elvira. A pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café. Il. Simone Matias. Curitiba: ed. Positivo, 2013, 24p.
VIGNA, Elvira. A pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café. Il. Ana Raquel. Belo Horizonte: ed. Miguilim, 1983, n.p.

– participação no programa PNAIC do MEC em 2014.

 

VIGNA, Elvira. Problemas com o cachorro? Il. Suppa. Curitiba: ed. Positivo, 2010, 24p.
VIGNA, Elvira. Problemas com o cachorro? Il. Ivan Zigg. São Paulo: ed. Moderna, 1998, n.p.
VIGNA, Elvira. Problemas com o cachorro? Il. Lenira Brandão Silva. Belo Horizonte: ed. Miguilim, 1982, n.p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– prêmio Melhor Obra Infantil da Associação Paulista de Críticos de Arte.

 

VIGNA, Elvira. Viviam como gato e cachorro. Il. da autora. Belo Horizonte: ed. Dimensão, 2005, 40p.
VIGNA, Elvira. Viviam como gato e cachorro. Il. da autora. Rio de Janeiro: ed. Paz e Terra, 1978, 48p.
– prêmio Melhor Ilustração da Associação Paulista dos Críticos de Arte;, 1979
– participação no programa Ciranda de Livros da Fundação Roberto Marinho, 1980;
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil1980;
– participação na Bienal de ilustradores de Bratislava/1982;
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2006;
– edição em cd para deficientes visuais através do pnbe-especial, 2010.

VIGNA, Elvira. O jogo dos limites. Il. da autora. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2001, 128p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– participação no programa de compra de livros da prefeitura de Belo Horizonte, 2002.

 

VIGNA, Elvira. Mônica e Macarra. Il. Glória Campos. Belo Horizonte: ed. Miguilim, 1996, 44p.

 

VIGNA, Elvira. Lã de umbigo. Il. da autora. Rio de Janeiro: ed. Antares/INL-MEC, 1979, 64p.
– prêmio Jabuti de Literatura Infantil da Câmara Brasileira do Livro.

 

VIGNA, Elvira. Coleção Adrúbal, o Terrível. Il. da autora. Quatro livros independentes que tiveram várias edições individuais entre 1971 e 1983, publicadas inicialmente pela Editora Bonde/INL-MEC, e depois pela José Olympio e Miguilim; 78 páginas cada. São eles: A breve história de Asdrúbal, o Terrível; A verdadeira história de Asdrúbal, o Terrível; Asdrúbal no Museu; O triste fim de Asdrúbal, o Terrível.
– edições especiais ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa Salas de Leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 


imagens:
como ilustradora, tenho dezenas de livros publicados; aqui estão apenas os que – não tendo texto de minha autoria – foram premiados, participaram de exposições, programas especiais ou receberam menções.

 


MURRAY, Roseana. Cinco sentidos e outros. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Abacatte, 39p.
-participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2015.

 

BARRETO, Antonio. O papagaio de Van Gogh. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Lê, 2013, 88p.
– prêmio Literatura para todos, do MEC;
– participação no programa PNBE, EJA e Brasil Alfabetizado, do MEC, 2013;
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2014.

 

FREITAS, Tino. Primeira palavra. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Abacatte, 2012, 36p.
– participação no programa de compra de livros da Prefeitura de Contagem;
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– prêmio Jabuti de Melhor Ilustração;
– finalista Jabuti de Melhor Livro Infantil.

 

MURRAY, Roseana. Carteira de identidade. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Lê, 2010, 48p.
– participação na exposição “Traçando histórias” da Câmara Riograndense do Livro/2010;
– participação no programa de compra de livros da Prefeitura de Belo Horizonte, 2010;
– participação no catálogo da Feira do Livro de Bolonha, 2011;
– participação no programa PNBE do MEC, 2013.

 

MURRAY, Roseana. O mar e os sonhos. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Lê, 2010,  36p.
MURRAY, Roseana.  O mar e os sonhos. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Miguilim, 1996, 36p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– lista de honra do IBBY;
– participação no programa PNBE do MEC, 2013.

 

MURRAY, Roseana. Arabescos ao vento. Il. Elvira Vigna. São Paulo: Prumo, 2009, 24pp.
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2010.

 

MURRAY, Roseana. Fardo de Carinho. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Lê, 2009, 36p.
MURRAY, Roseana. Fardo de Carinho. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Degrau, 1981, n.p.
– participação na Bienal de ilustradores de Bratislava/1982.

 

RAMPAZZO, Iacy. O gato Tom e o tigre Tim. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, 48p.
– participação no programa de compra de livros da Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo, 2008.

 

CAMPOS DE QUEIRÓS, Bartolomeu. Sem palmeira ou sabiá. Il. Elvira Vigna. São Paulo: Fundação Peirópolis, 2006, 48p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2006.

 

MURRAY, Roseana. O território dos sonhos. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, 116p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

 

PAULAFREITAS, Ayeska. O que o coração mandar. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Dimensão, 2005, 40p.
– participação no programa PNDE do MEC, 2006.

 

ANDRADE BARBOSA, Rogério. Contos de encantos, seduções e outros quebrantos. Il. Elvira Vigna. São Paulo: Bertrand Brasil, 2005, 64p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil;
– participação no programa PNBE do MEC, 2006.

 

RAMOS, Anna Cláudia. Tempo mágico, tempo de namoros. Il. Elvira Vigna. São Paulo: ed. Larousse, 2005, 68p.
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2005.

 

NAZARETH, Carlos Augusto. Filomena. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, 40p.
– participação na exposição “Traçando histórias” da Câmara Riograndense do Livro/2004;
– participação no catálogo da Feira do Livro de Bolonha, 2004.

 

SCHÜLER, Donaldo. Refabular Esopo. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004, 168p.
– exposição individual das ilustrações no Teatro Renascença de Porto Alegre.

 

ORTHOF, Sylvia. Você viu, você ouviu? Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Vertente, 2003, n.p.
– participação na exposição “Traçando histórias” da Câmara Riograndense do Livro/2003.

 

MURRAY, Roseana. Manual da delicadeza. Il. Elvira Vigna. São Paulo: FTD, 2001, 32p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

 

MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. Il. Elvira Vigna. São Paulo: FTD, 1997, 48p
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

 

MURRAY, Roseana.Três velhinhas tão velhinhas. Il. Elvira Vigna. Belo Horizonte: Miguilim, 1994, n.p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

 

DAHL, Maria Lúcia. A bailarina agradece. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Terceira Margem, 1990, 96p.
– participação na Bienal de artistas gráficos de Brno/1992.

 

MURRAY, Roseana. Paredes Vazadas. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Memórias Futuras, 1989, n.p.
– medalha Melhores Ilustradores Mundiais do Instituto Noma (Japão) em associação com a UNESCO/1990.

 

CARTA, Mino. Histórias da Mooca. Il. Elvira Vigna. São Paulo: Berlendis & Vertechia, 1982, n.p.
– participação na Bienal de artistas gráficos de Brno/1982.

 

PINSKY, Mirna. O canguru emprestado. Il. Elvira Vigna. São Paulo: Global, 1982. 64p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

GANEM, Eliane. O coração de Corali. Il. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. n.p.
– menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.


3) traduções

EATON, Jason. Como treinar o seu trem. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2014, 40p.

 

GAIMAN, Neil. Instruções. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2013, 40p.

 

JOYCE, William. Guardiões da infância: Sandman. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2013, 52p;
JOYCE, William. Fantásticos livros voadores de Máximo Modesto. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2012, 52p;
– menção Altamente Recomendável de Tradução da FNLIJ, 2013.
– compra pelo programa  PNAIC-2014 do MEC.

 

SCOTTON, Rob. Rodolfo e a mágica de Natal. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2009. 36p;
SCOTTON, Rob. Tato, o gato. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco 2010, 36p;
– compra pelo programa PNAIC-2014 do MEC.

 

WATT, Mélanie. Esquilo Intranquilo na praia. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2011, 36p;
WATT, Mélanie. Esquilo Intranquilo. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2010, 40p;
WATT, Mélanie. Esquilo Intranquilo faz um amigo. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2012, 36p;

 

SHERRY, Kevin. Sou a maior coisa que há no mar. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2010, 40p;

 

ATWOOD, Margaret. Lá em cima na árvore. Trad. Elvira Vigna. Rio de Janeiro: ed. Rocco, 2009. 36p;
– menção Altamente Recomendável de Tradução da FNLIJ, 2010.

Mônica & Macarra, 1996

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Mônica & Macarra (Miguilim, 1996, 44p. )

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

infamacarra

Texto um da Mônica

Você é a rainha da Inglaterra.

Não esta que está aí, oh boba, mas uma rainha da Inglaterra.

Você é lindíssima, com longas pestanas e aquele olhar meio triste de quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só as rainhas da Inglaterra conseguem ter.

Não, não.

Vamos deixar este lance para depois.

Você é uma guerrilheira. Você pertence ao povo dos Macsims, que vive nas montanhas. Você é médica e irmã do chefe do grupo. A região está em guerra. Vocês, os Macsims, têm de tomar muito cuidado, porque de um lado estão os Macnões, um povo muito cruel e agressivo, e do outro lado os Macdonalds, uma civilização antiga, muito culta, que às vezes tenta abocanhar as montanhas dos Macsims, anexando-as a seu país.

Tudo começa quando o seu grupo fica sabendo que um pelotão de Macnões está com um prisioneiro – que ninguém sabe se é Macsim ou Macdonald – e estão fazendo horrores com ele.

Seu irmão organiza uma expedição de resgate para o caso do pobre prisioneiro ser um Macsim.

Não é. É um Macdonald.

Ele está quase morto pelos maus-tratos. Seu irmão, que é pessoa de nobre caráter, resolve resgatá-lo mesmo ele não sendo um Macsim. Quem cuida dele é você. Uma pomadinha – feita com folhas de uma árvore da região e que só os Macsims conhecem – aqui, uma massagenzinha ali, uma trocada de curativo acolá e pinta o maior clima. Seu irmão não percebe nada e, nobre caráter à parte, acha que de repente pode obter um bom resgate pelo prisioneiro.

(O prisioneiro tem aquele olhar meio triste, de quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só reis, rainhas e príncipes têm, mas ninguém nota isso em um primeiro instante.)

É inverno, as montanhas estão cobertas de neve e a única passagem que leva ao acampamento de vocês está fechada por causa de uma avalanche. Mesmo assim, seu irmão obriga o prisioneiro a ficar o tempo todo de algemas para não fugir. Você aproveita e tira o maior sarro. O inverno todo. Várias vezes por dia.

A comunicação entre vocês se dá pelo olhar.

Você olha fundo, o que quer dizer: está gostando, hein?

Ele volta um olhar que significa: oh, mais, mais.

Noutro dia:

(“Você passou bem à noite, gatão?”)

(“Mais ou menos, na verdade o travesseiro caiu no chão.”)

( “Oh, coitado [poor thing].”)

Ou então:

(“Dá para me passar mais batata?”)

(“More potato? Sure! Big delicious thing! [gostosão!]“)

É aconselhável que os diálogos sejam em inglês, porque eles ficam muito melhor em inglês.

Bem, o negócio é o seguinte. Trata-se, nada mais nada menos, do que o filho do rei Macdonald. O rei tinha dois filhos, ambos lindíssimos, uns morenões de olhos verdes e cabelos lisos de matar qualquer um (digo, uma), e que são a cara daquele cara que você viu de longe ontem na hora do recreio. Mas guerra é fogo. O irmão mais velho que, aliás, era o preferido do rei, morre na mesma batalha na qual o irmão mais novo foi feito prisioneiro. Inclusive, nos primeiros dias, você ouvia ele repetir muitas vezes, sussurrando no meio da febre, “Nicolas”, “Nicolas”, e você até ficou meio assim, achando esquisito, será que ele é gay? Mas resolveu passar por cima deste detalhe.

Ninguém sabe que o prisioneiro é o príncipe Macdonald porque, na operação de resgate, seu irmão, com nobre caráter e tudo, trucidou todos os Macnões. Não sobrou um para contar a história.

Bem, mas aí o inverno está acabando e vocês estão notando que há um grande movimento de tropas Macdonalds no sopé da montanha, só aguardando a passagenzinha abrir para subir para o acampamento. Nos ares, apesar do mau tempo, aviões Macdonalds estão sobrevoando com cada vez mais frequência a região Macsim.
Do outro lado da montanha, tropas Macnões também estão se concentrando e fazem gestos obscenos olhando para cima cada vez que um de vocês chega na beiradinha para jogar lixo ou fazer xixi.

Seu irmão saca que o desastre é iminente. Vocês vão ser massacrados.
Sempre sem desconfiar que o prisioneiro é o herdeiro da coroa Macdonald – saiu no jornal da TV que os dois filhos do rei tinham morrido em uma batalha e vocês, claro, acreditaram – seu irmão vê que a única solução é soltar o prisioneiro.
Estão todos jogados no chão da casinha principal esperando para qualquer segundo o início do bombardeio.

“O problema é que assim que ele sair por aquela porta começa o bombardeio”, diz seu irmão.

I will not let them.”
É a primeira vez que o prisioneiro fala português, quer dizer inglês, não, macsimês. Todos se entreolham espantados.

Trust me.”

Seu irmão dá um suspiro profundo e se arrasta até o prisioneiro para tirar as algemas enquanto murmura:

“Quanto dinheiro será que eu estou perdendo nessa!”

O prisioneiro responde:

“Muito. Mas você não vai se arrepender.”

Sem algemas, ele se dirige para a porta não sem antes passar a mão na sua perna dizendo entre dentes:

“Aha, sempre fiquei com vontade de fazer isso e não podia por causa das algemas. Gostosa! (delicious thing!)”.

O prisioneiro vai até a porta e, de frente para os aviões e helicópteros que enxameiam o ar, começa a fazer uma série de gestos.

Você pergunta para seu irmão – que tudo sabe – o que ele está fazendo com aqueles gestos.
“Ele está dizendo para os aviões se afastarem de costas, com as asas e cauda se mexendo em movimentos sincopados no ritmo do rap que está tocando na cabine do avião de comando.”

“E eles estão fazendo isso?”

“Estão.”
“Impressionante.”

Antes de ir embora, já a bordo de uma aeronave, o prisioneiro sobrevoa o acampamento e vai para o lado da montanha onde estão os Macnões, dá uma rajada de AR-15 na neve, desenhando o símbolo do Comando Roxo.
Você fica impressionadíssima.

A neve desaba, fazendo nova avalanche e interrompendo assim, mais uma vez, a subida dos Macnões, que ficam lá embaixo berrando palavrões.

Ao sobrevoar de novo o acampamento em direção à fronteira do país Macdonald, os aviões fazem um voo rasante e batem as asas em sua homenagem.
Você acena lentamente enquanto eles somem no horizonte em direção ao pôr-do-sol. Nas suas costas, a música aumenta. É seu irmão, tocando um dos temas da novela das oito em um violino elétrico.

Você acha que nunca mais vai ver o prisioneiro. Apenas uma aventura e só.

Mas, hélàs (francês também fica bom, aqui e ali), você descobre que está grávida. Você decide ter o filho apesar dos rigores da vida da montanha e de conhecer um chazinho que é tiro e queda, feito com umas folhas que só os Macsims sabem onde tem.
Mas, como você diz para você mesma: trata-se de um bonito presente do destino, algo para lembrar nos anos vindouros quando serei apenas uma mulher de subúrbio, trabalhando que nem uma louca como enfermeira de hospital público, com plantão noturno e nos finais de semana e, além disso, tendo de cuidar de uma criança nova, sozinha, sem dinheiro, num quartinho escuro. Você quase desiste, mas não desiste, porque já leu uma porção de livros iguais a este aqui e sabe que no final dá tudo certo.

Mas a emoção de ver o prisioneiro partir é muita e você não passa bem. Seu irmão, então, junto com a mulher dele e mais um fiel ajudante decidem ficar mais um tempo na montanha.

Você tem o filho lá mesmo e só desce depois, para registrá-lo.

Durante todo este tempo você nem vê televisão nem escuta rádio, de modo que quando desce para registrar o bebê você ainda não sabe que na verdade você é mãe do neto do rei Macdonald.

No cartório você lembra do “Nicolas!”, “Nicolas!”, e decide fazer uma homenagem às preferências do seu prisioneiro desconhecido e coloca o nome da criança como sendo Nicolas.

Só então fica sabendo da verdadeira identidade do pai do bebê, e fica sabendo também que o serviço secreto dos Macdonalds está à sua procura.

Você começa a fugir porque acha que nunca o pai do príncipe, o rei Macdonald, vai permitir que você, uma pobre ex-guerrilheira das montanhas, fique com um bebê real. Na verdade quem está à sua procura é o próprio príncipe que não conseguiu esquecer aqueles momentos especiais no acampamento. Você foge por: 1) trem; 2) a cavalo, pelos campos com o bebê no seu colo e seus longos cabelos jogados pelo vento; e 3) no meio da chuva que cai sobre as calçadas sujas do bairro pobre onde você mora, se esgueirando entre os carros com um guarda-chuva quebrado enquanto uma vizinha toma conta da pestinha em um edifício velho, sem elevador e caindo aos pedaços.

Você chega do trabalho mais cedo naquele dia, porque o pessoal do hospital resolveu entrar em greve outra vez.

Você, com seu treinamento rigoroso de guerrilheira, logo percebe que aquele cara encostado no carro de luxo estacionado na porta do edifício é um agente secreto. Você se vira, mas um outro cara, que estava fingindo telefonar (o treinamento afinal não foi tão bom assim, o telefone está quebrado há mais de um mês e você sabia disso), segura o seu braço.

“Excuse me, lady.”

Não dá para escapar. Os secretas escoltam você para dentro do seu próprio apartamento, onde o príncipe ex-prisioneiro já se encontra.
“Passa a bola, pô.”, está dizendo o príncipe em um telefone celular no momento mesmo em que você entra.

(Sorry, mas esta é a única frase que você escutou do cara lindaço do recreio e ela tinha de entrar em algum lugar.)

Você logo percebe que é um dos códigos que ele, em um de seus trabalhos importantes e confidenciais e que podem mudar os destinos do mundo, está usando para que ninguém saiba de nada.

Você entra.

“Por que você fugiu de mim? Meu serviço secreto me diz que não há nenhum homem na sua vida. Eles se enganaram? Você tem outro?”

” ……”

“Não me diga nada, não tenho o direito de exigir nada de você!”
” ……”

“Mas tem ou não tem?”

“Sim. Eu tenho outro!”

“Oh! que decepção. Vai me dizer que aquele seu irmão que vivia grudado em você não era seu irmão!!!”

“Não, não. Não é isso.”

“Quem é esse outro então?”

“… …”

“Não, prefiro não saber. Mas hein?”

No seu desespero, louco de ciúme, o príncipe está sacudindo você perto da janela. Lá fora está todo mundo vendo, maior mico.

Neste momento toca a campainha. É a vizinha que, sem saber de nada, vê que você já chegou do trabalho e está trazendo o bebê, de quem ela ficou tomando conta durante o dia.

“Um bebê! É isto então!”

“……”

“Não. Não me diga nada.”

“……”
“Um dia, se você se sentir à vontade, você me conta o que aconteceu.  Só não me faça mais sofrer: o filho da mãe do pai ainda é alguém existente na sua vida?
“Bem… não.”

“Então está tudo bem. Viveremos os três felizes para sempre. Deixe-me ver que cara tem aí esse… esse….”

O bebê é um morenaço de olhos verdes e cabelos lisos, que vai logo esticando os bracinhos para o príncipe e balbuciando: passa a bóia, pô…

Ele diz (ele o príncipe, o bebê, como já vimos, ainda não fala direito):
“Mas… mas é um bebê Macdonald! Você… você foi atacada por algum dos meus homens?!”
“……”

“Não, não me diga nada. Um dia, quando o trauma passar você me conta.”
“……”

“Quem foi o…”

Mas o príncipe, aos poucos, vai começando a entender. Ainda bem. Você já estava mesmo achando que ele era meio desligado.

“Mas… quantos meses tem este bebê?! Não vai me dizer que…”

“……”
“Não vai me dizer que…”

“……”
“Diz logo, poxa!!!”

“É, é seu filho!”

Depois de uma cena realmente enjoativa de lágrimas e beijos, vocês decidem rumar sem mais tardar para o palácio, mesmo porquê nesta hora o edifício onde você mora fica com um cheiro horrível, todo mundo cozinhando o angu do jantar ao mesmo tempo.

Vocês saem, embarcam na limusine preta que brilha sob a chuva, e que já estava esperando com um tapetinho vermelho estendido na porta de trás, e vão para o palácio, onde ainda terão que enfrentar a ira e a oposição do velho rei.

Mas o velho rei já anda cansado deste papel de mauzão e, depois da morte de Nicolas, não quer brigar com o único filho que lhe resta. Além do mais, ele tem uma secreta admiração por você, já tendo ouvido falar de suas habilidades como médica, da sua nobreza frente ao inimigo, de sua coragem e esperteza e, também, claro, de suas pestanas longas (não, não, aqui não entram as pestanas) e corpo escultural, que você passou estes anos todos disfarçando quase o tempo todo por baixo de uma farda de guerrilheira azul turquesa – que é uma cor que não fica nada bem em você.

E vocês então vivem felizes para todo o sempre no anexo do palácio real – já que os seus princípios de guerrilheira a impedem de morar no palácio propriamente dito. E, para não virar dondoca, o que seus princípios também não permitiriam, você trabalha em um grande projeto de saúde pública para os Macsims que, afinal, aceitaram se tornar um território agregado ao país Macdonald.

Os Macnões, por sua vez, receberam um castigo exemplar. Um vírus terrível os atacou e eles viraram todos Macsims, com excelente caráter, que nem o seu irmão.

Com o tempo, o tédio foi vencendo-os e eles morreram de prisão de ventre, por falta de exercício, e por excesso de pipoca de microondas.

O seu irmão, depois de experimentar um emprego aqui outro ali, abriu uma agência de turismo especializada em viagens para Cuba, graças a um financiamento arranjado por influência do príncipe. Costuma fazer uns discursos fora de moda para os clientes. Não está dando muito certo.

Às vezes você dá uma fugidinha do trabalho. É difícil, porque você trabalha em um escritório ao lado do escritório do príncipe, e de cinco em cinco minutos ele abre a porta e faz:

“Cutiii!!!”

Mas às vezes dá, e então você vai bater um papo com seu irmão. Vocês não falam quase nada, só ficam olhando pela janela.

De vez em quando um de vocês diz:

“Pois é.”

E suspiram fundo com os olhos nas montanhas.

Aí você volta para o trabalho.

Esse cara do recreio… Você fica na dúvida. Vai ver nem era tão bonito assim.

 

 

Texto um do Macarra

Você é dono de um harém. O seu harém fica em volta de uma piscina olímpica onde ninguém nada nada. Só a brisa encrespa um pouco a superfície de vez em quando e nestas horas as mulheres fazem ui, ui, e esfregam os braços arrepiados, com frio.

As mulheres passam o dia na beira, molhando ora um pezinho ora outro.
Elas se vestem com uns pedacinhos de gaze transparente colorida.
Cada uma tem uma cor diferente.

É impressionante a quantidade de cor que existe neste mundo. Para você tanto faz, porque você é daltônico.
Acontece de você chegar perto da piscina (e nesta hora cessam os risinhos e o tititi, em sinal de respeito) e dizer:

“Você aí.”

“Quem?”
“Você, a de rosinha.”

E aí os risinhos recomeçam, com mais força. Não tem ninguém de rosinha no grupo.

Ou então.

“Hoje é dia da de vermelho, não é? Então vem.”

“Mas eu sou a azul.”

Tirando estes contratempos absolutamente suportáveis, vocês todos (346 ao todo) vivem felizes para sempre. Dia sim, dia não – você instituiu isso esta semana – é dia daquela garota que você viu no recreio, de longe. A gaze dela é branca, que é para não dar confusão.

Só que às vezes você sai escondido do harém, disfarçado de cara da Telemar, que é para ninguém perceber que você está indo jogar uma bola com o pessoal, pô. Sabe como é operário. Se as pessoas que trabalham para você virem você saindo do harém, e logo para se encontrar com um bando de homem, vão logo espalhar que você não é de nada. E vão espalhar isso sem nem antes se dar ao trabalho de confirmar com a garota de gaze branca qual é a sua verdadeira técnica de jogo (técnica esta que, muito aqui entre nós, você ainda não determinou completamente. Inclusive porque a garota do recreio tem um nariz assim meio empinado. Você fica sem saber qual é a dela. Vai ver quem não é de nada é ela).

 

 

Texto dois da Mônica

Você está chegando de trem na casa de seu tio, que é um solteirão já velhinho muito rico e que vive em uma mansão no meio de uma fazenda enorme, com praia selvagem onde só se chega descendo por um atalho com escadinha de pedra entre flores silvestres, e onde há uma velha cabana de pesca feita de palha, mas com uma cama muito confortável, ar condicionado e televisão a cabo. Há também rios de leito de pedra, florestas antigas, cavalos, montanhas com vista a perder de vista, os mais variados animais, como veados selvagens, tucanos, coelhos selvagens, micos-leões dourados e prateados, porcos espinhos (importantes a seguir, como se verá), peixes em profusão, aves raras etc.

O trem, daqueles antigos, que apitam roucamente, chega em uma estação também antiga, com uma lanchonete com poltronas de couro, quadros de moldura dourada e janelas de vidros decorados, que sua avó diz que são bisotês. Lá dentro todos estão muito bem vestidos, com casacos, xales, luvas e chapéus, tomando coca-cola on the rocks com fatias de limão e olhando ao longe. Eles fumam de piteira. Quando o trem chega é sempre inverno e há uma bruma que cobre, alternadamente com a fumaça que sai das caldeiras do trem, todo mundo, de tempos em tempos.

Quem vem buscar você na estação é o braço direito do seu tio. O braço direito do seu tio é lindíssimo, um morenão de olhos verdes e longos cabelos lisos, que usa no braço direito – e no esquerdo também – umas pulseiras largas de couro que você acha o máximo. Tem um papo que corre que seu tio nunca se casou porque é meio gay e que o braço direito – não sei não, esse negócio de braço direito – diz sempre o seu pai, mas você sabe que é pura inveja porque seu tio, que é o irmão da sua mãe, teve muito mais sucesso financeiro do que seu pai. O fato é que o braço direito se ocupa da contablidade e da gerência dos negócios do seu tio há muito tempo, e desde que seu tio começou a ficar doente que ele é praticamente a única pessoa a entender dos negócios dele. Seu tio de fato gosta muito dele. Vive elogiando:

– Ele é um estouro!

Você é belíssima. É a primeira vez que você volta à casa do seu tio depois de muito tempo, e o braço direito ainda nem sabe como você ficou bonita depois que virou moça. Vocês são grandes amigos de infância e desde aquela época ele é secretamente apaixonado por você, mas você nunca notou. Além de belíssima, você também é muito inteligente (está se formando em medicina) e é noiva de um cara que é rico, bonito, inteligente, da alta sociedade, educadíssimo, que trata você com o maior respeito e que tem um belo futuro pela frente no escritório de advocacia do pai, onde já ocupa uma mesa em sala de canto com vista para o mar – em suma: perfeito. E além de tudo, conde, visconde, lorde, uma coisa assim. É o chato do Henriquinho, filho da amiga de sua mãe, aquele que ela vive dizendo: mas minha filha, convida o Henriquinho para ir junto, ele é um rapaz tão bom!

Você está indo à casa do seu tio por três motivos: 1) ele está muito doente e quer ver você, sua única herdeira, antes de morrer porque ele tem um segredo que só pode contar pessoalmente; 2) você está mesmo procurando um bom lugar para fazer estágio e quer que seu tio dê uma ajudinha antes de morrer, já que ele é o diretor do maior hospital da região e tem muito poder; 3) você quer dar um tempo com o Henriquinho, que tinha convidado você e mais um pessoal para uns dias na casa dele de Búzios onde sobra mosquito.

Você vem no trem anterior ao combinado e senta na lanchonete para ficar vendo o movimento. Bem antes da chegada do trem no qual você tinha combinado vir, você vê o braço direito, o rosto pálido, ansioso, que se senta em um dos velhos bancos de madeira, as mãos nos bolsos do sobretudo – que está na capa do último número da revista de moda masculina inglesa que seu jornaleiro recebe todo mês. Quando o seu trem chega, ele se levanta em um átimo (quando o trem chega é sempre inverno e é sempre antigamente, inclusive no vocabulário) olhando cada janela que passa cada vez mais devagar, cada pessoa que desce na estação. Aos poucos a estação vai ficando deserta, não tem mais ninguém para descer, ele continua olhando, procurando, aos poucos abaixa os olhos: você não veio. Neste ponto você dá pequenas pancadinhas no vidro bisotê, chamando sua atenção e sujando o vidro, o que sua avó detesta. Instantaneamente, o rosto dele se abre em um sorriso esplendoroso e ele coloca a mão do outro lado do vidro onde está a sua, tentando um contato impossível – e sujando o vidro mais ainda. Desce a tal da bruma. Quando a bruma sai ele está a seu lado, dentro da lanchonete.

Bem, o resto é o de sempre. Como vai. Eu vou bem, e você. Que frio, hein. Mas puxa, como você está linda. Bem, você também não está de todo mau.

“Mas meu tio, como está o meu titio querido?”

“Só está esperando você chegar para morrer, vamos logo.”

Isso tudo, ele segurando apenas uma de suas mãos. Até que nota o anel de noivado.
“E o seu noivo, como está?”

A voz é triste, os olhos tornam a ficar marejados de lágrimas. Você retira a mão.
“Vai bem.”

Ele apanha suas malas e leva você até o carro. Vocês quase não se falam até chegar na mansão, você relembrando cada parte do caminho.

No quarto onde está o seu tio, ele com a voz quase sumida pela doença pede para você se aproximar. O que ele tem para dizer é o seguinte: o braço direito nunca foi gay na vida, muito pelo contrário, é apaixonado por você desde sempre e que topou fazer papel de gay para encobrir o verdadeiro amante dele (dele seu tio), amante este que é um alto dignatário do Congresso Nacional que mora ali pertinho e que você conhece desde menina pela alcunha de tio Bibi, que é casado, cheio de filhos e que você já imaginou, minha filha, o escândalo?

– Sou muito grato ao fulano (falta inventar um nome para o braço direito) por tudo o que ele me fez, minha filha. Se ele me deve a vida, como você verá a seguir, eu também devo muito a ele, a quem sempre quis como a um filho. E é justamente sobre isso que quero falar com você: estou pretendendo deixar para ele uma pequena parte de minha propriedade. Como você é minha única herdeira legítima, eu preciso de sua aquiescência para que você não conteste judicialmente meu testamento.

Além de linda, rica, inteligente e noiva, você tem também um coração de ouro e diz:
“Ora, titio, é claro que sim, mas que besteira, não precisava nem perguntar. Logo aquele pedaço de lá que vale muito menos e do qual eu não faço mesmo a menor questão.”

Seu tio pede para você abrir uma gaveta secreta da escrivaninha dele, cuja chave ele guarda em um barbantinho pendurado no pescoço, e pegar lá dentro uma caixa de charuto. Você pega.

“Aqui dentro está toda a história do fulano (precisamos arrumar um nome. Poderia ser Right Arm, os amigos chamando-o de Rai Tarm).

Depois disso, o seu tio morre.

Raios, o estágio!

Paciência.

No velório, você e o braço direito passam o tempo todo encostadinhos um no outro, olho no olho, discretas alisadas no braço (qualquer um deles). Você chora:
“Minhas melhores lembranças da infância!”

O braço direito também chora:

“Tudo que sou devo a ele!”

As pessoas dão os pêsames, passam. Uma delas é o tio Bibi. Ele está aos prantos pedindo pelo-amor-de-deus para mexer sozinho na escrivaninha do seu tio, porque lá tem papéis pessoais que ele precisa recuperar. Você, é claro, deixa. Ele sai agradecido e diz que qualquer coisa que você precise, estágio etc., pode contar com ele.

No período de inventário, que é longo, você passa os dias sentada no computador com o braço direito lhe passando, pouco a pouco, toda a situação dos negócios do seu tio. O braço (ahn, fica Rai), você nota, além de honestíssimo, é da maior competência. Você comunica a ele que, por herança, aquela parte de lá da propriedade é dele. Ele dá de ombros, agradece e suspira. E pergunta o que você pretende fazer na vida. Se você for casar com o Henriquinho e vir morar ali, ele prefere abrir mão da herança e sumir no mundo, porque não aguentaria a tortura de ver você com o Henriquinho manhã, tarde e noite (talvez ele também não aguente a tortura de ver o Henriquinho, mesmo sem você, mas isso é só uma suposição).

Ele não fala o que sente de forma clara, ele hesita em contar o quanto é apaixonado por você. Ele só diz:

“Bem… talvez eu nem fique com a propriedade…”, e suspira.

Todos os dias vocês descem e em uma mesa na cozinha tomam um café com bolo que uma empregada perfeita – que limpa tudo, faz as compras, cozinha maravilhosamente bem e que ninguém nunca vê – prepara todos os dias antes de ir embora.
Você já está meio cansada destes olhares avassaladores e mais nada, e resolve arrancar do braço direito a confissão de quanto ele ama você. Então, durante um destes cafés, você faz ele morrer de ciúme de 1) um filho do tio Bibi que vive lhe chamando para ir a festas; 2) do Henriquinho, que vive telefonando perguntando se pode ir aí visitar você; 3) e de mais uma meia dúzia que você inventa na hora.
Não adianta. Ele quase chora de sofrimento, mas não fala nada.
Então você tira a fita vermelha que você usa na cintura para prender sua camisolinha que, sem a fita, abre inteira e enquanto o queixo dele cai você amarra as mãos deles com a fita.

Ele diz:

“O que você está fazendo?”

“Amarrando as suas mãos, não está vendo?”

“Para que?”

“Para torturar você.”

“Mais ainda do que já tortura?”

”Até você confessar.”

”Alguma coisa que você ainda não saiba?”

“Não, mas eu quero ouvir.”

“Eu amo você desesperadamente. Mas como dizer para você trocar um conde rico e bonito e chamado Henriquinho por um reles braço direito, Rai, com fama de gay?”
“Então é verdade mesmo?”

“Sim! Sim! Não! Não!”

Você se levanta confusa da mesa e vai correndo se trancar no quarto, onde você sonha a noite inteira com aquele braço direito fazendo coisas incríveis.

No dia seguinte, você toma uma resolução e diz:

“Quando quiseres serei eu a tua braça esquerda (Lef Tarm).”

Não ficou muito bom. Depois você vai ter de melhorar isso.

Adendos possíveis, se você estiver com tempo:

1) Cena da volta do velório:

Você diz que para espantar a tristeza nada melhor do que dançar um pouquinho. Ele põe uma música lenta. Vocês se aproximam. Você coloca uma mão na nuca dele e fica mexendo com seus cabelos. Com a outra mão, você afasta um pouco a camisa dele e toca diretamente a pele do seu peito. Você sente o coração dele batendo muito forte. Ele coloca a mão dele por cima da sua. Mas a emoção de estar assim perto de você é muito grande. O cheiro dos seus cabelos o inebria e ele, trêmulo, não consegue dar um passo. Quando a música acaba, ele fala simplesmente:
“Desculpe.”

2) Cena da chuva na floresta:

É uma noite escura e está a maior tempestade. Faz tempo que você não ia pelo caminho da praia e você se perde. Você está com um vestidinho de algodãozinho muito leve (agora já é verão) que fica completamente transparente quando molhado. No meio dos trovões, você – que está com o pé preso embaixo de uma pedra que rolou, morta de medo de algum leão ou hipopótamo que abundam por lá, ouve o braço direito chamar por você, desesperado.

Ele encontra você e diz:

“Oh, meu Deus, graças a Deus. Are you all right, Lef?”

Ele a leva no colo até a cabana da praia onde não há nenhum mosquito, deita você na cama, liga o ar condicionado e você desmaia. Quando acorda, no dia seguinte, ele está do seu lado, olhando para você apaixonadamente. Você está com a camisola especial de renda. Ele continua com a roupa molhada mas diz:

“Não tem importância. O importante é você estar bem.”

No meio da camisa você percebe uma mancha de sangue. Ele se feriu. Você diz:

“É preciso cuidar disso.”

E como você é médica, você faz um curativo com perfeição, enquanto ele fecha os olhos e treme ao sentir sua mão na sua pele. Você o beija apaixonadamente. Vocês ficam na cabana da praia uma semana, alternando cenas realmente quentes no friozinho do ar condicionado com sessões de filmes ótimos dos canais de filme da televisão a cabo.

3) O lance do porco-espinho:

Um dia vocês estão passeando pela floresta e ele grita:

“Cuidado!”

Ao mesmo tempo se joga na sua frente, encobrindo o seu corpo com o corpo dele e quase esmagando você contra um tronco de árvore. Você nada vê, além de uma expressão de dor em seu rosto. É que você, inadvertidamente, ia pisando em um porco espinho que, para se defender, se posicionou para soltar os espinhos. Ele viu e protegeu você, recebendo ele, nas costas, todos os espinhos. Você faz com que ele se deite de bruços no chão (ou na mesma cama da cabana da praia, de repente é melhor) e você rasga sua camisa e vai tirando um por um os espinhos enquanto passa a mão suavemente pela sua pele. Ele está com os olhos fechados. E quando você pergunta se dói muito, ele responde:
“Só dói quando você não me toca.”

4) Conteúdo da caixa:

Dentro da caixa que seu tio lhe deu estão documentos do braço direito que mostram o quão infeliz foi sua vida até que seu tio o salvou. Lá dentro também está uma espécie de diário que ele fazia quando criança e que ele nem sabe que ainda existe, e onde ele fala de você sem parar e de como ele gosta de você.

5) O fim:

Vocês vivem felizes para sempre. No começo as pessoas ainda estranham por causa da fama de gay dele. Mas aos poucos, como você é muito rica e boa, e como todo mundo gosta dele, que é de fato um ótimo sujeito, ninguém mais fala nada e vocês vão tendo filhos e mais filhos, todos lindos, todos chamados Bô Tarm (Both Arms, no resgistro de nascimento). Você é convidada para dirigir o hospital. Ele fica cuidando dos negócios da família. Tio Bibi não consegue se reeleger no Congresso e resolve então se assumir. Abre uma sauna para se ocupar na aposentadoria. Henriquinho entra para o Rotary e dá uma festa, você não vai. Sua mãe vai e diz que a festa foi linda, com uísque escocês a rodo, todo mundo lá. Você pergunta se aquela piranhazinha da sua colega foi. Foi. E dançou o tempo todo com o Henriquinho.

Aí sua mãe pergunta como vão as cabras da fazenda.

Você não responde, porque está distraída olhando a vista a perder de vista.
Um mosquito morde seu pé. As crianças estão berrando lá embaixo. Você pensa – só assim – que se fosse preciso sair pela janela por uma corda, sem ninguém ver, não ia ser difícil. A mansão é baixa.

Você pensa em um nome para o braço direito. No recreio, outro dia, você ouviu alguém berrar “Macarra!” para aquele cara moreno que finge que joga bola enquanto fica olhando para você. Mas não pode ser Macarra, que lembra macarrão. Tem de ser um nome melhorzinho. Afinal, é um braço direito.

 

 

Texto dois do Macarra

Você é dono de um segundo harém. Este harém aqui fica em um enorme gramado inglês, cobrindo colinas suaves a perder de vista. As moças andam com umas camisolinhas de renda curtinhas e, quando bate o vento, levanta tudo. As camisolas têm também umas alcinhas que arrebentam com a maior facilidade. Você faz um concurso por dia para escolher que moça vai ficar com você naquela noite. É assim: você fala “já!” e elas saem correndo aos gritinhos. Você dá um tempo para que elas fiquem com uma certa vantagem e sai atrás. Quem correr menos e você agarrar, é aquela. Mas elas só fingem correr e praticamente se jogam na sua frente.

“Ih, desculpe, tropecei, hi, hi.”

Tem uma então, a da perna grossa (lembra muito aquela menina do recreio, inclusive) que corre muito mal, talvez justamente por causa das pernocas grossas. Em geral você agarra ela. Tem dias também em que você não agarra ninguém. Quem finge que tropeça é você, e aí você volta, se tranca no seu quarto para ver sossegado um vídeo de espionagem.

Aliás, às vezes não precisa nem fingir. Depois do último jogo em que você tropeçou de verdade e teve que engessar o tornozelo, você não pega mesmo ninguém nem querendo, manco deste jeito. Haja vídeo.

Não dá para você perguntar o nome da menina do recreio para ninguém, porque se perguntar para homem vai ser uma encarnação só, e das meninas que ficam no mesmo grupinho dela você não conhece ninguém. Mas na correntinha que ela traz no pescoço tem a letra M. Madonna, Ma Belle, Mmmmmmmore. Na verdade tanto faz, você não vê muita oportunidade de precisar usar o nome dela no harém, de qualquer maneira.
‘Psiquiu’ já serve para os seus propósitos.

 

 

Texto três da Mônica

Você é a rainha da Inglaterra. O que aconteceu foi que seu pai é um tremendo de um mau caráter e ainda por cima viciado em jogo, e ele simplesmente vendeu você para um cara que você nunca tinha visto antes e que, por acaso, era o rei da Inglaterra.
Você topou a tramoia, apesar de estar ofendidíssima de estar sendo tratada como uma mercadoria – por causa do dever filial e também porque o rei, como você veio a descobrir no primeiro encontro -, não é tão mau assim: moreno, com uns olhos lindos, embora manco. E, de qualquer maneira, no contrato nupcial você deixou acertado de que não haveria contato sexual entre vocês. Seria um casamento puramente de aparência: seu pai ganharia uma  bolada para sair de sua última enrascada, e o rei ganhava uma esposa a jato porque, segundo uma lei real, se ele não estiver casado ao completar 23 anos, o trono passa para seu irmão mais novo.

No momento não há nenhuma princesa disponível no mercado, segundo ele.

Você mora na ala da esquerda e ele mora na ala da direita do palácio. Vocês quase nunca se veem e, quando isso acontece, ele sempre sai apressado dizendo:

“Desculpe, minha presença deve incomodá-la.”
Não incomoda. Mesmo porque você, além de muito bonita, inteligente, talentosa, alegre e agradável, também tem um coração de ouro e não é de guardar rancor de ninguém. Você acha o fim o rei ter achado que ia comprar você como um pacote no supermercado, mas nem por isso você fica com raiva dele sem parar. Só de vez em quando.

Tudo o que você pede a ele, ele dá. Você pediu para vir com o seu cachorrinho, e ele deixou (não que você quisesse aquele sujinho babento, mas sua mãe negou-se terminantemente a tomar conta dele durante o ano em que você ia passar casada no palácio – o contrato é só de um ano). Depois você pediu uma escrivaninha com telefone, fax e computador – para continuar a fazer seus trabalhos de pesquisa médica, e ele deu. E você pediu para continuar se relacionando com seus antigos amigos.
“Alguém em especial?”

“Sim, o Henriquinho.”

“Compreendo. Um…um…?”

“Não, bem, sim, mais ou menos, foi, hoje não mais.”

Apesar da sua aparência total e necessariamente britânica de total indiferença, é óbvio que o rei morre de ciúme cada vez que chega carta do Henriquinho para você. Você gosta de provocar ciúmes e fazê-lo sofrer. Você diz que assim está se vingando do casamento forçado. Então, mesmo que você não tenha nada para dizer, você manda recortes de revistas, pedacinhos de capim, e como o Henriquinho é um chato, ele sempre encontra vários comentários a fazer de resposta. Você também – só de implicância – dá uns gritinhos falsos de horror toda vez que topa com o rei e sua perna manca pelos corredores. Ele só falta chorar.

Um dia o Henriquinho escreve que vai passar por perto, se ele pode fazer uma visita. Você pergunta ao rei se o Henriquinho pode fazer uma visita e o rei, com os olhos rasos de água, responde:

“Sure, Milady.”

Você não estava esperando outra resposta, já que o rei é uma pessoa finíssima e não ia armar um barraco no palácio por tão pouco.

Thanks, Lord Mac Arrag (que é como o rei é chamado na intimidade).”

No dia esperado, ele inventa uma coisa para fazer na esquina e sai para deixar você receber sua visita sossegada.

O rei chega de volta tarde e, dos jardins, vê que há um carro estranho estacionado perto da porta e logo percebe que, apesar da hora, o Henriquinho ainda está lá. O rei entra assim mesmo. A sala está toda escura e ele vê luz por baixo da porta do quarto que ele separou para você. A porta está fechada. O rei só percebe a luz da soleira e escuta risadinhas. Ele, trêmulo, vai subindo a escada. Neste exato momento, o Henriquinho está saindo do quarto, ajeitando a camisa. Os dois se encontram na escada.
“Ah, você deve ser ooo…ooo…”, diz o Henriquinho, que nunca foi bom para nomes. De nervoso ele começa a rir, o que só piora as coisas. O rei, que já estava tremendo de ciúme, acha que o Henriquinho está curtindo com a cara dele e dá-lhe um tremendo murro na cara. O cachorro, nervoso com o barulho, começa a morder você, que é a reação normal dele quando fica nervoso, o que é frequente. O cachorro está mordendo você e o Henriquinho está passando por você, via aérea, antes de aterrissar ao lado da cama e em cima do cachorro, graças a deus.

Na cama, olhando tudo sem entender nada, estão você e uma esposa grávida de 10 meses, do Henriquinho, aquela tua amiga piranhazinha que resolveu mudar de vida.
É justamente por isso que o Henriquinho passou perto do palácio: estava a caminho do hospital que fica por ali, para o parto.

Agora quem entra no quarto é o rei que para, aturdido, ao ver a grávida. Aos poucos ele percebe a situação e se apoia na escrivaninha: a emoção que ele está sentindo, mais o esforço de dar um soco no Henriquinho, é muita coisa para sua frágil saúde. Com a voz quase sumida de vergonha ele diz:

Sorry, eu…I…”

O Henriquinho, em vez de ficar calado, começa:

“Como eu ia dizendo antes de receber essas suas reais boas-vindas, você deve ser o rei Mac Arragh, o marido frio e insensível da Mônica, neste casamento de conveniência no qual não há lugar nenhum para emoções, afeto e muito menos para ciúme, certo?”
O rei baixa a cabeça, morto de vergonha e você também começa a ficar constrangida. Que diabos! Está certo que o soco foi forte, mas o rei já pediu desculpas, poxa.

Mas o Henriquinho continua tripudiando e o rei está cada vez mais envergonhado.
Você fala:

“Para, Henriquinho.”

Ele se levanta. O rei fala mais uma vez desculpe e sai mais mancando do que nunca. Henriquinho ainda berra:

“Vou mandar a conta do meu dentista, viu, é o mais caro que tem na cidade”, e cospe um dente. É nesta hora que você percebe que o cachorro morreu esmagado, porque ele não come o dente.

Você acompanha Henriquinho e a mulher dele até a porta. Eles ficam de passar no palácio outra vez, na volta, já com o bebê.

Você entra e vai encontrar o rei no fundo da cozinha, deprimido, tomando café frio de uma garrafa térmica (mas garrafa térmica real, toda em ouro). Você senta do lado dele, os dois ficam em silêncio, os olhos baixos. No fim você diz:

“Seu pé ficou ainda mais machucado, não?”

E sem esperar resposta, você se ajoelha ao lado dele para fazer uma massagem enquanto ele olha para você apaixonadamente. Depois de alguns instantes, você diz:
“Diga com sinceridade o porquê de você dar aquele soco no Henriquinho. Foi para manter a farsa do nosso casamento? Quer dizer, foi para ele espalhar por aí o quanto nós somos unidos e assim acabar com estes rumores de que nosso casamento é uma armação para você não perder a coroa? Ou foi mesmo por ciúme?”
O rei diz baixinho:

“Ciúme.”

Ele diz que ficou cego de ciúme, que o casamento de vocês – pelo menos no que se refere a ele – nunca foi uma farsa, que seu pai o enganou dizendo que você não só topava se casar com ele como estava até mesmo afim, e que ele só notou que era mentira na porta da igreja, mas que aí já era tarde, com os convidados todos lá, e os docinhos já comprados e tudo. Disse que ele ama você desde menino e que a história com seu pai foi a maneira que ele viu de se aproximar de você. Ele diz que conhece você há muito tempo, desde rapazola, quando costumava sair incógnito do palácio, fantasiado de havaiana para ninguém perceber, para pescar lambari no riacho que corre ao lado da casa do s seus pais.

Você tenta se lembrar de alguma havaiana pescando lambari, mas não consegue. No entanto, ele deve estar dizendo a verdade, porque passa a descrever você e os vestidinhos que você usava quando adolescente. Disse que nunca ousou se aproximar de você porque você é linda e ele, como todos sabem, é um manco.

Você beija os dedos do pé machucado dele e ele se atira no chão para abraçar você. Vocês passam a ser muito felizes, para sempre.

O único problema é que não há muita coisa para fazer no palácio. Você passa então a criar jegues, o que é um escândalo. Desde os tempos imemoriais que a família real cria cavalos, mas você insistiu e o rei, que nunca lhe nega nada, concordou. Vocês criam então jegues. Você se encanta com aquele olhar -de-quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só os verdadeiros jegues conseguem ter.

 

 

 

Texto três do Macarra

Você é dono de vários haréns, pelo menos três, e não aguenta mais. Aí você decide tirar umas feriazinhas e vai para Londres, inventando que tem uns negócios a tratar a respeito de um novo lote de umas escravas brancas (que nem fazem muito o seu tipo, você prefere as nem tão brancas).

Você está andando na rua, com medo de ser atropelado por aqueles carros que vivem na contramão, quando para uma limusine preta com vidros fumê do seu lado. De dentro salta um cara fortão que empurra você para dentro, fecha a porta, e fica na calçada olhando você se afastar dentro da limusine. Quando seus olhos se acostumam com a penumbra, você vê que dentro da limusine está a rainha da Inglaterra. Você a reconhece na mesma hora não por causa da coroinha de pedras e ouro que ela tem na cabeça, nem por causa da pronúncia britânica quando ela diz “hã, delicious thing”, antes de começar a tirar a sua camisa. Você a reconhece por causa da correntinha que ela traz no pescoço com a letra M (de Majesty, como qualquer ignorante sabe).

Bem, ela tira toda a sua roupa menos a gravata.

(Você sempre anda de gravata quando está em Londres.)

E aí, nheco.

Quando acaba, ela começa a vestir você outra vez, inteirinho, e quando você está todo vestido, só aí ela tira a sua gravata e faz um rolinho com ela, antes de enfiá-la por dentro da liga preta que segura as meias de nylon, também escuras, que encobrem umas coxinhas roliças que são uma delícia. Aí ela aperta um botão que você nem tinha reparado. O carro diminui a marcha, ela abre a porta, você sai. Vocês nunca mais se veem.

A não ser na festinha que vai ter sábado, para a qual você acha que ela vai ser convidada. Pelo menos foi o que garantiu um amigo seu, que conhece a melhor amiga dela.
Parece que o nome dela é Mônica. Não é um nome lá muito especial.

 

 

Texto quatro da Mônica

Você foi atacada por um tarado mascarado quando era menina, e depois disso nunca mais conseguiu chegar muito perto de homem nenhum sem morrer de medo.

Você está visitando um primo seu, de quem você nem gosta muito. Você está indo lá por insistência da sua família, que disse que você tem de se distrair para se recuperar do trauma. Na verdade, esse seu primo é muito rico e, como parece que está muito doente, a sua família tem grandes esperanças de que você vire herdeira dele – já que ele só tem um meio-irmão mais novo como parente direto, e ele detesta esse meio-irmão mais novo e muito provavelmente não vai querer deixar nada para ele. Foi o que a sua mãe falou, de um fôlego só, enquanto colocava a mala já pronta na sua mão.

O seu terapeuta de bioenergética não recomenda a viagem, porque foi perto da casa deste seu primo, justamente, que se deu o incidente com o tarado e ele acha que a viagem pode trazer mais bloqueios de energia.

O meio-irmão mais novo do seu primo se chama Macarra e mora em uma casa ao lado da casa do seu primo. Você gosta muito dele, e já teve mesmo uma destas paixonites de criança por ele. Você sempre achou que ele também gostava de você, mas ele era muito tímido, vivia pelos cantos e nunca lhe disse nada a respeito. Hoje você continua sem saber: ele age de maneira estranha porque, ao mesmo tempo que olha para você apaixonadamente, costuma recusar todos os seus convites para passear, ir ao cinema etc. Para você assim está bom, já que se ele quisesse uma aproximação maior quem fugiria correndo seria você, por causa do trauma. Mesmo nesta situação, vocês se veem com frequência, já que, embora o seu primo tenha sido contra, você está indo todas as tardes à biblioteca onde o Macarra trabalha, para ler e bater papo. O papo vai de 1) um machucado que ele fez no tornozelo enquanto jogava bola, mas que agora já sarou, até 2) o ataque do tarado. Mas nestes momentos ele sempre baixa os olhos, às vezes chora sem que você saiba o motivo.

Seu primo  – o que você não gosta – acaba propondo que vocês se casem e deixa bem claro que, por causa da doença dele, não haverá contato físico entre vocês. Só uma maneira do pessoal não ficar falando mal de você, hospedada tanto tempo na casa de um cara solteirão etc. A sua família faz pressão por causa da futura herança e você aceita. Macarra só falta morrer de ciúme quando, em uma das raras visitas ao irmão, percebe que vocês se casaram. Você diz que é um casamento de mentirinha e fala da doença de seu marido. Ele diz que não sabia que o irmão está doente e parece surpreso.

Você continua indo à biblioteca, apesar da cara feia do seu primo-marido.

Um dia está chovendo muito e você e o Macarra estão sozinhos na biblioteca, que já está fechada. No meio de um trovão você se assusta e corre para os braços dele, esquecendo-se completamente do trauma. Ele abraça você com força e soluça desesperado. Aí você lembra do trauma e o empurra para longe. Ele cai ajoelhado, chorando, e faz uma grande revelação.

Ele diz que foi ele que atacou você. Que a turminha da rua e mais o meio-irmão viviam caçoando que ele era apaixonado por você e não tinha coragem de te contar. Um dia eles disseram que você estaria esperando por ele em uma aleia escura do bosque, que era só ir até lá que você estava afinzona de ficar com ele. Ele diz que eles deviam ter colocado alguma coisa na bebida dele, porque ele não lembra mais de nada, só de acordar do seu lado, de você com os olhos vendados e ele com uma máscara na mão. Aí ele percebeu o que tinha ocorrido e fugiu, sem saber o que fazer. O meio-irmão, que sempre o detestou, desta vez foi legal e disse que ia livrar a cara dele, escondendo as evidências. O meio-irmão jurou que não contaria isso para ninguém.

Ele diz ainda que por várias vezes quis falar com você sobre isso, mas nunca teve coragem de se ver privado até mesmo das migalhas da sua atenção, já que seu amor verdadeiro ele sabia que jamais mereceria. Mesmo porque, agora você é cunhada dele e, por causa desta dívida que ele tem com o irmão, ele jamais poderia paquerar você numa boa. Você se afasta horrorizada de saber que a pessoa que você tanto gosta é a responsável pelo seu trauma. Ele implora para que você o perdoe e que não vá embora, mas você, desatinada, vai.

No meio da chuva, você completamente louca acaba dormindo em uma caverninha que fica perto do local onde você foi atacada. Neste local, pela primeira vez, você sonha com o incidente e no sonho se lembra que o cara que lhe atacou tinha uma marca no peito, a qual você viu só de relance, por uma fresta da venda que você tinha nos olhos. Quando você acorda na manhã seguinte, ainda tonta com tudo, vai cambaleando para sua casa, onde seu primo-marido está esperando por você. Ele está com cara de tarado, mas você não nota.

Ele está uma onça por você ter dormido fora de casa, diz que a história da doença era mentira e que está muito afim de você. Você fica desesperada e tenta fugir, mas ele a agarra. Você, que apesar da aparência frágil, sempre fez sua aeróbica, pega o monitor do seu computador e joga em cima dele. Você o machuca e ele tira a camisa para ver onde está sangrando e diz:

“Olha só o que você me fez, sua… sua…”

Você quase desmaia de pavor, mas junta as últimas forças para sair, mais uma vez, correndo pela chuva, sem olhar para trás. Não vê que seu primo-marido, sem camisa, exibe uma marca no peito, igual a do tarado que lhe atacou.

Trovões, trovões. Relâmpagos. Orquestra sinfônica. O fim do mundo.

Sem ter para onde ir, você pega um avião que passava por ali e volta para a casa dos seus pais, onde se nega a dar qualquer explicação. Lá você não consegue esquecer o Macarra. E conclui que mesmo que seja ele o seu atacante, mesmo que ao tirar um dia a sua camisa você descubra a horrível marca no peito dele, você gosta dele, o perdoa (afinal, ele estava dopado) e o quer. Você telefona para a casa dele. Quem atende diz que ele está muito mal no hospital, que quando ele voltou da biblioteca naquela noite teve um estresse de origem emocional desconhecida e que, depois de vários dias de delírio só chamando pelo seu nome, entrou em coma. Você volta correndo e vai ao hospital onde, sob orientação médica para evitar novo choque, o que poderia ser fatal, você vai falando com ele baixinho. Ao escutar o som da sua voz, Macarra melhora instantaneamente. Abre os olhos, vê você e torna a fechá-los com força, achando que é delírio. Mas você chega perto dele e o acaricia, e então ele acredita e torna a abrir os olhos. Você desabotoa sua camisa e passa a mão pelo seu peito onde não há nenhuma marca.

Você conta a ele sobre a marca do peito do tarado, que você havia completamente esquecido e que graças ao sonho tornou a aflorar na sua consciência. Diz que ele não é o culpado de nada e que sofreu estes anos todos inutilmente. Você diz também que quando resolveu voltar ao hospital não tinha certeza de que ele não era o culpado, mas tinha decidido ficar com ele mesmo se fosse. Que você o havia perdoado. Ele chora. Você chora. Uma enfermeira que está passando também chora. Vocês choram mais um pouco e dizem o quanto estão felizes, e aí choram outra vez e ficam cada vez mais felizes.

Para sempre.

Quando ele sai da cama do hospital vocês vão para a cama. É a primeira vez que isto acontece para vocês dois. Vocês percebem que na verdade o ataque do tarado não foi para valer. O mistério aumenta.

Enquanto isso, a ferida provocada pelo monitor do computador na cabeça do seu primo-marido infecciona. Ele está quase morrendo e conta que se arrepende muito de todas as maldades que cometeu na vida, sem especificar nenhuma. Ninguém acredita, excetuando os seus pais, que murmuram comovidos:

“Ele é tão rico, coitado…”

Ele acaba que morre. Quando estão vestindo o cadáver para o enterro, você, a viúva, e o Macarra, o único parente vivo, estão ao lado dele e veem, os dois ao mesmo tempo, a marca no peito do defunto. É um choque. Mas, na verdade, vocês já desconfiavam de alguma coisa, porque seu primo-marido sempre tinha detestado o irmão, desde que este nasceu, porque, ao nascer, ele matou a mãe deles dois de parto. Detestava também porque ele é lindo, moreno de olhos verdes, joga bem futebol, é simpático, tem um sorriso lindo, bem, só.

O que aconteceu foi o seguinte: depois de ter tomado um copo no qual a turminha tinha colocado uma droga muito forte, o Macarra desmaiou. Enquanto isso, você, que sempre tomava o atalho do bosque com seu chapeuzinho vermelho no caminho da casa da vovó, era seguida sem saber pelo seu primo mau. Numa curva do caminho, ‘catapum’ em cima de você, que não teve tempo nem de gritar. Quando já estava começando a lhe atacar para valer, seu primo escutou os passos de um caçador e se mandou, deixando você lá, desmaiada. Enquanto isso, a turminha, crente que a maldade já havia sido feita, estava vindo arrastando o Macarra, também desmaiado, e deixaram ele do seu lado para que, quando você acordasse, pusesse a culpa nele. Só que ele acordou antes e, desesperado, fugiu.

Você, para desgosto dos seus pais, resolve abrir mão da sua herança de viúva, porque não quer nada que tenha pertencido àquele monstro. Você e o Macarra vão morar em um quartinho em cima da biblioteca, onde a luz é insuficiente e você acaba míope, embora muito culta. De vez em quando vocês abrem um romance, desses bem tristes, e choram juntos, o que deixa vocês muito felizes. Ele sai, vez por outra, para bater uma bolinha com os amigos. Você nem isso. Você anda meio enjoada desse negócio de histórias de ficção, livro, essas coisas. Você se lembra do monitor. Um joguinho de computador de repente ia bem, uma pena ter quebrado. Você lembra também às vezes do seu terapeuta de bioenergética, cheio de dedos. Talvez você volte a procurá-lo um dia.

 

 

Texto quatro do Macarra

Você é dono de harém, mas você tem uma doença secreta que sempre que você toca em uma mulher ela fica parada, com um sorriso idiota na cara, os olhos semicerrados e em pose de fotografia de mulher pelada, obviamente esperando que você faça alguma coisa.

Como você não sabe o que fazer, ela acaba ficando para sempre de papel, o que é um papelão para você. Constrangedor. O seu armário já está cheio delas. Então, por causa disso, você nunca toca em mulher nenhuma.

Ninguém sabe disso, é claro. Já que todas as mulheres que viraram papel justamente viraram papel e não puderam contar o seu segredo para ninguém. Com o passar do tempo, o seu harém de papel vai aumentando. Já nem cabe na bolsa do fundo do armário e você não sabe mais o que fazer.

Um dia, você abre o seu armário e encontra uma fotografia de mulher pelada que não estava lá antes. É da Mônica, com suas pernas grossas e a correntinha no pescoço. Como ela já está em papel, não tem importância você tocar nela. Mas, subitamente, acontece a doença ao contrário, ela vira gente, e diz:

“Bem, como eu estou virando gente agora, eu também não tenho a menor ideia do que é para fazer, de modo que vamos tentando juntos. Que bom que seu tornozelo já sarou, assim as coisas ficam mais fáceis, não?”
Mas, mesmo com o tornozelo bom, nem sempre dá certo e aí é a maior choradeira. Mas depois vocês fazem as pazes e recomeça tudo de novo.

Para sempre.

O que é muito tempo, às vezes você acha.

 

 

O Texto definitivo da Mônica e do Macarra

Bem, vocês vão se encontrar na festa, os dois já sabem disso. Vocês ficam pensando em como vai ser:

“Oi, eu sou a rainha da Inglaterra.”

“Oi, eu sou dono de harém.”

Não vai dar certo.

Sem palácio, AR-15 ou gaze colorida, aqui começa a história de Mônica e Macarra.

Vocês vão se encontrar um dia. Pode ser em uma festa ou num encontrão na escada do colégio. Vocês não vão falar:

“Oi, eu sou dono de harém.”

“Oi, eu sou a rainha da Inglaterra.”

Vocês, sem palácio, AR-15 ou gaze, vão começar uma história. Vai ser a melhor delas e vai durar para sempre, mesmo que acabe antes.

O jogo dos limites – oficina

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – O jogo dos limites (Companhia das Letras, 2001, 128p.)
– menção ‘Altamente Recomendável’, da FNLIJ;
– participação no programa de compra de livros da prefeitura de Belo Horizonte.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

 

em catálogo

infalimites

oficina escolar:

Os jogos de RPG/computador mostram aventuras excitantes onde coisas fantásticas acontecem. “O jogo dos limites” mostra que a realidade do dia-a-dia pode ser tanto ou mais apaixonante, com seus tipos diferentes de pessoas. Entre os grupos diferentes de pessoas que o livro apresenta, um foco maior é dado à diferença de classe social. Como meninos de classe média podem se relacionar com os mais pobres. Vice-versa.
O livro mostra isso imitando o linguajar e a estrutura de um jogo de RPG ou de computador. Ou seja, os grupos de personagens diferentes (os meninos heróis da história, os viciados em computador, os pitboys, os pobres – que são chamados de “invencíveis” etc.) agem como se estivessem em um jogo onde devessem atuar papéis pré-estabelecidos.
Assim, as atividades sugeridas para leitura em grupo também são atividades de representação.

Aqui estão quatro sugestões de atividades para grupos de 30 a 40 adolescentes.
A primeira é um exercício de mímica, bem-humorado e simples.
A segunda é a criação de cenas independentes, integrando várias reflexões diferentes: sobre a linguagem (no desenvolvimento dos diálogos), sobre a moda e o capitalismo (no desenvolvimento dos figurinos), sobre as classes sociais (no desenvolvimento dos cenários), sobre a violência e sobre vários outros assuntos levantados no texto do livro.
A terceira é uma montagem completa, que provavelmente vai requerer um semestre inteiro de preparação.
A última atividade é de fechamento, uma discussão em grupo sobre os temas levantados pelo livro e que apontam para o que os jovens representam e como eles se representam na sua vida cotidiana.

Estas quatro atividades podem ser desenvolvidas separadamente ou de forma seqüencial: começa-se pela brincadeira de mímica, como um “aquecimento” dos dotes artísticos dos adolescentes. Depois, num segundo estágio, passa-se à criação das cenas independentes (uma ou mais de uma) ou, se houver tempo suficiente para um projeto maior, faz-se a montagem de uma peça completa. E, por fim, como fechamento do projeto, uma discussão sobre como cada um vê os temas tratados.

I – Esquetes de mímica

O monitor prepara antes dez fichas de papel duro com esqueminhas para dez esquetes de mímica.
Estes esqueminhas (sugestões abaixo) devem sempre apresentar uma situação básica, de conflito, mas não dar a solução para a situação apresentada. A solução, o “o que fazer nesta situação”, é coisa que deverá ser inventada pelos jovens.
Na hora da atividade, os adolescentes são divididos em grupos de três. Caso haja mais de 30 jovens o monitor pode estabelecer grupos de quatro, sendo que três deles serão os “atores” e um será eleito “diretor de cena”. Não é aconselhável haver mais de dez grupinhos para que a atividade não se torne muito longa.
Cada grupinho ganha uma das dez fichas e vai para um canto, isolado dos demais, para ensaiar sua representação. Acabados os “ensaios”, todos se reúnem outra vez para as representações. Cada grupo se levanta para fazer a sua, os outros devem descobrir qual é o enredo.
As representações não devem exceder cinco minutos cada uma; os “atores” não podem falar, só fazer gestos, mas é permitida a montagem de “cenários” simples e improvisados.
A idéia é ser uma atividade engraçada, de relaxamento.

Sugestão para os esqueminhas:

Grupo Um
A faz uma comida especial.
B e C comem sem prestar atenção

Grupo Dois
A
e B estão fazendo jogging. Estão exaustos, caindo aos pedaços.
Passa C também correndo, mas todo alegre, em excelente forma física.

Grupo Três
A
e B estão namorando.
B sai. A começa a namorar C.
B volta de repente.

Grupo Quatro
A
e B tentam vender algo a C que está indeciso.
A e B começam a brigar.

Grupo Cinco
A
dá um encontrão em B.
Eles deixam cair no chão seus pacotes.
Apanham tudo.
Chega C que dá um encontrão nos dois e cai tudo outra vez.

Grupo Seis
A
e B andam juntos.
Encontram C, um caso antigo de A.

Grupo Sete
A
e B estão sentados em um ônibus.
C, que está em pé, vai se jogando para cima de A.
A
, para evitar isso, vai se jogando para cima de B.

Grupo Oito
A
e B estão brigando.
C resolve tomar partido de A.

Grupo Nove
A
está dando em cima de B.
B esnoba A.
C também começa a dar em cima de B.
B também esnoba C.

Grupo Dez
A
está posando para B que pinta seu retrato.
C chega e começa a criticar a pintura.
A resolve ir ver a pintura.

II – Desenvolvimento de cenas independentes

Aqui não se monta uma representação completa, mas apenas cenas independentes.
Começa com cada jovem escolhendo em que grupo de personagens deseja atuar. Um exercício interessante é trocar. Depois de as escolhas feitas, fazer com que um Turminha Legal exercite sua porção P.A.I.S. Ou que um dos E.L.E.S. mude sua roupa chique pela camiseta furada de um faxineiro do grupo Invencíveis.
Depois de os grupos serem formados, eles vão pensar em conjunto como será seu figurino, a partir das indicações que constam no livro. Discutir as diferenças de vestir entre os grupos, a questão da moda.
Os diálogos: todos os diálogos devem ser desenvolvidos pelos próprios participantes, um exercício literário mas também de vida: como nos relacionamos uns com os outros?, os diálogos estão agressivos?, bobos?, afetivos ou – ao contrário – muito distantes e frios? O desenvolvimento dos diálogos traz uma reflexão sobre vocabulário e gramática. Os Barbudinhos, por exemplo, com seu jargão tecnológico, usam palavras inglesas aportuguesadas (deletar, clicar etc.). Os Perdidos usam palavras antigas e gírias fora de moda. Os Invencíveis podem dizer algo que os E.L.E.S. consideram gramaticalmente errado, mas o que é o erro?, quem faz as regras?, quanto tempo uma regra é considerada regra e quanto tempo um erro é repetido até que vire uma nova regra?
Os cenários: a montagem dos cenários deve ser sempre muito simples, eles devem ser desenvolvidos a partir dos recursos disponíveis, o que já levanta a discussão sobre abundância ou carência de recursos. Talvez seja possível fazer uma árvore de papel crepom, mas de compensado não. Outro ponto interessante é o da criatividade, que tipo de copinho de papel pode ser “batizado” de Filhote de Passarinho?

A seguir, algumas das situações do livro que podem servir de base para o desenvolvimento de cenas independentes:
1) A chegada da Ajuda De Fora
O grupo N.Ó.S. está na biblioteca. Eles ouvem barulho, acham que pode ser algum Perdido mas na verdade é a Ajuda que está chegando. Esta situação traz o conflito feminismo x machismo, já que a expectativa dos meninos é que venha um super-guerreiro bem armado, como os dos jogos de computador, e quem chega é uma personagem feminina, gordinha e nem um pouco impressionante. Outro conflito desta situação é o da expectativa x frustração, fantasia x realidade. Mas também o da confiança em si próprio x desânimo.
2) O encontro com a Turminha Legal
O grupo N.Ó.S. dá de cara com a Turminha Legal. Aqui, o conflito é como enfrentar a violência sem se tornar violento. Cabe também aprofundar a ligação entre violência e falta de recursos intelectuais. O vocabulário da Turminha Legal, de poucas palavras, todas de gíria, está apresentado no livro. Uma coisa que pode ser falada a partir desta situação básica é que a violência aparece quase sempre quando não há argumentos lógicos ou possibilidade de fala para enfrentar um conflito
3) Cai o sistema dos computadores dos Barbudinhos
Os Barbudinhos ficam frente a frente com computadores quebrados. O conflito é o da dependência em uma tecnologia e o que isso pode acarretar em perda de habilidades anteriores a esta tecnologia. Assim, sem computador, os Barbudinhos não conseguem mais nem falar entre si. Ficam murmurando coisas desconexas enquanto olham fixo para a tela do computador. É uma situação de humor.
4) Ninguém sabe o que a Deusa-Mor vai fazer
Qual o papel da religião em nossas vidas. Como decidir quando aguardar que o destino mude nossas vidas e quando tentar mudar nós mesmos. Os encontros entre os personagens do livro e a Deusa-Mor são sempre misteriosos e não-conclusivos. Mas da sala da Deusa-Mor há janelas por onde se vêem coisas do Castelo que não são vistas de nenhum outro lugar. É em uma dessas janelas da Deusa-Mor que Ajuda vai descobrir o que deve fazer para ajudar os meninos a sair do desânimo em que se encontram. Aqui, o conflito é o do lugar dos mitos na explicação do mundo. O que é mito, o que é mito-em-mutação (ou não-mito). A Deusa-Mor fala sozinha ou com um de seus Espelhos o tempo todo. Ela dá ordens sem parar. Mas dialoga com Ajuda, que vai visitá-la.
5) O encontro da Ajuda com seu passado
Ajuda, tentando ajudar os meninos que precisam estudar para a Prova de Física 2, vai se encontrar com a menininha que ela já foi, e que costumava brincar de estátua no pátio. Aqui o conflito é o de rearrumar, dentro de cada um de nós, as coisas que já fizemos, as boas e as que hoje faríamos diferente. Cada personagem, caso esta situação seja a escolhida para o desenvolvimento de uma cena independente, deve buscar um episódio de seu passado pessoal, ou do passado histórico de sua cidade, e “conversar” com este passado, mudando-o ou não. Nesta busca de Ajuda ao seu passado, ela tropeça com vários Perdidos, os personagens que se fixaram em algum ponto do passado pessoal deles. Os Perdidos são os que não “conversam” com o passado, vivem nele. No livro há dois encontro de Ajuda com seu passado: com a menininha que brincava de estátua, e com a mocinha que conseguiu impressionar um namorado graças a um golpe de sorte.
6) As situações de jogos de computador
O livro traz várias situações típicas de um jogo de computador, com sua fantasia desvairada, suas armas, seus Portais De Outra Dimensão. O conflito dessas situações é sempre o do limite necessário a uma fantasia que se pretende ilimitada: quanto mais se inventa mais fica sempre a mesma coisa: armas mortíferas, poderes mágicos, outros mundos, e mais armas mortíferas, mais poderes mágicos, mais coisas acontecendo…..e mais e mais os personagens ficando sem fazer absolutamente nada, sentados o dia todo, jogados pelos cantos, e desanimados com o mundo real.
7) O filhote de passarinho
Esta situação se passa no pátio, perto da Árvore Sem Fim, de onde cai um filhote de passarinho. O filhote é perseguido por todos e acaba caindo dentro da privada do quartinho do Faxineiro. O conflito básico desta situação é em relação aos estereótipos, aos conceitos pré-concebidos. O estereótipo desta situação é o de que faxineiros – ou pobres – são sujos. O banheiro de Faxineiro é limpíssimo, e David salva o passarinho. Os diálogos, aqui, podem mostrar a dificuldade que temos em mudar pensamentos que já estão prontos dentro da nossa cabeça. E, particularmente, em mudar a maneira como lidamos com classes sociais diferentes da nossa. Depois desta situação do passarinho, Faxineiro aprende a conhecer mais, e a gostar, dos meninos de classe média. E David vai mostrar aos seus amigos que Faxineiro é uma pessoa importante e que tem algo a ensinar.
8) A entrada da vida real na encenação
Depois de algum tempo sem comer, começamos a ficar com fome. Depois de muito tempo parados, ficamos com vontade de nos mexer. Quando temos alguma coisa para fazer não tem jeito, temos de começar a fazer. Aqui, os participantes escolhem como preferem terminar a ficção teatral e voltar à realidade do momento presente que eles estão vivendo. Os jovens podem incluir a situação metereológica na sua ficção (“está começando a chover, gente, vamos embora.”), ou uma premência real (“amanhã tem prova, ciau para vocês.”). No livro, é Ajuda que pede licença e vai embora: está ficando tarde e ela precisa ir embora cuidar do jantar.

III – Montagem de uma peça

Resumo da dramatização sugerida:
Garotos estão em uma biblioteca precisando estudar para uma prova mas na verdade jogando RPG ou discutindo jogos de computador, que todos conhecem. Depois de algumas peripécias, um faxineiro os ensina que as dificuldades são vencidas pouco a pouco, com o trabalho de todos os dias.

Os personagens são divididos nos seguintes grupos:
1 – Grupo dos meninos
“Fábio” – gordinho e muito esperto. Ao contrário dos outros, não é um menino rico;
“Henrique” – muito vaidoso, só pensa em meninas;
“Jonathas” – é récem-chegado no grupo, não acompanha bem as brincadeiras, não entende muito as coisas;
“Felipe” – tem o apelido de Colosso de Rhodes, é o menorzinho, mais baixo e mais fraquinho mas é o que quer sempre enfrentar todos os perigos;
“David” – tem o apelido de marciano, é um viciado em RPG, muito distraído, vive com walkman no ouvido, mas é o verdadeiro líder do grupo e quem vai ‘costurar’ a ação.
2 – Grupo dos pitboys
Fazem tudo igual, são meio burros e muito violentos. O líder deles tem um cachorro que também anda com walkman no ouvido.
3 – Grupo das meninas
São todas parecidas entre si, andam sempre por perto dos pitboys, balançando seus cabelos louros longos.
4 – Ajuda Que Vem De Fora
Uma mulher de meia-idade, bem comum, é o único ator adulto da dramatização.
5 – Deusa-mor
Fala sempre de frente a um espelho – o espelho é outro ator. Sua caracterização muda a cada minuto, assim como seu “espelho”. A personagem é meio bruxa, mágica.
6 – O faxineiro
Apagado, tímido, mas vai se revelar a principal figura da trama.
7 – O coro dos Pais
Um coro que prevê o futuro.
8 – Entregador de pizza
Participação rápida na ação.

Roteiro para a dramatização:
(As falas estão só esboçadas, aqui, e devem ser desenvolvidas pelos próprios atores, a partir deste roteiro e com a ajuda do livro.)

Primeiro Ato
Ambiente: Salão antigo, caindo aos pedaços, clima meio fantasmagórico. Mesa grande com cadeiras, muitas estantes de livros. Quando a ação começa há claridade de dia.
Deusa-Mor, Espelho e Faxineiro estão na sala.
Deusa-mor está falando para Espelho que de nada valeram os esforços dela até então, para que o colégio virasse um avião e saisse por aí, voando, com todo mundo dentro, porque os meninos não aprenderam nada, nadinha.
“Eles não entendem nada, Espelho!”
Espelho, personagem mudo, faz sinal que não, que não é bem assim.
Ao lado deles, Faxineiro escuta música nordestina baixinho, em um rádio, enquanto passa uma vassoura, levantando muita poeira.
Som de passos. Entra o Grupo dos Meninos.
Eles esbarram em Faxineiro sem nem notar a presença dele. Vão Henrique, Jonathas e Felipe na frente, depois segue o gordinho Fábio, bufando. Por último, errando aqui e ali o caminho, vai David, com o walkman, sempre distraído. Ele carrega um livro grosso. Os três primeiros estão falando sobre jogos. Eles discutem qual arma fantástica é melhor para qual ação, quem perde ponto, quem ganha atributos etc. Faxineiro varre com mais força, levantando uma nuvem de poeira que encobre Deusa-Mor e Espelho – que aproveitam para sair sem terem sido notados.
Os meninos sentam em uma mesa. Continuam falando de jogos. Mas Fábio interrompe:
“Vamos pedir uma pizza?, já deve ser pra mais de meio-dia.”
“Ai, pizza, de novo!”
Os meninos ficam jogados nas cadeiras, no maior desânimo. Entra um coro dos Pais, eles cantam voltados para a platéia, mas ao mesmo tempo Faxineiro aumenta o som da música nordestina. O coro canta:
“Eles vão ser reprovados, vão ser reprovados”.
Um dos atores do coro dá um falsete:
“E ficarão pobres, pobres! Pro resto da vida!”
Os meninos não escutam, excetuando David, que tira o walkman, bate nele como se estivesse quebrado e repete:
“Pobre?!”
Os atores do coro saem e empurram Faxineiro e seu rádio para fora junto com eles. Os meninos ficam jogados nas cadeiras.
Eles falam que não vão conseguir. Nada. Nem fazer a prova, nem arranjar namorada, nem vencer a próxima ação do joguinho de computador. Eles vão falando, listando as coisas que não vão conseguir.
“Não vou conseguir aumento de mesada.”
“Não vou conseguir passar.”
“Não vou conseguir aprender a dirigir.”
“Não vou conseguir atributo 8 em força mortal.”
“Não vou conseguir passar.”
“Não vou conseguir transar com a Patricinha.”
A lista é bem grande. No fim, eles dizem em coro:
“Só se pintar aí alguma coisa, um help.”
Um barulhão, trovões, miados de gato, gargalhadas lúgubres, e entra Ajuda. Os meninos olham para ela e caem em profunda depressão.
“Uai, hein, gente, também não sou essa meleca toda, pô.”
Um dos meninos diz:
“Ai, meu deus, agora, só delirando mesmo.”
Eles descrevem várias ações de joguinhos onde o inimigo se chama sempre Física 2, Prova Final. Não vencem em nenhuma delas.
Durante essas ações, entram e saem de cena, como se em câmera lenta: o grupo dos professores, o grupo das meninas, os pitboys, Deusa-Mor e Espelho. Tudo se passa na fantasia dos garotos mas é uma oportunidade de apresentar os outros personagens. O último a entrar é Faxineiro que recomeça a varrer e a levantar a poeira. Os meninos tossem, engasgados. Bate o sinal do intervalo. Todos saem.

Intervalo para mudança de cenário.

Segundo Ato
Pátio. Uma árvore. Bancos. Uma porta que dá para um quartinho escuro. Está todo mundo no pátio. Ninguém tem nada para fazer.
Cai um passarinho da árvore. Uma das meninas pega.
Henrique ajeita o cabelo e sorri para a menina:
“Graça de passarinho, hein princesa?”
A menina nem olha para ele. Henrique tenta se aproximar de outra, que é exatamente igual à primeira e que também não liga para ele e assim com todas elas, de uma em uma, sem nenhum sucesso. Enquanto isso, os Pitboys estão se estapeando, meio de brincadeira e meio a sério, falando palavrão e se empurrando. Eles também estão vestidos iguais, de bermuda larga e sem camisa. Eles empurram e puxam os cabelos das meninas que respondem à altura, inclusive com joelhadas. A confusão se instala.
Jonathas acha que se machucou e pergunta justo para um um Pitboy se tem alguma mancha de sangue na sua camisa. O Pitboy dá um empurrão nele.
Na confusão o passarinho cai no chão. Um Pitboy ameaça pisá-lo com seu tênis enorme. Uma menina dá-lhe um golpe de karatê. O Grupo dos meninos está apanhando dos dois lados, das meninas e dos pitboys, os professores saem de fininho na ponta dos pés. Faxineiro fica parado, olhando. Ele voltou a escutar a música nordestina no rádio. Ajuda tenta falar:
“Eu, um dia, imagine vocês..”.
Ninguém presta atenção.
Deusa-Mor fala com Espelho:
“Bom, isso, hein? Animado…”
Felipe diz para seus companheiros para deixar com ele que ele resolve e faz posição de luta só para ser imediatamente nocauteado. Jonathas pergunta o que está acontecendo. Fábio consegue se livrar se arrastando por baixo dos outros. David fica alheio, apenas se desviando dos golpes e das coisas que são jogadas. Henrique consegue que uma menina olhe para ele e quando isso acontece, ele desmaia.
Faxineiro diz, olhando para a platéia:
“Falta do que fazer, se tivessem de ganhar a vida…”
Um dos pitboys o empurra:
“Sai, paraíba!”
Faxineiro se irrita e dá uma rasteira no pitboy. O pitboy revida. Agora a briga é a sério. Faxineiro é machucado. Uma menina fala:
“Pára! Pára!”
Faxineiro machucou a testa. A menina se aproxima, examina o ferimento e diz:
“Vou passar um desinfetante.”
E mexe na mochila procurando alguma coisa.
Enquanto isso o passarinho está entrando (puxado por uma cordinha oculta, é claro) num local que na verdade é um banheiro.
A menina tira um spray da mochila e o dispara nos olhos de Faxineiro. Ele dá um berro e as meninas e os pitboys caem na gargalhada e caçoam dele.
Mas agora todos escutam os pios do passarinho que vêm do quartinho.
Meninas e Pitboys correm para a porta entreaberta.
“Ih! é o banheiro do paraíba!”
Barulho de água. É o passarinho que caiu dentro do vaso sanitário.
“Ih! ele caiu dentro do vaso!”
“Vai se afogar!”
O Grupo dos meninos tenta chegar perto. E atrás vai Faxineiro, esfregando os olhos.
David diz que vai tirar o passarinho de lá, os outros dizem, “ih, que nojo!”
David aparece com o passarinho na mão. Faxineiro acende a luz do quartinho.
“O banheiro está limpíssimo!”, alguém comenta.
“Está limpo porque eu limpei”, responde Faxineiro.
Jonathas se olha no espelho tentando descobrir manchas de sangue imaginárias. Deusa-Mor se olha no espelho e olha para Espelho, alternadamente, mas acaba preferindo Espelho e diz:
“Eu hein, você trabalha muito melhor do que aquele lá.”
Faxineiro pega o passarinho com uma toalha enquanto David lava as mãos, depois dá o passarinho para ele.
“Enxuga aí o bichinho, depois você me devolve a toalha.”
Todos os outros se afastam para David sair levando o passarinho. Saem atrás. David pára e se volta brusco. A menina do spray está logo atrás dele. David diz:
“Você é uma idiota, está ouvindo?”
Henrique tenta contemporizar:
“Não é bem assim..”
E no ouvido do David:
“Pode até ser, mas é gostosinha, cara!”
A menina não diz nada. Todos saem.

Intervalo para mudança de cenário. Volta o cenário inicial.

Terceiro Ato
Deusa-Mor, Espelho e Professores estão na sala se empanturrando de café com bolinho e conversando.
Eles estão falando sobre a prova de Física 2 e mostram um papel que está em cima da mesa, com uma fórmula indecifrável. Caem na gargalhada. Um deles diz:
“É só eles estudarem a página 12 que acertam.”
Alguns imitam o coro dos Pais:
“Eles vão ser reprovados, vão ser reprovados”.
Um deles dá o falsete:
“E ficarão pobres, pobres!, pro resto da vida!”
E aí todos eles ficam mudos. Caem em depressão, alguns choram:
“Como nós! buáaááá… E nós não fomos reprovados! Buááá!”
Deusa-Mor interrompe:
“Parem com isso que eu não estou conseguindo ouvir Espelho com essa barulheira de vocês!”
Eles vão se acalmando. Retomam a conversa. Citam a história do “colégio” (que é a história do Brasil), fazem fofoca. Aproveitam uma hora que Deusa-Mor está entretida com Espelho para fofocar sobre o caso que teria rolado entre ela e um dos professores. Ele nega.
Nesta hora entram os meninos com o passarinho na mão.
Um dos professores está dizendo que de qualquer maneira o fim do mundo está próximo. Os meninos se entreolham e caem no chão de desânimo. Só David que não. Ele espicha um olho e vê a fórmula no papel da mesa. Vira-se para Ajuda:
“Você sabe o que é isso?”
“Não tenho a menor idéia. Mas, olha, pelo jeitão, não há arma a laser que resolva. Acho que só resta o último recurso, estudar.”
Os outros meninos, caídos no chão, escutam e berram, juntos:
“Não!!!”
E Henrique acrescenta: “simpática aquela menina, vocês não acharam?”
Os outros mandam ele calar a boca.
Felipe, antes de desmaiar outra vez, diz:
“Eu dou um jeito, eu dou um jeito.”
Deusa-mor está lixando as unhas de Espelho. O passarinho recomeça a piar. Fábio levanta a cabeça e avisa que é melhor esse troço terminar logo porque ele está com fome. Henrique suspira enquanto sonha: ‘simpática, tão simpática…’
Ajuda conta sua história:
Quando ela era mocinha, ela namorava um cara.
Ela conta a história. Enquanto ela fala vão entrando as meninas e os pitboys.
“Eu devia ter uns 16 anos e naquela época 16 anos, ou pelo menos os meus 16 anos, eram assim tipo sei lá uns 11 de agora, nem sei comparar. Estou querendo dizer que eu era mesmo muito boba. Completamente boba. Famosamente boba.
Eu estava na casa desse meu namorado que era o primeiro namorado que eu tinha. Eu nunca tinha nem flertado com nenhum menino antes. E esse menino era um pouco mais velho do que eu e não é nem isso. Ele era muito mais esperto, mais vivido. Não estávamos sozinhos, era uma reunião. Ele costumava dar reuniões para seus amigos e tinha muitos amigos.
Eu não tinha.”
A história continua, vinda de um gravador escondido, enquanto Ajuda fica parada, lembrando.
“Estávamos lá e minha roupa era uma blusa estampada de verde e branco que minha mãe tinha costurado para mim e não me lembro se estava de calça comprida ou saia mas fosse lá o que fosse eu tenho certeza de que era alguma coisa completamente fora de moda porque eu estava sempre completamente fora de moda. As pessoas, amigas desse meu namorado, algumas já trabalhavam e tinham aquela confiança de quem já tem um trabalho. E era trabalho assim bossudo, nada de ser caixa em banco ou algo assim sem charme, não. Eram estagiários em escritórios de arquitetura, redatores em revistas completamente desconhecidas mas sempre muito interessantes, essas coisas. Eu não tinha muito o que falar e ficava a maior parte do tempo calada.
Todo mundo, meu namorado inclusive, tinha certeza de que além de feinha eu era burra e bem, em termos de sex appeal, não dava nem para competir com ninguém ali: um zero à esquerda.
E aí alguém começou a falar de um livro de poesias orientais que estava na moda naquele momento e eu já com o pescoço duro de não me mexer, resolvi assentir com a cabeça.
Hã, hã.
As pessoas pararam, entre irônicas e admiradas.
Não vai me dizer que você conhece esse livro?, disseram eles.
Eu já estava perdida mesmo, perdida e meia. Então disse:
Conheço sim.
Ahhhh.
Risinhos incrédulos passaram pela sala.
A casa desse meu namorado era, assim como ele, também muito bossuda. Tinha uma parede estofada com um trabalho de panos formando figuras. Móveis antigos, objetos de arte e em um armário que de tão velho já não tinha porta, os livros. O armário era jacarandá maciço e o móvel, dizia meu namorado, um colonial legítimo. E dentro os livros.
Eu tenho essa sorte. Eu sempre me dei bem com o Grupo-Livros.
Eles estavam falando de uma das poesias em particular, do tal do livro que estava na moda. Tinham recitado de cor a poesia e eu, louca, suicida, continuava dizendo que sim, claro, conhecia bem a poesia, e que inclusive…
Não sei o que me deu. Eu nunca tinha ouvido falar daquele livro antes, muito menos da poesia.
Acho que foi um pouco essa coisa de já que você está acabada, tanto faz.
Então falei. A voz bem alta, como se eu estivesse cheia de confiança:
Conheço bem. É das minhas preferidas. Está na página 12.
Uma das amigas do meu namorado então se levantou, linda, mexeu com os cabelos também lindos e foi até a estante sem conseguir disfarçar o riso. Pegou o livro e ainda olhou para mim uma última vez e eu pensei. Que se dane, todo mundo morre um dia.
E ela abriu o livro na página 12 e eu logo vi que havia alguma coisa de errado porque ela fixou o olho na página e mordendo o lábio superior não encontrou mais nada para dizer do que isso: que na edição que ela tinha em casa a poesia em questão estava em outra página.
Eu tinha falado 12 como poderia ter falado oito ou 183 e ela sabia disso. Só não podia provar.
Ela voltou para o lugar quase chorando de ódio. Ela já tinha namorado meu namorado antes de mim.
Logo depois disso eu e meu namorado acabamos o namoro”.
Ajuda volta a falar, rindo:
“E eu acho, gente, que terminar esse namoro foi meu segundo lance de sorte.”
Deusa-mor diz:
“É, às vezes dá certo. Sorte também existe, não é só azar…”
Os meninos não levam a menor fé na solução de acreditar na sorte, proposta pela deusa-mor. Dizem que preferem tentar mais ações fantasiosas dos joguinhos de computador. Os professores cochicham:
“Taí. A gente nunca tentou jogar no computador para ver se o salário melhora. Quem sabe?!”
“Não vai dar certo, aposto.”
Os professores também vão desabando pelo chão, de desânimo.
Batem na porta.
“Quem será?!”
Entra o entregador de pizza.
“Calabresa.”
Todos se entreolham.
“São vinte e uma pratas e vinte e cinco centavos com o refrigerante e o brinde.”
Silêncio.O entregador repete:
“Como é que é, gente?!”
Todos começam a catar dinheiro nos bolsos, uma moedinha é achada aqui, uma nota de um real ali. Vão juntando tudo em cima da mesa. Alguém acrescenta um chiclete:
“Está quase novo, deve valer aí alguma coisa!”
O entregador de pizza conta:
“É ruim, hein!”
Quem está mais perto dele é Ajuda. Entregador mete a mão na bolsa de Ajuda. Tira três notas.
“Mais três pratas”, diz Entregador, sacudindo no ar as notas, para que ninguém duvide da sua honestidade. E acrescenta:
“Mas logo a senhora, com a aparência tão fina, só com três merrecas na bolsa?!”
“Saí desprevenida, pensando que ia voltar logo…”
“Tem só vinte e um reais e vinte centavos.”
Um professor diz que ele não tem razão de ficar zangado.
“O fim do mundo está próximo.”
“Ninguém aqui vai passar na prova.”
“A gente também ganha mal paca.”
“E eu acho que vai chover.”
“E eu não vou conseguir aumento de mesada.”
Todos repetem a lista de coisas que não vão conseguir.
Entregador cata uma moedinha no chão:
“Dez centavos… ou seja… a gorjeta é cinco centavos!”
Ele também desaba no chão, junto com os meninos.
“Aiii….”
Entra Faxineiro, sua vassoura e seu rádio.
Ele começa a varrer, mas desta vez não tem poeira.
Alguém diz:
“Uai, não vai levantar aquele poerão outra vez?!”
“Não, né, trabalhar resolve, viu, é chato, mas resolve, agora a varrida é só para complementar. O grosso da sujeira já foi.”
Ele varre e todos vão se levantando um por um devagar. Vão se sentando na mesa, catando livro nas estantes. David diz:
“Bem, gente, sugiro a gente começar pela página 12.”
Eles estudam um tempo, ao som da música nordestina (moderna, eletrônica).
Depois alguém diz:
“Vocês não vão acreditar, mas eu acho que já sei.”
“Eu também.”
Todos gritam juntos:
“Então vamos à vida!”
Saem todos dançando, alguns levando livros embaixo do braço.
Entra o coro dos Pais cantando para a platéia:
“Eles vão ser aprovados, eles vão ser aprovados.”
E, um deles, em falsete:
“E a gente vai continuar igual, vai continuar igual, chatos pra burro!!!!”

IV – Algumas discussões sobre os temas levantados no livro

Pode ser também que em vez de representações, os jovens prefiram apenas discutir em conjunto os temas levantados pelo livro.

1 – O lugar físico onde vivem; como era antes, como imaginam que será no futuro; como estas modificações influenciaram o meio ambiente ou foram por ele influenciadas; como os jovens vêem a sua cultura regional.
2 – Em que tempo mental eles vivem; quantas horas do dia eles passam pensando no que já aconteceu ou no que vai acontecer; quanto tempo eles acham que gastam pensando de fato sobre o tempo presente.
3 – Em que tempo social eles vivem; quanto de progresso e tecnologia eles integram nas suas vidas, quanto de hábitos antigos eles preservam; qual o balanceamento que eles julgam adequado.
4 – Se eles podem ver a violência como uma última tentativa de solucionar um conflito, quando não há possibilidade de fala, de dizer o que se passa, com a voz, com as palavras; analisar se o que falta em determinado conflito são recursos intelectuais para entender a situação, recursos sociais como falta de auto-estima por causa de alguma exclusão social, ou o quê.
5 – A questão da leitura: uma maneira de conhecer algo que está longe, ou que aconteceu há muito tempo, ou que acontece aqui e agora mas com pessoas diferentes de nós; discutir se este conhecimento é o tal do recurso intelectual que pode impedir a violência contra nós e de nós contra os outros. Os jovens podem relatar as várias possibilidades de vida de cada um deles, como eles se encaixam no jogo social, quais as possibilidades de mudança para cada um.
6 – Como eles vêem a religião e o determinismo: se tudo é destino por que se esforçar para alguma coisa?, mas se há um ideal de perfeição por que não se esforçar para atingi-lo? Como os jovens se posicionam entre estas duas vertentes e como vêem a possibilidade de um pensamento não-religioso, o da convivência com a falta de um sentido maior, a convivência com o acaso.
7 – O impulso de obter sempre coisas cada vez mais maravilhosas, viver vidas cada vez mais estimulantes, poderia ser uma imposição do modelo econômico capitalista e sua necessidade de consumo? Discutir a ligação entre consumismo e consumo de drogas.
8 – O livro apresenta a ética do trabalho como uma possibilidade de prazer e realização; o que os jovens fazem com suas próprias vidas, o que fazem com o tempo livre e o que é exatamente “tempo livre”.

O jogo dos limites, 2001

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – O jogo dos limites (Companhia das Letras, 2001, 128p.)
– menção ‘Altamente Recomendável’, da FNLIJ;
– participação no programa de compra de livros da prefeitura de Belo Horizonte.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
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problemas com o cachorro?
lã de umbigo
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o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infalimites

 

 

Estamos jogando um jogo agora, eu e vocês. Neste exato momento, eu quero dizer. Sentados, olhando em torno, o que vai acontecer?, o que faremos a seguir? Há sempre algo importante a ser dito, e neste caso é que somos nós os participantes e os inventores do jogo. É o mais importante, é sobre isto o resto todo: somos nós. O resto é o resto e vai-se acrescentando aos poucos. O lugar do jogo, por exemplo, é aqui. Também sobre isso temos uma tendência a não perceber as coisas. Achamos às vezes que o jogo é jogado sempre em outro lugar. Não é. É aqui. E somos nós. E o resto é o resto. Por exemplo, o inimigo: tanto faz. No caso, ele se chama Física 2, Prova Final, mas poderia ser outro. Inimigos, os há, e de montão, sempre. Este é outro ponto importante: inimigos que só parecem inimigos enquanto o verdadeiro inimigo passa despercebido ao nosso lado. Bem, então, três coisas importantes: somos nós, é aqui, e o inimigo … bem, vocês verão quem é o inimigo. Ah, uma quarta coisa importante: o jogo já começou, vocês não estavam prestando atenção.

 

O ambiente em que se passa a história

É um país em construção. Como todos os países? Não. Há países que ficaram prontos em uma época determinada do passado e que agora passam a vida preservando esse passado, consertando coisas aqui e ali e impedindo mudanças. Há outros países que ficaram prontos agora, no presente e acham que seu jeito de ser, tão recentemente adquirido, é o jeito certo, ou o único jeito, e não notam que não é assim.

E há os países do tipo do nosso, que misturam tudo isso, e que são países onde se constrói sem parar, mesmo sobre partes que já tinham ficado prontas no passado. Mas vamos aos detalhes.

Dentro deste país há um Castelo, que é o que nos interessa mais, que é onde estaremos todos até o fim que não é um fim, é um novo começo. Porque não é só o país, e o Castelo dentro do país, e as pessoas dentro do Castelo, mas também a história das pessoas dentro do Castelo deste país. É uma história que se constrói a si mesma sem ter um fim.

Como vocês vão ver, não é de todo mau, isso. Tem desvantagens, mas também tem vantagens. Mas, sim, estávamos no Castelo.

É um Castelo perenemente em construção, com partes muito velhas e outras ainda sendo feitas.

E aqui vocês podem pôr o de cada um de vocês. Porque vocês vão notar, mesmo sendo o de cada um será também o de todos. A última reforma na cozinha, a pintura, isso para falar das coisas de hoje. Mas ponham também o que havia antes desta construção.

O que tinha no terreno antes? uma outra casa?  E antes dessa outra casa? um pouco de mato? um areal? e antes disso também? Os índios.

Com um pouco de esforço vai dar mesmo para pôr, neste Castelo de que falávamos, perenemente em construção, umas cerâmicas pintadas, uns panos desenhados. Tão bonitos.

Agora vamos entrar.

Partes mais importantes do Castelo: os vários níveis de subsolo; a Biblioteca Velha, onde se dá a maior parte da ação; e a Árvore Sem Fim, no pátio, local de um evento importante do passado.

 

Vamos ver um pouco de cada uma dessas partes.

 

Os vários níveis de subsolo

Locais realmente complicados. Pensem em corredores que somem na escuridão, ventos súbitos que ninguém sabe de onde vêm, tochas acesas em cantos aparentemente vazios, ecos de risadas antigas, de gente que não pode mais estar lá. Um pouco de frio. Mas um cheiro bom, de terra úmida, de planta nascendo.

 

A Biblioteca Velha

Feita por um velho senhor chamado Borges. O senhor Borges era quase cego e então fez esta biblioteca passando a mão sobre os livros e decidindo dessa maneira – pelo jeito como sentia as páginas, as capas e as letras na sua mão – se o livro devia entrar ou não nas prateleiras. Ele já tinha lido todos os livros do mundo, antes de ficar cego. E descobria que livro era aquele apenas passando a mão pelas páginas. Às vezes se enganava. Às vezes só fingia que se enganava e decidia da entrada do livro com base em outros critérios, os critérios do acaso, da aventura, do desafio ao sentido, do jogo de dados.

 

A Árvore Sem Fim

Vocês cohecem esta Árvore. É aquela que, estando debaixo dela e olhando para cima, não dá para se ver onde termina. É aquela que já estava lá quando as cerâmicas – aquelas cerâmicas que nós pusemos no Castelo bem no começo da história – ainda estavam sendo feitas. É aquela que estará lá – ou aqui – depois que tivermos ido todos embora. Mas nós não vamos embora. Não totalmente. Sempre fica um pouco de nós onde passamos.

É este o ambiente. Um Castelo, portanto, em construção, e no seu pátio, uma Árvore Sem Fim. Dentro deste Castelo, subsolos frios, amedrontadores, mas de cheiro bom. Uma Biblioteca Velha com livros escolhidos por um velho cego.

E isto num país assim como o nosso.

 

O Mapa

(espaço para desenhar um mapa)

É melhor fazer um mapa.

E é melhor lembrar sempre que o mapa fomos nós que o fizemos. E que ele pode, portanto, estar errado. Ou, dito de outro modo, que o mapa foi inventado por nós. Nós é que inventamos nosso próprio mapa. Sempre. E que, vendo as coisas dessa outra maneira, o mapa, portanto, estará sempre certo. Façam o mapa ali. Ele é que nos guiará pelo resto da história.

 

O problema é o seguinte: não há quem conheça este lugar inteiro.

O conjunto é de três prédios. Aliás, dois, mas é que dois deles são, apesar de grudados fisicamente, tão diferentes um do outro que é como se fossem separados. Tem o galpão à esquerda. Aliás, são três mesmo, já que há o conjunto dos Invencíveis nos fundos. E por falar em fundos, há também toda a parte das Ruínas, onde só se entra justamente pelos fundos. Então, é como se fossem quatro. Isso se não contarmos, como elemento separado, o subsolo que, dizem, tem por sua vez várias camadas.

Como eu disse, ninguém conhece inteiro este lugar. Talvez por ele ter sido feito assim, em camadas.

E eu digo camadas sem que isso signifique uma em cima da outra, pode ser do lado, embaixo, atrás.

Mas obviamente houve uma construção muito velha e você a reconhece não só pela aparência – janelas de ferro e vidros escurecidos por um pó milenar, arquitetura em torreões arredondados, pórticos embutidos nas paredes grossíssimas, guaritas para armas que já foram muito temidas e que hoje são consideradas levemente ridículas.

Mas que talvez não sejam ridículas, talvez estejamos entanados. Ou talvez estejamos enganados não sobre a periculosidade das armas, mas sobre as armas em si. Talvez o que tivéssemos achado que eram armas não o eram, e o que não consideramos armas, o eram.

Dentro deste Castelo há muitos outros enganos.

 

Informação muitíssimo importante

Pode estar havendo rumores sobre outros jogos mais eletrizantes. É preciso muito cuidado. Às vezes o acesso a esses outros jogos se dá por meio de drogas. Esses outros jogos – os que parecem eletrizantes e cuja entrada são drogas – não são jogos, são o fim do jogo.

 

A ação – parte 1

 

No silêncio eles escutam apenas um zumbido constante. Como o de um ar-condicionado, mas não há ar-condicionado. O local é a Biblioteca Velha e um ou outro já olhou em torno procurando a grade característica de um duto de ar-condicionado. Não tem. Só livros. Mas o zumbido continua. Pode ser uma chuva, mas lá dentro ninguém escutaria o barulho de uma chuva. Ou cupim. Não há tempo para pensar no zumbido. O inimigo está presente, o momento é chegado. Eles aguardam nervosos uma ajuda vinda de fora. Ficou de vir. Está nos livros. Virá Uma Ajuda De Fora. E com uma arma secreta. A frase inteira é: Virá Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta. Mas está um pouco frio. Deve ter um ar-condicionado. Um ou outro torna a olhar. Não tem. O frio pode ser do próprio lugar. Ou da barriga. O inimigo se chama Física 2, Prova Final.

Essse é o nome social. Há um outro nome, que não é dito, apenas pensado: Física 2, Extermínio Total. Ou: Física 2, O Inimaginável.

Não é a primeira vez que eles se deparam com o perigo. Eu sei disso. É essa a minha vida. Mas eles ainda não notaram que… bem, não vou me adiantar. É isso que tenho de fazer, mas cada coisa a seu tempo. Eles, eu sei, estarão com os olhos esbugalhados, o coração acelerado, o suor aparecendo na testa. Apesar do frio. Eu sei disso. É sempre assim. Depois eles serão diferentes. Depois de entenderem. É para isso que eu sirvo. É para isso que eu venho.

Mas, neste momento, eles estão lá, sozinhos no silêncio.

E os víveres estão acabando.

 

Um dos enganos é com o dia de hoje. O dia de hoje começou como em geral começam os dias: devagar e lá longe. E que é também como em geral começa a compreensão das coisas: também devagar e também vindo de muito longe. Mas antes eu tenho de dizer o que é “hoje”.

Eu mesmo não sei.

Tenho de fazer esforço para não me perder nesse conceito. Eu vim do futuro. Ou será que foi do passado? O que sei,  sei a partir de séculos e séculos: sempre que parecia ser o fim-final, não era. Sempre que no campo sem nem capim uma guerra trazia seus cadáveres, no meio da fumaça alguém se mexia.

E este jogo – vocês vão ver – também não acaba. Talvez seja porque nós somos as personagens-construtoras que, montando nosso jogo, fazemos parte de um jogo maior. Isso eu não sei. E não importa muito também. Basta o nosso cotidiano: um tijolo aqui, uma nova mão de tinta, uma ponte ligando duas partes que se espantam de estar ligadas. Corredores. E a eterna impressão de estarmos no lugar errado, o que faz parte da nossa geografia… Mas eu me adianto. Isso tudo se verá depois.

Eu dizia que vinha do futuro, talvez do passado. Com certeza do futuro. Agora tenho certeza. É do futuro. E do muito futuro. Eu digo, do muito mais futuro do que do futuro do Grupo N.Ó.S. É o Grupo N.Ó.S. que está agora na biblioteca. Vou ter de falar um pouco sobre os habitantes do Castelo. Há o grupo que se chama de Grupo N.Ó.S. É uma sigla. Quer dizer alguma coisa. Não sei ou já esqueci, tanto faz. São as iniciais de um nome qualquer que eles inventam e depois acreditam no que inventaram e passam a não ter dúvida nenhuma de que eles pertencem ao N.Ó.S. Não é bem assim. Mas isso também nós veremos depois.

Há outros habitantes.

O Grupo N.Ó.S. está na Biblioteca Velha e o mundo parece acabar nas paredes formadas por prateleiras de livros que sobem até sumir em uma névoa acinzentada. Há quem jure ouvir a risada do velho senhor Borges, mas não sei.

E há outros habitantes, alguns visíveis, outros não. Alguns perigosos, outros não.

Há os Invencíveis.

Falaremos muito sobre eles. São, à primeira vista, os menos importantes. Passam por nós de cabeça baixa, alguns, poucos, esboçam um cumprimento respeitoso. São fracos, feios, parecem, à primeira vista, todos mais ou menos iguais, mais ou menos cinza. Mas são Invencíveis.

Os Invencíveis passam o jogo inteiro andando quase sem fazer barulho, de um lado para o outro, carregando vassouras, baldes, detergentes. Eles têm a função, durante o jogo inteiro, de ir atrás dos N.Ó.S. desfazendo o que eles fazem e tentando fazer com que as coisas voltem a ficar do jeito que estavam antes de os N.Ó.S. passarem. Os N.Ó.S. passam e mudam tudo, o que estava em cima de uma mesa agora está no chão, o que estava na cadeira foi posto na prateleira. Na prateleira errada. Meias sujas na geladeira. Resto de chocolate na cortina. Pois os Invencíveis vão atrás e tornam a pôr tudo do jeito que estava antes. É só o que eles fazem.

Aparentemente.

Eu digo aparentemente porque eles também se contam histórias, uns aos outros, sempre que estão sozinhos. Talvez seja por isso, por eles só fazerem isso quando estão sozinhos, entre eles, que ninguém dá muita importância nem a eles nem às histórias. É um erro. As histórias deles são … bem, veremos isso depois.

Há também o Grupo E.L.E.S.

O Grupo E.L.E.S. é o grupo que manda. Quer dizer, não manda. Mas acha que manda. Da mesma forma que os N.Ó.S. acham que são uma coisa e são outra, que os Invencíveis aparentam ser uma coisa que não são, os E.L.E.S. também acreditam em uma ilusão. O Grupo E.L.E.S. pertence à categoria dos habitantes perigosos. E.L.E.S. também é uma sigla. Eu também não tenho mais paciência, há muito tempo, de decorar siglas. Siglas, aliás, são uma invenção dos E.L.E.S. Eles adoram siglas. Durante o jogo, sempre que nos depararmos com uma sigla, devemos ficar atentos, redobrar nossos cuidados, pode ser que naquele momento alguém esteja querendo que nós acreditemos nada saber. E esse é um dos piores golpes que há.

Mas voltemos aos habitantes do nosso Castelo.

Há mais.

Há o Grupo N.Ó.S., Os Invencíveis, o Grupo E.L.E.S. e outros ainda. Mas aos poucos vamos conhecendo-os. Voltemos ao dia de hoje e ao problema que temos, nós, os desta geografia, com esta palavra, “hoje”.

Nosso “hoje” é composto de vários “hojes” diferentes.

É como se cada grupo estivesse em seu próprio “hoje”.

E isso, se fosse só isso, ainda seria fácil. Uma rápida olhada e saberíamos, diante de um dos habitantes do Castelo, em que dia, em que época, ele está. Isso não seria problema para nós. Se estamos dentro daquele mapa que fizemos no início, então sabemos como lidar com isso. Há tanto tempo que conseguimos ir em frente carregando “hojes” diferentes e simultâneos. Mas isso não é o pior.

O pior é que os componentes de um determinado grupo, ou seja, de um determinado “hoje”, podem muito bem passar para outro grupo, para outro “hoje” portanto. Acontece muito.

Exemplo mais frequente: um N.Ó.S. virar E.L.E.S.

Exemplo menos frequente: um Invencível virar E.L.E.S. Mas acontece.

Entre os N.Ó.S. e os Invencíveis, o mistério – se é que se pode chamar de mistério uma coisa que todo mundo devia saber – é outro. É do que vamos falar. Mas depois, depois. Só uma pequena pista: os N.Ó.S. são obrigados a passar boa parte de seu tempo na parte velha do Castelo, onde está a Biblioteca, justamente em uma tentativa de jamais, em nenhuma hipótese, se tornarem Invencíveis. Eles são obrigados a isso pelo Grupo P.A.I.S. Os P.A.I.S. em geral desejam que os N.Ó.S. virem E.L.E.S. e têm horror dos Invencíveis.

Mas os N.Ó.S. muitas vezes enfrentam os P.A.I.S. e se recusam a virar E.L.E.S. É esse todo o problema. Pronto, está dito. Os E.L.E.S. são aliados dos P.A.I.S. e inimigos dos Invencíveis. Os N.Ós.S. sofrem pressões de todos os lados e contam com poucas ajudas externas. Uma delas, justamente, está para chegar. Eles acreditam nisso pelo menos. E com uma Arma Secreta. É isso que eles fazem, em silêncio, suando frio, ouvindo um zumbido distante. Eles esperam.

Além desses participantes, há também o grupo que se auto-intitula Turminha Legal e que de legal não tem nada.

E o David, que é um caso à parte.

Quem primeiro chega a esta região coberta pelo nosso mapa lá do começo, quem primeiro chega às vizinhanças do Castelo, estranha muito. Não entende muita coisa, nào sabe discernir quem é quem.

É assim mesmo.

Para os estrangeiros, nós na verdade seríamos um grupo só, o dos Loucos. Não tem importância. Mesmo achando que somos loucos, eles ficam com uma certa inveja: rimos muito. Pintando, emboçando, derrubando com a marreta uma parede inteira para fazer outra parede inteira no mesmo lugar, serrando, aparafusando ou empilhando tijolos, pedras ou folhas de zinco, nós rimos. E também não tem importância por um segundo motivo: nós sabemos que não somos loucos. Somos os construtores de uma construção inacabada, para sempre inacabada, estaremos sempre construindo, colocando pontes, convivendo com nossos vários “hojes”, mas não tem importância.

É isso que eu vim dizer.

É por isso que eu estava falando como é o nosso Castelo, quais grupos estão dentro dele e como é o dia de hoje.

 

Os sete tipos de personagens

Grupo N.Ó.S. – São as personagens principais, os heróis contra os quais perigos surgem a cada instante. Eles já passaram por muitos, mas muitos ainda surgirão. A lista é grande e cada participante pode dar sua contribuição. O dia em que o carro quebrou na volta da festa no meio da rua deserta. O lance do roubo. A AIDS, as drogas e a vontade que já deu de jogar tudo para o alto e dane-se o mundo. Um perigo, isso, dos maiores, essa vontade que às vezes dá de jogar tudo para o alto e dane-se o mundo. Talvez o maior deles.

No momento da ação, os N.Ó.S. estão na Biblioteca Velha do Castelo e alguns deles pensam justamente nisso. Desta vez o inimigo é a Física 2, Prova Final. Mas podia ser qualquer outro. De inimigos a vida dos N.Ó.S. está cheia.

O Grupo N.Ó.S. tem algumas características físicas que devem ser respeitadas: vestem calças jeans e usam tênis. Meninas são um problema que eles preferem não discutir no momento. Eles têm espinhas na cara. Todos os N.Ó.S. roem as unhas das mãos e não cortam as unhas dos pés. Nenhum deles tem muita certeza sobre o futuro. Ou será o passado? Os N.Ó.S. na verdade nunca tiveram muita certeza sobre nada e agora, na Biblioteca Velha, frente a frente com a Física 2, Prova Final e esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, que não vem, agora então é que eles não têm mesmo certeza alguma além da de que uma tragédia pode estar por acontecer.

 

Turminha Legal – Vestem bermudas largas e usam chinelo de borracha. Meninas são um problema, mas eles negam. Falam muito sobre meninas, todas inexistentes. As unhas do pés e das mãos são iguais: compridas e sujas. Os cabelos, em compensação, são bem curtos. Os componentes da Turminha Legal têm muita força física. Todos eles praticam algum tipo de luta. A muita força física é uma compensação pelos poucos atributos intelectuais. Não são os principais inimigos do Grupo N.Ó.S. mas atrapalham muito as suas ações. Andam sempre juntos.

Um Turminha Legal, quando é pego sozinho, em geral tenta negar sua identidade e finge pertencer a algum outro grupo. No momento em que a ação se inicia eles estão fazendo nada, sentados na sarjeta da entrada do Castelo, como é seu hábito. Esse detalhe é importante, porque já houve casos de a Turminha Legal provocar entregadores de pizza, às vezes até roubam a pizza, ou pegam a bicicleta para dar uma volta por ali, só para aborrecer o entregador e mostrar que ele nada pode contra este grupo.

E vai haver, no decorrer da ação, uma entrega de pizza. Vamos ver. Os componentes da Turminha Legal não podem entrar na Biblioteca Velha. Se entrarem, morrem na mesma hora, fulminados por congestão cerebral. É uma das vantagens, das poucas que há, que os N.Ó.S. têm em relação a eles quando em combate.

 

Os Invencíveis – Como o nome indica, nada nem ninguém jamais conseguiu vencê-los. Sua resistência é, à primeira vista, um mistério, já que fisicamente são franzinos, não demonstram ter nenhuma força. Costumam mesmo passar despercebidos nos ambientes em que estão. E estão semre presentes, até quando ninguém espera que estejam. É só procurar bem que se vê um, nas sombras, cabeça baixa, roupas cinza ou marrom. Se pegam alguém olhando para eles, cumprimentam, respeitosos, e se afastam. Mais de um, de qualquer dos outros grupos, já se enganou sobre eles. Mais de um deu uma briga por ganha só par descobrir, depois, que havia na verdade perdido.

Durante uma ação eles agem de forma independente. Se vão ajudar ou atrapalhar, só se sabe na hora.

Quando se reúnem, contam histórias, em geral por meio de canções. Algumas dessas canções nem letra têm, só melodia, mas o som, de algum jeito, conta uma história que quem for Invencível entende. Quando alguém dos outros grupos escuta essas canções, não percebe sua importância, são letras bobas – quando as há – e ritmos repetidos. Mas alguma coisa essas canções e histórias devem ter, porque se repetem e repetem, e passam, com algumas variações, de Invencível a Invencível, há mais de mil anos. A ponto de os outros grupos acharem, nesta confusão de “hojes” em que todos vivemos, que a canção que acaba de ser feita já foi ouvida antes. Vai ver que foi.

Grande parte da ação vai depender se há ou não alguma amizade secreta entre um dos Invencíveis e alguém de outro grupo.

Aparência física: não importante.

 

Grupo E.L.E.S. – São os que ditam as regras. O problema aqui é que há regras conhecidas e regras desconhecidas, que só são descobertas em momentos críticos, quando uma defesa é muito difícil.

Por exemplo, os E.L.E.S. determinam desde coisas simples, do cotidiano, como horários, menus das refeições etc., como outras, cuja existência mal se conhece. Exemplo de regra desse último tipo: só pode se candidatar a uma determinada ação quem tiver tais e tais atributos. E aí, quando se vai ver, a lista dos atributos é a lista dos atributos dos E.L.E.S. Ou seja, eles determinam que eles é que ganham sempre. Eles se protegem de forma total, de modo que só E.L.E.S. podem ganhar grandes somas de dinheiro, só E.L.E.S. têm vantagens substanciais. É por isso que os P.A.I.S. desejam tanto que os N.Ó.S. virem E.L.E.S. Os P.A.I.S. são um grupo que põe as coisas práticas antes do resto, em geral.

Os E.L.E.S. formam um grupo muito fechado e muito perigoso. São capazes de qualquer coisa para se defender. Mas têm um ponto fraco.

Sempre se enganam em relação aos Invencíveis.

Eles repetida e sistematicamente acham que ganham. E ganham. Mas só até determinado ponto. Porque os Invencíveis são justamente invencíveis.

Isso irrita os E.L.E.S. sobremaneira.

Um detalhe curioso: um E.L.E.S., quando pego sozinho frente a frente com um dos Invencíveis, em geral morre de medo. Nessa ora, sua certeza de que ganha sempre se esvái e ele morre de medo. Mas só quando está sozinho. Senão, não. É uma cena interessante de ver, porque os E.L.E.S. são sempre gordos e os Invencíveis sempre magros. Então é o maior que morre de medo do menor.

Não sei se vai haver uma dessas cenas no decorrer de nossa ação. A ver.

Mais um detalhe: os E.L.E.S., como dissemos, são gordos, mas seu ideal de beleza é a magreza. Uma de suas muitas pequenas infelicidades do dia-a-dia.

Identificação física: usam calças jeans e tênis, mas, ao contrário dos N.Ó.S., os E.L.E.S. procuram uma diferenciação bem marcada entre homens e mulheres. As calças jeans e os tênis deles são de grife. E há grifes para homens e grifes para mulheres. Para identificar este grupo sem erro, é aconselhável o uso de lentes de aumento, já que a grife vem sempre pendurada em pequenas etiquetas. Aqui vale apontar uma pequena inocência deste grupo nada inocente. Os E.L.E.S. põem essas pequenas etiquetas que os identificam em geral do lado de fora das roupas, o que facilita as coisas para os outros. É como se eles se pintassem um alvo. Uma inocência. Mesmo os mais espertos as têm.

 

Os Perdidos –   Os Perdidos são personagens que vêm do passado longínquo ou do futuro, e estão aqui por um erro, um dos muitos erros da nossa construção.

Vêm e ficam, se negam a ir embora.

Deve ser por causa da nossa tolerância aos “hojes” diferentes e que coexistem. Eles se sentem bem, ou pelo menos, notam que não chamam assim tanta atenção quanto chamariam em alguma outra geografia.

Os Perdidos ficam vagando pelos corredores do Castelo. Há muitos. Sem chegar ao ponto de mudar essa característica de tolerância, deve-se, contudo, evitar um encontro muito direto, muito próximo, com eles. Têm um mau hálito mortal. Deve ser por causa das viagens. Longas.

Às vezes eles são trazidos por componentes dos outros grupos. Por exemplo, um componente que tenha na lembrança a imagem de alguém querido do passado. Esse alguém pode virar um Perdido. Ou um estranho que desperta a nossa curiosidade e que passamos a seguir disfarçadamente para tentar descobrir quem é e que, aos poucos, descobrimos estar, ele, a nos seguir, também com curiosidade, para descobrir quem nós somos. E nessas horas, andando furtivamente, um seguindo o outro, em círculos e círculos pelos corredores, salões e pátios do Castelo, ficamos um pouco em dúvida sobre quem é o Perdido, se o outro, se nós. Ou sobre quem lembra de quem. Assim sendo, os N.Ó.S. estão dentro da Biblioteca Velha e o zumbido, que parece ser de ar-condicionado mas não é, pode muito bem ser alguma coisa engendrada pelos Perdidos. A descobrir.

Os Perdidos não têm uniforme, mas sua aparência é a que estava na moda no século passado. Ou no próximo. Adoram a Biblioteca Velha. Há quem diga que eles não passam de lenda, que não existem de fato. Ledo engano.

 

Os Barbudinhos – São habitantes recentes do Castelo. Vivem exclusivamente nos subsolos. Nunca viram a luz do dia, aliás, nenhuma luz que não seja a das telas dos monitores. A comunicação com eles é muito complicada, pois não falam a mesma língua que os outros. Não escutam vozes, só ruídos computadorizados, e só são capazes de enxergar o que estiver em formato retangular e vier de dentro de telas. Não são maus, apenas indiferentes aos outros grupos.

Podem fazer grandes ações positivas ou podem arrasar completamente uma determinada situação, provocando desastres terríves.

No momento da ação eles têm uma grande responsabilidade. São os Barbudinhos os encarregados de trazer a Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, o que vai definir o desenrolar dos acontecimentos. Se eles conseguirem, os N.Ó.S. têm alguma chance. Se não conseguirem…

E o pior: eles também estão escutando um zumbido. E não acham que seja do ar-condicionado, dos cupins, dos Perdidos ou da chuva. Eles acham que pode ser indício de pane na rede elétrica!

Para evitar a estática, eles tiraram os tênis, já que a sola de borracha é isolante. E arregaçaram os jeans sem nenhum motivo, só de nervoso.

Eles não frequentam a Biblioteca Velha. Vão a uma outra, especializada, cujos livros têm títulos incompreensíveis para quem não pertence ao grupo. Um exemplo de título de livro: C+ + 4,5.

 

Os P.A.I.S. – Mais um grupo dos mais controvertidos a habitar o Castelo. Eles têm um domínio muito grande sobre os N.Ó.S. Sua grande arma contra os N.Ó.S. é a pressão psicológica. São extremamente perigosos quando agem em conjunto, e costumam agir em conjunto. Têm grande facilidade de comunicação entre eles. Às vezes se conhecem de longa data e estabelecem estratégias de jogo em comum. Muita atenção.

Há uma coisa a respeito deste grupo que os N.Ó.S. não sabem e não adianta dizer porque mesmo se alguém disser eles não vão acreditar. Mas é muito difícil ser deste grupo. É uma das tarefas mais difíceis do jogo.

Eles nunca entram na Biblioteca Velha. Ficam na porta, empurrando para dentro quem está do lado de fora e impedindo quem está do lado de dentro de sair. Mais uma dificuldade para o entregador de pizza, como se verá.

Frases-chaves do código deles: “Mas já acabou?! Não é possível!!! Estude mais um pouco!!!”.

Costumam falar isso em coro, sempre que há mais de um e, já vimos isso, eles costumam andar juntos, em geral aos pares.

Os P.A.I.S. estão sempre de calças jeans e tênis, embora não fiquem nem um pouco bem com essa roupa. É um dos mistérios, a indumentária deste grupo.

 

Como será o dia de hoje. Eu sei o que está se passando agora dentro da Biblioteca Velha embora sua porta esteja fechada. Os livros estão lá como sempre, em seu lento fermento interno.

Livros deixados nas prateleiras durante o tempo suficiente gerarão livros completamente novos dentro de suas capas. E isso mediante uma mágica especial que mantém a mesma aparência da capa. Tanto que, quando se vai pegá-los outra vez, nem sempre dá para notar, em um primeiro momento, que o fermento fez o efeito, que tudo estará diferente lá dentro, embora com as mesmas palavras nas mesmas páginas amarelas. É por isso que algumas pessoas lêem o mesmo livro mais de uma vez, é porque não é o mesmo livro. Há quem considere os livros um grupo, o Grupo Livros.

Foi por um livro que os N.Ó.S. ficaram sabendo sobre a Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta. Livros falam de muitas coisas. O problema é prestar atenção. Por exemplo, a porta da Biblioteca Velha ainda está fechada, mas eu sei que os livros estarão nas suas prateleiras, na disposição determinada pelo senhor Borges, sofrendo a lenta ação do fermento, sem que o Grupo N.Ó.S. sequer note isso.

Os N.Ó.S. estão lá há muito tempo, tanto que eles já perderam a conta. Mesmo dando um desconto por causa da noção sempre confusa do tempo na geografia coberta pelo mapa feito lá no começo. Mesmo assim, mesmo já sabendo que tempo é sempre algo complicado, neste caso é mais complicado ainda. Os N.Ó.S. estão lá há tanto tempo que a única maneira de registrar a passagem das horas é pela fome do Fábio.

E esse é um método difícil de medir o tempo, porque o Fábio está sempre com fome.

Estão eles lá, jogados pelas poltronas e sofás velhos, os livros se fingindo de inanimados por cima deles (fingindo que não têm o tal do fermento…), há o zumbido que ninguém mais nem escuta e o Fábio que, de vez em quando, berra pizza!, pizza!, mas ninguém lhe dá muita atenção porque ele sempre faz isso, a qualquer hora.

O Fábio é um dos N.Ó.S. mais antigos. Ele tem um Defeito Genético – para compensar o atributo de Grande Esperteza E Conhecimento Elevado Dos Cantos Menos Nobres Do Mapa.

Seu Defeito Genético é o seguinte: se ele não comer pizza a intervalos regulares, leva um dano de mais de 5 pontos e fica inconsciente.

O estado de inconsciência do Fábio é considerado algo muito chato pelos outros N.Ó.S.: ele se espalha na poltrona de couro, fala coisas sem sentido e ri sem parar, e a única palavra inteligível que sai nessas horas, no meio das frases desconexas, é pizza.

Por isso, todos do Grupo N.Ó.S. sempre tentam evitar que ele fique muito tempo inconsciente e torcem para que no rolar dos dados em cima da mesa ele consiga uma Licença Especial.

Uma Licença Especial permitiria que ele saísse para comprar a pizza, já que o pedido feito há quantas horas? serão dias? não parece ter funcionado.

Nenhum entregador de pizza apareceu.

O pedido foi de calabresa.

Eu sei disso.

É preciso dizer as coisas, mesmo quando elas não são de todo agradáveis. O participante Fábio, por exemplo. Se alguém de outro grupo entrasse agora, não iria saber disso, mas o caso é que o Fábio inconsciente, largado na poltrona de couro, não difere muito do Fábio consciente. É preciso ser um participante experiente do Grupo N.Ó.S. e ter atributo Atenção de pelo menos 10 para saber a diferença. Essa é uma vantagem que pode ser aproveitada. Alguém de outro grupo que entra, julga que aquele componente dos N.Ó.S. está fora de combate.

E não está.

Então é este o quadro.

Os livros, os N.Ó.S. por ali, jogados, só o Fábio berrando pizza, pizza, cada vez mais fraco. O zumbido, a bruma cinza a engolir o final das estantes, a claridade que parece diminuir.

E de repente, primeiro muito fraco mas depois sem deixar nenhuma dúvida, eles escutam os passos nas tábuas largas e compridas do chão do corredor. Todos ficam imóveis enquanto os passos continuam, vagarosos, mas cada vez mais próximos. Os passos param do lado de fora da porta fechada.

Só pode ser um dos Perdidos, se dizem eles sem falar, utilizando seu poder telepático, comum a todos os componentes de todos os grupos, excetuando os da Turminha Legal. Os da Turminha Legal têm um outro tipo de comunicação, que poderia ser confundida com a telepática mas que na verdade é a monossilábica. Parecida, só, mas diferente.

Mas os N.Ó.S., sem dizer uma palavra, se dizem que aqueles passos lentos que param do lado de fora da porta só podem ser uma coisa. Só pode ser um dos Perdidos.

Porque Ajuda De Fora com certeza faria um barulho muito mais determinante, forte, resoluto.

A maçaneta começa a girar.

 

A interação personagens – ambiente

Para entender o que se passa no Castelo, é preciso começar do bem básico.

Pensem num quadrado.

Num dos lados deste quadrado há duas portas, a velha e a nova – esta maior do que aquela. Apesar disso, todos os do Grupo N.Ó.S. entram sempre pela velha. Eles fazem isso como uma espécie de tomada de posição, uma maneira de dizer que entram no Castelo inteiro, no de antes e no de muito antes. E, porque o mundo é redondo, há um antes tão antes que chega a ser o depois. Mas já vimos isso, essa questão do tempo na nossa geografia.

Virados para este mesmo lado do quadrado em que há as duas portas, vemos três estágios de construção do Castelo.

À direita, uma parte muito velha; no meio uma mais ou menos; e, à esquera, uma parte do galpão novo.

Ligando estas três partes, um patiozinho estreito que tem uma importância especial: é neste lugar que vários tempos diferentes têm um ponto de contato. Neste patiozinho brincam, desde tempos imemoriais, menininhas eternas. Elas brincam de estátua. Estão sempre lá, se fingindo de estátuas. Elas não participam da ação.

Ou será que sim?

Também se vêem, neste patiozinho, aqui e ali, as janelas gradeadas e rentes ao chão do subsolo onde supostamente está a maior parte dos laboratórios secretos. Isso nunca foi averiguado. Coragem não é um atributo muito popular no Grupo N.Ó.S.  E como os outros grupos mentem, não dá para saber se averiguaram ou não.

A parte velha da construção tem uma escadinha em curva irregular, que leva à parte de cima, onde há uma porta que está sempre fechada. Sendo assim, a parte de cima da construção velha só é acessível através de uma escada larga e reta, de madeira comida pelo tempo. Esta escada é um perigo, os degraus estão sempre ameaçando se romper e assim levar os mais desavisados direto para o subsolo. Uma vez subindo para a parte de cima, o segundo andar, por assim dizer, há apenas uma comunicação conhecida que liga a parte velha com a parte nova da construção. Mas todos acham que devem existir outras.

O participante Henrique – de quem falaremos depois – já declarou uma vez conhecer uma que sai direto da sala da Deusa Mor.

Também falaremos mais da Deus Mor depois.

Agora mudemos o lado do quadrado.

No segundo lado não se entra nem sai, ele é feito de paredes cegas, a não ser por uma janela na parte de cima. É por isso que não se entra nem sai, porque utilizar esta pequena janela para entrar ou sair seria supor a possibilidade de um longo vôo por cima do muro. Esse é um ponto a ser considerado. Alguém pode querer comprar o atributo Vôo só para poder entrar ou sair desta pequena janela. Ela tem outra importância: como fica em uma parede cega, é fácil que uma comunicação criptografada com os Do Lao De Fora passe despercebida dos E.L.E.S. Raramente um E.L.E.S. se detém neste lado da construção. É só escrever a mensagem no quadro-negro que fica bem em frente da janela, que os Do Lado De Fora lêem sem problemas. Qualquer sinal de que um Perigo Iminente ou um E.L.E.S. esteja se aproximando e apaga-se tudo sem deixar vestígio.

E aí é só negar até a morte.

Este lado do Castelo tem partes construídas até mais ou menos a metade da sua extensão. O resto é o pátio, com árvores que foram as primeiras árvores do universo, ou as últimas de algum outro universo. Entre estas árvores, a Árvore Sem Fim, de onde caem, vez por outra, rochas do Espaço Sideral – que se esfarelam na mão – e filhotes de passarinho.

Pardalzinho mesmo.

No terceiro lado do quadrado está a parede de um dos prédios dos Do Lado De Fora.

Vamos falar dos Do Lado De Fora.

Todo mapa tem um limite. É um dos problemas dos mapas. Há que se estabelecer um limite, que será sempre mais ou menos falso, limites são colocados – e tirados. Limites são sempre um mais-ou-menos. Limites são sempre um limite e estabelecer limites, ter de estabelecê-los, é um problema de todos os que fazem mapas – e todos fazemos mapas, sempre de algum tipo, o bicho-homem é um bicho que faz mapas, inventados, de mentirinha, com limites traçados aqui, não, não, ali, retos, em curva, em ziguezague, do jeito que sai na hora.

Os limites dos mapas na verdade são sempre os nossos próprios limites.

Então os prédios Do Lado De Fora são os prédios que estão além dos limites do nosso mapa.

Poderiam estar dentro.

A parede deste prédio que fica Do Lado De Fora é uma parede lisa, reta, sem nenhum ponto de observação que dê para este nosso pátio. E só no finzinho deste terceiro lado ficam então os aposentos dos Invencíveis.

Eles ficam então perto do limite – o nosso limite e o do mapa.

Falta o quarto lado.

O quarto lado do quadrado é tomado pelo galpão.

Quando eu falo tomado, estou me referindo ao sentido mais comezinho, bobo, de quem só vê o horizontal.

Porque tem o vertical. Só que geralmente as pessoas não se preocupam muito com o vertical. Quem, ao se deparar com um galpão, se preocupa em olhar para cima ou, pior, para baixo, para o mais baixo, para o que está embaixo do solo, ou, quando for para cima, para lá em cima, para cima das nuvens, se houver nuvens, ou para cima do azul, porque azul sempre há, quem?

Camadas e camadas que nem são camadas porque não estão separadas, azuis e azuis e mais azul, isso para cima. E para baixo, agora sim, camadas, de subsolos, camadas e mais camadas, cada vez mais para baixo, para onde ninguém nunca foi.

Porque o Castelo tem tantas escadas, portas que não se abrem, corredores que não dão em lugar algum e abóbadas tão baixas que se você não tomar cuidado bate com a cabeça e fica lá desacordado para sempre. Porque o Castelo é assim, então, feito e refeito sem parar e feito e refeito sem nenhum motivo aparente, sempre em obras.

E porque é assim o Castelo, com essas camadas de tempo, que há então os Perdidos.

Que pode ser qualquer um de nós, eu ou vocês, alguém que, em algum momento, ficou parado no tempo. Os Perdidos são os que encontraram.

Os que encontraram alguma coisa de muito importante ou muito terrível, extremamente boa ou extremamente ruim, em algum momento do tempo. E ao encontrar essa coisa, que pode ser muitas coisas, eles se encontraram nelas e grudados nelas ficaram, então são esses os Perdidos, são os que encontraram.

E ao encontrar, encontraram também sua definição, se encontraram a si mesmos.

É terrível isso.

Mil vezes continuar perdido de si e das coisas, do que se achar e parar. E virar um Perdido.

Perdidos, portanto, são seres que pertenceram – ou pertencem, o tempo no Castelo é de fato um problema – a qualquer um dos grupos já citados e que por algum motivo terrível – e o bom também pode ser terrível – lá se perderam e se acharam, e vagam então eternamente pelas salas não ocupadas, pelos corredores sem fim.

E nesse sentido, então, os limites ficam ainda mais frágeis. Não só os do mapa, feitos assim ou assado.

Não só os verticais, nos azuis e azuis, isso para cima, e nos subsolos que não acabam, isso para baixo.

Mas também no sentido horizontal – tantos metros em cada lado do quadrado. Mesmo do ponto de vista “horizontal” – ou o que poderia ser chamado de horizontal em um planeta que é uma bola que gira em um espaço que não cabe em nenhuma geometria – mesmo do ponto de vista “horizontal”, o Castelo também não tem limites, já que podemos nos perder-achar, já que podemos ficar andando por ele para sempre. Dentro dos limites que, ingênuos, julgamos ter colocado.

 

Eu apareci por acaso. Calhou de ser eu.

Acaso é uma coisa que acontece. com certeza vocês já ouviram falar que acaso não existe, que tudo é determinado. Mentira. Existe sim. Há mesmo uma definição de inteligência que diz que é inteligente quem consegue reagir bem, e rápido, aos acasos. Inteligentes seriam os que não obedecem cegamente a uma lógica.

(Sim, há mais de uma lógica, é esse o ponto. É preciso descobri-las, são incontáveis.)

Bom, então, pelo menos do meu ponto de vista, fui por acaso.

Os do Grupo N.Ó.S. disseram que já estavam me esperando. É esse o problema deles, eles ficam esperando.

Sim, quem girou a maçaneta da Biblioteca Velha, quem fez barulho de passos nas tábuas do corredor do Castelo, fui eu. Quem todos esperavam não era eu, mas acabou sendo eu.

Sei que fui uma decepção muito grande para eles. Acho que é porque uso óculos.

E também porque sou mulher.

Fica meio estranho uma personagem chamada Hussarda, uma Guarda Prussiana, uma Coronela, uma Fua Manchua. Mas é isso aí.

Todo mundo tem de se acostumar com coisas novas de vez em quando. E quando a coisa nova é mulher fica mais difícil ainda.

Mas por causa, muito provavelmente, da decepção (sou meio gordinha também), a ação propriamente dita durou pouco.

Como os N.Ó.S., apesar de estarem esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, não tinham ainda estabelecido os específicos, eles não podiam ter muita certeza do que estava por vir.

Eu parada na porta, eles me olhando, eu percebi, eles ainda pensaram que, bem, as aparências enganam, vai ver é um disfarce. E, então, conformados, fizeram as saudações de praxe, as mãos levantadas:

— Ave.

— Ave.

Só o Fábio, inconsciente devido à ausência de pizza, estragou um pouco o cerimonial achando que a conversa se referia a alguma galinha assada. Uma pena. Estava bonito. Essas coisas são bonitas, vocês sabem.

Então nos saudamos e rapidamente eles me aceitaram assim do jeito que eu sou.

É uma das vantagens deste ponto da geografia: os tais dos acasos, os inesperados, o que sai da norma, são tantos e tão frequentes que nós, habitantes dos mapas desenhados acima, rapidamente nos adaptamos e vamos em frente.

Ou talvez seja porque somos mesmo mais inteligentes.

Só a questão da Arma Secreta ainda pega um pouco. eu devia vir trazendo uma Arma Secreta.

Pedi detalhes. Fiz uma lista. Eu tambem me adapto, e alguns dos livros que os N.Ó.S. leram eu também li. Além de alguns que eu li e que os N.Ó.S. não leram.

Mas, sim, a lista de Armas Secretas. Apresentei uma lista para que escolhessem.

Fiz a lista de Armas Secretas, mas na verdade, o Secreto não era a lista mas os meus motivos. Aparentemente, era para que escolhessem qual seria a mais adequada à situação. Mas eu queria também que eles vissem como ficava a lista, com todas aquelas armas juntas.

Eu queria que eles chegassem a uma conclusão sobre a lista.

Carros movidos a vapor de água, raios de controle de mente, submersíveis atômicos, autômatos gigantes japoneses, objetos voadores luminosos feitos de éter, ondas de calor, ondas para fazer dormir, canhão gigante, míssil radiativo, robô humanóide, animal mecânico, gases hipnóticos, drogas que transformam pessoas em lobispessoas.

Nesse ponto fiz um discurso sobre o determinismo machista da palavra lobisomem, mas ninguém achou o assunto muito interessante. Talvez eles tenham razão. Talvez, hoje – mais uma vez essa palavra estranha! – hoje esse assunto, o machismo, já não seja tão importante quanto foi há algum tempo. É que eu … eu ia dizer aqui a minha idade, mas eu não sei da minha idade.

Lembram daquelas menininhas brincando de estátua no primeiro lado do quadrado – ou retângulo – que é o Castelo? Pois é, talvez eu tenha sido uma daquelas menininhas que estão lá desde sempre. Mas isso veremos depois.

Então, continuei com minha lista.

Poção da invisibilidade, adagas, sabres e espadas, talismãs, amuletos, figas, cristais, olhos de vidro, agulhas com soporífero, bússolas que mentem, bombas de luz que cegam, tinta invisível, nitroglicerina, mandrágoras, unicórnios, basiliscos, esfinges, hidras, salamandras, máquina de transmissão de imagens e sons.

Minha lista era grande. Era esse o meu truque.

Quando terminei, todos dormiam.

Acordei um por um para dizer o que eles já sabiam, que o bom do excesso de armas é que o respeito por elas acaba.

É verdade, tanto faz morrer de hiperdetonador subatômico ou de 38 enferrujado. E matar é matar, seja com tiro ou por fome, usando revólver ou aprovando uma política econômica no Congresso.

Mas o livro dizia que ia aparecer Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Então resolvemos escolher de comum acordo uma Arma Secreta, estabelecendo que a definição de arma e a definição de secreta seriam dadas posteriormente.

Achamos que todos dormirem antes do final da lista era um sinal óbvio de que a Arma Secreta deveria ser ou onda eletromagnética hipnótica para fazer dormir ou uma agulha com soporífero extraído de uma determinada planta africana.

Uma pena que eu não tivesse nem uma coisa nem outra.

 

Lei primeira do HD da Eterna Sabedoria

Parágrafo único: Todo mundo tem de ter uma arma secreta, e quem não tem, tem de achar que tem.

 

É isso ai.

(Explicação necessária: o HD Da Eterna Sabedoria é um HD que se acessa através de uma senha criptografada que apenas alguns poucos eleitos dominam. No entanto, esse HD está ao dispor de qualquer um. Ele fica lá, nas suas profundezas, em repouso, aguardando que seu dono o acesse. Repetindo: ele está ao dispor de qualquer um. Todos têm um HD Da Eterna Sabedoria. Apenas ainda não aprenderam a acessá-lo)

 

O problema é o seguinte.

Eu acho que já disse isso, o problema é o seguinte, antes. E, pior, acho que vou dizer outra vez mais à frente.

Mas o problema – esse de agora – é o seguinte.

No Castelo moram os E.L.E.S., os P.A.I.S., os N.Ó.S., os Invencíveis, os Perdidos, a Turminha Legal e alguns Barbudinhos. Tem o David, que fica para depois.

E tem a Deusa Mor. Uma das tarefas dos N.Ó.S. é descobrir quem ela de fato é.

Além, portanto, de vencer o inimigo do momento (que no caso é, como sabemos, Física 2, Prova Final), escolher se vão se aliar aos Invencíveis ou aos E.L.E.S., driblar os Perdidos, gerenciar a convivência com os P.A.I.S., fugir da Turminha Legal, e tentar incansavelmente uma comunicação proveitosa com os Barbudinhos, os N.Ó.S. têm, como tarefa, descobrir quem é de fato a Deusa Mor.

E lidar com o David, mas isso fica para depois.

 

A Deusa Mor – Montagem de personagem

 

A Deusa Mor é velhíssima e muito pequena. Veste-se com umas roupas estranhas, como se fosse uma menina rica ou como se estivesse fantasiada de menina rica. Mas velha, muito velha. É pequena, parece frágil, mas dizem que tem uma enorme força, toda ela concentrada na voz. Uma ordem, com sua voz esganiçada, é cumprida sem discussão. Os outros simplesmente obedecem, como se fossem robôs, mesmo quem nunca a viu.

Por tudo isso e mais um pouco, a Deusa Mor pode ser:

1) Deusa Mor nos Perdidos

A Deusa Mor pode ser uma Perdida criança. Uma menina que há muitos e muitos anos viu toda a sua família morrer em um incêncio que destruiu sua fazenda. A fazenda era no lugar onde hoje tem o Castelo. E ela ficou vagando, com seu vestido de organdi e sua boneca de pano, pelo local, vendo o Castelo ser construído e destruído e construído outra vez, sempre, sem parar, e nunca pôde ir embora, reconhecendo cada vez menos, a cada década que passa, um canto do chão onde era a cozinha da fazenda, a curva da raiz onde uma vez ela achou um ovo de galinha ou de ave silvestre, reconhecendo as nuvens que de trezentos e setenta e oito em trazentos e setenta e oito anos passam outra vez, no mesmo formato, na mesma sequência, com a mesma pressa, ou falta de pressa.

Ficou assim, esta menina, Perdida.

E com o tempo ela uma vez arrumou um canto confortável para que sua boneca dormisse, sabendo que talvez ao voltar não mais encontrasse, não a boneca, mas o próprio canto, transformado talvez em um novo muro, em um apoio para uma nova janela. Mas deixou assim mesmo porque às vezes mesmo os Perdidos precisam deixar coisas atrás de si. E depois, mais tempo ainda depois, um laço que prendia seus cabelos se desfez, uma ponta da saia rasgou. Mas ela não ligou e continuou vagando, vagando.

E um dia ela se deparou com uma sala totalmente vazia e, um pouco para brincar, um pouco por estar se sentindo naquele dia mais sozinha do que de hábito, colocou uma plaquinha que tinha encontrado ao lado de umas cerâmicas e que dizia Deusa Mor em uma língua muito antiga. Para mostrar à mãe – que estava tão ausente – como ela aprendera bem suas lições de colégio, escreveu então embaixo a tradução Deusa Mor em uma língua mais recente.

E colocou na sala vazia.

E as pessoas acreditaram e até hoje ela se espanta quando alguém entra e faz uma reverência e ela percebe que ela está sendo considerada a Deusa Mor.

E então de vez em quando ela grita, na sua sala vazia, como todas as crianças gritam quando estão de mau humor. Ou assustadas.

Com o tempo ela começou a gritar para se distrair. Achava engraçado como todos obedeciam:

— Todo mundo com uniforme completo na quinta-feira!!

E todos vinham.

Mais tempo ainda se passou e ela começou a não achar mais tanta graça. Meio bobo isso de todo mundo sempre obedecer sem discussão. E aí passou a gritar por mau humor. Outra vez.

E também porque todo esse poder a deixava assustada. Mais uma vez.

2) Deusa Mor nos E.L.E.S.

Outra hipótese é que se trate de uma E.L.E.S. Há uma particularidade dos E.L.E.S. e só dos E.L.E.S. Eles sempre caem para cima. Qualquer componente de qualquer um dos outros grupos quando cai se machuca. Os E.L.E.S. não. E até mesmo nas quedas metafóricas, as quedas de poder, não são bem quedas. Nunca são. Um E.L.E.S. que comande uma área importante, quando perde o posto, ganha outro. Em geral, a frase perde o posto, inclusive, não se aplica. Ele não perde o posto. Ele assume outro. Ele é promovido para outra área. Ele se aposenta com louvor. Ele é convidado para outra atividade. Ele ganha um prêmio milionário por serviços prestados. É sempre assim.

Então a Deusa Mor pode ser uma E.L.E.S. que caiu para cima.

Por exemplo: ela começa bem jovem sua carreira profissional. Ela é muito esperta, sabe a quem se aliar, de quem manter distância. Maridos e filhos, por exemplo, nem pensar. Estragariam todos os seus planos. E ela vai subindo, gerente, diretora, e chega, o que é raríssimo acontecer com mulheres, a presidente executiva. Todos aplaudem, todos dizem o quanto ela é maravilhosa e esperta etc., e enquanto estão aplaudindo mesmo já estão pensando em como fazer para se livrar dela. Sim, porque é muito desconfortável isso de uma presidenta executiva mulher. Vocês vão lembrar. Logo que eu cheguei e abri a porta da Biblitoeca Velha. O mesmo desconforto, constrangimento. Todos gaguejando por ter de empregar palavras que nem estão no dicionário, como Hussarda, nomes que precisaram ser inventados de supetão, como Fua Manchua! Vocês lembram. Pois a história aqui é parecida, as pessoas discutindo se presidenta está certo, e isso sem parar de bater palmas.

E aí um dos subordinados dela, talvez o mais querido, o mais próximo, chegou um dia com a cara radiante de felicidade e falou baixo porque ainda não era oficial. Falou baixo que ela iria receber uma surpresa ainda naquele dia. E ela toda contente:

— É surpresa boa?

E ele:

— Ótima! um suprassumo, o ápice, a consagração maior de todas!

E ela mal podia esperar e no final do dia chegaram todos os diretores, todos os E.L.E.S. mais graúdos que estavam sob o comando dela, e disseram que ela havia sido escolhida para virar Deusa Mor!!!

E a boba gostou do nome e aceitou. E ainda enxugou uma lagriminha, comovida.

E aí foi para a sala vazia com a plaquinha debaixo do braço. Os outros fecharam a porta atrás dela. Ela ficou lá.

De vez em quando ela acaricia a plaquinha. Tinham dito que era de ouro legítimo, ouro do mais legítimo. Ela acaricia e futuca com a ponta da unha. Às vezes ela fica em dúvida se é ouro mesmo.

3) Deusa Mor nos P.A.I.S.

A Deusa Mor pode ser uma componente do Grupo P.A.I.S. infiltrada.

Há P.A.I.S. e P.A.I.S.

Há uma coisa sobre P.A.I.S. que vocês devem saber: eles são ansiosos. Há os muito ansiosos e os poucos ansiosos. E aí imaginemos o seguinte. É uma situação das mais prováveis.

Um N.Ó.S. do tipo calado. Ele chega e o P.A.I.S. pergunta:

— E aí, como foram as coisas?

E o N.Ó.S. invariavelmente responde:

— Bem.

E cala a boca. Não dá detalhes, Não elabora. Não conta nada.

E aí imaginemos que esse diálogo se dá com um P.A.I.S. do primeiro tipo, do tipo muito ansioso.

Ele fica maluco. Pergunta e pergunta e só consegue obter sins, nãos, bens, e hum-huns.

E aí esse P.A.I.S. elabora um plano. Ele, bem, no caso é uma ela, ela faz uma pesquisa e descobre que no Castelo há uma sala vazia aonde ninguém vai.

E então ela se prepara cuidadosamente. De todos os disfarces, o melhor é de criança. Jamais um N.Ó.S. vai pensar num P.A.I.S. como uma criança. Aí ela escolhe um vestidinho esquisito, de organdi, que estava guardado há muito tempo dentro de um baú, empoa a cara com um pó branco, acaba gostando da brincadeira e capricha em uns laços de fita.

Fantasia tem um problema. É que não tem fim. Uma vez entrando-se nela, tudo pode, tudo dá, e a pessoa vai inventado, achando que só mais um pouquinho e vai ficar ótimo, só mais um pouquinho, e nunca fica realmente completamente ótimo. Está sempre faltando alguma coisa.

Então esta P.A.I.S. começou a inventar e a se fantasiar e lembrou como seria bom ser Deusa. E aí achou que Deusa só, assim simplesinha, era pouco. E mandou fazer uma plaquinha que ficou linda, escrito Deusa Mor. E foi para o Castelo, de cuja porta não costumava passar, ficando, junto com os outros P.A.I.S. a empurrar quem tentava sair de volta para dentro e a entoar as palavras mágicas:

— Mas já acabou?! Não é possível!!! Estude mais um pouco!!

Foi para o Castelo e numa hora em que não tinha ninguém por perto, entrou sorrateira, segurando forte a plaquinha de Deusa Mor e dizendo para si mesma que quando aquilo acabasse – questão de dois ou três dias – , ela iria guardar para sempre a plaquinha no fundo de uma gaveta. Para poder de vez em quando olhar e se sentir uma Deusa Mor.

Eram apenas dois ou três dias, só até ela descobrir como o N.Ó.S. estava de fato se virando em relação ao Grupo Livros.

Mas depois que ela descobriu isso (ele estava se virando mais ou menos), ela achou que havia mais coisas para saber.

Aquele ponto que já vimos, é difícil parar.

Aliás, aquele outro ponto que também já vimos. É muito difícil pertencer a este grupo. É uma das tarefas mais difíceis deste nosso jogo. Acreditem. Há sempre uma margem de erro muito grande nas ações deste grupo, e suas ações, apesar de a aparência dizer o contrário, são na verdade limitadas.

É muito difícil.

4) Deusa Mor nos Invencíveis

A última hipótese é a Deusa Mor ser uma Invencível.

Não, não, não é de todo improvável e a favor desta hipótese há o fato de os Invencíveis gostarem muito dela.

Era uma vez uma menina Invencível que trabalhava todos os dias, junto com sua mãe e irmãos, descascando mandioca para fazer farinha. Ela, pequenininha, pegava a faca com força e num golpe só tirava a casca de um dos lados da mandioca, virava, tirava do outro lado, e do outro e do outro, e isso o dia inteiro, todos os dias. Ganhava alguns centavos por mandioca descascada e, assim, se esforçava para descascar o máximo possível. Às vezes a faca escapava e ela cortava o dedo.

Mas ela era muito bonita.

Todo mundo achava.

Então um dia apareceu um homem muito rico que quis ficar com ela e o pai negociou com o homem e ela foi. E depois aconteceram muitas coisas, que ela não achava nem boas nem ruins, mas que ficavam ruins porque ela tinha saudade dos pés de mandioca, um ao lado do outro, em fila, subindo o morro. E um dia ela estava assim parada pensando nos pés de mandioca que subiam o morro quando ouviu uma voz perto dela.

Era outro moço rico e eles se gostaram e foram morar juntos e ela aprendeu várias coisas, mas no começo ela ficava com vergonha porque era a única Invencível daquele ambiente. Era o que ela achava. Depois, aos poucos, foi descobrindo que várias outras pessoas também tinham sido Invencíveis, mas disfarçavam. Mas ela não.

Todos os dias ficava na janela fazendo força para não esquecer dos pés de mandioca e das canções que ouvia em criança.

Um dia o moço rico morreu.

E ela saiu daquele ambiente do mesmo modo que tinha entrado. Pela mesma porta. Andou por muitos lugares. Até que descobriu um lugar que tinha uma janela que dava para um morro onde ela, agora muito rica, mandou plantar pés de mandioca que ela proibia de arrancarem. Os pés de mandioca eram só para ela ficar olhando.

Mas as pessoas começavam a tratá-la com menos respeito, agora que ela estava sozinha. Começavam a tratá-la como a um Invencível qualquer.

Então ela mandou fazer uma plaquinha com um nome bem pomposo, o mais pomposo que pôde imaginar. E pôs na porta.

Quando um Invencível lhe pede dinheiro, ela gosta de abrir a bolsinha de moedas e mandar que ele estenda a mão. Ela gosta de despejar todas as moedas de uma vez. Ela não gosta de abrir a bolsinha, olhar as moedas uma por uma e escolher uma de valor menor para dar. Ela acha isso feio.

Ela despeja e pronto. Mais de uma vez um deles voltou, os olhos brilhando, para devolver um botão perdido, uma ficha de telefone, uma bala de hortelã, que tinham ido misturados às moedas.

Devolvem e dizem, sorrindo:

— Veio por engano. A senhora pode sentir falta.

E depois agradecem outra vez. Eles se sentem bem com isso. É como se eles também estivessem dando algo, de retorno, para ela. Ela sabe disso. Entende essa coisa de dignidade.

 

Bem, é este o problema. A Deusa Mor pode ser qualquer uma dessas personagens, pertencer a qualquer um dos grupos. Só da Turminha Legal e do Grupo Barbudinhos é que ela com certeza não é.

Quer dizer, dos Barbudinhos ainda pode ser, embora seja difícil. Não há praticamente mulheres neste grupo.

Mas pode ter acontecido de uma menininha, única mulher entre dez irmãos, ter aprendido só de olhar. Só um computador no quartinho dos fundos e os dez ali, acotovelados, brigando, agora é minha vez!, agora é minha vez! Nunca ninguém sequer pensou na possibilidade de a menininha também se sentar por um minuto que fosse em frente à tela. Ela ficava sempre bem atrás, e a única coisa que via era uma massa de ombros, camisas e cabeças, os seus dez irmãos tapando quase completamente a tela. Quase. Aqui e ali, entre uma orelha e uma gola, a menininha via às vezes um pedaço de tela, de teclado, e foi aprendendo sem ninguém notar.

Cresceu e tomou gosto por uma brincadeira. Gostava de ficar quieta, num canto, em ambientes onde Barbudinhos têm suas raras interações pessoais.

— Ih, encontrei com o Wild Wolf no ICQ! Mas ele estava away.

— Faz um tempão que não falo com ele. A última vez foi quando deu problema na minha mother.

— O que aconteceu? Perdeu a Bios de novo?

— Não, dessa vez foi a IDE.

E aí ela, sem nem tirar os olhos do seu bordadinho de ponto de cruz, diz:

— Xii .. Aí tem de trocar tudo… Se ainda fosse antigamente, quando a IDE era separada… Ah, bons tempos…

E a conversa, se é que se pode chamar aquilo de conversa, acaba, os Barbudinhos todos mudos de espanto.

Ela gosta disso. É como ela ri. Uma risada interna, que ninguém nota.

Cresceu mais um pouco e arranjou este emprego de Deusa Mor em um lugar do Castelo onde não havia nem tomada, quanto mais computador. Pois pediu para instalarem uma tomada (“é para meu secador de cabelo”) e embutiu na parede um sistema moderníssimo que ela contrabandeou com grande risco de um país Do Lado De Fora.

Ninguém vê.

Entra na sala dela e não vê. Alguns desconfiam de um espelho grande, com moldura dourada, que ela mantém em cima da mesa e para onde olha fixamente enquanto tamborila com os dedos no tampo da mesa.

Mas é só.

Ou seja, Barbudinho mesmo ela não é, mas pode ser quase. Ou pode ser também que ela não seja componente de nenhum dos grupos do Castelo, mas uma espiã Do Lado De Fora. Com, quem sabe, uma ligação secreta com o David, que seria seu contato entre os N.Ó.S. Mas averiguaremos essa hipótese depois.

Se ficarmos, por enquanto, só com os grupos do Castelo, podemos perceber, portanto, que ela pode ser de quase todos.

Só da Turminha Legal é que com certeza ela não é. Não há hipótese.

 

Principais antagonistas – a Turminha Legal

 

Dados Gerais

A Turminha Legal é o grupo principal de antagonistas, tirando-se, é claro, o Grande Inimigo com seu séquito, que, como vimos, pode variar muito mas que nesta ação é a Física 2, Prova Final.

Ou não é, mas isso será visto depois.

Como antagonistas, os Turminha Legal não se dão com absolutamente ninguém a não ser com eles mesmos e atacam todos os outros tipos de habitantes do Castelo.

Infligem grande dano.

Só não são piores porque, mesmo durante os mais importantes enfrentamentos, são capazes de largar tudo para assistir a jogos de futebol. Quando em uma situação difícil frente a frente com a Turminha Legal, qualquer componente dos outros grupos pode simplesmente tirar um apito do bolso e gritar a palavra mágica pênalti!!!

E oTurminha Legal senta imediatamente, arranja um saco de pipoca e fica assistindo.

É uma boa maneira de resolver sitações complicadas, essa.

Outro ponto positivo é que os Turminha Legal, quando não estão sentados sem fazer nada na porta do Castelo, estão jogando bola ou treinando luta. As mais frequentes são taikendô, sumô, aikidô, judô e também luta suja, com pedacos de pau e golpes baixos. E eles sempre se machucam, eles mesmos, nessas atividades, o que poupa o trabalho dos outros grupos.

É um alívio.

Qualquer um dos N.Ó.S., se tivesse por missão infligir dano a um Turminha Legal, ia se dar muito mal. Eles são fortões e têm 12 ou mais de Coragem quando estão juntos. Separadamente, não. Mas eles andam sempre juntos.

Houve, porém, um caso de Turminha Legal que teve um contato não belicoso com os N.Ó.S.

Foi o Geraldão.

Quando o Geraldão pôs aparelho nos dentes, chegou a passar uns tempos com os N.Ó.S. Mas foi expulso pouco depois, porque ninguém conseguia entender o que ele falava e não era por causa do aparelho.

Data desse episódio uma tentativa de documentar a língua dos Turminha Legal, que apresentamos a seguir.

Vocabulário Básico

Utilizar em situações de encontro inesperado com um Turminha Legal em beco escuro. Quando tudo o mais está perdido, vale a tentativa de negociar, embora as chances de sucesso sejam ínfimas.

Aí pô – ver pô aí;

brother – aumentativo de brou;

cualé – qual é;

galera – coletivo de brother;

lance – espécie de parada que de repente rola;

ó nóis – diminutivo para “olhe como nós estamos”;

qual é – expressão de desagrado;

radical – mina ou brou que mandou benzaço;

roubada – parada ruim;

tamos aí – estamos aqui se você precisar.

 

Vocabulário avançado (ainda em formação)

Maçaneta – maçã pequena. Atenção, portanto, ao tentar usar no seguinte contexto: “Ah! quer me bater?! Vamos lá na Deusa Mor, então, se é que tu é hómi. Quero ver você girar a maçaneta dela!” No exemplo acima, o Turminha Legal pode aceitar o desafio e depois de abrir a porta da Deusa Mor, girar no chão, qual pião, o lanche que está em cima da mesa dela. E ainda dizer que foi você você que sugeriu isso. Cuidado portanto.

Biscoito – relação sexual feita duas vezes. De novo, muito cuidado. Ao tentar subornar um Turminha Legal perguntando, quer um biscoito?, você pode ser muito mal interpretado.

 

Mas não foi a Deusa Mor que me trouxe aqui. Eu vim graças aos Barbudinhos. Na verdade, o fato de os N.Ó.S. estarem esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta na mesma hora em que eu apareci foi uma coincidência.

É, coincidência existe. Sorte também. É minha teoria.

Gosto dos Barbudinhos. Conheço-os bem. E tem isso, quando você conhece bem alguém ou alguma coisa, você gosta. O que nos leva a pensar que quando não gostamos de alguém ou de alguma coisa, é porque não os conhecemos bem. Ou seja: tem sempre alguma parte boa no desconhecido.

É minha teoria. Mas às vezes ela não dá certo.

Bem, os Barbudinhos. Queria falar um pouco dos Barbudinhos. Gosto deles. E foi por causa deles que eu vim para o Castelo.

Uma das principais características desse grupo é que eles não se reproduzem, não têm filhotes.

Mas não se trata de uma espécie em extinção, bem longe disso.

A explicação está na barba.

São barbas com vida própria. Quando seu suporte, a pessoa que está embaixo, não se mostra mais adequado – ou por estar já muito velho, ou por infringir as leis do HD Da Eterna Sabedoria -, a barba simplesmente se desgruda e vai procurar outra cara.

Agora vou contar como tudo realmente se passou.

Eu estava cuidando da minha vida, tranquila, pensando na minha próxima viagem e avaliando as vantagens de ir, desta vez, com meu tapete voador (para descansar da vassoura) quando um dos Barbudinhos me chamou para mostrar uma tela de abertura que estava muito bonita.

Vou tentar ser bem clara aqui. Eu gosto dos Barbudinhos, mas isso não quer dizer que eu goste do que eles gostam. Pensei em dizer não. Mas achei que seria indelicado, então tirei minha gata preta do colo – o que foi desagradável para mim e para ela – e fui.

E vim.

É que a tal da tela de abertura mostrava o Castelo. Uma parte do Castelo. E eu disse o que não devia ter dito:

— Mas eu conheço esse lugar.

Nem sei se disse ou se só pensei. Todos nós somos telepatas.

Pode ser que eu tenha apenas pensado.

Mas de qualquer maneira, antes mesmo de chegar ao ponto que termina a frase, tenha ela sido dita ou só pensada, eu me vi primeiro nos subsolos, e depois nos corredores do Castelo, andando devagar, lembrando de cada tábua, e me aproximando da porta da Biblioteca Velha, onde parei. Eu já sabia. Lá dentro, os N.Ó.S. jogados pelos sofás, poltronas, o Fábio pedindo pizza, pizza, cada vez mais fraco.

Hoje em dia há Barbudinhos em tudo quanto é lugar. No Castelo, eles ficam no subsolo abaixo do subsolo do laboratório de química. E foi para lá que eu fui ao dizer a frase que não devia ter dito.

O subsolo deles é chamado de Subsolo Escuro. O de química, um nível acima, é o Subsolo Claro. Mas, mais uma vez, as palavras, como acontece tanto no Castelo, podem dizer uma coisa ou outra, aquilo ou o seu contrário. O subsolo dos Barbudinhos é chamado de Subsolo Escuro, mas na verdade é claro, iluminado por uma estranha luz fosforescente que emana das telas. As telas são com quem eles se relacionam. Mesmo quando falam entre eles, eles falam olhando cada um para sua tela. É muito estranho.

Já o laboratório de química, que é chamado de Subsolo Claro por causa de umas janelinhas, na verdade é escuríssimo, porque as janelinhas, sempre fechadas, não iluminam nada.

Estou dizendo isso porque nunca se sabe o que pode ser útil algum dia. Pode ser que algum dia um de vocês se veja em um subsolo considerado escuríssimo e, lembrando disso, perceba que mesmo lugares escuríssimos às vezes podem ficar claros se a gente descobrir onde está o interruptor.

 

Detalhes suplementares para os sete tipos de personagem

 

1 – Grupo N.Ó.S.

No Grupo N.Ó.S. há participantes fixos – especificados a seguir – e participantes extras, que podem ser acrescentados dependendo do número de pessoas presente.

a) Fábio. Ele se dá o apelido de Cavaleiro Andante.

(nota: todos os N.Ó.S. têm apelido. Chamam apelido de nickname, ou de nick. Esse é um ponto importante. Há palavras de dentro do Castelo que na verdade são De Fora. Ou é o contrário. Mas depois analisaremos melhor essa questão da linguagem De Fora e De Dentro.)

Fábio escolheu ser chamado de Cavaleiro Andante porque veio de algum  povoado pequeno, talvez da região da floresta, e gosta que saibam disso. Quando fala sua biografia, cita sua origem distante e todos os pontos por onde passou até chegar ao Castelo. Pode ser verdade, pode ser mentira. Apesar do nome, não consta que saiba andar a cavalo. Talvez jegue. No máximo jegue.

b) Henrique. Autodenominado Príncipe Dos Invencíveis.

É o herói típico, com atributos morais elevados – 15 ou mesmo 20 pontos – que compensam escassos recursos de experiência de vida. O Henrique tenta ajudar os Invencíveis até quando os Invencíveis não querem a ajuda dele.

c) Jonathas. Apelido: New Kid.

Não tem uma participação muito efetiva nas ações conjuntas dos N.Ó.S. porque se juntou ao grupo há pouco tempo. Por causa disso – porque poucos o conhecem – e também graças a atributos elevados de dissimulação, é excelente espião quando colocado junto aos outros tipos de personagem.

d) Felipe. Ou Caniço. Ou ainda: O Colosso De Rodes.

Na verdade, Caniço é seu nome secreto, só dito em situações de total privacidade. O Colosso, como prefere ser chamado, costuma ganhar todas as situações desafiando os inimigos para um poquerzinho, jogo do qual conhece todos os truques, os truques honestos e os mais ou menos. Fisicamente O Colosso é muito magro e fraco.

E agora chegou a vez finalmente de falar sobre o David.

e) David ou O Marciano. É o único a não ter determinado ele próprio o seu apelido. Marciano é um nome estabelecido por consenso.

Na verdade há a suspeita que se confirma cada vez mais de que David seja um extraterrestre.

Seus atributos intelectuais são altíssimos.

Suas características pessoais, as poucas que ele permite que se conheça, são muito estranhas: alimenta-se de salsinha, pendura suas cuecas usadas no lustre. E fica cego quando colocado no sol.

Sua pele é branco-esverdeada e meio transparente. Dedos muito compridos. Não é capaz de distinguir cores.

 

2 – Turminha Legal

Também chamados de muitos outros nomes, todos impublicáveis. Turminha Legal é como eles mesmos se chamam. Como já falamos, são os antagonistas principais, não só dos N.Ó.S. como de todos os outros grupos do Castelo.

Eles são vistos às vezes com meninas que mascam chiclete, o que é melhor do que ser visto sem menina de nenhum tipo. Isso é uma indiscutível superioridade deles em relação aos N.Ó.S.

Seu uniforme de bermudas largas e chinelo de borracha pode estar complementado com uma faixa preta de algodão. A faixa preta pode ser virtual. Você não a vê, mas sabe que ela está lá.

a) Geraldão. É pacifista. Instado a matar uma barata disse que era contra. No entanto, é muito grande, medindo um metro e meio de diâmetro. No pescoço. Às vezes acontece de tirar uma vida e não perceber. Quando comunicado do ocorrido, chora copiosamente, espalhando meleca de nariz por um raio de dois metros a seu redor. É preciso cuidado em não estar muito perto dele nessas ocasiões.

b) Marcão. Gosta de escrever poesia, o que é um problema. Ninguém pode saber disso, porque Turminha Legal que é Legal não escreve poesia. Então ele usa um pseudônimo secreto, Zuleika.

c) Tonhão. É o mais inofensivo de todos. Passa os dias estudando para um concurso de segurança de boate, mas ainda não aprendeu qual é a mão esquerda, qual a direita. É um ponto importante do concurso, porque ele não pode cumprimentar os fregueses com a mão errada.

 

3 – Os Invencíveis

Têm esse nome porque são sempre e invariavelmente vencidos, em qualquer circunstância.

Mas só na aparência. Quando você vai analisar bem, quem ganhou foram eles.

Têm 20 de Teimosia. Vivem no passado não só porque têm a missão de deixar-tudo-limpo-como-estava-antes, mas também porque nunca se esquecem, jamais, dos ensinamentos e hábitos de seus antepassados. Parece que é por isso que são invencíveis. Você pode até vencer em um tempo, mas como eles se recuperam em outro tempo, no passado, você acaba perdendo, porque eles voltam iguaizinhos ao que eram antes de serem vencidos, deu para entender? Então não é bem que vivam no passado. Pode ser no futuro.

Não têm nomes individuais. Chamados de José, atendem.

 

4 – Os E.L.E.S.

Há de vários tipos, mas vamos nos ater a um tipo específico de E.L.E.S., os de letra redonda.

São os E.L.E.S. de letra redonda os responsáveis mais imediatos pelas Provas Finais, como a de Física 2, motivo de nossa ação.

Em um ambiente como o do Castelo, onde as personagens se disfarçam e podem muito bem passar de um grupo para outro, só há uma maneira de identificar um E.L.E.S. de letra redonda: é pedir que escreva algo em um papel. Se ele, nessa hora, tirar do bolso um papel pautado, não é preciso nem esperar que escreva nada. É um E.L.E.S. legítimo.

São as únicas personagens a ter esse atributo.

Não são propriamente antagonistas, mas o melhor é manter distância.

Os nomes variam muito.

 

5 – Os Perdidos

Fazem coisas inesperadas, que podem ajudar ou prejudicar os componentes dos outros grupos. São perigosos só quando abrem a boca, porque não escovam os dentes há vários séculos e seu hálito é mortal.

Uma pequena lista de Perdidos já vistos e identificados por pessoas dignas de crédito:

a) Antenor Eugênio Ipiranga da Fonseca y Fonseca. De família tradicional, Antenor foi, contudo, esquecido propositalmente dentro do Castelo, depois que ficou claro que ele jamais conseguiria fazer qualquer coisa de útil.

É visto com mais freqüência nos fundos da cantina e perto do vestiário das meninas, dando risinhos imbecis. Os Turminha Legal gostam muito dele.

b) Aldemiranda Martins Coelho. Ficou porque gosta.

c) Os cinco turistas japoneses. Eles estiveram no Castelo muitos anos atrás para fotografas as ruínas de um dos torreões originais e ainda são vistos fotografando – com máquinas completamente obsoletas e sem filme, o que é muito deprimente – batentes carcomidos das portas, caquinhos dos vitraux originais semi-enterrados nos canteiros etc.

Se você quiser obter alguma coisa deles, uma informação importante, por exemplo, você tem de trocar por algum obejto. Vídeos de Carnaval são altamente apreciados. São Perdidos do tipo menos perigoso, porque raramente abrem a boca. A informação é sempre passada por gestos.

 

6 – Os P.A.I.S.

Seres muito estranhos, que têm uma convivência grande com os N.Ó.S. Uma característica importante: são colecionadores. Do quê, varia. Toalhinhas de mesa, por exemplo.

Como todos os outros grupos, este também não é homogêneo. Há inclusive o boato de que os N.Ó.S., algum dia no futuro, se tornarão P.A.I.S. É um boato apavorante, que pode ou não ser verdadeiro. Em todo o caso, não é uma regra que atinja a todos. O Grupo N.Ó.S. poderá ter componentes que se tornarão espiões infiltrados nos P.A.I.S. em vez de P.A.I.S. reais. N.Ó.S.-P.A.I.S. que nunca se esquecerão de quando eram N.Ó.S. simples.

 

Nota muitíssimo importante: Há toda uma informação sobre este problema de N.Ó.S. se tornarem P.A.I.S. de repente. Consultar verbete “camisinha” nos livros da Biblioteca Velha. Se não achar, este é um dos raros momentos em que é válido um dos N.Ó.S. buscar contato com alguém de outro grupo.

 

7 – Os Barbudinhos

Nunca tomam partido sobre o que quer que seja. Não se envolvem nas várias disputas entre os seres do Castelo. Não falam com ninguém nem escutam ninguém. Quando falam, é sempre entre eles. Este grupo também tem, como os Turminha Legal, um vocabulário específico.

a) Primeiro exemplo – Abri uma janela do edit, e o Windows perguntou quem deveria ficar com a Com3, se era o terminat. Qual será o problema?

nota: não tente se enturmar perguntando quem é o Windows, porque isso seria fatal.

b) Segundo exemplo – Instalei o Typestri Pixar, que funcionou bem mas desconfigurou fontes, impressora e o Corel. Instalei de novo o Corel, impressora e fontes, e passou a acusar erro de dynalink. Desinstalei o Windows, deu o dynalink outra vez e também um Win 32s error, G3230855.exe – unhandled exception detected, code 0xC000005 w32s comb. dII.80ed. E Application will be terminated.

nota: ao contrário do que possa parecer, a descrição anterior não é considerada entediante mas sim algo referente a uma incrível aventura, com lances emocionantes e grandes perigos.

A má notícia é que para se comunicar com um Barbudinho você tem de dar um jeito de entender pelo menos um pouco dos exemplos e, principalmente, dar um jeito de sua cara aparecer em uma tela de fósforo verde, de preferência com recursos de multimídia e velocidade mínima de 14.400.

 

8 – Deusa Mor

Não é um tipo de personagem. Na verdade ninguém sabe a qual dos tipos ela pertence.

O maior atributo especial conhecido da Deusa Mor é que ela sempre esfria a maçaneta da porta da sala onde está, qualquer sala. De modo que quem entra no recinto depois dela, entra de mão gelada. Ela tem outros poderes. Pode ser aliada ou inimiga, depende, mas mesmo como aliada é alguém para se temer e manter distância.

Atributos:

porte atlético – 0;

carisma – 0;

sex appeal – 0;

esgrima, boxe e briga de rua – 0, 0 e 0;

forma física – 0.

Ou seja, não é que se saiba em que atributos a Deusa Mor é boa, mas com tanto zero é porque ela compensou com coisas muito especiais e em alto grau.

É óbvio isso.

Pelo menos, é o que as pessoas acreditam.

 

Então foi uma coincidência. Fui levada de volta ao Castelo por causa de uma tela de abertura de um amigo Barbudinho e, na mesma hora, os N.Ó.S. estavam aguardando, como última esperança, Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Levada de volta porque já tinha estado lá. Já tinha tentado fazer, como todo mundo, um mapa para mim. Depois foi que desisti. Ou não. Mas atualmente meu mapa é uma coisa meio impalpável, feito das pessoas de que eu gosto, dos lugares com que me acostumei e de que gosto, das músicas que ouvi em criança e que nunca mais esqueci, das risadas que o tempo levou mas que de vez em quando, andando na rua, escuto atrás de mim e então me volto, só para me deparar com uma cara completamente estranha. Mas que detém a risada que me é querida.

Então é isso. Aprendi muito.

Mas não sei bem o que apresentar, do muito que sei e tenho, como Arma Secreta.

Na verdade meu problema é maior ainda. Não sei bem o que seja Física 2. Devia ter outro nome no meu tempo.

— Quer dizer que o inimigo é Física 2, Prova Final?

— Ééééé – responderam todos eles num coro fraco.

Fiz mais um esforço para me lembrar. Física, sim, claro. Mas 2?! Comecei a ficar preocupada. Lógica, sim, várias. Mas Física?! 2, 3, Física 35,5?! Meu deus. Acho que eu tenho de sair mais de casa, o mundo, suas partículas, devem ter mudado muito. Fiz mais algumas perguntas e pensei comigo: se não der certo, eu saio um instantinho da Biblioteca e vou perguntar diretamente à menininha que eu fui, e que continua a brincar de estátua no pátio lateral, se por acaso ela sabe.

Foi quando me lembrei da Física Quântica, aquele negócio do movimento, que há um movimento embutido, uma intenção de movimento, sempre, independente de provocação. Achei que era algo de útil e guardei na minha cabeça para uso posterior.

É bonita, essa idéia. De que qualquer matéria não é só matéria, mas movimento de matéria.

(E que por causa disso mesmo, não podemos saber, nunca, como é a matéria “realmente”: ela será sempre uma matéria em perturbação constante.)

Mas eles insistiam. Onde estava minha Arma Secreta?

Para ganhar um tempo, tentei alegrar a conversa:

— Mas e aí, o que vocês contam de novo? Quais são as últimas novidades?

 

Penúltimos Acontecimentos

– em 1492, Cristóvão Colombo chegou à América;

– em 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil;

– em 1513, Vasco Nuñez de Balboa atravessou o Panamá e chegou ao Pacífico;

– em 1531, Francisco Pizarro aniquilou o Império inca.

E continuou a aniquilar, aniquilar, até hoje, quando não mais se chama Francisco Pizarro, adotando vários outros nomes. Todos eles procurando ouro, ouro e mais ouro. E não só dos incas.

Sem nunca ver qual é o ouro.

Isso todo mundo sabe.

 

Responderam o de sempre.

Últimas novidades? Pedro Álvares Cabral. Quinhentos Anos. Quem aguenta.

Perguntei por coisas assim mais detalhadas.

Disseram que a última pintura daquela parte do Castelo tinha se dado no glorioso ano de 1889.

Falei que assim não era possível. Algo mais recente, por favor!

Depois de um esforço acrescentaram que lá por 1964 tinha acontecido uma coisa, o que era mesmo? Era importante, isso eles garantiam, mas no momento não lembravam mais o que era.

A situação estava muito difícil. Aos poucos fui percebendo a gravidade do quadro.

Cheguei a ficar tonta. A ter um momento de pânico.

O inimigo não era Física 2, Prova Final.

Esse era apenas um simulacro, um clone, uma fachada. O verdadeiro inimigo que se escondia por trás do livro fechado de Física 2 era outro. Era o Grande Desânimo.

Os N.Ó.S. tinham feito o que não deviam. Eles tinham jogado tudo para o alto e dane-se o mundo.

Eles tinham desistido.

E eu tenho, sei lá quantos anos eu tenho, mas são muitos. E se há uma coisa que eu sei desta vida é que não se pode desistir. Que é a única hora em que a gente perde.

E eles tinham desistido.

Estavam lá, jogados, sem se interessar por nada, esperando que acontecesse um milagre ou, na linguagem deles, Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Nem mesmo notavam mais o que acontecia. Tinham parado mais ou menos no ano de 1889.

Senti as pernas bambearem. Precisava de um ar. Lembrei das menininhas brincando de estátua.

Eu sei do que estou falando. Eu brinquei de estátua. Era assim: tínhamos de ficar em uma pose, bonita, o maior tempo possível. Imóveis.

Eu sei do perigo. Eu tive amigas que ficaram na pose, bonita, é verdade, mas imóvel, até hoje.

Falei:

— Vou até ali um instantinho. Conversar com uma menininha minha amiga.

Ninguém respondeu.

Só me olharam.

Saí suando frio.

 

A ação – parte 2

Toca o sinal.

Os corredores do Castelo são confusos. Podem se tranformar em um labirinto para quem não conhece bem, não tem o mapa certo, ou para quem não anda por lá há muito tempo, como eu.

O caminho que vai até o pátio lateral onde menininhas brincam de estátua tem uma bifurcação que leva, não mais ao pátio, mas à sala da Deus Mor. Eu devia saber, a maçaneta é fria.

Dentro da sala, uma menininha com cara de velha está sozinha sentada em uma mesa.

Todas as quatro paredes têm espelhos.

Em cada um destes espelhos em cada uma destas paredes há uma tabuleta onde se lê: P.A.I.S., Invencíveis, E.L.E.S. e Perdidos.

A menininha com cara de velha está de frente para um quinto espelho, menor, que está em cima da mesa dela, em cujo tampo ela tamborila febrilmente. Nem sequer levanta os olhos, começa a dar ordens:

— Vá escovar os dentes!

— Põe o troco aqui na mesa!

Como não há resposta, ela continua, sempre sem olhar:

— Quer falar comigo, fique de frente para um dos quatro espelhos, o que você preferir. Ande! Não tenho o dia inteiro!

Como o silêncio continua, ela finalmente levanta os olhos e diz:

— Ah, é você.

E sorri meio sem jeito.

Aqui vale um adendo. Qualquer pessoa de qualquer um dos grupos, quando está em posição de dar ordem, tem o perigo de se viciar. Ordem é uma coisa que vicia muito. A pessoa que começa tem muita dificuldade em parar.

Mas eu tenho de escolher um espelho. Se eu for para o do P.A.I.S. ela vai dizer os N.Ó.S. têm de estudar e muito para se aliar aos E.L.E.S. O espelho dos E.L.E.S. vai dizer que estudo é importante, sim, mas sem esquecer de experiência em negócios. O espelho dos Invencíveis vai me olhar de longe, sem dizer nada, porque não vai precisar me dizer nada. E o dos Perdidos, se me disser alguma coisa, eu morro.

Prefiro abrir a janela.

Lá fora há uma vista de um morro coberto de pés de mandioca. Não é isso que eu quero. Não é isso o importante. Todo mundo tem, se procurar bem no seu passado, um morro coberto de pés de mandioca.

E  aí a Deusa Mor fala:

— Não é esta janela que você quer, tente esta.

A segunda janela mostrava a Árvore Sem Fim em um dia de outono. De vez em quando caíam folhas. Embaixo da Árvore havia alguém. De repente o vulto se abaixa para pegar algo no chão. Parecia uma folha, mas viva, que corria de um lado para o outro. Debrucei-me no parapeito para ver melhor. Não sei quanto tempo fiquei debruçada nesta janela da sala da Deusa Mor. Mas eu precisava saber de quem era aquele vulto.

E descobri.

Já podia voltar à Biblioteca Velha e enfrentar o inimigo pior de todos, O Inominável. Eu já tinha um aliado.

E eu já sabia qual era a minha Arma Secreta.

 

Saí suando frio e fui andando pelas tábuas compridas do corredor, passando por Perdidos, tantos. Um velho roqueiro de mais de setenta anos, ainda com seus cabelos compridos e sua guitarra elétrica, procurando o caminho de Wookstock, onde ele fez muito sucesso. Uma velha senhora carregando nas mãos as sapatilhas de um balé que ela abandonou para casar. Um Perdido-Invencível de cócoras, no chão, procurando um bilhete de loteria, premiado, que ele perdeu e nunca conseguiu achar. Um rapaz debruçado em cima de uns vidros de química murmurando agora sim!, agora sim!.

Tantos. No fim, todos brincando de estátua sem saber. Como o grupo das menininhas. E brincar, jogar, é uma forma de descobrir as coisas. Dá certo para muita gente. Descobrem o que é importante fingindo que não é importante, que é só um jogo.

Meus passos foram e voltaram, soando nas tábuas do corredor, e se detiveram em frente à porta da Biblioteca Velha.

Lá dentro, eu sei, os N.Ó.S. estão falando sem falar, como é o jeito telepático deles.

— Há quanto tempo não escutamos um sinal?

Porque o tempo no Castelo é medido por Sinais. Que tocam, supostamente a intervalos regulares, para avisar que está na hora do almoço, ou que está na hora de fechar a Biblioteca, essas coisas. Mas que não são regulares porque quem decide é a Deus Mor. Que toca o sinal quando bem entende, porque está com vontade, ou porque não está com vontade.

Então é isso.

São esses os Sinais.

Mas se você não prestar atenção, pode escutar e, o que é pior, acreditar. Em uns sinais que, bem..

Os N.Ó.S. estão na Biblioteca Velha achando que se preocupam com os sinais, mas não é com os sinais. É com eles mesmos. Percebem, agora, quando está quase tudo perdido, que eles estão inermes, apáticos, sem notar nada do que se passa ao redor deles há muito tempo, há tanto tempo que não dá nem para saber quanto tempo é.

A maçaneta começou a girar.

Eu entrei.

Eu olho fixo para o David.

Está na hora de começar.

 

Últimos acontecimentos

Antes fiz, pela última vez, a pergunta: o que tem acontecido de novo?

a) Henrique

Henrique disse que, durante uma corrida de táxi atrás das mais belas mulheres dos cinco continentes, dos sete mares e dos dezoito filmes em cartaz, havia esquecido no banco traseiro uma pasta com o Segredo De Tremer O Mundo. Ele precisava recuperá-la porque senão os Invencíveis seriam, como sempre que há um Segredo De Tremer O Mundo, os mais prejudicados.

Por que? Porque são eles os mais prejudicados em qualquer situação. E então, para isso, o Henrique disse que contava com a ajuda de Jonathas, o único com o Feitiço Do Corpo Fechado e imune à Praga Da Coca-Cola Envenenada, o que era uma vantagem, já que o Felipe, ou Caniço, perdão, O Colosso de Rodes, tinha medo de cachorro e quando rolaram o dado para saber qual probabilidade havia de aparecer um cachorro naquela hora deu 2, ou seja, tudo bem.

b) Fábio

O Fábio disse que não comia há uma semana e que para conseguir desencavar um saco de batatinhas que acabou ficando emparedado na última reforma da Biblioteca ele precisava de uma marreta eletrônica movida a energia magnética, mas que eu não me preocupasse, porque a batatinha estava em um saco especial, de um plástico molecular orgânico desenvolvido pela NASA, capaz de aguentar milênios no espaço, porque era batatinha de astronauta, já testada inclusive na última viagem a Vênus.

E que a marreta viria com o Henrique, porque estava previsto que na sua próxima viagem de táxi ele acharia a marreta no porta-malas, quando o abrisse para retirar de lá O Colosso De Rodes, passageiro clandestino em direção ao Espaço Virtual 4.

c) Jonathas

Disse que estava dormindo e que não tinha visto nada.

d) Felipe

Tinha comprado um aparelho de musculação e passado os últimos dias tentando dar um jeito no bíceps, ou no não-bíceps.

e) David

Disse que tinha acabado de voltar de uma estada em um Universo Alternativo onde destruiu o Império Do Mal, depois de ter pisado sem querer em um círculo de pedrinhas do pátio onde na verdade havia uma Porta De Outra Dimensão. Falou isso me olhando fixo. Acrescentou que havia uma Trama Maldita. E disse algo sobre hiperqualquer coisa e raios de alguma coisa. E ainda pôs no final um transfugador molecular do tempo ou pelo menos foi isso que deu para entender. Ele estava mentindo. Estavam todos mentindo. E acrescentou:

— Daqui a pouco vai estar na hora de esclarecermos umas coisas sobre o jogo.

Tocou mais um sinal e dessa vez todos ouviram.

 

Quando eu cheguei, os N.Ó.S. estavam na Biblioteca, para onde tinham ido para se preparar para a Física 2, Prova Final, mas tinham se deparado com um inimigo maior ainda, o maior inimigo de todos, com O Problema.

Pedi que eles me contassem as últimas novidades. Tinha feito isso para ganhar um tempo, já que eu não sabia nada de Física 2, não tinha a menor idéia de qual era minha Arma Secreta e, na verdade, estava ali por engano.

E eles me contaram sobre Colombo, Pedro Álvares Cabral etc.

Insisti. Não é possível, falei, que nada tenha acontecido de mais recente um pouco.

E eles me falaram sobre Portas De Outra Dimensão, Feitiços, Pragas, Espaços Virtuais e dadinhos que rolavam e davam 2.

O quadro estava claro.

Deixei que conversassem mais um pouco enquanto eu trocava  idéias para um plano de ação, telepaticamente, com o David.

Eles começaram a discutir a conveniência ou não de implementar um Desastre Fatídico contra um componente da Turminha Legal que tinha passado o recreio conversando com a Carla.

Carla era o Romance Impossível do Henrique. E do Fábio. E do Jonathas. E o Felipe quase chorou porque nào fazia nem uma semana que ele tinha salvado a Carla de um Perigo Iminente graças aos 10 de Esgrima dele e mais sua sorte nos dados.

Eles discutiam porque tinham dúvidas a respeito do Desastre Fatídico: havia indícios fortes de que não só aquele componente específico da Turminha Legal mas praticamente toda a Turminha Legal ia repetir ano, então nem valia o esforço.

Além disso, eles também tinham muita dúvida sobre qual dos N.Ó.S. exatamente iria chegar perto do componente da Turminha Legal e provocar o Desastre Fatídico nele.

E havia outro problema.

— Acho que houve alguma coisa, porque ficamos um tempão sem ouvir o sinal. Talvez tenha faltado luz – falou Henrique. — Agora fica difícil saber que sinal é esse, proque perdemos a sequência.

E, acrescentaram todos:

— Talvez já tenha passado da hora de abrir o livro da Física 2. Talvez nem valha mais a pena mesmo, porque acho que iríamos perder mesmo. Não tem jeito.

Nem vale a pena.

E todos concordaram com a cabeça.

Precisávamos nos apressar, eu e o David.

 

Dados Essenciais sobre Física  2

O volume líquido extravasante pode medir a dilatação aparente, se considerarmos um frasco contendo líquido até a borda medindo AV-ap, por exemplo, então um líquido derramado de 3 cm3 significa uma dilatação de 1 cm3 na fórmula Avf + 1cm3.

O fato de os limites jamais serem fixos não quer dizer que não os tenhamos. Eu, por exemplo, não faço a menor idéia do que possa ser AV-ap.

Mas eu sei que o problema não é esse. Não se trata de Física 2.

O que estávamos vendo aqui era a apatia, o desânimo, o jogar-tudo-para-o-alto-e-dane-se-o-mundo.

A desistência.

E aqui me traí.

Há um grupo no Castelo que não desiste jamais.

É, eu já pertenci a ele. E nunca mais me esqueci.

Hoje, quem olha para mim vê uma pessoa comum, sem grandes atributos, nada muito característico. Mas é só a aparência. Por dentro eu cantarolo canções antigas. E fico contando histórias que já passaram.

Mas que não passaram.

É. Tenho 20 deTeimosia.

É, eu sei bem o que a apatia é capaz de fazer com um povo.

É, eu fui uma Invencível.

Mas eu tinha um aliado entre os N.Ó.S.

Alguém que era nosso aliado há muito tempo, desde o tempo em que a Árvore Sem Fim ainda era um pouco mais baixa do que hoje, em um outono distante.

 

Vestibular Simulado

Questão 1

O inimigo é:

a) alguma coisa que está fora de nós e nos ameaça.

b) Física 2, Prova Final.

c) nós mesmos.

 

O problema é o seguinte (eu não disse que ia acabar dizendo isso outra vez?): é que é difícil mesmo.

Eu sei disso.

Todo mundo faz isso. Quando a vida complica – e a vida tem essa tendência, de complicar – , a pessoa inventa outras complicações da sua cabeça. Aí, resolve essas complicações inventadas. E se esforça para ficar com a impresão de que, junto com as complicações inventadas, ela resolveu também as complicações que não eram inventadas.

Nunca dá certo.

Mas, apesar de nunca dar certo, a pessoa faz outra vez e outra vez.

E, a cada vez, quando vê que não deu certo, quando vê que, apesar dos esforços para resolver as complicações inventadas, as complicações reais continuam lá, firmes e fortes, a pessoa então fica assim parada, achando que nada vale a pena.

Vale.

É que tem de se esforçar.

É que o esforço para resolver complicações inventadas, apesar de considerável, é sempre muito menor do que o esforço para resolver complicações reais.

Afinal, se é coisa inventada, é porque podemos controlar. Quando não é inventada, esse negócio de controle já fica um pouco mais difícil.

Mas um dia a pessoa percebe.

Mesmo sem escutar nenhum sinal.

Os N.Ó.S., por exemplo.

Os problemas deles se acumulavam.

Além da Física 2, muito além.

Não eram só as meninas. Ou, melhor dizendo, a ausência de meninas.

Havia a história do coro.

Nesta época do ano, já, todos os dias, a uma determinada hora, há um coro formado pelos P.A.I.S. na porta do Castelo. Eles entoam a melodia “Vocês não vão passar”.

É uma espécie de encenação teatral. Eles se cobrem com véus escuros, fazem gestos de terror. O David, que é muito culto, já explicou aos outros N.Ó.S. a estrutura da tragédia grega e o papel de oráculo do coro, uma espécie de “voz do autor”, sendo que o autor, na tragédia grega, era apenas um porta-voz do Destino.

Coisa muito impressionante.

Não sei se ele devia ter dito tudo isso. É claro que é interessante. Mas os N.Ó.S. não estavam precisando de mais esse golpe.

Pois já havia, por exemplo, o sonho do Henrique.

O Henrique é o seguinte. Ele faz questão de parecer sempre muito à vontade em qualquer ambiente, mesmo quando está cercado por seres dos outros grupos. Mas ele tinha um sonho e esse sonho estava se repetindo com cada vez maior constância. Ele estava nu, tinha acontecido alguma coisa e essa coisa variava, mas o resultado é que ele estava nu, descalço, apenas com uma camisa não muito comprida que deixava aparecer a pontinha do, bem, vocês sabem do quê.

Ele tentava andar sem fazer barulho para não atrair a atenção dos outros nos corredores do Castelo. Ele andava e andava, tentando chegar a algum lugar que ele não sabia bem qual era, nu, puxando a camisa para baixo, sem adiantar, e o sonho sempre acabava quando em uma virada do corredor ele dava de cara com todo mundo.

Acordava suado, em pânico. Muito ruim.

Daí que suas risadas, que antes serviam para demonstrar o quão à vontade ele estava, soavam cada vez mais falsas ultimamente.

E enquanto tudo isso acontecia, havia o problema da Deusa Mor.

A Deusa Mor andava fazendo pressão para todo mundo frequentar uns cursos extras. Técnicas De Memorização, As Dez Melhores Carreiras, Os Prazeres De Uma Vida Produtiva Dentro De Uma Grande Corporação Estrangeira. E por aí.

E nós já vimos como é complicado esse negócio de dar ordem. A pessoa vicia mesmo. E ai de quem não obedece.

Com tudo isso, o tempo disponível para os N.Ó.S. ficarem na Biblioteca Velha com o Grupo Livros era cada vez menor.

E ainda quando conseguiam, ficavam jogados nos sofás e poltronas, sem ânimo para nada.

E, claro, o problema das meninas. Que não era bem um problema, quer dizer, era. Não era. Era.

Era um problema mais para as meninas do que para os N.Ó.S., eu acho. Porque é claro que todos eles queriam, evidente, mas era um querer assim meio teórico, meio vago.

Já as meninas, não. Queriam porque queriam. E aí pressionavam:

— Você vai fazer o quê, hoje à tarde?

Meu deus.

Quer dizer, tudo bem, oba, qual é o problema? Mas onde botar as mãos? Ficar roendo as unhas, que era a saída preferida de nove entre dez componentes do Grupo N.Ó.S., não se sustentaria por muito mais tempo. Botar as mãos no primeiro lugar que viesse à cabeça era confusão na certa, porque a mente, bem, deixa pra lá. Ficar segurando quilos de livros era uma idéia, mas cansava.

Enfim.

E ia chover e já devia ser tarde, nenhum deles sabia que horas eram, nenhum deles tinha aberto o livro de Física 2, ninguém tinha muita certeza se queria ser engenheiro ou dentista. E de repente isso tudo ficou muito claro e também ficou muito claro que havia alguém andando pelo corredor do lado de fora e que esse alguém não era eu, a suposta Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, porque eu já estava lá dentro.

(Lá dentro e gordinha, de óculos, mulher, e sem nenhuma Arma Secreta aparente.)

O Jonathas, de nervoso, rolou os dadinhos e, bem, deu 2 outra vez. Há uma coisa que eu ainda não contei: venho de uma família de loucos. Mesmo quando um estrangeiro chega à nossa geografia e acha que todos, os N.Ó.S., os E.L.E.S., os P.A.I.S. etc. são todos iguais, e loucos, mesmo nessa hora, quando eles vêem minha família, chegam à conclusão de que há loucos mais loucos do que os outros loucos. E mesmo dentro da minha família tem os loucos muito loucos, os loucos só um pouquinho e tem o tio Luís Maurício, que não é louco. Mas é tão chato que ninguém se dá com ele.

A situação estava muito ruim.

Qualquer um teria simplesmente ido embora. Afinal, eu estava lá por acaso.

Mas não fui. Talvez por causa dessa loucura familiar.

Ou pelo meu grau 20 de Teimosia.

Olhei para o David e disse, telepaticamente:

— Vamos fazer um plano.

 

Planos disponíveis

a) Plano de Batalha, dividido em 1) Momento Zero e 2) Tarde Demais;

b) Adiamento da Batalha, para consulta ao HD da Eterna Sabedoria;

c) Fuga Com Dignidade;

d) Fuga Sem Dignidade.

 

Fiz um rápido resumo na minha cabeça: meninas nem um pouco tímidas, o sonho do Henrique, as espinhas, os P.A.I.S. no coro lá na porta, a Turminha Legal com atributos físicos muito melhores, uma Deusa Mor viciada em ordens, uma pizza que não chegava, e uma enorme confusão de armas complicadas, outras dimensões e tramas complicadíssimas. E, claro, a Física 2, cujo livro estava ali, sem ninguém abrir, todos eles jogados nos sofás e poltronas.

Que situação.

E ia chover e eu estava sem guarda-chuva. E devia estar ficando tarde, era melhor eu dar um jeito de voltar. Via Barbudinho, vassoura ou a pé mesmo. Eu gosto de andar a pé.

Mas, sim. Bem, era melhor fazer alguma coisa.

Olhei para o David.

Ele então deu início a um Plano.

Pus uma batata frita mole na boca.

Porque além daquilo que eu falei antes, eu não ia conseguir perder os três quilos que eu estava precisando perder, então o melhor mesmo era comer logo o restinho de batata frita do saco em cima da mesa.

(Até eu, às vezes, desisto.)

— Vamos lá, pessoal, página 12 do livro.

Era o David me dando a senha para o início.

Não devia ter comido a batata. Foi com a boca cheia, portanto, que comecei.

— Tenho uma coisa para contar para vocês.

E contei.

 

Eu devia ter uns dezesseis anos e naquela época dezesseis anos, ou pelo menos os meus dezesseis anos, eram assim tipo, sei lá, uns onze de agora, nem sei comparar. Estou querendo dizer que eu era mesmo muito boba. Completamente boba. Famosamente boba.

Eu estava na casa desse meu namorado, que era o primeiro namorado que eu tinha. Eu nunca tinha nem flertado com nenhum menino antes. E esse menino era um pouco mais velho do que eu, e não é nem isso. Ele era muito mais esperto, mais vivido. Não estávamos sozinhos, era uma reunião. Ele costumava dar reuniões para seus amigos e tinha muitos amigos.

Eu não tinha.

Estávamos lá e minha roupa era uma blusa estampada de verde e branco que minha mãe tinha costurado para mim e não me lembro se estava de calça comprida ou saia, mas fosse lá o que fosse eu tenho certeza de que era alguma coisa completamente fora de moda, porque eu estava sempre completamente fora de moda. As pessoas, amigas desse meu namorado, algumas já trabalhavam e tinham aquela confiança de quem já tem um trabalho. E era trabalho assim bossudo, nada de ser caixa em banco ou algo assim sem charme, não. Eram estagiários em escritórios de arquitetura, redatores em revistas completamente desconhecidas mas sempre muito interessantes, essas coisas. Eu não tinha muito o que falar e ficava a maior parte do tempo calada.

Todo mundo, meu namorado inclusive, tinha certeza de que além de feinha eu era burra e, bem, em termos de sex appeal, não dava nem para competir com ninguém ali: um zero à esquerda.

E aí alguém começou a falar de um livro de poesias orientais que estava na moda naquele momento e eu já com o pescoço duro de não me mexer, resolvi assentir com a cabeça.

— Hã, hã.

As pessoas pararam, entre irônicas e admiradas.

— Não vai dizer que você conhece esse livro? – disseram eles.

Eu já estava perdida mesmo, perdida e meia. Então disse:

— Conheço sim.

— Aaahhh…

Risinhos incrédulos passaram pela sala.

A casa desse meu namorado era, assim como ele, também muito bossuda. Tinha uma parede estofada com um trabalho de panos formando figuras. Móveis antigos, objetos de arte e, em um armário que de tão velho já não tinha porta, os livros. O armário era de jacarandá maciço e o móvel, dizia meu namorado, um colonial legítimo. E dentro, os livros.

Eu tenho essa sorte. Eu sempre me dei bem com o Grupo Livros.

Eles estavam falando de uma das poesias em particular, do tal do livro que estava na moda. Tinham recitado de cor a poesia e eu, louca, suicida, continuava dizendo que sim, claro, conhecia bem a poesia inclusive…

Não sei o que me deu. Eu nunca tinha ouvido falar daquele livro antes, muito menos da poesia.

Acho que foi um pouco essa coisa de já que você está acabada, tanto faz.

Então falei. A voz bem alta, como se eu estivesse cheia de confiança.

— Conheço bem. É das minhas preferidas. Está na página 12.

Uma das amigas do meu namorado então se levantou, linda, mexeu os cabelos também lindos e foi até a estante sem conseguir disfarçar o riso. Pegou o livro e ainda olhou para mim uma última vez e eu pensei. Que se dane, todo mundo morre um dia.

E ela abriu o livro na página 12 e eu logo vi que havia alguma coisa de errado, porque ela fixou o olho na página e mordendo o lábio superior não encontrou mais nada para dizer além disto: que na edição que ela tinha em casa a poesia em questão estava em outra página.

Eu tinha falado 12 como poderia ter falado 8 ou 183 e ela sabia disso. Só não podia provar.

Ela voltou para o lugar quase chorando de ódio. Ela já tinha namorado meu namorado antes de mim.

Logo depois disso eu e meu namorado acabamos o namoro.

E eu acho, gente, que terminar esse namoro foi meu segundo lance de sorte.

 

Eu ri.

Eu tinha acabado de usar minha Arma Secreta.

Sim. Histórias podem ser Armas Secretas.

Mas os N.Ó.S. continuavam em silêncio. A Biblioteca estava um pouco mais escura. Estava ficando realmente tarde.

E então eu concluí. Para reforçar. Para ver se dava resultado.

— Sei lá. Às vezes as coisas também dão certo, gente.

Mas ninguém estava mais prestando atenção. Os passos que tínhamos todos escutado antes de eu começar e que fingimos não estar escutando continuavam e agora pararam. Em frente à porta.

A maçaneta girou.

Era um Invencível.

Foi o David que chamou. Telepaticamente. Tenho certeza. Era a segunda parte do Plano que ia começar.

 

David e os Invencíveis

 

Em um dia de outono, a Árvore Sem Fim estava perdendo algumas folhas, que caíam lentamente no chão onde o David estava.

Lá pelas tantas caiu algo, não em ziguezague, como se fosse folha, mas reto, e ainda fez um barulhinho.

Ploft.

David foi ver e era um filhote de passarinho.

Não foi só o David quem viu. Foram todos.

Inclusive o pessoal da Turminha Legal, que saiu berrando atrás do filhotinho, com aqueles chinelões de borracha e o mau jeito característico desse grupo.

David foi atrás e, vale fazer uma anotação, apesar de, como componente do Grupo N.Ó.S., ele ter uma pontuação bem baixa em Coragem, ele chegou mesmo a dar um empurrão em um dos Turminha Legal que estava quase conseguindo pegar o filhotinho de passarinho.

Que não voava, propriamente. Apenas uns voozinhos curtos e rasantes, alternados com uns pulinhos igualmente ineficientes.

Até que todos, perseguidores e perseguido, foram dar nos alojamentos dos Invencíveis.

Havia uma porta aberta.

A porta aberta dava para um local pequeno e escuro. Um banheiro.

O passarinho achou que era um lugar seguro e entrou.

E caiu. Dentro da privada.

Todos pararam. Só se escuta o chapinhar cada vez mais aflito do filhote dentro da água da privada.

O David dá mais um empurrão em um Turminha Legal  que bloqueava a porta, mergulha a mão na privada e salva o filhote. Nessa mesma hora chega um Invencível e acende a luz.

O banheiro estava limpíssimo. O Invencível diz:

— Deixa que eu seguro o bichinho enquanto você lava a mão na pia.

Que tinha sabonete e toalha também muito limpa.

Todos os outros se afastam. Nenhum deles conseguiria fazer isso, nenhum.

O Invencível continua:

— Leva a toalha para embrulhar o bichinho até ele secar, depois você me devolve.

David e o Invencível sorriram um para o outro.

E criaram um laço, desses que ficam.

Os Invencíveis são sujos.

Os Invencíveis são feios.

Os Invencíveis não fazem nada direito.

Três frases que o David passou a combater.

Há Invencíveis sujos e há Invencíveis limpos como em qualquer outro grupo.

Há Invencíveis bonitos e feios, como em qualquer grupo.

E há os que trabalham bem e os que não.

E os Invencíveis não deviam ser um grupo separado.

E foi isso que o David aprendeu.

Que os Invencíveis, gente, não deviam ser um grupo separado.

 

Eu tinha contado a história do livro de poesias da casa do meu namorado e conseguido uns pálidos sorrisos de aprovação. Como Arma Secreta, não foi exatamente um sucesso. Aqui e ali algum sinal de recuperação, o Felipe se abanando, o Fábio voltando a murmurar alguma coisa.

Não berrar, murmurar.

Não pizza, pizza, mas migalhinha, migalhinha.

Não era ótimo, mas já era um começo.

E agora o Invencível na porta pedia licença para entrar.

Ele falou que tinha um recado. Que alguém tinha ligado para saber dos N.Ó.S. e que ele tinha dito que estavam todos estudando na Biblioteca.

Falou também que tinha decidido que hoje era dia de limpar a porta do Castelo. E que ele ia jogar água com sabão na porta do Castelo. E que não ia poder ficar ninguém na porta do Castelo.

Todo mundo continuava com cara de zumbi.

Então ele especificou.

— Falei para os P.A.I.S. que eles tinham de sair de lá por causa da faxina. Os Turminha Legal também saíram.

Ele fazia a parte dele, tirando um pouco da pressão.

O Henrique, sempre pronto a confraternizar, conseguiu se mexer. Disse:

— Ah, que bom. Obrigado, hein.

Mas o resto continuava na maior apatia.

É assim mesmo. A Grande Batalha Contra O Desânimo Sideral é complicada mesmo.

Tentei um golpe sujo:

— Bem, vou aproveitar a interrupção aqui do Invencível e vou embora.

Todo mundo respondeu está bem. E quando eu já estava virada para a porta, uma voz acrescentou:

— Obrigado.

Eu podia pegar uma vassoura velha, até mesmo a que estava ali, perto do Invencível, e ir embora cuidar da vida. Com isso ainda escapava da chuva. Mas não.

Sentei em uma cadeira. Eu já disse, louca. Ou melhor. Teimosia 20.

O silêncio era terrível.

O livro de Física 2 estava lá, aberto na página 12, mas ninguém lia. Até o David, com quem eu contava nessas horas, estava com o olhar parado olhando o nada.

Aí tentei mexer a sobrancelha para cima e para baixo, olhando para o David, como quem diz: nós é que sabemos das coisas.

Ele continuou me olhando sem me ver.

Mexi a sobrancelha outra vez.

Ocorreu-me, nessa segunda vez, que eu estava mexendo a sobrancelha porque a sobrancelha era a única coisa que dava para ser mexida. Tentei, disfarçadamente, mexer um dedo da mão. Batata. Neca.

Era ele, O Inominável.

O Terrível Inimigo contra-atacava e agora estava quase me vencendo, a mim também.

Era o Demônio De Todos Os Tempos. O Maior De Todos.

O MASSACRANTE DESÂNIMO SIDERAL.

David me olhava como os outros, mas eu percebi que ele na verdade não me olhava. Olhava através de mim. Para algum ponto obscuro às minhas costas. Eu não precisava nem me virar para saber. Ele olhava para ele mesmo saindo pela porta. Seu corpo já havia sido tomado, os outros não tardariam.

Henrique tinha um resto de sorriso educado na cara, mas já dava para ver, pelo canto dos lábios, que se tratava de gesso: ao menor ventinho o sorriso quebraria.

Jonathas nem disfarçava, estatelado no chão e dizendo eu sabia, eu sabia.

Tentei lembrar de alguma piada. Às vezes piada resolve. Não consegui.

O Felipe, já com a voz fina de desespero, lembrou:

— Não há nada que um ctrl-alt-del  não resolva.

Isso me deu um clarão de esperança. Quem sabe um dos Barbudinhos, que resolvem coisas incríveis, não tinha uma idéia?!

Mas o Invencível tirou um papelzinho do bolso.

Ele tinha estado no subsolo antes de vir à Biblioteca. Havia quatro Barbudinhos lá, cada um, como de hábito, em frente a uma tela.

Mas eles estavam todos com a cara branca, parados, olhando uma mesma frase que aparecia em todas as telas.

O Invencível tentou falar com eles, mas eles não responderam. O Invencível tomou nota do que estava escrito na tela.

Era: backup not found: (a)bort. (r)etry, (p)anic.

— Talvez algum de vocês saiba o que quer dizer isso?

Ninguém respondeu.

A  primeira etapa da Grande Batalha tinha sido eu, contando a minha história. Vitória, embora minguada, dos N.Ó.S. A segunda etapa, promovida pelo David, tinha sido a vinda do Invencível. Vitória, um pouco maior dessa vez, também dos N.Ó.S.  A terceira etapa era uma revanche do Inimigo, e essa revanche leva os Barbudinhos e até mesmo a mim, quase, para as profundezas abissais do Desânimo.

Ou seja, basicamente um empate.

E agora o quê?

Batem na porta outra vez.

Os mais afoitos acharam que todos nós já tínhamos morrido sem nem notar e que era a Deusa Mor em pessoa, para nos comunicar as regras do paraíso.

 

A ação – parte 3

 

Era o final da Grande Batalha.

Não era hora de interromper.

Os poucos que ainda podiam ser considerados vivos – não dava para saber exatamente quantos, porque para isso eles teriam de fazer uma conta, o que estava fora de cogitação -, os poucos, então, que ainda estavam vivos, se empenhavam em uma luta de Vida Ou Morte.

Ninguém tinha possibilidade, ou vontade, de abrir a porta.

Absolutamente imóveis, olhando o ar, babando uns, nariz escorrendo os outros, vendo o pó dos livros da Biblioteca cair sobre suas cabeças.

Telepaticamente, ainda faziam um esforço.

— Um, dois, um, dois, esquerda, direita, e agooora, virar! Vinte vezes deste lado, vamos lá!

Mas só o pensamento ainda se movia, e mesmo assim pouco, como se vê. O resto já havia abdicado ao Grande Inimigo, à Palermice, à Pasmaceira, à Bestificação, também chamada de A Dama Gelada pelos antigos.

Bateram outra vez.

Veio uma vozinha:

— Com licença?

— …

— Daqui que pediram uma calabresa? É que não tinha ninguém lá na porta do Castelo..

Foi como se um raio tivesse caído em cima do Fábio, que todos já davam por morto.

Levantou-se num cotovelo.

— Sim! Sim!

Não é para ninguém achar que pizza calabresa é a única maneira de definir uma Grande Batalha Contra O Desânimo Sideral. É apenas uma das maneiras.

Há outra.

É usar, por assim dizer, as armas do inimigo.

É levar ao extremo a inércia, a pasmaceira.

Pode-se ficar sentado sem fazer absolutamente nada horas a fio.

Algumas correntes de estrategistas dizem que uma televisão ligada em qualquer coisa ajuda. Depois de horas exaustivas passadas dessa maneira, em geral a dormência nas pernas ou a baba ensopando a camisa ou, outras vezes, moscas, mostram ser Aliados Fiéis. A pessoa tenta enxugar a baba, espantar a mosca, mexer o pé e, assim, escapa.

O rapaz da pizza olhou em torno e pôs a pizza em cima de uma enciclopédia contendo tudo a respeito do mundo até 1956, a data da edição.

E aí disse:

— São vinte e uma pratas e vinte e cinco centavos com o refrigerante e o brinde.

O silêncio era devastador. Mesmo o Fábio, que tinha tido uma reação tão promissora, agora parecia ter problemas para se mexer.

O rapaz coçou a orelha. Olhou para o Invencível:

— É ruim, hein!

Quem estava mais perto dele era o Felipe. O rapaz meteu a mão no bolso do Felipe. Tirou cinco notas e um chiclete. Minha bolsa estava na cadeira.

— Mais três pratas – disse ele sacudindo no ar as notas, para que ninguém pusesse em dúvida sua honestidade.

Depois olhou para mim com cara feia. Eu era a única mulher, consequentemente, a única possibilidade de ser a dona da bolsa. O olhar dele queria dizer: Mas logo a senhora, com a aparência tão fina, só com três merrecas na bolsa?!

Se eu não estivesse no meio da Batalha Que Resolveria O Destino De Todos Nós E Do Resto Da Humanidade, eu teria respondido: Saí desprevenida, pensando que ia voltar logo.

Mas ele continuava a busca. Quando acabou, tinha vinte e um reais e vinte centavos. Parecia zangado. Não entendíamos por quê. Será que ele não sabia que Tudo Daria No Mesmo e que O Fim Estava Próximo?

Ele já ia saindo quando viu uma moedinha de dez no chão.

— Obrigado, viu, gente, pela gorjeta de cinco.

E foi nessa hora que ele também foi atingido. Olhou o dinheiro na mão, ainda tentou se apoiar no batente e desmoronou no chão, perto da porta mesmo.

Ainda murmurou no meio de um riso desconexo:

—  Cinco centavos!

E caiu em um choro convulsivo. Depois ficou imóvel, nariz escorrendo, olhos parados.

O Grande Inimigo, O Desânimo Total fazia mais uma vítima.

A Batalha estava duríssima.

Não nos restava mais nada.

Fizemos um esforço mental conjunto para ver se a chuva desabava logo.

Já houve casos em que um trovão, uma pancada grossa de chuva quebraram o ritmo de Batalhas dadas por perdidas. A Humanidade teve de correr para não se molhar, tirar a água dos olhos, dizer: poxa, baita chuva! E assim, com esses gestos aparentemente banais, conseguir afastar mais uma vez sua transformação em uma Raça de Zumbis.

Transformar a Humanidade em uma Raça de Zumbis é o Objetivo Final, como todos sabemos, do Grande Inimigo, da Coisa Ruim, do Poço Sem Fim, O Desânimo Total.

Mas nem isso aconteceu.

Não sei dizer quanto tempo durou.

Sei que quando olhei para minha mão, tinha um screen saver correndo pelas unhas.

E aí tudo mudou.

Foi a voz do Invencível, vindo de muito longe, dizendo:

— Bem, me passa aí a vassoura que eu vou começar a limpeza.

Coisas a fazer. Coisas que precisam ser feitas, todos os dias, coisas bobas, mas que precisam ser feitas. Foi isso. Eu acho.

A pizza estava dura, igualzinha a um mouse pad. O refrigerante estava choco e o brinde, um sorvete, era uma espuma malcheirosa em cima da enciclopédia que assim ficou mais abrangente. Se ela antes continha tudo sobre o mundo até a data de sua edição, 1956, agora passava a contar com elementos que hoje são usados na indústria de alimentos e que eram totalmente desconhecidos em 1956.

Ainda ficamos uns tempos sentados, na mesma posição, olhando em torno.

Aos poucos, muito aos poucos, fomos nos dando conta.

Mais uma vez tínhamos afastado – ao que parecia – o Perigo Hecatombístico Da Inércia Absoluta.

Fomos nos mexendo devagar.

Não é todo dia, não, estão pensando o quê?

Tem de ser aos poucos. Se não, pode até dar distensão muscular.

Primeiro um pé, depois um pescoço. Uma espreguiçada aqui.

O marco definitivo de que havíamos vencido veio do David, o primeiro a falar alguma coisa:

— Página 12 do livro de Física 2, gente.

Todo mundo abriu.

A Grande Batalha tinha chegado ao fim.

Peguei minha bolsa, disse ciao para o rapaz da pizza que, já de pé outra vez, saía resmungando:

— Cinco centavos. Da próxima vez não venho.

Disse ciao também para os meninos. Estava começando a chover, era melhor me apressar. E, com chuva ou sem chuva, eu ainda precisava ver o que ia fazer para o jantar.

Quando passei pelo pátio, eu estava lá, menininha, me esperando. Entrei em mim. Ainda, só assim, de brincadeira, subi no muro e pulei mais uma vez, fazendo uma estátua belíssima que ninguém viu. Mas rimos, eu e eu. E saímos contentes, pulando as poças d’água.

Cantarolei uma canção antiga.

Ou será que não era antiga?

 

Há muitas coisas que podem provocar o Inimigo. Mas uma delas é jogar joguinhos onde tudo acontece, armas a laser, portais do tempo, inimigos siderais e grandes batalhas. Os joguinhos parecem ser tão, mas tão mais interessantes que o Grande Jogo, A Vida, que uma vez acabados a pessoa pode, sim, ficar estirada em um sofá, em uma poltrona, sem se mexer. Então, é este o convite.

Vamos jogar um jogo agora, todos nós. Neste exato momento, eu quero dizer. Há algo importante a ser dito. Há sempre algo importante a ser dito, e neste caso é que somos nós os participantes e os inventores do jogo.

É o mais importante, é sobre isto o resto todo: somos nós. E é agora.

Fim

 

Bibliografia

Este jogo pôde ser feito porque eu:

– li todos os jornais; li todas as revistas; li todos os livros que me caíram nas mãos, que não me caíram nas mãos mas eu fui buscar, que me interessaram, que não me interessaram, mas que eu li assim mesmo;

– sei que os limites somos nós que fazemos. Então é o seguinte: quem está fora da Biblioteca, que trate de entrar. Mas quem está dentro há muito tempo, saia, vá para a vida.

 

Última Notinha Muitíssimo Importante

Acho que aqui, antes de acabar, é o momento de voltarmos à questão dos limites e à questão da linguagem, o que é De Fora e o que é De Dentro. Os limites do mapa, feitos a lápis (é o que aconselho, temos de apagá-los tantas vezes que se forem feitos a caneta, ou a ferro e fogo, o resultado seria uma confusão), os limites, aqueles feitos a lápis, não são os principais limites.

Os principais limites são invisíveis, impalpáveis, nos enganam.

Queria falar da linguagem. É preciso prestar atenção na linguagem. Os limites da linguagem são dos mais frágeis que há. E ela pode ser o primeiro campo de batalha a dar a vitória a um outro tipo de inimigo.

Prestem atenção. O jogo já começou. Prestem sempre muita atenção.

 

 

O triste fim de Asdrúbal, o Terrível, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS : O triste fim de Asdrúbal, o Terrível (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infaasdrubal04

 

 

 

dedicatória: para o Aníbal

 

 

O título, o subtítulo, a página em branco e a dedicatória do livro

Para o Aníbal, com a saudade do Asdrúbal

Não.
Aníbal, uma lembrança do nosso encontro, Asdrúbal

Também não.

Ao Aníbal, uma modesta contribuição para sua biblioteca, do amigo Asdrúbal
É. É isso.

Asdrúbal ficou um tempo olhando o ar. Ele fazia assim toda vez que conseguia dar uma adiantada no seu livro de memórias. Seu livro se chamava ‘Minha lufa-lufa’.

Asdrúbal já tinha escrito o título, a página em branco do começo e agora estava nas dedicatórias. Já tinha três prontas: para o Durango Kid, para o Superqualquercoisainterespacial e agora essa aí, para o Assurbanipal, a quem Asdrúbal chamava carinhosamente de Aníbal, mesmo porquê, escrever Assurbanipal assim inteiro, sem errar, não é mole.

Um livro. Eis um inimigo que Asdrúbal nunca tinha enfrentado antes. Mas é que um dia Asdrúbal tinha escutado não-sei-quem dizer não-sei-pra-quem:

— Puxa! A sua vida daria um livro!

Asdrúbal morreu de inveja. Vai daí que ele resolveu fazer duas coisas: primeiro, fazer com que sua vida também desse um livro; segundo, escrever o tal do livro.
A primeira parte tinha sido mole. Foi só sair por aí falando grosso e matando umas borboletas furrecas. A segunda parte já não era assim tão fácil. Há três meses que Asdrúbal não saía das dedicatórias, apesar de toda ajuda prestada pela sua barata de estimação nas curvas e minúcias das maiúsculas.

Asdrúbal achava que ser um monstro era uma coisa incrivelmente importante. Nem todos concordavam com ele e esse era mais um motivo para escrever o livro:
— Vou provar a esses moleirões. Vou provar quem foi o batuta da história.

Asdrúbal achava que ele tinha sido muito, muito importante e inteligente e muito, muito mais esperto do que todo mundo. Quando reclamavam das borboletas mortas, dos bichos apavorados na finada Floresta DumDum, Asdrúbal perdia o olhar, não no horizonte que esse sumira de há muito, mas no edifício mais próximo. Ele não se lembrava direito de quantas borboletas ele tinha encontrado na vida. Sim, claro, ele poderia ter pisado sem querer em uma ou noutra (são sempre tão frágeis e bobocas essas borboletas), mas tinha muito exagero aí na boca do povo.
Asdrúbal iria provar seu ponto de vista aos outros, nem que fosse enfiando-lhes goela abaixo os pês, os quês e os ipsilones do seu livro que ele já via pronto, lindo, em cinco volumes, ilustrado e com o subtítulo: Mais uma obra-prima da literatura universal, lançamento da editora tal.

Mas tinha uns outros motivos menorezinhos para Asdrúbal escrever o livro. Por exemplo, a faxineira.

Duas vezes por semana dona Isaura aparecia na casa do Asdrúbal para fazer a limpeza. Asdrúbal, aposentado, ficava meio sem graça de ficar sentado sem fazer nada com a mulher espiando-o com o rabo do olho. Um lápis e um papel na mão, uns óculos na ponta do nariz e, de vez em quando, quando dona Isaura estivesse espanando por perto, uma palavra bem difícil soletrada com ar pensativo:

— Paralelepípedo…. Hum, ham. Ô dona Isaura, faz favor de não me interromper aqui no trabalho. Ah, e telefonema, só atendo se for  muito urgente.

Pronto. A ordem, o respeito e, por que não dizer, o progresso voltavam ao mundo.
É claro que o telefone não tocava. E é claro também que nem dessa feita tinha seu nome no jornal. Antes era comum a manchete principal ser: Asdrúbal vai amanhã para Tribobó; Asdrúbal voltou de Tribobó; Asdrúbal pegou um resfriado; Asdrúbal sarou do resfriado; Pique um dois três, declarou Asdrúbal na Câmara.

Hoje não, mas quem já teve seu nome aparecido uma vez em jornal sabe disso. Vicia, não se consegue esquecer nunca mais. Passa-se o resto da vida procurando o próprio nome no jornal. Até nos anúncios. Até nos avisos fúnebres:

— Vai ver que eu morri.

Mas qual, nem mesmo esse programa aí, tipo cemitério, acontecia na vida de Asdrúbal.
O livro emperrado, o telefone mudo, o jornal lido, o carteiro doente, só podia estar doente, e dona Isaura olhando tudo, ai meu deus.

Asdrúbal foi até a janela, mas para isso teve que pedir licença à sua barata de estimação que estava por lá, regando as samambaias. As samambaias tinham começado em um vasinho pequeno, inofensivo. Depois outro e mais outro.
— Ecologia, entende? Verde que te quero verde.

Asdrúbal era amarelo e aquilo soava à agressão. Ele via a sala diminuir dia a dia com samambaias de todos os tipos: renda rasgada, xixi, cabelinho português e até mesmo a raríssima samambaia 87 cms.
Asdrúbal cortou um pedacinho com a mão (85 cms, para arredondar) e antes que a barata dissesse alguma coisa, largou:

— Vou sair.

— Onde você vai?

— Não é da sua conta, ora! Mulher mais enxerida!

Asdrúbal foi andando, o que não era muito simples. Primeiro ele tinha que ajeitar as pernas para não andar com as pernas duras, sem dobrar o joelho, o que chamava a atenção dos outros. Depois Asdrúbal tinha que reparar como os outros faziam com as mãos e imitar. Depois era a vez da cara. Asdrúbal se lembrou da cara confie-em-mim da televisão, do sorriso qualidade-global da televisão, do ar tudo-vai-correr-bem do noticiário da televisão, mas resolveu ser ainda mais ambicioso: escolheu o olhar não-tenho-a menor-ideia-de-quem-está-por-trás-desta-roubalheira da televisão. Não ficou perfeito, perfeito, mas dava.

Pronto. Asdrúbal estava preparado para iniciar seu passeio na rua. Um nadinha a mais e ele iria ficar igual a qualquer outra pessoa, mas foi aí que ele se deparou com um poste recém-pintado de verde escuro.

— Bom dia, general!

Foi o quanto bastou para tudo, pernas, mãos e televisão, voltar ao que era antes no quartel de abrantes.

Asdrúbal desistiu do passeio.

— Como será que os rapazes estão fazendo?

Os rapazes eram os outros monstros, colegas do Asdrúbal. Eles se reuniam todas as sextas-feiras 13 para balançar a cabeça e dizer como tudo estava tão ruim que só ia mesmo piorar e como só eles saberiam resolver todos os problemas. Para cúmulo do azar já fazia um tempão que não caía nenhum dia 13 em sexta-feira.

Era por isso que o mundo estava na maior meleca.

Os rapazes discutiam também seus problemas pessoais: como fingir que não eram nem nunca tinham sido monstros e como lidar com as baratas de estimação. Todos eles as tinham, todas elas usavam sutiã 48.

 

Mudança de autor

Não sei dizer como foi que Asdrúbal virou Vasconcelos. Foi virando. Talvez o que primeiro mudou foi o ombro – mais caído. Ou quem sabe foi o jeito de falar – mais arrastado. O caso é que Asdrúbal virou Vasconcelos.

Não sei também se isso teve alguma coisa a ver com o livro. Talvez, pois um vasconcelos entra até na Academia, asdrúbals já fica um pouco mais chato.
O novo Vasconcelos era igual aos outros. Meio barrigudo, meio barbado e meio careca. De manhã, ele punha um calção, ia comprar pão com a cara ainda vermelha da água – sem sabão, que é para ninguém dizer que eu estou fazendo versos com a vida alheia.
Vasconcelos tinha lá as manias dele. Gostava de futebol, era Vasco – o que me faz pensar o que veio primeiro, se o nome Vasconcelos, se a paixão (moderada) pelo Vasco.
Quem gostou da transformação foi a barata. Passava o dia gritando:

— Ô Vasconcelos! Olha aí a porta batendo! –  e baixinho – que esse homem não presta para nada…

— Ô Vasconcelos! Olha aí a campainha, homem! – e baixinho –  parece que é surdo…
— Ô Vasconcelos…

Do passado asdrubaliano nem um pio. Até parecia trato: nem ele falava de suas vitórias e guerras, nem ela falava do ex-noivo milionário e dos seus sucessos nos palcos portenhos (tinha sido cantora em Buenos Aires, parece).

Mas se ela cantarolava às vezes velhas canções só para deixar ele de mau humor, ele também, todos os dias, se trancava no banheiro e, com um urro forte, virava Asdrúbal outra vez no espelho da pia.

— Ô Vasconcelos! Que barulho! Olha os vizinhos pela-mor-de-deus!

Asdrúbal passou a fazer esse exercício só aos domingos.

Asdrúbal tentou também, no começo, dar o urro e virar ele mesmo dentro de sua roupa de gala (a gala sendo um lindíssimo rabo dourado com estrelinhas fumê que, infelizmente, nunca resistiam ao impacto).

— E você acha que eu vou passar minha vida costurando essas coisinhas aí para você?!
Asdrúbal passou a virar ele mesmo pelado mesmo.

E com isso, tudo parecia arranjado. Asdrúbal, quero dizer, Vasconcelos, não tinha mais que se preocupar se estava chamando a atençao, se tinha gente cochichando. Como Vasconcelos, ele podia se dar ao luxo até de andar de ônibus sem despertar nenhuma suspeita. O fato de Vasconcelos passar muito tempo no banheiro não causava espécie: tem muita gente que tem essa mania.

— Ah! eu fico lá dentro muito tempo porque eu gosto de ler o jornal (e de tirar meleca do nariz…).
— Ah! eu gosto de fazer minha ioga no sossego, antes do banho (e de ficar sem fazer nada sem ninguém para me chatear também…).

— Ah! eu estava com uma dor de barriga (e com uma vontade danada de ver como é que meu peru fica quando eu fico de cabeça para baixo…).

— Ah! é que eu fiquei lendo uma revistinha (e ensaiando cara bonita no espelho…).
Pois Asdrúbal estava virando ele mesmo no espelho do banheiro e ele podia dizer qualquer coisa como desculpa que ninguém ia mesmo estranhar nada. Quem é que não usa uma desculpinha de vez em quando?

Além da mania de demorar no banheiro, tinha outras coisinhas que poderiam denunciar que atrás daquele Vasconcelos se escondia um horroroso Asdrúbal. Mas tal qual a demora no banheiro, eram coisinhas assim pequenas, que ninguém estava muito atento para reparar. As ordens, por exemplo. Vasconcelos era um cara que gostava de dar ordens.

— Ô Vasconc..

— Fale. Ordeno-te que fale!

— Hum, me passa a batata, por favor.

Ou no fim da tarde, quando Vasconcelos ia até a janela lutar contra as samambaias em busca de um arzinho:

— Sol! Você tem exatamente aí umas … umas … que horas são, benhê?

— Cinco e meia.

— Exatamente umas duas horas para sumir da minha frente, ouviu?
Vasconcelos sorria satisfeito. Suas ordens seriam obedecidas. Como antes.
Pois é. Tirando uma ou outra coisinha como essa, Asdrúbal tinha virado um Vasconcelos perfeito, e se não fossem os urros ocasionais no espelho do banheiro, ninguém – nem mesmo ele mesmo – nunca mais se lembraria que algum dia tinha existido alguém chamado Asdrúbal.

Vasconcelos e Cucaracha (não é que a barata tenha mudado de nome, não. Ela nunca tinha tido um e Vasconcelos passou, com o tempo, a chamá-la de Morocha, Cuchinha ou Cucarachinha) às vezes até faziam visitas.

— O senhor aceita mais um uisquinho, seu Asdrúbal?

— Não, obrigada, o general já tomou o suficiente.

E Vasconcelos sorria amarelo, agradecia com a cabeça, pedia licença e ia ao banheiro.

Sorrir amarelo sempre dava vontade ao Vasconcelos de ver amarelos fortes, totais, asdrubalianos. No banheiro, pelado, Vasconcelos dava um urro, crescia, gargalhava. Na sala, Cucaracha se desculpava.
— Não é nada, não. Problemas seríssimos de estômago, coitado. Ele passa os dias inteiros escrevendo, curvado lá na mesa dele, isso afeta a digestão.

As pessoas concordavam com a cabeça e a vida ia continuando.

 

 

O prefácio e o último capítulo do livro

Asdrúbal escreveu o prefácio do seu livro de memórias em alemão, língua muito difícil para as pessoas normais, mas facílima para monstros. Depois, empacou outra vez. Foi aí então que ele teve a ideia de ir botando palavras soltas dentro das páginas. Quem sabe se elas, à noite, não acabavam se embaralhando e virando frases? Frases completas, com predicado e tudo: vovô viu a uva. Ou melhor ainda, em um estilo menos coloquial, mais seco, direto, jornalístico: Ivo viu a uva.

A primeira palavra que entrou dentro do livro foi inspeção que é a palavra mais difícil que existe para jogo de forca. Não tem nenhuma letra repetida e aquelas três consoantes juntas não tem quem mate, para não falar no c cedilha.

Depois veio aliás, palavra lindíssima; bule, porque era esquisita, ovo e osso porque dava para se ler de trás para diante, tolocototinham porque era mágica, gostosura era de estimação, dadim, putuca e dedéu tinham sido, há muito tempo, amigos inventados, mas cazuza, fofura e tontura soavam tão bem que dava até para esquecer piolho tomate amargo. Formosura era chique, gatinho piou no telhado. Telha molhada, xixi na calça. E mais peteca com suas pernas abertas e mais bolota com seus braços para cima.

Depois:

Aaron, artur abiu

bubudo barco babalho.

Cauzinho, cauzinho,

dorisdou dazinzo.

Ernesto entero terou

fudega finzo abobou, oh! que piom!

E o que vem mesmo depois do f?

Vista cansada, cabeça girando, lápis sem ponta, Vasconcelos soluçando com vide verso paropra descansar. Dolores de mis penas. Ué. Vasconcelos ficou na dúvida: palavras suas ou de asdrúbal, essa palavra roubada sabe-se lá de onde?

Vasconcelos parou.
Depois foi ao banheiro, banheira. Bidê. Biribinha no bidê logo mais à noite ia ser uma boa, mas Asdrúbal não apareceu no espelho da pia para receber o convite.

Um copo d’água para refrescar e quinto capítulo.

Uma coisa bem forte para o quinto capítulo.

Independência ou norte!  – gritou o espadachim ao descobrir uma importante fórmula matemática. Não, não. Foi Eureka o que o espadachim gritou ao descobrir uma importante fórmula matemática.

Não foi espadachim. Foi Newton. Newton Gonçalves, o famoso compositor.

Shakespeare? D’Artagnant!! Ah, me lembrei: foi d. João VI, o Louco, aquele dos portos. Portos. Isso mesmo!!! Porthos!! Porthos, Athos e Aramis!!! Os três mosqueteiros que eram quatro.

Espadachim, diminutivo de espadacho. Cabeçorra, bocarra, pratarraz, casinhola e elefoa, feminino de elefante. Ah, ah, quem é o burro??? Aipim, diminutivo de aipo. Canhoto, canho, canhão. Constelação, coletivo de avião e dragão, aumentativo de… Vasconcelos se lembrou de repente que não era d. João VI que era louco, era a mulher dele, a rainha dona Maricota, a Louca. E Vasconcelos achou que, realmente, por falar nisso, era melhor descansar senão ia acabar tendo um troço, mas antes ainda rabiscou uma ‘atenção, atacar na tapioca’ lá pelo sétimo capítulo, só para não esquecer. Vascondelos deu um sorrizinho.

Vasconcelos deu um sorrizinho quando percebeu que a tapioca, bem devagarinho, ia se transformando em baitola aí na margem, achando que estava escondida só porque na sua frente tinha um carnegão. Um berro, dois tapas, tapioca voltou para seu lugar.
As palavras lhe obedeciam. Vasconcelos ficou tão contente que cauda houvera, abanenta estaria.

(Puxa, como obedeciam!!)

Mas os tapas e o berro, dado meio baixo que Cuchinha já estava dormindo, fizeram voltar a vontade de ir ver o Asdrúbal. Asdrúbal andava tão sumido. Mesmo no livro era uma palavra rara. E, depois de uma sugestão da barata, era agora apenas um sujeitinho de terceira pessoa.

— Ex-eu é quase ele. – dissera ela. Escreve as memórias na terceira pessoa, fica melhor.
Talvez fosse mesmo melhor assim, pensou Vasconcelos, enxugando o suor do rosto. Asdrúbal era uma vez.

E assim podia acabar a história.
Não seria a primeira vez que ex-monstros acabam de fininho atrás de sorrizinhos amarelos com cheirinho de hortelã.

Mas esse monstro aí é meu – e choveu.

Chuva da grossa, com relâmpago e trovoada. E cada trovoada horrorosa no céu dava um tremelique trembembé dentro do peito do Vasconcelos. Um relâmpago riscava o céu e dentro do Vasconcelos um risco amarelo reaparecia. Tempestade alta e Vasconcelos sentindo um trovão dentro dele. Asdrúbal sempre tinha gostado de tempestades.
— Asdrúbal não morreu, está aqui dentro. Trum! Bum! Bum! Eu sou o Asdrúbal! Avante tambores, para frente, capitulões!!

E qual um louco já abri, abriste, isto é, abriu a porta para lavar as vasconcelices com grossas gostosas gotas de chuva. Mas no pé ainda um chinelo de dedo. Boa marca, a legítima, feita para vasconcelos de fino trato. O pé de Asdrúbal tropeçou, torceu, sei lá, na borracha passo a passo. Tropeçou e caiu.

Dentro do livro.

Um acento agudo fez corte grave no seu coração. Uma circunflexão mal feita acentuou o trêfego relâmpago transatlântico enquanto sua única metáfora fazia caretas de verdadeira metástase, Asdrúbal gritou por socorro:

— Help!

Mas foi só abrir a boca que se lhe entraram pitágoras ponteagudas dentes adentro. Vasconcéus. Trovões e enxurradas lhe sufocavam com palavras polissilabíssimas. E, de repente, no meio do aguaceiro, se balançando qual barquinho de papel, veio vindo uma frase, a primeira completa, com sentido, linda, a primeira frase completa do livro – e a frase dizia assim:

Queira se dirigir ao guichê ao lado

Um relâmpago afundou-os, ambos – monstro e frase.

 

 

O post-scriptum do livro

Quando a barata acordou pela manhã, procurou pelo Vasconcelos e pensou:

“Ai, como é duro ter um ex-monstro como bicho de estimação!”

Botou anúncio no jornal, perguntou para todo mundo, depois de um mês resolveu dar uma arrumada nas coisas dele e então viu aquela mancha de uma amarelo aguado no último capítulo do livro. Tinha ficado tão bem.

Ela hesitou em botar a palavra “fim”, mas quando o editor começou a insistir e a dizer quanto dinheiro ela poderia ganhar com as memórias de Asdrúbal, o Terrível, ela se resolveu.

 

Asdrúbal no museu, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Asdrúbal no museu (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infaasdrubal03

 

 

Primeiro Capítulo

Dia chato. Ô diazinho chato, sô!

Asdrúbal bocejava: nada mais chato para um dia chato do que ficar onde ele estava.

Ele estava em um museu.

Não como visitante, como eu ou você estaríamos se fôssemos a um museu; ele estava no museu como uma Peça Rara. Peça Rara é assim: em uma prateleira, entre outras Peças Raras. As outras Peças Raras deste museu eram o Gato de porcelana chinesa, o Tratado de 1823, as Dez Capitanias Hereditárias, as Preposições e várias outras. As Preposições, por exemplo, ficavam arrumadas, como convém, em ordem alfabética. Embaixo da prateleira onde Asdrúbal estava, havia uma plaquinha: Asdrúbal, o monstro amarelo.

Uma das maiores raivas de Asdrúbal era essa placa, assim simplesinha, só dizendo o que dizia sem mais nada. Sem dizer seu nome completo que era Asdrúbal, o Terrível. Sem dizer seu orgulho: Monstro perigoso em extinção, encontradiço outrora na Floresta DumDum. Sem dizer: Inimigo de borboletas, gatos, corujas, tartarugas, cachorros, sapos, caramujos, periquitos, valsas, sonhos de valsa e piqueniques em geral. Sem nem mesmo dizer, ao menos, quantas pernas ele tinha e como o feitio de sua sobrancelha era insinuante e charmoso. Nada, nada. A plaquinha não dizia nada. E, no entanto, Asdrúbal continuava o mesmo que, nos bons tempos, fazia o terror da Floresta DumDum com suas aparições assustadoras.

Asdrúbal continuava tão amarelo quanto antes, se bem que, com a péssima iluminação do museu, às vezes ele ficava com uma cor meio assim, mais para pastel. Mas por dentro ele era o mesmo que tinha acabado com a última Borboleta Azul Real Gigante do planeta (isso lá pelos idos não sei quantos). O mesmo, mesminho, se bem que estivesse agora em um museu, com esse verniz de coisa importante nos cabelos e esse frio de coisa acabada dando dormência na ponta dos dedos.

Era Asdrúbal, transformado em Peça Rara.

Vamos ver como isso foi possível.

O emprego no Museu DumDum ia das oito da manhã às seis da tarde, quando então Asdrúbal dava uma espreguiçada e continuava no mesmo lugar porque, nem todos sabem disso, o que hoje é museu, antigamente era a toca do Asdrúbal. A toca de Asdrúbal, durante uma de suas viagens à Argentina, tinha sido transformada em museu por seus inimigos. Quando Asdrúbal chegou e viu que tinha passado a morar em um museu, resolveu tirar partido da situação e arranjou esse emprego de Peça Rara.
Bom, então, como dizíamos, era das oito às seis. Das oito às seis Asdrúbal deveria fazer cara de monstro e barulhos assustadores toda vez que entrasse um visitante. Não era um emprego difícil e o guarda do museu, por uns tempos, andou muito satisfeito com a nova aquisição do acervo. Depois é que a coisa desandou. Asdrúbal começou a fazer cara de monstro e barulhos assustadores mesmo quando não tinha nenhum visitante por perto. Isso era muito ruim, embora tanto a cara quanto os barulhos fossem o que há de mais perfeito no ramo. Mas é que a cara e os barulhos de Asdrúbal assustavam as outras Peças Raras do museu: o Gato de porcelana chinesa, de tanto escutar berro fora de hora, estava ficando todo rachadinho; as Capitanias Hereditárias não gostavam das caretas e ficavam tentando se esconder atrás das Frações Decimais. As Preposições, coitadas, volta e meia saíam correndo de lá para cá, que nem doidas. Consequência: barulhos assustadores e cara de monstro só quando tivesse visitante na sala. Se não houvesse ninguém, era tratar de ensaiar um sorrisinho do tipo meigo ou então cantar baixinho uma dessas músicas assim bem bobas, de namorado. Essa era a ordem! E ordem superior!

Asdrúbal só podia obedecer.

Como se isso não bastasse. Como se fosse pouco, mixaria, café pequeno. Como se sorriso e musiquinha fossem sopa no mel, como se, Asdrúbal, ainda por cima, em sei lá quanto tempo de emprego, não tinha visto uma, uminha, nunca, jamais, nem sombra de borboleta! Nada, nadinha, nem mariposa chulé aparecia por lá. Até mesmo mosca era raro! Convenhamos: para o célebre Matador de Borboletas Azuis Reais Gigantes, isso era o cúmulo!

Asdrúbal não aguentava mais.

E, nesse dia, nesse, que era um dia chato, para cúmulo dos cúmulos, Asdrúbal notou uma pontinha verde de bolor no dedo mindinho da sua terceira perna, à esquerda de quem vem, contando de lá para cá. O que antes era amarelo ouro, puro, da gema, agora tinha um pontinho verde de bolor. Asdrúbal pigarreou, penteou a sobrancelha com cuspe e cochichou para sua barata de estimação: “presta atençao que lá vai…”

O que vinha ou o que não vinha nem a barata nem nós nunca ficamos sabendo: aconteceu um inesperado

 

 

O inesperado

– Aiiiii!

(Silêncio)

— Urrrr!
(Silêncio)
— Ahhh!

(Silêncio)

Esse foi o inesperado que, trocado em miúdos, deu-se assim: Asdrúbal, de repente, olha para a janela e vê o que? Uma Borboleta Azul Real Gigante!!! Quer dizer, não era na verdade uma Borboleta Azul Real Gigante!!!, era simplesmente uma pipa de papel de seda azul que Asdrúbal confundiu com sua arqui-inimiga. Confundiu e engoliu, já sentindo gosto de Floresta DumDum nos dentes e cheiro de bons tempos aqueles.

Engoliu. Engoliu e o dono da pipa, o Raimundinho, lá do lado de fora – que Raimundinho nunca foi muito de botar o pé em museu -, botou foi a boca no mundo.

— Aiiii! Minha pipa campeã!!

Pipa campeã engolida por Asdrúbal que junto também engoliu um metro e vinte de vareta e cinco de linha. Linha com pó de vidro, é claro, que Raimundinho era terrível. Linha com pó de vidro só podia dar ‘urrr!’, é claro. E é claro também que, com tamanha barulhada na sala das Peças Raras, o guarda veio correndo a tempo de escutar o ‘urrrr!’  bem no ouvido e fazer um ‘ahhhh!’, esse de susto, que não é qualquer guardinha de museu que aguenta um ‘urrr!’ asdrubaliano nos ouvidos sem morrer de medo, não.

Quer dizer, morrer não morreu, mas dizem que foi daí que começou a doença nervosa dele, que acabou levando-o ao hospital.

Mas isso é papo para depois. Vamos por partes.

Quando passaram o ‘aiii’ do Raimundinho, o ‘urrr’ do Asdrúbal e o ‘ahhhh’ do guarda, Raimundinho teve a ideia de ficar freguês. Freguês do guarda que teve que pagar do bolso dele uma pipa nova para o menino, pois Raimundinho não parava de chorar nem por nada.

— Nunca, ouviu, nunca que eu vou parar de chorar! Buááá … minha pipa!

E era aquela água inundando tudo, fazendo poça bem na passagem, já entrando sala de Peças Raras adentro e era também aquele barulho infernal de pulmão de 12 anos a todo vapor.

— Toma! Toma! Estão aqui dez pratas, vai comprar uma pipa nova, mas some!

— Obrigadinho, meu chapa!

“Esse Asdrúbal me paga”, pensou o guarda.

“Esse guarda é um panaca”, pensou Asdrúbal que, já refeito do seu próprio urro, acompanhava a cena com cara de quem estava achando tudo péssimo.

“Isso é dinheiro paca”, pensou Raimundinho, que aí então achou de ficar freguês.
O plano de Raimundinho era simples: toda a semana, variando o dia (ora uma quinta, ora uma terça), Raimundinho iria passear com uma pipa azul lá por perto do museu. Asdrúbal comeria a pipa pensando que era borboleta. Raimundinho botava o pulmão para funcionar. O guarda soltava mais dez pratas.

Plano ótimo. A pipa era fácil, Raimundinho fazia três por dia para vender para os garotos ricos da redondeza. O choro é que não tinha problema mesmo, Raimundinho se garantia. As dez pratas não eram tão certas, podiam virar cinco, dependendo do salário do guarda, mas haveria que se tentar. Mas… e se Asdrúbal, enjoado de papel de seda, se recusasse a comer as pipas? Asdrúbal não tinha feito uma cara muito boa ao engolir a pipa campeã! A pipa, com gosto ruim, era um ponto falho no plano perfeito de Raimundinho.

Raimundinho pensava de lá em como tornar as pipas irresistíveis para Asdrúbal e o próprio, do lado de cá, tentava pensar alguma coisa, qualquer coisa. Não conseguindo, voltou a falar com sua barata de estimação:

— Onde é que a gente estava mesmo? Ah, sim, pois é! Não pense você que eu não sabia que era uma pipa. Sabia. Comi só de tédio, assim, para passar o tempo… Sabia, sim senhora! Então eu, Asdrúbal, vou me enganar com uma brincadeira de criança?!
Asdrúbal inventava respostas e poréns. O problema de falar com a barata é que há dois anos ela não respondia mais. Asdrúbal sabia que ela estava lá, no cantinho, porque se ela tivesse saído ele teria visto, mas, às vezes, Asdrúbal ficava pensando se ela não tinha morrido.

Asdrúbal sacudiu a cabeça com força para espantar a ideia ruim. Afinal, monstro ou não monstro, Asdrúbal detestava pensar que estava sozinho no meio daquelas Peças Raras chatíssimas, que sua amiga e companheira de tantos anos tinha morrido.
Asdrúbal, nos tempos da Floresta DumDum, chamava a barata de “aquela cascuda do contra”. Já a barata costumava chamar Asdrúbal de “hepatite ambulante”. E era desses belos diálogos que Asdrúbal sentia falta.

Em vez do saudoso “hepatite ambulante”, o que Asdrúbal escutou naquela hora foi um “ô pudim! tu prefere papel de seda sabor cola polar ou sabor seiva de alfazema?”.
Asdrúbal, ainda com pipa, vareta e pó de vidro no estômago, e na cabeça uma certa tristeza por causa da barata, pensou que estava ouvindo coisas, que estava passando mal.

Depois pensou que talvez fosse a barata que afinal voltava a falar! É isso mesmo!  Só podia ser a barata! Pois se não tinha ninguém por perto e as outras Peças Raras eram mudas, era ela!
– Ô cascuda!!! Você está aí?!

— Cascuda é a vovozinha! Se você não gosta do perfume de alfazema da minha irmã e da cola polar da minha mãe, então vai dizendo aí do que você gosta!

Irmã? Mãe?! Não, não. Não era a cascuda. E depois, Asdrúbal se lembrou de repente: sua barata de estimação era argentina e só falava castelhano. Não, não, não era ela.
Mas então quem era?

Asdrúbal estava tentando descobrir o dono da voz quando…

— Ouvi uns barulhos… o que está havendo nesta sala? – Berrou o guarda que, ainda nervoso, vinha de minuto em minuto na sala das Peças Raras.

– Seu Asdrúbal, faça o favor! Olha a compostura durante o expediente!

O guarda ainda deu mais umas voltinhas e acabou saindo.

Saiu e a voz voltou:

— Ô pudim! Colabora…

 

O guarda tem um suspeito

No dia seguinte não aconteceu nada. E Asdrúbal ficou pensando o dia inteiro de quem era aquela voz que o tinha chamado de pudim, ofensa que, no primeiro instante, ele nem tinha percebido.

“Pois vai ver só quem é pudim!”

Acontece que, para Asdrúbal pensar, tinha que ficar quieto, bem quieto, lutando com todas as suas forças para extrair o pensamento. E o guarda, ouvindo aquele silêncio, sem saber de nada achou que sabia de tudo.

— Já sei. Essa mesmice, essa quietice, isso é truque! Asdrúbal acha que é esperto, só que a mim não engana. A mim, não.

E o guarda ficava lá na portaria descobrindo o que não havia. De vez em quando dava um salto e saía em desabalada carreira para a Sala das Peças Raras. Chegava lá ofegante e remexia em tudo.

— O que você estava fazendo, hein? O que você estava fazendo que estava tudo tão quieto? Hein?

Sem interrupção, pensar, para Asdrúbal, já era difícil. Com interrupção, então, ficava quase impossível. E assim o dia passou sem que ele chegasse a uma conclusão.
O outro dia era domingo, dia muito difícil de Raimundinho driblar mãe e pai e, por consequência, a voz misteriosa também não apareceu pelo museu.

Segunda-feira logo de manhã cedo, entrou um visitante. Visita rápida porque o guarda ficou rondando em volta dele o tempo todo, até que deu briga.

— Escuta, eu não sou ladrão não, seu guarda! Pode desgrudar…

— Não, doutor, o que é isso? Não estou pensando nisso não, é que…

O visitante saiu meio chateado, não só com o guarda mas também com o urro de Asdrúbal, bem-comportadíssimo.

— Escuta aqui, seu monstr…

— Ah, bom dia, seu guarda!

— …!

— O senhor ia dizendo…

— É! É isso mesmo, pensa que eu não vi!

— Não viu o quê?

— O senhor, fazendo um urro para aquele moço que visitou agorinha mesmo o museu!

— O urro estava muito baixo?

— Não!

— Muito alto?

— Não!

— Uai, então o quê?

— Ainda pergunta?! E você acha que ele veio aqui para ver as coisas certinhas? Acha?!
E o guarda, então, explicou a todos que quiseram ouvir, e mesmo para os que não quiseram, mas que estavam nas redondezas naquele momento, que Asdrúbal era na verdade um elemento perigosíssimo. Isso todos já sabiam. Perigosíssimo porque tinha inventado um plano. Que plano? O de fazer exatamente as coisas que estavam previstas no regulamento e impressas no catálogo do museu. Coisas chatíssimas e monotíssimas que, se cumpridas à risca, levariam o museu à falência e o guarda ao desemprego em três tempos.

Asdrúbal então quis se virar para sua barata para dizer que o guarda estava maluco. Mas, quando ia começar a falar, se lembrou de que talvez a barata nem existisse mais e ficou assim meio triste.

 

Os pensamentos de Asdrúbal

Asdrúbal sacudiu a cabeça com força uma, duas, quatro vezes, até que sentiu aquele arzinho fresco soprando lá dentro. Nenhum pensamento triste sobre a barata, mas nenhum alegre trambém. Aliás, resumindo, as sacudidelas tinham tirado qualquer pensamento de dentro da cabeça dele. O método tinha lá seus inconvenientes, mas Asdrúbal não estava perdendo grandes coisas em ficar com a cabeça vazia (cá entre nós, mesmo o melhor de seus pensamentos não valia muito). Depois de algum tempo, os pensamentos foram voltando para dentro de sua cabeça, devagarinho. O primeiro que chegou foi o dos noves fora:

1 – Pensamento dos noves fora:

As preposições eram 24, porque 24 vezes 2 igual a 48, com um 0 fica 480, noves fora 37 que, somando a data em que estamos, fica igual a 74, que era justamente a idade do único professor de português que Asdrúbal tinha tido na vida.

2 – Pensamento profundo preferido, também chamado 3P:

O mundo era assim porque não era assado, e se fosse assado, ele, Asdrúbal, também seria diferente e então ele ia achar que o mundo não era assado mas assim e então não ia adiantar nada, de modo que, nada adiantando nada, tudo era realmente péssimo.
3 – Pensamentos menorezinhos:

Fogão: o fogão se chama fogão porque a primeira cozinheira do mundo, não estando acostumada com o fogão, exclamou: “nossa, que fogo enorme!”, jogando uma panela d’água em cima. Ficou conhecida como a mulher do fogão e o nome pegou.
Galinha: diminutivo de gala, mulher do galo. O nome gala vem da época em que os bichos eram muito maiores do que os de agora. Com a evolução das espécies animais, os bichos enormes foram morrendo e da gala original, para mais de cinco coxas, só sobrou mesmo a nossa galinha de duas coxas.

Tinta: nome que todo mundo diz errado. Na verdade o nome certo é pinta. Por exemplo, nas frases ‘eu me agasalho com o agasalho’ e ‘eu pinto com a pinta’. Mas é que o povo é mesmo muito ignorante e vive trocando letra.

Pássaro: outro nome errado. Prova disso é a palavra passarinho, diminutivo de passário e não de pássaro!

— Esse pessoal não vai à escola e depois fica falando os nomes tudo errado.
E depois desses, muitos outros pensamentos foram entrando de volta na cabeça de Asdrúbal. Quando os pensamentos acabaram de entrar, a manhã de segunda-feira já tinha ido embora e na hora do almoço o guarda foi à farmácia comprar remédio para dor de cabeça.

Pois foi justamente nesta hora que a voz misteriosa tornou a aparecer.
— Ei! E se em vez de vareta eu puser talharim, você jura que come?
Talharim? Vareta? Comer? Comer o quê? Quem estaria falando? Seria para ele mesmo, Asdrúbal, o Terrível, que a voz estaria se dirigindo?

— Ô gema de ovo, responde!

Era. Era com ele, pelo menos isso Asdrúbal já sabia. Que bom. Faltava só descobrir o resto!
Raimundinho, depois de quase uma semana de esforços para entabular conversação com Asdrúbal, acabou desistindo e resolveu mudar de tática. Botou uniforme da Escola Pública, lavou a cara e as unhas e foi lá dentro da sala das Peças Raras para levar um papo franco, pois se Asdrúbal era monstro amarelo, ele, Raimundinho, era monstro em esperteza. Seria, então, um papo de monstro para monstro.

 

A conversa de Asdrúbal e Raimundinho

– Bom dia, seu guarda, vou fazer uma pesquisa que a professora mandou, com licença.
“Onde é que eu vi essa cara antes?” – O guarda bem que desconfiou, mas Raimundinho de cara lavada, penteado e sorrindo realmente ficava outra pessoa.
Uma vez lá dentro o papo foi maravilhoso.

— Asdrúbal, o plano não tem falha: você come as pipas, eu berro, o guarda solta as dez pratas para eu parar de berrar e pronto!

Raimundinho disse por que precisava das dez pratas. Era para comprar um lugar para ele morar, um lugar assim tipo fazenda, só que maior. Assim tipo paraíso. Asdrúbal ouviu tudo com atenção, o tal lugar do Raimundinho era realmente sensacional!
— Asdrúbal, eu quero encontrar esse lugar e comprar ele. O riozinho de pedras que eu te falei vai desembocar na praia, entendeu? Na praia, no meio de umas palmeiras, indo pela areia, até se misturar com o mar. Lá tem tartaruga, daquelas grandes, nadando, nadando… e para dentro, no meio da floresta, já te falei, tem uma porção de bichos. Esquilo, coelho, veado, todos os passarinhos que existem no mundo, peixe de rio, cavalo solto, pato solto… Esquilo já falei? Pois é… todos eles meus amigos, me conhecendo. Tem a casa grande, é claro, com a escada secreta que vai direto no meu quarto e tem as pessoas que moram lá, como pai, mãe e essas coisas. Sou eu que pesco e pego as frutas para a comida. Não te contei das frutas? Ah, todas! Goiaba vermelha e branca, fruta-do-conde, laranja lima e a de umbigo, amora, jaca, manga, mamão, banana, abacaxi, carambola, jamelão, tamarindo, sapoti, jambo, cajá… As árvores ficam na floresta, aqui e ali, misturadas umas com as outras. Tem jabuticaba e pitanga também, quase que eu esqueço! A horta não sou eu quem cuida, tem um cara que só faz isso. Tem a casa pequena, é lá que eu guardo, numa geladeirona, as lagostas, os peixes que eu pego nas pescarias. Na casa pequena tem uma cama e é comum eu passar a noite lá. É lá que tem um subterrâneo onde estão guardados os doces, os chocolates e as balas – em prateleiras – arrumadinhos por qualidade: perto da escada ficam as cocadas, de um lado as de fita, de outro lado as de colher.

Asdrúbal suspirou fundo, encantado.
— É para isso que eu preciso do dinheiro, entendeu?

— E vai precisar de muito? Quer dizer, vou ter que comer muita pipa?

— Não sei, mas eu acho que para tudo isso aí deve precisar, sei lá, de uns bons cobres.
— (Suspiro) … Mas que lugar lindo!

— Você topa então? A gente compra de sociedade e você fica de guarda, espantando caçador que apareça por lá querendo pegar nossos bichos.

— Topo, claro. Está topado.

 

As coisas ficam pretas

Mas as coisas não foram tão fáceis como eles estavam pensando. É que o guarda, coitado, desde aquele dia em que tinha ouvido o berro de Asdrúbal bem nos ouvidos, tinha ficado meio doente. O berro tinha mexido com os nervos dele. O guarda agora tinha dado de cismar que não era só Asdrúbal que estava tramando alguma coisa contra ele. O guarda estava começando a achar que todas as Peças Raras do museu estavam mancomunadas. Ou pior até: que se tratava de um plano internacional, de todas as peças raras de todos os museus do mundo inteiro, feito para acabar com ele, Doberval Ramos da Costa, funcionário nível 3 do Museu DumDum. Ele já tinha até escrito para os jornais contando a história toda, alertando as autoridades para o perigo.
Ele já tinha denunciado as Capitanias Hereditárias que, tendo sofrido uma mutação transgenética, haviam se tornado carnívoras e exigiam índios ao molho pardo nas refeições! E o Teorema de Euclides era chefe de um comando secreto cuja única função era jogar zerinhos pelo chão para que ele, ao entrar, escorregasse!

Os jornais, no começo, ainda publicaram uma carta ou outra de Doberval, mas no fim não publicaram mais nada e ele continuou sozinho com suas certezas. Por exemplo, a de que Asdrúbal era o líder. Isso não havia dúvida. Mas Doberval às vezes achava que talvez Asdrúbal fosse só o porta-voz do verdadeiro chefão. O chefão, segundo esta teoria, seria uma barata milenar, de origem estrangeira, e o elemento de ligação entre os vários comandos, um perigoso espião-anão que se disfarçava de estudante de Escola Pública para transmitir as mensagens dentro do museu. Esse espião perigosíssimo era conhecido por Raimundinho nas rodas do crime e, na verdade, se tratava de um embaixador do país do desrespeito, da avacalhação e dos jogos incompreensíveis! O embaixador do país Pipa Azul!!
Os pipenses-azuis tinham, desde muito tempo, o plano de invadir todos os museus do mundo para se apoderar de todas as Cadeiras dos grandes homens, todos os Leques das imperatrizes, todas as Regras de três e todas as outras dignidades de todas as salas de Peças Raras. A arma usada pelos perigosos pipenses era pó de vidro com vareta e o grande erro dele, Doberval, era ter permitido que um monstro entrasse no museu. Asdrúbal, um monstro, por mais interessante que fosse para os estudos do passado da Floresta DumDum, nunca deveria ter podido entrar em um museu. Afinal, monstro é monstro, e museu é museu!

Mas o erro estava feito. Asdrúbal tinha sua prateleira e sua plaquinha e Doberval tinha uma dor de cabeça monumental.

E foi essa dor de cabeça (de exclusivo fundo nervoso) o azar de Raimundinho e Asdrúbal. Doberval acabou tirando licença para trabamento médico, pois começou a ver pipenses-azuis até mesmo dentro da cerveja do almoço. E não tendo ninguém que desembolsasse dez pratas por pipa comida, Raimundinho e Asdrúbal ficaram no ora-vejam. O plano de comprar o tal lugar maravilhoso estava indo por água abaixo.
Raimundinho e Asdrúbal ainda esperaram uma semana para ver se Doberval melhorava e voltava. Não voltou, estava em licença pelo INSS, não voltaria tão cedo.
— Te falei das pedrinhas do rio?

— Falou.

— ……

— Não pode esquecer de regar as avencas do pé do muro.

— Não carece. O lugar é úmido. E depois, está chuviscando, olha aí.

— Raimundinho …

— Hein?

— Não tem avenca, não tem muro, não tem “lugar”, não tem guarda nem dez pratas!
— É, só tem mesmo esse chuvisco..

— É, mas só chuvisco, que graça tem?

Nenhuma.

 

Asdrúbal dá no pé (aliás, nos pés)

– Não tem nada não, Asdrúbal, vamos sair daqui. A gente espera uns tempos, a maré melhora, não deu certo agora, dará depois. A gente acaba comprando nosso lugar.

— Sair como, Raimundinho? Sou Peça Rara do museu!
Raimundinho pensou que Asdrúbal podia ficar na sua casa. Mas na sua casa já tinha cachorro, três irmãos (um pequenininho), o papagaio que tinha sido do pai, as galinhas do quintal, os gritos da mãe e o radinho de pilha da irmã mais velha, sempre ligado ao máximo. Asdrúbal nisso tudo? Não iria dar certo.

Asdrúbal pensou que Raimundinho podia ficar no museu: Raimundinhus pipensis. Mas no museu tinha portas e janelas fechadas, silêncios longos e chão encerado. Raimundinho dentro disso? Não iria dar certo.

Estava parecendo que Asdrúbal e Raimundo, sem lugar maravilhoso para comprar, iam acabar tendo que se separar.

— Puxa, que azar o guarda ficar doente! – disse Raimundinho dando um chute na parede.
— Nem fale. Azarzão mesmo! Puxa, nem fale! Pensar naqueles peixes todos esperando pelo anzol da gente!

— Peixes? Deixe de ser bobo! Quem quer os peixes? Está na época de sapoti, meu velho! Você fica lá, dando minhoca para os peixes, que eu fico te esperando comendo sapoti, está bem?

— Você é besta! Dá esse sapoti para mim também! Pensa que eu sou bobo? Hi, hi…
— Ri baixo, Asdrúbal! Olha aí o bibelô rachando…

O bibelô era o Gato de porcelana chinesa e Asdrúbal, de repente, se lembrou que ele estava era no museu, que o sapoti e os peixes eram invenção do Raimundinho e que eles, mesmo se conseguissem encontrar o tal lugar maravilhoso, não iam ter dinheiro para comprá-lo.

— Droga de guarda, ficar doente logo agora!

Raimundinho e Asdrúbal quase choraram. Só não o fizeram porque Raimundinho tinha aprendido que homem não chora. Asdrúbal não tinha aprendido nada mas, como não queria ficar atrás, decidiu que monstro também não chora.

Raimundinho convidou Asdrúbal para sair, tomar fresco, botar o pé no mundo enfim, que lá dentro do museu estava sufocante. Asdrúbal não quis.

Primeiro disse que não podia sair no meio do expediente (mesmo sendo uma droga de emprego). Depois disse que não era bem por isso, mas é que ali tinha sido sua toca e, embora ele achasse essas coisas uma besteira, ele não gostava de ir para muito longe de sua ex-toca (mesmo ela sendo agora uma droga de museu). Depois falou da barata e explicou muito detalhadamente para Raimundinho como eles se tinham conhecido, como ela era cascuda e feia, com voz ranheta e como desafinava nos tangos. Depois não falou mais nada, pois já tinha dito tudo.
Raimundinho então começou a explicar uma ideia que tinha nascido lá na cabeça dele. Falou primeiro “que bobagem” que, emprego por emprego, ele, Raimundinho, poderia arranjar outra profissão para Asdrúbal.

Depois explicou que, quando ele falava em sair por aí pelo mundo, mundo no caso era até a esquina da avenida, que na avenida passava ônibus e para lá da avenida ele não tinha permissão de ir. Raimundinho falou ainda que a barata não tinha nenhum compromisso com ninguém, ficasse se quisesse, fosse com eles se tal lhe conviesse. Raimundinho não tinha nada contra baratas, se ela quisesse ir, tudo bem.
Escurecia quando Raimundinho se despediu e voltou para sua casa. Tinha combinado que voltaria no dia seguinte de manhã cedinho e que então ele e Asdrúbal sairiam juntos pelo mundo – com ou sem a barata, Asdrúbal fingindo que era a sombra de Raimundinho.
Sombra?!
Pelo seguinte: como todos nós já sabemos, o que foi a Floresta DumDum está isso que está aí. Um monstro amarelo na Floresta DumDum não espantava nem filhote de passarinho, acostumados que estavam todos não só com monstro, mas duende, coisas sem explicação, cores sem meio-tom. O amarelo de Asdrúbal em uma trilha da Floresta DumDum estaria compondo um arco-íris usual. O amarelo de Asdrúbal (mesmo meio mofado) em uma rua desse nosso tumulto ia ser um ponto de espanto na população local.

Não dava.

Aliás não dava nem para o próprio Asdrúbal, com olhos argutos na caça de borboletas, mas míope como uma toupeira na praça principal. Sem enxergar sinal fechado, bueiro aberto, gente e mais gente. Não dava.

Não dando, a ideia (de Raimundinho) era Asdrúbal fingir que era sombra quando tivesse alguém perto. Quando estivessem só os dois, não. Raimundinho usaria a sombra antiga, aquela com a qual ele nasceu e Asdrúbal usaria as próprias pernas para se locomover, todas as oito. Ou eram seis? Há quanto tempo ele não andava!
Pois no dia seguinte, tudo pronto, Asdrúbal ainda pensou em chamar a barata mais uma vez, mas desistiu: se ela continuasse não respondendo, ele ia ficar triste e esse dia não era para se ficar triste.

Raimundinho chegou sem demorar e disse: vamos.

— Pois vamos.

 

Último capítulo

Foram. Não foi um nem dois passantes que se espantaram com aquele menino que tinha uma sombra tão amarela em um dia nublado que nem sol tinha (o chuvisco do dia anterior ainda continuava de vez em quando). No começo os dois ainda tiveram uns probleminhas, pois Raimundinho, com duas pernas, tinha uma sombra com várias.
— Ei, psiu! Anda mais devagar, poxa!  Assim vão desconfiar!

— Desculpe! É que enquanto você dá um passo eu dou quatro.

— Pois é!  Mas disfarça, disfarça!

Chegaram enfim no oiti.

— Tem oiti?

— O que?

— Tem oiti, lá?

— Lá? Tem. Tem oiti, ipê, quaresmeira, acácia, cambuí, angico branco. A gente vai acabar conseguindo o dinheiro e aí, quando a gente se mudar, eu vou levar esse oiti daqui para lá. Ele é de estimação. Sempre que eu quero me esconder das pessoas eu venho aqui.

Sentaram, puseram as meias para secar, afiaram o canivete, tiraram um formigueiro que estava se formando na raiz do oiti, fizeram um xixi no chão quente do mormaço só para ver fumacinha saindo da terra. Asdrúbal fez um buraco e tampou com folha (“para o primeiro cretino que passar por aqui”), falaram um pouco da vida de cada um, mas, sem querer, como se fosse visgo, o papo ia e voltava para “lá”.

— Asdrúbal, você sabe tirar favo de mel de árvore?

— Então não sei? Você se esquece que eu sempre vivi em floresta?

— Ah é, desculpe.

Depois falaram ainda de como ali, onde hoje tinha o oiti, uma vez, há muito tempo, Asdrúbal tinha visto um ninho de cobra limpa-campo, a cobra que come as outras cobras. Depois Raimundinho ensinou como se fazia pipa, só que Asdrúbal não aprendeu.
— O bom de usar é bambu, que é leve.

— A gente usa os que forem ficando amarelos, dos da sebe lá de perto do maracujazeiro.
— Boa ideia.

Ficaram nesse papo mole, falando de “lá” o dia inteiro.

E depois de um dia inteiro, cansaram.
Cansaram e ficaram assim, disfarçando, um sem querer olhar para a cara do outro para o outro não perceber que o papo tinha acabado.

Raimundinho botou as meias, fechou o canivete (“esse é fogo, dá até para matar porco, cuidado”), inventou uma desculpa besta e foi embora cuidar da vida: comer, dormir, fazer pipa e estudar de vez em quando mode a mãe não chatear.
Asdrúbal suspirou aliviado: tudo bom, tudo bem, mas esse negócio de ser sombra não dava muito para ele não. Já estava fazendo cinco horas desde que Asdrúbal tinha saído do museu. Ele levantou, espreguiçou as pernas e, procurando não olhar para o museu que ficava para trás, foi andando devagar.

Não foi longe, tropeçou três passos depois em uma coisinha marron:

— Ah, el Hepatite! Aonde piensas que vai?

Era a barata. De mão na cintura e cílio postiço, a barata olhava para Asdrúbal.
— Cascuda! – Asdrúbal se abaixou e cochichou:

— Eu não “pienso”, minha velha, eu só vou. Vou por aí.

E foram.

 

A festa no museu (quase que eu me esqueço!)

Quase que eu me esqueço de contar como foi que a barata saiu do museu. Depois que Asdrúbal e Raimundinho foram embora, a barata – que tinha emudecido esse tempo todo só para chatear o monstro – ficou sem saber o que fazer. As Peças Raras, tendo descoberto que Asdrúbal não estava mais lá, mandaram  chamar o guarda de volta. Doberval veio logo. E, querendo comemorar não só a saída do mau elemento como também o que ele achava que ia ser a cura definitiva de sua dor de cabeça, organizou uma festa.

Às oito horas chegaram os convidados, às oito e meia serviram licor de cacau, às nove tocaram ‘Feito para dançar’ na Eletrola a manivela (uma das Peças Raras convidadas).
Mas ninguém dançou, pois foi o primeiro acorde ir pelo ar que pelo chão apareceu uma barata gritando: “música! viva para los músicos!” e, soltando uns puns fedorentíssimos, atravessou o salão. As senhoras desmaiaram enquanto alguns cavalheiros tratavam de fazer de conta que os puns eram na verdade os fogos de artifício da festa.

Às nove e cinco a festa acabou.

Quando tudo ficou novamente em silêncio, o guarda, já de pijama, achou que ouviu, lá longe, uns pedaços de tango cantados a duas vozes:
— Adiós muchachos…

É o vento, pensou. E tomou outra pílula para dormir.

Será que nunca as coisas voltariam a ser como antes? choramingou ele.

 

A verdadeira história de Asdrúbal, o Terrível, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – A verdadeira história de Asdrúbal, o Terrível (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar

vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral:

 

infaasdrubal02

 

Primeiro capítulo

O mundo tem muitos monstros. Tem uns mais conhecidos do que os outros, tem os que têm nome, retrato no jornal, tem os que só são vistos em pesadelos, sem nome nem cara que se descreva.

Pois no ano de 290 D.A. (D.A. significa Depois de Asdrúbal), na Floresta DumDum, já havia uns tantos que duvidavam que o monstro Asdrúbal tivesse realmente existido. Muitos falavam em lenda, outros mais maliciosos diziam que Asdrúbal não passava de um reles personagem aumentado e glorificado, só e unicamente para servir de herói a uma floresta sem heróis. Seria Asdrúbal, então, um mito inventado, com a única missão de embasbacar as gerações vindouras.

Não, meus amigos, não. Como cedo os fatos vieram demonstrar, o monstro Asdrúbal pertencia àquela categoria dos que têm nome, retrato no jornal, verruga e cacoetes. Asdrúbal existia, sempre existiu e ainda vai existir por muito tempo.
Verdade seja dita, a bem dos que então duvidavam de sua existência: os fatos precisos que, nesta época, se sabia a respeito de Asdrúbal eram poucos e ralos.

Sabia-se sua cor: amarela.

Sabia-se seus pés: muitos.

Sabia-se sua voz: horrível.

E isso era tudo o que se sabia a seu respeito. Sabia-se também de seu ódio a borboletas. Mas mesmo isso havia quem duvidasse. Uma lenda dizia – e muitos acreditavam nela – que em priscas eras, Asdrúbal teria tido uma rixa muito séria com uma borboleta azul, e que seu desaparecimento por tantos séculos tinha sido por causa deste aborrecimento.

Podia ser que fosse mesmo só lenda, não vou botar mais lenha nesta fogueira, mas se conhecendo o caráter do monstro em questão, não só era possível como mesmo muito provável que tal rixa tivesse mesmo acontecido, e tivesse sido feia.
Mas se tudo isso vem à baila, é porque há motivo. No começo do ano 290 D.A., notícias daqui e dali começaram a dar Asdrúbal como presente e atuante em festas de família (logo acabadas), em clareiras da floresta (agora desertos), em livrarias (falidas).
Os jornais, como sempre medrosos, noticiavam as novidades nas últimas páginas, com títulos pequenos, feitos em letra tremida. Mas, no de boca a boca, não se falava em outra coisa que não fosse a volta de Asdrúbal, o Monstro Amarelo.

A volta de Asdrúbal, 290 anos depois de seu desaparecimento por causa de uma briga com uma borboleta azul. E, meus amigos, é incrível, mas mesmo vendo tinha gente que duvidava, que preferia fechar os olhos e dizer que não viu.
Borboleta Azul Neta era uma dessas. Quando vinham lhe contar sobre a volta de Asdrúbal, o inimigo de sua avó, ela mudava de assunto e, se insistiam, mudava de flor, ia para outras bandas pensar em outras coisas. Coisas de borboleta: casulo furado e necessitado de conserto rápido, formigas nos agapantos, vento em demasia nos campos de margarida.

Mas se Borboleta Azul Neta não acreditava na volta de Asdrúbal, ou melhor, fingia não acreditar, havia também a elite dos bem informados que davam fé a esses diz-que-me-disses alarmistas.

A Tartaruga Submarina, a Coruja Russa, o Gato Pardo e Companhia eram os componentes deste grupo e, certos de que Asdrúbal afinal voltara, tentavam convencer os relutantes.

Em vão. Nessa época ainda muito pouca gente dava ouvidos a eles.

 

 

Segundo capítulo

Para entender bem como foi possível os acontecimentos pegarem tanta gente de surpresa, vamo-nos relembrar em minúcias de um dia em particular.

Dia 42 da estação de primavera do ano 290 D.A.

Tempo bom, domingo, a floresta dorminhoca bocejava um ventinho suave de quando em vez.

A Floresta DumDum acabava, nesta época, em uma praia de coqueiros e amendoeiras e, floresta e praia, tinham um riachim de pedrinhas brancas e peixes calmos. Onde a floresta começava ninguém sabia e, mesmo hoje, passados tantos anos, acontecidas tantas coisas, ainda não se sabe se este ou aquele tronco velho, se este ou aquele bem-te-vi triste é o começo legítimo.

A Tartaruga Submarina era tartaruga de mar e morava na praia. O Gato Preto era gato safado e vivia às custas de uma velhota, a pires de leite fervido e bife de filé mignon na manteiga, em uma casinha lá longe. A Borboleta Azul Neta era jovem e não tinha moradia fixa, mudando de casa em casa junto com seus amigos, de tempos em tempos, como fazem em geral as borboletas.

A Coruja Russa, no seu galho, há muito não dava um pio. A última vez que tinha falado, no verão anterior, respondera a um comentário trivial sobre o tempo com um:
— Outrossim, outrossim se foi.

Esta frase não foi compreendida pelo educado pardal que, ao passar, tinha tido a ideia de comentar sobre o calor reinante. E também não foi compreendida pelos que souberam da história depois. A frase ficou famosa, exemplo de alta filosofia, pérola das letras pátrias e fim obrigatório de discursos e pronunciamentos sobre economia. ‘Outrossim, outrossim se foi’ passou a ser citada com frequência nas rodas noturnas e estava para sair, em capítulos, um ensaio crítico com este título no suplemento semanal do Mundão da Floresta, jornalzinho politiqueiro e polêmico.

Foi a partir deste verão, ou mais precisamente dessa frase, que a coruja ficou famosa na Floresta DumDum e no mundo. Vem deste episódio a crença de que as corujas em geral são seres sábios. Como vocês veem, de muito pouca terra crescem as batatadas do conhecimento.

Mas, voltando à nossa Coruja Russa, ela ficou famosa. E, famosa, não mais tinha precisado abrir o bico, limitando-se a grunhidos vomitados do alto de sua casa de árvore sobre a massa, então e sempre, sedenta de saber.

Tanto faz para o decurso da história onde o resto da bicharada morava, se bem que, fique claro, todos eles fossem bichos de floresta ou, pelo menos, bichos que lá trabalhavam ou estudavam. Eram bichos comuns, de pelo e de pena, de miado alto e piado assustado. Uma lista breve: A Anta Nita, o Sapo Nando, o Pássaro Vermelho Real da Costa e Serra, o Crocodilo Aligátor (um imigrante americano), Madureira… Madureira era um macaco careteiro morador do bairro do mesmo nome e possuidor de casa de veraneio na praia.

Esses, os habitantes. O local, o ambiente, esse é mais difícil de descrever, pois floresta e floresta como era a Floresta DumDum é coisa já perdida na memória de cada um. Era grande, sim, com árvores, é evidente. Mas os cheiros, os sons, disso, infelizmente, não ficou registro fora dos sonhos que todo mundo tem, mas que variam de noite para noite e de travesseiro para travesseiro. Qual o sonho mais verdadeiro: o seu? o meu? Da Floresta DumDum perdemos tudo, exceto as fotografias. E nas fotografias vemos aqui e ali os marcos históricos, as estátuas dos generais famosos na luta entre Borboleta Azul e Asdrúbal. Temos fotos do Museu da Floresta nas quais se vê, com certo esforço, o célebre documento de incitação à guerra, feita pelos Ursos do Berro Forte. Esse documento, feito originalmente em plaquetas de mel, era todas as noites refeito pelos guardas do Museu, daí os mais céticos duvidarem de sua autenticidade. E quem começa duvidando de um documento acaba duvidando de tudo e de todos.
E, em caso de dúvida, o comum é pensar em outra coisa e esquecer o problema.
Foi por isso que, embora Asdrúbal aparecesse amiúde aqui e ali estragando coisas, os bichos da Floresta DumDum, acostumados que estavam a duvidar de tudo, duvidaram do que viam e não tomaram nenhuma providência.

No meio, bem no meio da floresta, a toca de Asdrúbal progredia.

 

 

Terceiro capítulo

Não que a toca fosse grande. Era mesmo uma toca mixuruca, considerando-se a importância e periculosidade do morador.

Em volta, o que se encontra em volta de todas as tocas: pedras, se o local for de pedras, árvores, se for toca de árvore, ou areia, no caso de toca de praia. No caso, era toca de pedra.

Tão comum, tão toca de todo mundo, que Gato Preto, Tartaruga Submarina, Coruja Russa e Companhia, eméritos Caçadores de Asdrúbal, não notaram essa simpleza e dirigiram suas buscas a cavernas mal-assombradas, nuvens carregadas, melancias podres, enfim, a coisas fantásticas, horrorosas ou pelo menos diferentes. Pois o que mais custa a entrar na cabeça das pessoas, em casos de aparecimento de Asdrúbal, é justamente essa sua aparência comum, cotidiana. Asdrúbal ao aparecer vem de mansinho, junto e dentro das coisas de todo dia. Não se vê.

Qual a graça de um monstro horrível ser tão comum? Não tem graça nem diferença. O que ninguém sabia, na Floresta DumDum, é que Asdrúbal morava, dormia e comia igual a todos eles. E foi graças ao seu igualzinho-a-todo-mundo que Asdrúbal conseguiu chegar até o ponto em que chegou, espalhando o terror e a falta de alegria a absolutamente todos os bichos da floresta.

A Floresta DumDum só se deu conta da presença incômoda e atuante de Asdrúbal quando o Monstro Amarelo atacou o local onde pernoitava a Borboleta Azul Neta.
Há versões que dão o despertar de consciência como fruto do Caso dos Papeizinhos. Outros preferem considerar a Noite dos Urros como o alarme geral. Mas não, a versão correta é a que fala do ataque à casa onde estava a Borboleta Azul Neta, às cinco horas da tarde do dia 12 de outono do fatídico ano de 290 D.A.

Foi, é necessário que se diga, um ataque mais para o inútil. Borboleta Azul Neta, como sempre de mudança, só veio a saber que Asdrúbal tinha aparecido em sua antiga residência duas horas depois. O ridículo desse insucesso é que leva tantas pessoas a acreditar que o início das hostilidades seja a Noite dos Urros ou o Caso dos Papeizinhos.
A Noite dos Urros é um fenômeno sem explicação. Na noite anterior ao ataque à Borboleta Azul Neta, alguns bichos ouviram uns urros horrendos por volta da meia-noite. Este fato, além de insignificante, não merece nosso crédito, pois a maioria dos habitantes da floresta era incapaz de distinguir trovões de urros horrendos, dada sua falta de experiência neste último som.

Já o Caso dos Papeizinhos tem argumentos mais fortes e sua importância no despertar de consciência dos bichos foi real, embora fortuita, como veremos depois.

O orvalho do dia 15 de outono trouxe bilhões e bilhões de papeizinhos retangulares, desses como se de cartão de visitas, só que absolutamente em branco. Eram papéis tampando buraco no chão, derrubando ninhos de ovos novos. O mar, com a superfície coalhada de papeizinhos, impedia os peixes de ver o azul claro do céu, limitando-os ao azul escuro do fundo. Os papeizinhos realmente prejudicaram todos os bichos da floresta. Não foi obra de Asdrúbal, mas bem que poderia ter sido.

Logo na manhã desse dia houve uma reunião na clareira da Coruja Russa, a qual se limitou a ensinar aos poucos que até lá tinham conseguido chegar um:

— Deus meu! Deus meu!

O repórter do jornalzinho Mundão da Floresta pegou rapidamente um dos bilhões de papeizinhos e anotou a volta aparente da Coruja ao seio do Divino, assunto de futuras e palpitantes reportagens. Mas de resto, o repórter continuou, tanto quanto os outros bichos presentes, a não saber o que fazer de tantos papeizinhos que causavam problemas cada vez mais evidentes de ecologia, manutenção da ordem pública e bem-estar social.

Além do fato de serem terríveis em sua total falta de lógica ou, trocando em miúdos, em sua total falta de letra. Papel sem letra, sem sujo, sem nada, Deus meu! Asdrúbal voltou e isso é coisa dele!

Mas não era.

 

Quarto capítulo

Asdrúbal, repetimos, tinha tanto a ver com a história dos papeizinhos quanto qualquer outro bicho da floresta e, como eles, estava mal-humorado e curioso com o acontecido.
Enquanto a reunião na clareira da Coruja Russa estrebuchava por falta de assunto, Asdrúbal estava sentado na porta da toca olhando estupidamente um dos papeizinhos. Olhava, olhava, se esforçava, mas não entendia. E o pior é que Asdrúbal amargurava-se com o pressentimento de que todos, exceto ele, já sabiam do que se tratava. Um antigo complexo advindo do hábito de seus colegas do Jardim da Malinfância lhe chamarem Asburro, impedia Asdrúbal de notar que desta vez não era culpa dele se havia um branco total no papel e na cabeça. Asdrúbal atoleimava.

Bem ao seu lado estava Companhia.

Ainda não falamos de Companhia. Companhia andava sempre com o grupo formado pela Tartaruga Submarina, Gato Preto e Coruja Russa e era uma pulga vulgar, gorda e fofoqueira, mas muito útil como transmissora de informações aos outros três. Companhia devia alguns favores ao Gato Preto, de quem tirava seu sustento e, em paga disso, procurava sempre mantê-lo bem informado. Essa pulga serviu de Correio e Telégrafos e de Arquivo Nacional por bom período da história da Floresta DumDum. Sabia de tudo e o que não sabia inventava. Exercendo essas atividades com ímpeto e senso de oportunidade, foi considerada por seus contemporâneos como repórter-modelo. Companhia teria sido mesmo convidada reiteradas vezes a fazer parte do corpo editorial do Mundão da Floresta mas recusava sempre alegando solidariedade ao famoso grupo de Gato Preto e seus dois amigos. Uma de suas frases:

— Não se pode servir a quatro senhores.

Outra de suas frases, menos retumbante mas mais explicativa:

— Mesmo porquê, detesto aquele corpo sem pelo.

Companhia se refere nesta frase ao corpo editorial, mais precisamente ao corpo do Sapo Nando, coordenador, diagramador, fotógrafo, linotipista e propagandista inconteste do Mundão. Sapo Nando tinha todas as ações do referido jornal mas nenhum pelo ou outro atrativo mais contundente que encantasse uma pulga.
Pois era uma pulga, e uma pulga do tipo que descrevemos, que Asdrúbal, ilustre e faceiro, tinha a seu lado durante a longa travessia pelos mistérios dos papeizinhos em branco. Vista do alto, Companhia consistia em uma  mancha marrom visibilíssima em cima de todo aquele branco.

Asdrúbal neste momento se agacha, pois a idade já o tinha tornado míope, mas ao reconhecer na mancha uma reles pulga, suspira de desilusão.

Por breve e delicioso momento Asdrúbal tinha julgado tratar-se de uma mensagem microgravada, de uma letra, de um sinal, de qualquer coisa que o permitisse entender o porquê daquela papelada.

Asdrúbal, tendo estado no exterior desde sua luta com a Borboleta Azul e chegado a pouco, desconhecia muitas coisas novas da Floresta DumDum, incluindo as qualidades de Mata-Hári da pulga na sua frente. Desavisado, deixou o inseto em paz, e foi graças a essa imprudência que até hoje muitos atribuem ao Monstro Amarelo a autoria do Caso dos Papeizinhos.

Pois Companhia, quando conseguiu se refazer do susto, foi correndo contar a todos os bichos o que todos os bichos queriam escutar: Asdrúbal, seguindo um plano diabólico, tinha espalhado aqueles bilhões de papéis. Em um futuro próximo, assegurava a pulga, Asdrúbal espalharia finos e mortais lápis pretos n° 2, o que então provocaria o fim do mundo.
Os papeizinhos, como hoje está constatado, foram fruto espúrio de um avião-propaganda desregulado. E a profecia dos lápis pretos, como vocês bem adivinham, nunca se concretizou.

 

Quinto capítulo

Os papeizinhos se desmancharam depois de algumas chuvas e a Floresta DumDum teria voltado ao normal, não fosse a expectativa de novas e calamitosas experiências. Já então se tinha passado algum tempo desde o ataque de Asdrúbal à casa da Borboleta Azul Neta, mas o Caso dos Papeizinhos, mais recente, se encarregara de manter em alerta o espírito do povo.

Tartaruga Submarina, Coruja Russa, Gato Preto e Companhia estavam no auge de sua popularidade, fazendo apresentações públicas nas quais a Tartaruga Submarina com uma bela e recém-descoberta voz de barítono, empolgava a plateia às custas de empostações dramáticas como a célebre:

Borboleta Azul Neta!

Original e Belo Inseto!

DumDum inteira te defenderá

Dos Amarelos Petelecos!

Sim, mas os chamados amarelos petelecos, desde o ataque à casa da Borboleta Azul Neta, não tinham mais dado sinal de vida, o que convenhamos gerava uma impaciência e uma frustração muito grande nos bichos pacatos, mas sedentos de distração.
Asdrúbal tinha consciência de que urgia fazer alguma coisa. Durante todo o período que se seguiu ao ataque à casa da Borboleta Azul Neta, exceto nos poucos dias de alvoroço durante o Caso dos Papeizinhos, Asdrúbal passou-o lendo manuais de combate e memórias de generais famosos. Um dos seus livros de cabeceira era o Estratégia de Waterloo em cinco lições ilustrado. No exemplar encontrado depois em sua toca, tem esta passagem marcada a lápis:

“É aconselhável o uso de vinte canhões em arco, cavalos ao centro alinhados pelos do inimigo. Dar preferência a terrenos em declive com pouca vegetação e não se esquecer da bandeira, utensílio essencial tanto na retirada estratégica quanto na vitória triunfante. Expressão a ser usada: aiêê silver!!!”

Gato Preto sabia, informado que fora pela pulga Companhia, que Asdrúbal repetia as palavras do livro sem pensar, como quem decora o nome das capitanias hereditárias ou a relação das 24 preposições. Mas, em uma reunião feita às pressas, a cúpula tinha decidido que esta falta de ímpeto do inimigo não devia ser tornada pública. Só Gato Preto, Companhia, a Tartaruga Submarina e a Coruja Russa sabiam que Asdrúbal, ou porque estava mais velho ou por qualquer outro motivo, cumpria os rituais de preparação para a luta mais por obrigação do que por prazer. Como soubemos de sua própria boca, em um de seus raros momentos de lucidez, Asdrúbal não estava, nesta ocasião, com a menor vontade de dar continuidade aos feitos napoleônicos, mas essa falta de vontade lhe produzia um agudo sentimento de culpa. Era um Asdrúbal, tinha que fazer alguma coisa que se assemelhasse a uma guerra, a uma maldade, para poder continuar a ter uma razão para viver.

Mas a verdade é que nos momentos anteriores à Grande Batalha, Asdrúbal se sentia só e desanimado. E também é verdade que os bichos da Floresta DumDum, embora ansiosos por uma calamidade qualquer que pingasse emoção em suas vidas, teriam se contentado perfeitamente com uma enchentezinha, uma praga nas goiabas ou mesmo uma gripe em alguém famoso.

A Grande Batalha aconteceu abalando a história com suas consequências trágicas, sem que houvesse ninguém, mas ninguém capaz de dizer que estava realmente disposto a lutar.

 

Sexto Capítulo

Se algum de vocês algum dia tiver oportunidade de falar pessoalmente com Asdrúbal, entenderá melhor o que significa um monstro envelhecer.

No dia da Grande Batalha, já lá se vão tantos anos, Asdrúbal já estava bem maduro e, embora vitorioso, não reconheceu em si mesmo a glória dos vencedores. Ele venceu, mas foi uma vitória ruim.

Os fatos foram os seguintes:

Asdrúbal vinha vindo por onde hoje é a Avenida Engenheiro Pedro Antunes com um embornal e uma rede de caçar borboletas de sua invenção, muito semelhante às usadas atualmente. Era manhã do dia 51 de outono de 290 D.A. e chovia.

É quando aparece distraída a Borboleta.

Seu aspecto não era mais o mesmo de algum tempo atrás. Desgrenhada, vencida pela angústia, os olhos vermelhos e o voar lento. Esse tempo a tinha transformado em uma neurótica, que via Asdrúbal em tudo que era canto e esperava um ataque em cada esquina.
Se olharam.

Asdrúbal pensou – alto, como é seu hábito: é ela. Tem a mesma cara de louca da avó.
Borboleta Azul Neta pensou: desta vez é ele.

Acontece que tanto Asdrúbal quanto a Borboleta não primavam pela rapidez de raciocínio, e quando a Tartaruga Submarina, o Sapo Nando, o Macaco Madureira e muitos outros bichos perceberam o encontro, tanto um quanto outra ainda estavam imóveis, quiçá se esforçando para dizer alguma tirada brilhante, uma frase épica qualquer que fosse digna de figurar nos anais da história.
Tiveram tempo e muito todos os bichos da Floresta DumDum para se acomodarem a contento naquela manhã chuvosa. Sapo Nando fez ponta em dois lápis, a Tartaruga Submarina acordou o Gato Preto e a Coruja Russa, o primeiro que acabava de ir para cama, a segunda que não mais saía de lá. Companhia pegou um lugar bem na frente.
A Floresta DumDum, malgrado sua famosa propensão para a paz, estava preparada. O grande espetáculo podia começar.

“Tomara que tenha bastante sangue”, murmurou Macaco Madureira, esquecido decerto que, em uma luta entre uma pálida borboleta e um monstro só amarelo, não havia a mínima chance de que isto acontecesse.

 

 

Sétimo capítulo

Antes de descrevermos a luta, preferimos apresentar uma gravura da época sobre o assunto. Notem bem a preocupação do artista – cujo nome não sabemos, pois ele esqueceu de assinar a obra – em mostrar a ferocidade dos dois adversários, usando para este fim a composição circular e o contraste entre luz e sombra.
(reprodução de A batalha de Curuzu, com o título de “O Sururu”)

 

 

Oitavo capítulo

No entanto, sabemos por testemunhas oculares e por provas irrefutáveis que a Grande Batalha entre a Borboleta Azul Neta e Asdrúbal, o Monstro Amarelo, não teve um momento sequer parecido com a cena mostrada, sendo o ímpeto e a sede de sangue dos adversários uma contribuição do artista à realidade. Bem que o Macaco Madureira em particular e a Floresta DumDum em geral gostariam de ter assistido momento tão excitante.
Não. A Grande Batalha foi luta de muita fala e pouco gesto:

— Saia do meu caminho, seu monstro repelente, que está chovendo e eu não posso tomar chuva.

— Sua … sua imbecil!

— Imbecil não! Imbecil não! Tenho meus direitos!

— Essa borboleta está é muito louca! Ou bebeu! Tá bêbada!

— Bêbada ou não bêbada, eu não arredo pé, tá ouvindo, seu hepatite ambulante? Não arredo!
— Calma, calma! (Aparte dado pelo Pássaro Vermelho Real da Costa e Serra – logo neutralizado por violento “não te mete, palerma”, dito pelo Macaco Madureira.)
— Pois se não arreda, azar o seu que cá vou eu!

E foi. Foi e sumiu. A borboleta Azul Neta também sumiu.

Aqui devemos fazer um aparte e explicar para os presentes algumas coisas a mais que sabemos a respeito de monstros.

Primeiro que eles não morrem, no máximo envelhecem, mas morrer não morrem. Segundo que eles viajam de um lugar para outro com rapidez incrível. Terceiro: monstros sempre vencem, mesmo quando parecem estar perdendo. Quarto e último: eles transfomam para sempre os lugares onde dão suas batalhas.

Ora, a Floresta DumDum já tinha sido palco de duas batalhas de Asdrúbal e nem precisava que ele tivesse voltado – como voltou – pela terceira vez para que a floresta se transformasse do jeito que se transformou.

 

Nono capítulo

Mas vamos por partes: na manhã chuvosa do dia 51 de outono do ano de 290 D.A., os bichos reunidos na clareira onde estavam até um minuto atrás Asdrúbal e Borboleta Azul Neta, levaram algum tempo para sair do estado de choque e perceber que os dois promissores combatentes tinham sumido simplesmente. No começo ficaram desiludidos, mas depois se consolaram, pois de Asdrúbal ninguém mesmo iria sentir falta e da Borboleta Azul Neta já se tinha ouvido muita reclamação sobre seus hábitos irregulares e sua mania de mudar de casa de cinco em cinco minutos.

Mesmo Sapo Nando, furioso porque mal tinha escrito a primeira linha (“a equipe de Mundão da Floresta esteve mais uma vez no próprio local da tragédia para dar informações realistas a seus queridos leitores.”), depois se consolou e acabou aproveitando a inspirada frase para a notícia sobre um pinheiro caído e que, não fora o sumiço de Asdrúbal e Borboleta Azul Neta, teria passado completamente despercebido.
Os bichos saíram aos poucos da clareira e aos poucos também os acontecimentos saíram das conversas. Desistiram, ao cabo de alguns dias, de buscas aos desaparecidos, e a vida voltou ao normal. Quer dizer, não voltou ao normal, modificou-se, mas na época ninguém ainda percebia que sua vida estava sendo modificada.
A primeira consequência da Grande Batalha na vida da Floresta DumDum foi a proibição contra as margaridas.

A floresta tinha a vida na maré mansa, embora na lembrança dos bichos ainda fremisse um medo sempre que um amarelo mais intenso aparecia. Depois foi a vez de rosas amarelas e sóis intensos ficarem terminantemente proibidos em todo o território florestal.
Algumas outras novidades logo se seguiram, advindas do natural decurso dos acontecimentos. A venerável anciã Tartaruga Submarina, respeitada por todos, teve uma queda de pedra, batendo as botas para consternação geral da população local. Verdade seja dita que nos últimos tempos dera para caducar um pouco, mas, contando-se seus muitos anos, esse detalhe além de corriqueiro nos parece mesmo inevitável.
Na Rua Gato Preto – outra consequência foi o aparecimento de ruas e endereços completos – n° 28, apt° 403 fundos, a Coruja Russa, cansada de seu mutismo, começou a dar aulas particulares de latim e grego para os filhos do Macaco Madureira, pirralhos impertinentíssimos.

O Sapo Nando foi exilado. Estava em Jasmim do Cabo desde o fim do outono de 290 devido à sua atitude pouco digna quando da morte de Gato Preto, mas preparava, diziam, sua volta, retumbante, à floresta.

A morte do Gato Preto não é uma consequência da Grande Batalha, embora tenha acontecido logo depois. Acontece que o Gato, ao manusear descuidadamente uma arma de fogo, tinha dado cabo à sua própria vida e a de sua velha protetora, além da vida de mais cinco bichos que se encontravam por acaso nas redondezas e a de Companhia. Este triste incidente, aumentado e distorcido, foi narrado com detalhes sangrentos no Mundão e Sapo Nando, conspurcado editor, foi acusado de provocar pânico na população da floresta com suas notícias capciosas e alarmistas, sendo banido incontinenti.

A Floresta DumDum, com ruas, sem sol nem flor, com seus bichos mais conhecidos defuntos ou entregues a ocupações rotineiras, já começava a ter o aspecto que tem hoje, embora com uma diferença: ninguém sabia, ninguém percebia que as transformações atingiam a floresta toda, de ponta a ponta.

Enfim, uma última consequência das batalhas que Asdrúbal travou em território da Floresta DumDum é que hoje não há mais borboletas azuis no mundo, a última de que se tem notícia é Borboleta Azul Neta, desaparecida desde a Grande Batalha sem deixar herdeiro.

 

Décimo capítulo

O desaparecimento da Borboleta Azul Neta foi coisa aceita sem maiores perguntas pelos bichos da floresta. Sumiu e pronto. Eram bichos acostumados a monstros e duendes, a sumiços e aparições. Hoje nós perdemos esta familiaridade com o fantástico, de modo que vou dizer a vocês o que, na época do desaparecimento, ninguém se preocupou em saber, isto é, para onde foi a Borboleta Azul Neta quando sumiu da clareira onde discutia com Asdrúbal, o Monstro Amarelo.

Como aconteceu, isso eu não sei nem ninguém sabe, pois é assunto da mais alta técnica monstrológica, vedada a nós, simples pessoas de cidade reflorestada. Poderíamos falar em transmutação da matéria, em máquina do tempo, em supersonia ou subvisão. Escolham. O único que poderia nos elucidar sobre o assunto é o próprio Asdrúbal que riu, sacudindo suas banhas amarelas, quando lhe perguntei como ele tinha conseguido ir da clareira da Floresta DumDum até a casa de sua mãe, sem usar nenhum meio de transporte conhecido.

Porque foi na casa da mãe do Asdrúbal que Borboleta Azul Neta passou os dois anos que se escoaram entre a Grande Batalha e o retorno de Asdrúbal à Floresta DumDum no verão de 292.

Temos em nosso poder o Diário de uma prisioneira, escrito por Borboleta Azul Neta durante este período e gentilmente cedido por Asdrúbal. Os direitos de publicação já foram adquiridos por nossa editora e os fascículos deste pungente depoimento logo estarão nas bancas.

Em primeira mão, vou citar alguns trechos muito elucidativos:

“58 de outono de 290 – Já se passaram sete dias desde “aquilo”. Resolvi escrever um diário para que as pessoas um dia saibam tudo por que passei, para eu não ter sofrido em vão. Quando eu vi, naquele dia, Asdrúbal vir em minha direção, senti uma sensação assim por dentro, uma coisa, um calafrio e fiquei ruim da vista. Passei a enxergar só as cores das coisas. Asdrúbal não era mais Asdrúbal era só Amarelo, o resto era uma confusão, o chão branco. Quando acordei já estava aqui com esta mulher horrorosa olhando para mim. Depois de vários truques e perguntas assim de como quem não quer nada, consegui descobrir que é a mãe “dele”. Eu sou fogo mesmo para descobrir as coisas… Meu Deus! O que será de mim?

2 de inverno de 290 – Hoje a comida deu uma melhorada. “Ela”  preparou um vatapá e de sobremesa tinha quindim. A situação continua a mesma e eu ainda não sei o que pretendem de mim. Estou desesperada.

25 de verão de 291 – A saudade das minhas coisas aumenta. Daqui a alguns dias vai fazer um ano que estou aqui. As condições da prisão são péssimas e a falta de exercício já me fez engordar três quilos. Asdrúbal cortou a sobremesa e a manteiga mas não adianta que nada confessarei!

23 de inverno de 291 – Hoje ouvi uns papos estranhos de Asdrúbal. Não entendi bem, quando entender escreverei.

25 de inverno de 291 – “Ele” agora teima em me torturar com sua presença horripilante quase todas as manhãs. Não aguento mais esta tensão. Na primeira oportunidade me suicidarei.

26 de inverno de 291 – Continuo a ouvir palavras estranhas que não ouso entender. Ouvi uns comentários entre “ele” e “ela” e “ele” dizia que ia embora outra vez. Quando “ele” entrou no quarto tentei disfarçar a emoção que me dominava e fingi nada saber, continuando a pintar as unhas do pé como se nada houvera. Mas… sê-lo-á?!”

Três dias depois deste último relato o Diário se interrompe. Provavelmente Asdrúbal percebeu que sua prisioneira mantinha este documento e se apoderou dele de imediato.
A desesperança, a angústia e o enclausuramento foram provavelmente as causas que levaram Borboleta Azul Neta a seu leito de morte. Deixou-nos seu triste exemplo, mais triste ainda se pensarmos que foi dessa maneira idiota que o mundo viu morrer o último exemplar de borboleta azul.

Ficou seu exemplo que não esqueceremos.

 

Décimo-primeiro capítulo

Nosso relato chega ao fim. Da Floresta DumDum e da Borboleta Azul Neta nada mais temos a acrescentar. Acabaram. Quanto a Asdrúbal ainda nos resta comentar seu retorno ao nosso meio, fato de que muitos de vocês, apesar da pouca idade, ainda devem se lembrar.

Surgiu o boato que Asdrúbal ia chegar na maré das seis. O fato do retorno de Asdrúbal ter se dado em dia de domingo, não de trabalho foi, como veremos, determinante no desenrolar do acontecido.

Asdrúbal de fato chegara. Tinha vindo em bloco de gelo, resquício ignóbil e frágil do grande iceberg sobre o qual pretendera desembarcar glorioso em qualquer lugar que o vento por bem o aportasse. Duas coisas não previra: o calor líquido a dissolver seu barco e um vento calhorda levá-lo justo para onde não devia, isto é, para a praia da Floresta DumDum que, domingo, estava apinhada de gente.

Houve outra imprevidência que o perdeu. Se bem que talvez seja menos imprevidência e mais crueza do destino. Essa crueza se chama Sapo Nando. É que exatamente o mesmo dia, o mesmo local e o mesmo vento tinham sido escolhidos pelo conspurcado editor do falido Mundão da Floresta para voltar de seu longo exílio.

O mínimo que se pode dizer é que tal coincidência transformou o retorno de Asdrúbal no ponto mais fácil de todo o livro de História Geral pois, é inútil negarmos, a imagem de Sapo Nando incógnito e de Asdrúbal no bloco de gelo chegando na mesma hora escorregadia de óleo de bronzear é bem propícia ao riso e às chacotas dos estudantes. Mas, o que se há de fazer? Foi o destino a empurrar vento e Sapo Nando contra as glórias de Asdrúbal.

Aqui entre nós, acredita-se que Asdrúbal pretendesse na verdade desembarcar em pompa e honra na Argentina, local que ele conhecera na infância. Mas isso é especulação que não pode ser provada e que é baseada unicamente no poncho e no livrinho de letra de tango com os quais Asdrúbal chegou em nossas plagas.
Esta chegada foi exatamente o que se poderia esperar em tais circunstâncias: um fiasco completo para Asdrúbal, para Sapo Nando e para o bloco de gelo, avidamente chupado por três crianças calorentas.

O maior prejudicado foi, sem dúvida, Sapo Nando.

De óculos escuros e escura barba postiça, não foi reconhecido por ninguém, o que o obrigou, lá pelas tantas, a arrancar uns e outra em gesto dramático, berrando:
— Sou eu! Voltei incógnito! Sou o Sapo Nando, mancha das letras pátrias, pária dos homens de letras! Me prendam! Ou me aclamem!

Recebeu um ou outro abraço envergonhado dos amigos mais chegados de antes de se perder pelos caminhos da loucura. Sapo Nando, antes tão influente, é visto agora gastando sua grande fluência verbal pelas ruas, saudando passantes desconhecidos, discursando para postes e provando na areia da praia seus talentos passados em decassílabos molhados. Uma lástima.

Para Asdrúbal, passados os primeiros momentos de indecisão, quando não sabia se devia se atirar de volta a água ou fingir que estava tudo bem, optou pelo último e rumou, sem que ninguém percebesse, direto para sua ex-toca, transformada em museu. Está lá até hoje, em cima da tabuleta “Monstro Amarelo”, é bem fácil de achar, logo na entrada à direita. Uma vez por dia ele faz o seu discurso em português, inglês e espanhol, é pago para isso:

— Senhores e senhoras, eu sou o legítimo Asdrúbal e eis a minha verdadeira história:
“Era domingo de sol no verão de 292, a praia apinhada com o povo a me esperar, mas eu já naquela época não estava mais para essas coisas. As duas viagens que eu havia feito ao exterior, a primeira já lá se vão tantos anos, a segunda, em 290 na casa de minha mãezinha, a meditar e a sofrer os primeiros males de amor, tinham me tirado um pouco da impetuosidade. Voltara à Floresta DumDum sim, mas desejando um posto calmo – no máximo de segundo escalão –  e não mais o peso da responsabilidade já vivido e experimentado. Foi isso que fiz ver ao povo que tanto esperava de mim. Foram momentos dramáticos que exigiram tirocínio e força de vontada para não levar a mim e a DumDum ao caos.”

— Amores? A que amores o senhor se referiu? – pergunta não raro um visitante estrangeiro.
— É um detalhe triste de minha vida. – responde invariavelmente Asdrúbal. – Mas um convívio forçado de dois anos me deu a ilusão de amar um inimigo, ou melhor, uma inimiga, a Borboleta Azul. Hoje não existem mais, extintas por não se adaptarem ao ambiente de nossa Nova Floresta, com suas ruas, seu movimento… Mas quem viu pode testemunhar: eram lindas, lindas…

E o discurso acaba sempre com um urro médio, suficientemente alto para impressionar os turistas, mas não tão alto que infrinja a Lei do Silêncio. Isso pode dar a impressão que Asdrúbal, o Monstro Amarelo, é apenasmente uma curiosidade histórica, algo a ser olhado depois do leque da Imperatriz Leopoldina e antes dos coches da Monarquia. Mas eu queria avisá-los para que nunca se esqueçam, nunca, que monstros não morrem e que são terríveis, terríveis!

 

A breve história de Asdrúbal, o Terrível, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – A breve história de Asdrúbal, o Terrível (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

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Asdrúbal e suas maldade

Asdrúbal, o Terrível, vinha andando muito satisfeito, assobiando a marcha fúnebre. Tinha acabado de cuspir em uma borboleta e contava ainda em fazer um pipi caprichado em cima dos mariscos da praia.

Asdrúbal era um monstrinho ainda dos seus 700 anos de idade que adorava fazer maldade com todo mundo que morava perto dele. Sua mãe sempre dizia:
— Asdrúbal, cuspir em borboletas não adianta nada porque depois que elas secam tornam a voar por aí enfeitando tudo. Você tem que aprender a fazer maldades maiores, como seu pai.

O pai de Asdrúbal era Sigmundo, o Horroroso. Sua especialidade: entrar nos sonhos das pessoas, transformando-os em pesadelos.

 

 

Leninha fica mais limpa

– Ufa! Ainda bem que tem sol!

Leninha, a borboleta, acabando de se secar ensaiou um voozinho e partiu direto para o canteiro de flores.

— Esse Asdrúbal é uma peste. E como enxerga bem! Não adiantou nada eu fingir que era papel picado, me pegou direitinho. Bom, mas eu estava mesmo precisando de um banho.
Leninha cumprimentou todas as flores suas amigas e depois ficou de papo com o besouro que era contralto no Coro Noturno do Jardim.

Em dia de espetáculo, Leninha costumava tocar címbalo, mas tocava mal porque era muito distraída. Vivia levando pito do maestro.

Nessa noite ia ter concerto para festejar o nascimento da margarida, cuja semente a abelha tinha trazido de um outro jardim.

Bom, gente, então até as 7 horas, prometo não me atrasar dessa vez.

— Até logo, Leninha, e vê se treina um pouco de tarde, hein?

Depois que Leninha saiu, o besouro comentou com o sapo-maestro:

— Você ouviu? Asdrúbal tornou a pegar a Leninha. Será que ele vem estragar a nossa festa de hoje à noite?

 

Asdrúbal ataca outra vez

Asdrúbal agora tinha se deitado ao sol, espiando as nuvens lá do céu.

Imaginava como seria bom se pudesse espantá-las a todas com um vento uivante ou com uma tempestade ameaçadora.

Entregue preguiçosamente a esses agradáveis pensamentos nem percebeu a chegada de um gatinho que, como ele, vinha procurar o sol para tirar uma soneca. Asdrúbal estava cansado. Tinha quebrado cinco conchas, roubado a espuma de duas ondas e obrigado uma tartaruguinha a permanecer dentro do casco durante três horas seguidas, à força de fazer caretas e ruídos horripilantes.

Quando reparou, o gato já estava todo estirado, alisando os bigodes e se preparando para dormir. Era a hora. Pé ante pé – e olha que Asdrúbal tinha seis pés – o monstro horrível foi se chegando…

 

 

Um gatinho e um caranguejo

Tchibuummmm!!! A última coisa que o gatinho ouviu antes de mergulhar foi a gargalhada de Asdrúbal, aquele sem-vergonha, moleque, desocupado. Agora era tarde para lamentações. Rolando que nem pedra, o gatinho já estava quase no fundo do mar.
— Vou morrer! Não sei nadar!

O gatinho tremia de medo, sem coragem nem para abrir os olhos.

— O senhor está passando bem? Não abre os olhos por quê? Estão ardendo?
O gatinho pensou que era sonho: onde já se viu escutar vozes no fundo do mar?
Em todo caso arriscou uma olhadela. Na sua frente estava um caranguejo já velho, de óculos.
— O senhor se parece um pouco com um amigo que eu tive, o Alípio. Só que ele era um cachorro e o senhor parece ser um gato.

— S-sim, e-eu… e-eu…

— O senhor é gago, já sei. Não precisa se envergonhar. Gagueira se cura. Pior é esse pelo todo arrepiado. O senhor já ouviu falar em gumex?

— Há, há, há – riram os mariscos lá atrás.

— Estão rindo de quê, seus burros? O visitante pelo menos tem pelo, bigodes respeitáveis e uma cauda. E vocês que nem isso têm, hein?

Os mariscos se calaram e o caranguejo piscou um olho para o gatinho.
— Não ligue não. São mal-educados assim mesmo.

— Bem, muito prazer em conhecê-lo, mas agora eu tenho que voltar para a praia porque senão eu morro afogado, eu não sei nadar e …

De repente o gatinho percebeu que já estava há um tempão embaixo d’água.
Sem sentir, ele tinha perdido o medo durante o bate-papo com o caranguejo. E o que era mais impressionante, já estava respirando que nem os peixinhos, pela bochecha.
— Nossa! Não é que eu aprendi a respirar embaixo d’água!

— Ora, nada mais fácil. O meu amigo, o cahorro Alípio, além disso também sabia fazer um ipsilone com a cauda.
— Puxa! Mas que bacana! – O gatinho ensaiou umas cambalhotas de contentamento e abocanhou três sardinhas que passavm.

— Ei, vamos com calma!

— Desculpe, desculpe. É que eu estou muito contente! Sempre quis aprender a respirar embaixo d’água e nunca consegui. Nem mesmo molhar a pontinha do rabo, de tanto medo do mar. Desculpe, mas eu vou correndo contar a novidade lá para a turma.
– Ciau! Apareça quando quiser, ou melhor, sempre que não estiver com fome…

 

 

Uma reunião monstruosa

Os monstros estavam todos reunidos na casa de Asdrúbal, bebendo um coquetel de óleo de rícino com bolachinhas de pimenta.

— Precisamos mudar nosso estatuto. Assim não pode continuar. Vejam vocês, enquanto eu, apesar da idade avançada (tio Nicósio se orgulhava muito de seus 2.543 anos de idade), trabalho que nem um escravo de manhã até de noite, outros não fazem quase nada.

Tio Nicósio era encarregado de assustar galinhas durante a noite, fazer barulhos suspeitos dentro do quarto, fazer a comida do almoço ficar fria, chover a tarde inteira. Enfim, tio Nicósio realmente trabalhava muito.

— Olha quem fala – retrucou o pai de Asdrúbal. – E eu, que tenho que fazer 10 pesadelos por expediente, acha que é mole? Passo as noites em claro e isso sem falar no trabalho que dá me fantasiar de rinoceronte, de caveira e de mim mesmo.
— E quem é que azeda o leite dos gatos, põe pedra no sapato dos meninos, quem é??? (A prima Eustáquia estava ficando realmente zangada.)

Num instante o tumulto estava formado. Cada um achando suas maldades maiores que as dos outros.

— Quem quebrou aquele pé de hortênsia? Eu!

— Grande coisa, queria ver você cariar cinco dentes de uma vez, como eu fiz semana passada!
— Silêncio! Silêncio! Assim não é possível! Lembrem-se que, além do estatuto, temos que resolver de uma vez por todas se Asdrúbal já pode entrar no Jardim das Maldades, ou se continua mais um ano no Maternal.

Todos ficaram quietos. Mesmo os mais velhos respeitavam seu Tenebroso, o monstro mais terrível da terra, que sabia maldades de atemorizar até a si mesmo. E eis que, no silêncio que assim se fez, todos escutaram uma musiquinha que vinha de longe.

 

 

Muita música, muita dança

O sapo fez uma reverência e agradeceu os aplausos. Alguns pediam bis, bis e o sapo, muito vaidoso, não perdeu a oportunidade para mostrar de novo seu talento. Pigarreou, confabulou com as minhocas do corpo de baile, piscou para o grilo do piano e, com a varetinha de maestro, reiniciou “Minha poça d’água adorada”. Os mosquitinhos começaram a dançar. A lagarta verde, extasiada, lançava suspiros em direção ao sapo. Elegantíssimo em um fraque, ele fingia não reparar, embora estivesse estourando de orgulho por causar tanta emoção. O besouro, comandando o coro de lagartixas, sorriu para acalmar a borboleta, nervosíssima com medo de errar outra vez.

 

“Como é bom brincar

Na poça d’água quentinha

Em noite de luar, luar, luar”

 

Os vagalumes se acenderam no canto do palco e a libélula entrou piruetando, vestida de baiana rica. Mas quando o balé acabou, as palmas foram menos entusiasmadas, pois as pessoas já estavam ficando cansadas. Um sereninho caía, o que deixava as minhocas contentes, mas desagradava aos mosquitos. O sapo, vendo que estava na hora de acabar, atacou o Hino dos Jardins:

“Jardiiim maravilhoso

Cheioooo de encantos mil…”

Era a música que marcava sempre o final das festas.

Os bichos se levantando comentavam o sucesso:

— Pena que o sr. Louva-deus não tenha repetido o número das acrobacias!

— Qual você preferiu: o balé das libélulas ou o das minhocas?

— O das minhocas. Só que eu achei um pouco ousado demais. Enfim, é o tal do balé moderno, não?

— Você viu que bonita estava a borboleta?

— Pois é, ela me contou que um banho meio forçado realçou o brilho das asas.
Essa última frase foi dita pela lagarta verde ao passar por uma moita.

Atrás da moita estava escondido Asdrúbal, que como todos os monstros tinha ido ver que cantoria era quela. Quando Asdrúbal ouviu que a borboleta estava até mais bonita, quase morreu de tristeza. Treinar todo o dia para cuspir na borboleta e quando vê, a cusparada foi até um benefício.
– Você sabe. A borboleta não é muito afeita a banhos e sempre fica com aquela poeirinha nas asas. Pois hoje estava sem a poeirinha. Por isso estava tão bonita.
Asdrúbal só não chorou de ódio porque monstro não chora.

Os bichos foram pouco a pouco entrando em suas casas e no jardim deserto só restaram os monstros. Cada um com mais raiva do que o outro.

— Da próxima vez afogo logo aquela enxerida que se acha o fino só porque tem duas asas azuis.

Asdrúbal estava realmente possesso.

Muito deprimidos com a alegria e beleza presenciadas, os monstros se desejaram uma péssima noite e foram dormir.

 

 

Gatinho faz inveja

No dia seguinte, Asdrúbal sofria outro revés na sua luta contra os bichos.
Sua vítima, o gatinho, contava para os amigos, tintim por tintim, sua aventura.
— Aí, eu…

— Oh! A gatinha suspiradora nem estava mais ouvindo o que o mergulhador dizia. Só pensava em como deveria ser emocionante saber ela também respirar embaixo d’água…

 

 

Um amarelo diferente

A margarida que tinha sido homenageada pelos bichos do jardim estava agora mais crescidinha e já começava a preparar uma flor.

Todos os bichos, ao seu redor, esperavam para ver a flor nova. Mas a margarida, preguiçosa, não tinha pressa alguma. Quando enfim pôs uma pétala para fora, soltou um suspiro de satisfação: estava batendo uma brisa tão agradável…
Seu enlevo foi interrompido por uma série de ‘cruzes!’, ‘ahn!’, ‘ais!’, ‘credo!’, ‘virge!’.
Olhando para baixo, a margarida viu uns bichinhos engraçados com cara de espanto.
— Nossa! A margarida tem a mesma cor que o Asdrúbal!

— Ai que susto! – falou a baratinha, que já tinha ensaiado uma corrida.

— Mas até que nela o amarelo fica bonito.

A margarida rapidamente estendeu as outras pétalas e, muito curiosa, logo quis saber quem era aquele pessoalzinho.

— Muito prazer, sou a lagarta verde. Às vezes como uma folhinha aqui, outra ali, mas de resto sou de muito boa paz.

— Eu sou a abelha. Eu é que te trouxe lá do jardim do vizinho, quando você ainda era assinzinha.
Feitas as apresentações, a margarida perguntou quem era esse tal de Asdrúbal. Ficou horrorizada.
— Ele provavelmente vai querer logo quebrar teu caule ou pintar tuas pétalas de preto. Se isso acontecer não se preocupe. Existe o Grupo da Resistência, especializado em colar folhas partidas, pôr tala em asas quebradas. É um grupo de velozes mosquitinhos que nas horas vagas ficam zunindo nos ouvidos dos monstros.

 

 

E por falar em Asdrúbal

Bem perto da estrada tinha uma flor enorme, apetitosa, linda, se balançando ao vento. Saindo da flor tinha um barbantinho disfarçado de teia de aranha, que ia dar diretamente na mão do Asdrúbal, escondido atrás de uma moita. A flor era de plástico e Asdrúbal estava tentando, pela trigésima quinta vez, pegar a borboleta azul. De vez em quando ele mexia com a mão para a flor se balançar, lá longe, e atrair a borboleta mais depressa.

— Hoje eu pego. Hoje eu destruo, aniquilo, acabo, mato, sumo.

Estava tão contente com seu invento que nem ouviu aquela vozinha atrás dele:

— Psiu… seu Asdrúbal… psiu…

Quando Asdrúbal se virou, viu uma gatinha branca, suando em bicas e olhando arregalado para ele.

Era a primeira vez que um bicho chamava por ele e Asdrúbal, de tão espantado, deixou cair o barbantinho da mão.

— Seu Asdrúbal… é o seguinte… o senhor… eu também queria…

Asdrúbal chegou mais para perto. Não estava ouvindo direito o fio de voz que saía da garganta da gatinha. Mas a gatinha, assustadíssima, desandou a correr assim que viu Asdrúbal tentando se aproximar. Asdrúbal deu de ombros e voltou a pegar o barbantinho do chão. Alguns instantes depois, a vozinha voltou:

— Seu Asdrúbal…

Agora a gatinha se mantinha prudentemente atrás da árvore.

— E-eu também queria conhecer o fundo do mar. Será que o senhor pode me dar um empurrãozinho, só para ajudar?

A gatinha, tremendo que nem vara verde, toda arrepiada, prendia a respiração.
Assim era demais. Asdrúbal nunca tinha sido tão humilhado em toda sua vida. Pedirem uma maldade, como se fosse um favor! Ousarem dirigir a palavra a ele, Asdrúbal, o Terrível. E o medo que todos tinham de ter? Asdrúbal ficou roxo de ódio.
Era demais. Lançou o olhar b.29 (só usado em ocasiões especiais) e, enquanto a gatinha desmaiava de medo, foi embora.

E nem reparou na borboleta azul que, enfim, estava chegando.

 

 

Parar para pensar

Asdrúbal, sozinho dentro de casa, pensava na vida.

Quando ele ainda era bebê, as coisas eram bem diferentes. O tio Nicósio e o seu Tenebroso determinavam o dia das flores se abrirem, a hora do sol dar sua voltinha e quantas músicas as cigarras podiam cantar por semana. Mas com a notícia de que aquele lugar era o ideal para monstros viverem, todos os monstros da redondezas tinham vindo morar ali. Os bichos começaram então a perder o medo. Era para mais de 12 monstros, cada um dando uma ordem diferente.

— Bem-te-vi só às terças e quintas, das 3h15 às 4h00 da tarde.

— Não, porque nesse horário eu costumo dormir. Bem-te-vi tem que cantar das 6h40 às 6h45 da manhã.

— Às 6h40 já tem cigarra. Cigarra com bem-te-vi vai dar uma cantoria insuportável.
As discussões eram intermináveis e os bichos se aproveitaram disso. Cantavam na hora que bem entendiam. Quando algum monstro vinha para castigar o faltoso, o bicho dizia ter recebido ordem de outro monstro. A confusão se instalou. Logo depois, os monstros souberam que os bichos tinham criado o tal Grupo da Resistência. No começo, só de pensar em um bando de mosquitinhos com o glorioso nome de Grupo da Resistência, Asdrúbal morria de rir. Mas agora, depois do pai ter sofrido um ataque deles, evitava-se falar neste assunto dentro de casa.

— Asdrúbal, você viu algum passarinho azul para estar assim tristonho?
Era a mãe de Asdrúbal chegando das compras. Compras é maneira de dizer, pois esta senhora resolvia seus problemas de maneira diferente: ia passando e pegando ovos de passarinho com broto de samambaia, milho das galinhas com mel de abelhas. Era passar e pegar.

Pelo menos isso não tinha mudado, pensou Asdrúbal.

— Se você está triste, meu filho, eu também estou. Imagine você, eu estava passando pela casa do ratinho e enfiei a mão lá dentro para pegar o queijo da sobremesa e levei uma dentada!

Asdrúbal não se conteve e fez o que monstro não faz:

— Buáááá…

— Meu filho! O que é isso… Não precisa ficar assim tão triste, eu soprei um bafo bem fedorento lá dentro e o ratinho teve que entrar em tenda de oxigênio para se recuperar. Asdrúbal, meu filho … para de chorar …

— Buááá…

— O que esse menino tem para chorar desse jeito? – Era o pai de Asdrúbal chegando do trabalho.

— Nada, eu estava contando a ele como ratinho… Querido! O que foi isso no seu nariz??
— Nada, bolas! Ralei sem querer e pronto, não se fala mais nisso.
Asdrúbal parou de chorar e olhou o pai. O nariz dele estava vermelho, igual ao dia em que ele tinha sido atacado pelos mosquitinhos do Grupo da Resistência. Outra vez.
Asdrúbal ficou pensando, pensando … Talvez esses mosquitinhos não fossem tão bobos assim…
O pai de Asdrúbal sentou-se pesadamente na cadeira:

— Acho bom a gente tirar umas férias…

 

 

Rumo à Argentina

Em um canto, a barata de estimação de Asdrúbal esperava pacientemente o seu dono acabar a arrumação das malas.

Em outro canto, Asdrúbal enrolava seu jogo de teia-de-deixar-aranha-maluca, enquanto resmungava irritadíssimo: “Argentina! Aposto como é outra droga!”
O pai tinha resolvido fazer a viagem sem falar com ele, logo depois daquele dia em que chegara pela segunda vez com o nariz vermelho e inchado.
— Meu filho, ande depressa senão a gente perde a carona da frente fria que está voltando para o Pólo Sul.

— Meu filho, escute o que eu estou dizendo: aqui não é mais possível. As maldades da gente já não funcionam mais. Todos os bichos já estão cansados de saber todas elas de cor e salteado. E depois que uma maldade se torna muito conhecida o medo das pessoas diminui. Todos nós, os monstros, sempre tivemos esse problema: imaginar novas maldades. Já falei com o Nicósio: vamos prestar exame de doutorado em monstrologia. Quem sabe se com mais técnica a gente consegue voltar aos dias de glória de antigamente.

A única contente era a barata de Asdrúbal que, muito cínica, só para irritá-lo, cantava baixinho:
— Corrientes 348, segundo piso…

Asdrúbal deu um pontapé na barata e foi o tempo de saírem todos correndo atrás de um relâmpago que passava.

 

 

O vento-correio

Só as formigas não notaram nada.

Tão acostumadas a andar e trabalhar de cabeça baixa que nem viram a poça d’água dançando samba ao vento, o sol lançando cada raio de uma cor diferente e todos os bichos de roupa nova.

Era uma manhã de quarta-feira e deveria estar chovendo, segundo o boletim meteorológico. Mas o boletim meteorológico se enganou nesse dia e em todos os outros que se seguiram. Durante um ano fez sol todo dia, pois o vento tinha prometido:
— Em homenagem à partida dos monstros dou minha palavra que doravante espalharei sempre as canções dos bichos e só trarei boas notícias, boas notícias, boas notícias…
Os bichos ficaram ouvindo o eco.

O vento já estava longe.

Talvez na Argentina, transformado em furacão e alegrando os monstros.
Na Argentina, os monstros neste momento ouviam o assobiar de um vento forte pela janela da sala de aula:

— Muito bem. Nossa primeira lição é referente a como não se deixar influenciar pela alegria reinante, este vírus que pode corroer o planeta.

Asdrúbal, sentado em sua carteira, roeu a ponta do lápis, olhou pela janela cinzenta e suspirou: na Argentina não tinha nenhuma borboleta azul para distraí-lo no intervalo das aulas.

Às seis em ponto – reviews

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Às seis em ponto (Brasil, Companhia das Letras, 1998, 128 p.)

 

Review published in: Espéculo, Revista de Estudios Literarios, number 14, Universidad Complutense de Madrid, March 2000.

El cuarto romance de Elvira Vigna, A las seis en punto (lanzamiento de la editorial Companhia das letras, 128 páginas), nos continúa ofreciendo, así como el título anterior de la autora, El asesinato de Bebé Marté (de la misma editorial), énfasis en una estructura literária muy particular. Más una vez se trata de una narrativa que introduce, o que nos muestra otra. Aquí, un pequeño viaje de final de semana a una ciudadela de veraneo, nos remite o otro viaje, hecho una semana antes, donde hubo una muerte. Más una vez, como sucedía en Bebé Marté, la muerte puede haber sido un crimen, o sea, un acto deliberado de matar, o no.
También, como en Bebé Marté, el muerto es un viejo, una figura paterna, víctima y culpado al mismo tiempo, lo cual coloca en primer plano el tema sociologicamente justificado de la muerte del padre cultural ,de la antropofágia incesante de las sociedades tercer mundistas. Si en Bebé Marté, la “culpa” del muerto era tener un impulso vital ausente en la asesina, en A las seis en punto, la “culpa” es igualmente un impulso, de esta vez más claramente sexualizado. Tanto en un caso como en el otro, la muerte es la única posibilidad de la narradora de seguir con vida. La “deglución” cultural de la cultura norteamericana de masas es también la única posibilidad de mantenimiento de una especificidad social brasileña.
El viaje de la narración principal sucede a través de la Bajada Fluminense, una de las regiones más pobres de Brasil, y esto no es un acaso. Entre los nombres vagamente en inglés de los moteles de encuentros, entre los carteles de la carretera que señalan direcciones siempre diferentes, sobre los ríos con nombres indígenas, está el paisaje que pasa por la ventana del carro, con las cabañas, los niños volando papalotes, los ómnibus que vienen de localidades también de nombres indígenas- un buen resumen de la deglución incesante y no por eso siempre exitosa de la contemporaneidad.
Dentro de un carro, la narradora y su amante viajan en silencio, tanto en la ida como en la vuelta, cuando él ya sabe que fue ella quien mató al padre, la semana anterior. Es gracias al silencio de él que la narradora se da cuenta de que él sabe todo. En la ciudadela, durante un desayuno com la familia y en presencia de una reproducción de Velásquez, es también a través del silencio que la narradora comprende que talvez todos los acontecimientos que culminaron com la muerte del viejo, fueron cuidadosamente planeados. De esta manera, los dos momentos máximos del drama ocurren a través del silencio. Silencio este que falta en una cultura cargada de músicas que no se sabe más si son brasileñas, latinoamericanas o americanas y que los protagonistas bailan automaticamente. Como en Bebé Marté, A las seis en punto presenta unidad temporal y espacial. La acción de Bebé Marté ocurre en 24 horas, un día normal de trabajo com una fiesta de noche. La acción de A las seis en punto también sucede durante un único día: una mujer que vuelve a ver una reproducción de “Las infantas” de Velásquez, promotor de la acción.
Este libro recibió el Premio Ciudad de Belo Horizonte, en 1998.


Alle sei in punto – Riassunto per Patrizia di Malta:

Teresa, l’io narrante, fa un viaggio in macchina con il suo uomo per la cremazione del padre. La settimana prima ha fatto lo stesso viaggio. Da sola. Per andare ad uccidere il padre. E’ stata una morte involontaria, dovuta ad un incidente accaduto durante una violenta discussione. Ha bisogno di dirlo al suo compagno, ma ci riesce solo quando sono già tornati a casa. Lui l’aveva già capito. Un foglietto sul quale lei aveva annotato il consumo di benzina certificava un uguale consumo, un giorno che lei aveva detto di essere rimasta a casa con il mal di testa. Il viaggio si snoda attraverso la Baixada Fluminense, una delle regioni più povere e pericolose dello stato di Rio de Janeiro, con i motel e i gommisti con i nomi scritti in inglese scorretto. Tema di questo libro è la difficoltà di raccontare una storia. Teresa è ossessionata dall’idea di fare i conti con il proprio passato, e più in particolare con la sua infanzia, in cui la vediamo posare nuda per il padre, mentre questo la ritrae su una tela in una stanzetta sul retro. La madre solitaria, la sorella grassa e il fidanzato di turno le fanno da spalle in questa trama delirante. Realtà, finzione, memoria, emozioni si fondono in questo buio ritratto, contrapposto al quadro Las Meninas, di Velasquez, in una metafora tra osservato e osservatore, in un gioco di specchi proprio di chi desidera ostinatamente scoprire il lato magico della vita e le sue implicazioni emozionali. In un contesto fortemente edipico, la Vigna dipana la matassa della storia narrata a strati, come dipingendo un quadro, aggiungendo mano a mano informazioni e suggerimenti, allo stesso modo in cui Velaszquez dipingeva irritato le sue tele, cercando di fare emergere la verità dalla mediocrità che reggeva la sua vita.


Excerpt: (trad. Andrés Roig)

“Y además hay, claro está, el libro. Estaba allá, hoy, en la casa de Miracema, en las pilas de cosas ya arregladas para la mudanza, en la sala de mi madre. No lo abrí, no tendría por qué. Lo que yo quería estaba plenamente visíble, en la portada, debajo del título Los Grandes Pintores del Mundo. Una reproducción de Las Infantas, de Velásquez.
Es posible que en las mezclas de mis recuerdos, este libro haya estado de hecho en el cuartito de los fondos en la misma época en que era un atelié, para, bueno, componer el ambiente. Es posible también que no, que yo me haya quedado muy impresionada con tan bonito libro, la Infanta tan bonita, y que haya simplemente, yo, en mi cabeza, juntado el libro con este período de pintura de mi padre que ¿duró cuánto? Difícil saber, más fue poco tiempo con toda certeza.
Y ahora viene la parte que, el viernes pasado, yo descubrí no haber existido. Después de la mano gruesa apartando el escote de mi dormilona, mi padre fue para el cuartito y yo fui atrás de él y después yo estoy de pie encima de un banquito bajo, el espejo de la puerta de un armario que allá había está torcido y me llama la atención com su imagen distorcida, poco nítida.Yo me acuerdo tan fuerte de mí, mirando fijamente para esta puerta de armario torcida, cuyo reflejo está tan poco nítido. Mi dormilona está colgada en el picaporte de la puerta y yo tengo frío en mi piel desnuda, frío compensado por un calor que nace entre mis piernas. Mi padre me pinta y me mira y me mira intensamente y es esta la mirada de la cual huí mi vida entera a punto de jamás haber conseguido, yo, mirarlo a él con miedo de que él me retribuyese la mirada—y yo no aguantase.
Yo posaría en la pose de la Infanta Margarita porque—y este sería un secreto entre mi padre y yo—él aún estaba aprendiendo como es que se pintaba y no sabría pintar bien una niñita, más él no quería que las personas comentasen sobre como él aún no sabía pintar muy bien, entonces yo posaría en la pose de la Infanta Margarita. Y después, com calma, mi padre colocaría los brocados, los lazos de cinta, las joyas y los bucles y yo quedaría simplemente linda y nadie sabría que aquella linda del cuadro sería yo, sólo mi padre y yo, y esto sólo haría aumentar mi placer de quedar, a final, linda.
Fue algo construído, montado, en mi cabeza por muchos años y hubo una época en la cual yo traté de saber de los hechos, averiguar, llegué a preguntarle a mi madre si ella sabía que fin habría tenido una reproducción de Velásquez hecha por mi padre hacía muchos años, más ella me dijo que no sabía de lo que yo estaba hablando. Como siempre, me quedé com la impresión de que mentía. Después más tiempo fue pasando y más tiempo aún y toda esa historia fue quedando atrás, primero al lado de tantas otras historias y después inclusive menor que otras historias. Al punto de, el viernes pasado, y esto cuando lo pienso ahora es realmente increíble, cuando el viernes pasado yo subí para Miracema, era de noche y hacía mucho tiempo que yo no llegaba a Miracema de noche.
Debe de haber sido por eso que lo que me invadió no fue rabia de mi padre, no fue la revisión minuciosa de lo que yo iría a hacer o a decir cuando lo viese, de allí a pocos minutos. Lo que me invadió fue la alegría que yo sentía, de niña, llegando a Miracema otros viernes de noche, para pasar el final de semana en nuestra casa de finales de semana, el frescor tan reconfortante de la sala vacía, esperandome después de una secuencia que comenzaba com el salto que el carro daba al pasar del asfalto para los adoquines. Y a esa hora, yo sola en el carro, llegué a disminuir la velocidad aunque no fuese necesario—no había tránsito ni nadie, hora de la novela. Y fue despacio que seguí, el puente, el lugar del mercado, las laderas, la casa de Leontina y casi paré. Casi paré en la casa de Leontina. Sería fácil: Hoolaaa. Pero que sorpresa!!
Pues bien, vine a ver a mi gente y olvidé que mi madre y mi hermana no estarían en casa, vé como está mi cabeza.
Pero entra chica! Come alguna cosa con nosotros. Mamá, mira quien está aquí!
Por un instante—y esto es increíble—yo podría perfectamente haber ido a Miracema el viernes pasado y estacionado dos portones antes del portón de la casa de mi familia, entrado en la casa de Leontina, allá haberme quedado platicando y después vuelto. De muy poca cosa está hecha la vida.”


Capitolo I
(trad. Patrizia di Malta)

 

Non mi sento bene. Quest’odore mi dà la nausea. Fame, anche. E i campari. E la Baixada, che sputa autobus, vecchie macchine, furgoncini volkswagen, che spuntano all’improvviso davanti alla macchina, emettendo ondate di fumo nero, la macchina al massimo a sessanta all’ora, anche meno, perché Haroldo è prudente e frena prima, molto prima, e non sorpassa se non è il caso. Nel dubbio, sorpassare. Lui no, non esce da dietro quel fumo ma se chiudo il finestrino è peggio.
Facile. Basta contare.
Haroldo, sono stata a Miracema settimana scorsa.
So che lo sa già. Il foglietto.
Il foglietto ondeggia appeso al manubrio, non si dice manubrio, si dice volante. Cose che ti restano dentro. Manubrio, ripeto mia madre nelle sue parole così raffinate, apprese tardivamente e per questo inserite dentro alle frasi come gioielli – come quelli che lei comprava uno dopo l’altro, a rate. E che poi ammirava, girando e rigirando il gioiello e il portoghese, la concordanza, la pronuncia nelle esse, errori sempre in agguato, imperfezione da bandire, inammissibili carboni nel diamante. Una volta venne operata. Sdraiata sul letto, domandò all’infermiera che entrava: la signora adesso mi farà la toilette? E quella che la guardava, senza capire. Poi capì, Ah! La barba ai peli lì? Sì, adesso la facciamo. E uscì ridendo – tualet! – per prendere il rasoio.
Haroldo, venerdì scorso mi sono alzata alle sei in punto. Un buon titolo per una storia: La donna che si alzava alle sei in punto.
Ed è anche per questa ragione che non mi sento bene. Stanchezza, mi sono svegliata presto, le sei è presto. Se riuscissi a staccare gli occhi dai tetti delle casette sotto al livello della strada, fili della biancheria, antenne, alberi, luci che si accendono, ragazzi tardivi che fanno ancora alzare in volo i loro aquiloni, guarderei l’orologio – dev’essere l’ora del whisky – ma non posso fare nessun movimento. Un movimento qualsiasi e precipiterebbe tutto, domande, sguardi e vomito. Il foglietto dondola attaccato al manubrio e io so, senza guardarlo, senza muovermi, che i numeri annotati si ripetono. E non è nemmeno necessario che guardi Haroldo per saperlo: le due mani sul volante, lo sguardo sulla strada, la velocità costante quando è possibile perchè a volte non è possibile e nella Baixada non mai è possibile e ho l’impressione che tutta questa costanza non sia possibile, neanche dopo, a macchina posteggiata, in salotto, noi due in piedi in salotto.
Haroldo, è stato così così, noi.
Ma questa storia non è per lui, questa fa parte di un altro repertorio, uno di quelli presentati e rappresentati in salotti, altri salotti, freschi, con piante, cuscini, donne con le gonne lunghe, té.
Oggi mi sono svegliata alle sei.
E non ho pensato a come sarebbe stato questo mio viaggio a Miracema che ha finito col diventare non il mio viaggio ma il nostro viaggio, mio e di Haroldo, a Miracema. Mi sono svegliata e ho richiuso gli occhi e non ho pensato a Miracema, ho pensato a ieri. E ho pensato: è stato così così.
La donna che trovava tutto così così (potrebbe esere il titolo)
Mi sono svegliata alle sei e so che mi sono svegliata alle sei perché mi sveglio tutti i giorni alle sei, ma anche se lo so controllo lo stesso i numerini verdi – quasi dei piccoli marziani, proprio come quelli che ci hanno sempre detto che esistono. Un certo piacere nel dire a me stessa: ancora le sei. E nel non riuscire lo stesso a riaddormentarmi.
Richiudo gli occhi comunque perché mi piace, quando mi sveglio, fare una specie di bilancio del giorno prima: devo iniziare questo nuovo giorno triste? allegra?
E il bilancio di oggi, amiche mie dalle lunghe gonne, è stato il seguente: così così.
Guardo l’orizzonte da dove potrebbero spuntare facce conosciute, che procedono scivolando come nuvole. E quando dico a me stessa: è stato così così, labbra si stringono, sguardi mi fucilano e la più sincera – Lucia? Vera? – grida isterica che sono pazza, completamente pazza.
Perchè, è la verità, dopo la prima che, come sempre, è stata molto bella, sono riuscita ancora a cavarne una misera seconda dai gemiti spudorati prima di crollare senza fiato – un giorno o l’altro ci rimango – sopra al suo petto. Parere unanime verbalizzato dalle nuvole all’orizzonte: non so dare valore a ciò che possiedo. Se mi trovassi in uno di quei salotti freschi, con piante, cuscini, una di noi si alzerebbe dichiarando categorica: vado a scaldare l’acqua per il té. E, nel passarmi davanti, sbatterebbe con violenza contro il supporto del vaso alla parete, contro il vaso e non addosso a me, perché le mancherebbe il coraggio di spintonarmi, di prendermi a unghiate, gli uomini sono così rari e io mi metto a fare la preziosa.
Ci raccontiamo tutto di noi, in questi salotti. Dicono che noi donne siamo così, raccontiamo. Diciamo che sì, è vero, raccontiamo di tutto. Ma non è proprio così. Raccontiamo storie. Non è la stessa cosa. E sono storie specifiche, appartengono non esattamente a noi ma a questi salotti, gonne, felci, té o vino bianco. Basterebbe la presenza di un uomo, e non ci sarebbero più storie.
Haroldo, non la racconterò.
Ho fatto uno sbaglio. Più d’uno. Ma mi atterrò allo sbaglio di oggi, è uno sbaglio che io mi trovi su questa macchina, con Haroldo che guida, il foglietto sul volante, la Baixada a mia disposizione e io che non riesco a concentrarmi sulla Baixada, perdendo così l’opportunità di concentrarmi sulla Baixada, mi piace tanto, quando viaggio in macchina, guardare tutto. Non sto guidando io, potrei guardare, sarebbe così bello lasciare vagare lo sguardo in lontananza per la Baixada, molto in lontananza, alla distanza ideale: quella di una macchina che passa nella sua velocità ipnotica e ripetitiva anche se non costante, i ritmi diversi alla fine si ripetono – è la stessa cosa che stare fermi ma lontani. E in lontananza la Baixada. Tutta la vita in questo equilibrio di una velocità che non si muove, e la Baixada. Incidenti sulla strada, dice una targa, anche tu ne sei responsabile. Cintura di sicurezza – la tua amica del cuore, Insegne Luminose Vitória, Pneumatici Michelin, Adunanza di Dio – funzione alle sette.
Haroldo può scegliere tra Penha, Região Serrana e Brasília ma tira dritto. Attenzione a non attraversare la strada ma lui non la attraversa. Bob’s, Pneumatici Benfica, Stoptime Hotel.
So qual’è stato il mio errore, oggi. Lo stesso errore di sempre, l’errore Santa Calma Piatta. La donna Santa Calma Piatta.
Quando mi sono svegliata, stamattina, ho aperto gli occhi, li ho richiusi e poi li ho riaperti. Dalle tende entra una luce. La luce arriva da dietro ai peli del torace di Haroldo e io rimango immobile a guardare i peli che la luce fa sembrare dorati, e il pulviscolo nell’aria, anche quello dorato dalla luce. Me ne sto tranquilla a pensare che l’universo è finito ed è rimasto soltanto questo: una luce, peli e pulviscolo che, per esistere, hanno bisogno di occhi che a loro volta sono ancora vivi soltanto perché c’è la luce, i peli e il pulviscolo e che tutti – occhi, luce, peli, pulviscolo – hanno molta paura, sono paralizzati dalla paura. Perchè per un nonnulla qualsiasi, un movimento anche solo pensato, e tutto potrebbe finire in un nanosecondo, compresi i pesci, grandi, bianchi ed anch’essi immobili, che cercano anch’essi di evitare qualsiasi movimento, là sul fondo senza luce del mare, essendo i pesci l’antimateria di questa materia diurna. Potrei rimanere così per sempre. E sapere che effettivamente potrei rimanere così per sempre mi riempie di un altro tipo di paura, questa molto più vera. L’antidoto, ovvio, sarebbe muoversi. Ma se mi muovo, faccio partire il salutino, amorino, caffettino, sorrisino. Quindi, stamattina, ho pensato che meritavo di prendermela un po’ comoda.
Mi sbagliavo.
Il telefono squilla.
Penso: non è possibile.
Di nuovo, no.
Ed è in questo momento che mi prende il primo – di una serie che temo non sia ancora finita – malessere del giorno. Perché lunedì scorso la donna di servizio di mia madre mi ha salutato con un “salve” con la sua voce acuta ancora più acuta, com’è possibile avere una donna di servizio con una voce così.
E quel “salve”, come stamattina, è arrivato che non erano neanche le sette.
E poi aveva detto, lunedì scorso, che le aveva quasi preso un colpo. A momenti mi prendeva un colpo, signora Tequinha. E insistette sul non avere alcuna colpa per essere arrivata così tardi la sera prima, sapesse che disgrazia, signora Tequinha, e che lei non era lì a badare alla casa ma che io non potevo immaginare cosa le era successo, che dovevo figurarmi che la sua amica aveva avuto un problema e allora. Ma che ancora non sapevo cosa era successo a mio padre e lei che mi annoiava con i suoi problemi. E che lei in effetti era arrivata molto tardi, anche se non era stata colpa sua, e siccome era tardi era andata direttamente nella sua stanza e così non aveva visto niente e l’aveva visto soltanto quella mattina.
E che mi stava telefonando perché la signora Clotilde le aveva chiesto di telefonarmi.
Così, quando il telefono ha squillato, stamattina, ho pensato che avrei sentito la voce della donna di servizio con la sua voce acuta in un parossistico record di acutezza dire un’altra volta: una disgrazia, signora Tequinha. Rimane da capire di quale disgrazia si tratti.
Mia madre appesa al soffitto.
Mia madre appesa al lampadario per il collo. Cha cattivo gusto, Maria Tereza. Che cosa di cattivo gusto. Figuriamoci se io potrei stare appesa ad un lampadario, con le gambe penzoloni. E perché poi? Non ho fatto niente.
Lady Macbeth in un allestimento post-moderno, i lampadari della casa di Miracema sono di resina. Avrei un’impossibilità tecnica di produzione: i lampadari di resina si spezzerebbero con il peso del corpo appeso, e, di conseguenza, della logica contemporanea, quella che a Shakespeare non ha mai dato problemi.
Ma, allestimento o no, Lady Macbeth ha ragione. Non abbiamo fatto niente. Nessuno di noi, neanche lui, il morto.
Haroldo, venerdì scorso sono andata a Miracema e non ho fatto niente.
L’Hotel Palmeiras, l’Hotel Luxemburgo, il Capri Motel e Hotel – suites, idromassaggio, e il Las Vegas Motel – R$ 15,00 – l’amore a portata di tutte le tasche, entrano ed escono dalla mia visuale, in fila indiana. Ma stamattina, al contrario di adesso che neanche gli occhi, Haroldo si muoveva.
Stamattina il telefono squilla, l’universo torna ad esistere, e Haroldo si muove di fianco a me nel letto. Non sono nemmeno le sette e lui solleva la testa, perplesso, guardandomi come se fossi io a fare drin.
Salta giù del letto, portandosi dietro il lenzuolo per avvolgervisi, pudico, ma io riesco a vedere uno spicchio di sedere bianco che ondeggia verso il mio scaffale, essendo i lenzuoli marroncini, e solo il sedere bianco.
Haroldo una volta era un cane, inizio, rivolgendomi alle nuvole all’orizzonte, gonne arancioni – che diventano sempre più rosse – si agitano e sento le voci delle mie amiche: eccola di nuovo con le sue storie, la Teca, un cane, figuriamoci, un pezzo d’uomo come quello.
L’uomo che una volta era un cane.
La domenica mattina mi sveglio e faccio sempre tutto allo stesso modo: caffé, letto, gatta e pianta. Esco per camminare e cammino. Mi stanco e mi siedo, bevo una agua de coco. Una domenica, cammino, mi stanco e mi siedo. Sul gradino del marciapiede. Passa Haroldo, lento, con la lingua di fuori, senza la minima fretta. Si ferma davanti a me e si mette a guardarmi, le orecchie ritte ma non molto, la testa grossa ma non molto, di un bianco un po’ sporco, resta lì, a guardarmi e basta, simpatico, solidale. La padrona attacca discorso.
Si chiama Haroldo, il cane. E sta cercando una fidanzata.
Il giorno dopo, alle dieci, nel mio ufficio, la segretaria mette giù il telefono, il signor Plocò, che sta facendo un lavoro per la nostra società, chiede di parlare un istante con me.
Entra, mi porge il suo biglietto da visita, H. Plaucowzski – Consulenza per Telecomunicazioni. Rimane fermo davanti a me, senza fretta. Io cerco di leggere il nome. Lui sorride simpatico: può chiamarmi Haroldo. E resta lì a guardarmi, la testa leggermente inclinata, i capelli pepe e sale ma non troppo. Mi viene voglia di chiedergli se sta cercando una fidanzata ma è lui ad aprire la bocca per primo: sta cercando un posto per infilare il suo cavo.
C’ero andata vicina.
I drin continuano, imperturbabili, finché Haroldo, in questa mattina di buon’ora, già di ritorno dallo scaffale e senza spicchi di sedere in vista, senza niente in vista (a quanto pare, ha più attenzioni per il nudo frontale che per il dorsale), mi porge il telefono perché io risponda, sempre così cavaliere. Il mio “pronto” esce forte, sulla difensiva, nel caso che qualcuno domandasse se è il gommista all’angolo o che fosse di nuovo – non sempre la fiction è fiction – la voce della donna di servizio di mia madre, pronto, è la signora Tequinha? una disgrazia, signora Tequinha, si figuri che.
Mi viene in mente, caso fosse di nuovo la donna di servizio di mia madre, di prendermi la libertà di essere assolutamente sincera, almeno per una volta: signora Tequinha? sarei io, la signora Tequinha? Non ho la minima idea di chi sia la signora Tequinha, signora, deve essersi sbagliata. La signora Tequinha dovrebbe essere la donna nuda nel letto che afferra il telefono che le porge un pezzo d’uomo in piedi di fronte a lei? Le unghie di una signora Tequinha dovrebbero essere pitturate di rosso, credo. E forse dovrebbe essere grassoccia.
E c’è dell’altro: quando dico che una signora Tequinha – questa, quella, quella con le unghie pitturate di rosso, grassoccia e nuda nel suo letto – afferra la cornetta e la accosta alla bocca su cui aleggia qualche rimasuglio di rossetto della sera prima, stiamo parlando di un telefono-telefono? Spero di si, non ho pazienza per le metafore, non prima delle sette del mattino, ma è Beto.
Restituisco il telefono ad Haroldo dicendo, è Beto.
Haroldo risponde, dice capisco, capisco, guardandomi e credo sia stato allora, proprio allora, che ho cominciato a sbagliare. In quel momento entravo – ero distratta, le sei del mattina – nella parte di Santa Calma Piatta.
Perché Haroldo dice capisco, capisco, non fa niente, figliolo, certo, certo – e mi guarda ed è stato allora che avrei dovuto avere uno sguardo distante, brechtiano, da stronza, è impressionante come ciò che fino a ieri era considerato cultura, diventi da stronza in un batter d’occhi. Ma il mio sguardo, al contrario, è stato sollecito, perché mai?
Ho sempre detto che Beto ha bisogno di una bella legnata. Camicia bianca con taschino, fidanzata vergine, calze nere, collegio militare come interno o un bel lavoro in fabbrica, alle sei del mattina la sirena uèèèèè, tutti in fila in mensa per il pane burro e formaggino, la tazza di caffelatte, una bella fabbrica moderna, di quelle che danno la colazione a chi arriva presto e invece il figlio di Haroldo fa il musicista.
Musica new age.
Very cool, man.
Ha sedici anni, l’orecchino e mi guarda da pari a pari, dritto dentro gli occhi, mi chiama La Teresina, mi fa sentire un gioco di carte. Non sa cosa sia la formalità. I sabati li passa con il padre. Cioé, non proprio con il padre. Con il sampler, il processore, il vocoder, il digital audio tape che lui chiama il mio (il mio di lui) vecchio dat, il sequencer, il minidisc Sony, tutti computerizzati, che Haroldo ha comprato dopo la separazione, per prenderlo all’amo.
Beto tira lentamente su i cursori del volume, la mano ferma, lenta, la faccia concentrata, lo sguardo impassibile fisso su di me, ogni millimetro più su sono migliaia di decibel in più. Lo fa tutte le volte che mi trovo lì e cerco di attaccare discorso. Di una raffinatezza sadica. Se quel ragazzo arriverà all’età adulta diventerà un buon amante.
Oggi Beto non può, mi informa Haroldo.
Beto è appena arrivato a casa della madre. La festa è stata grandiosa. Sono stati tutti entusiasti. Lui è stato il massimo. E adesso va a dormire perché più tardi ci sarà un’altra festa e lui deve fare il sound check con il suo gruppo al massimo a fine pomeriggio.
Perciò Haroldo dice che se voglio, può venire con me.
No.
Assolutamente, non ti preoccupare, figuriamoci, non esiste, pensaci bene, ti annoieresti e basta, riposati un po’, approfittane per risolvere che cosa poi? qualsiasi cosa, lascia stare, io sto bene, che scemenza, sono soltanto le due, figuriamoci, la strada la so a memoria, non essere stupido.
Ma non è servito a niente, avevo già iniziato a derrapare con il mio sguardo non brechtiano quanto Haroldo aveva detto capisco, capisco, al telefono con Beto.
Era meglio che venisse anche lui perchè ero nervosa, disse e aggiunse: è ovvio.
E sorrise.
E mi diede qualche leggero colpetto sulla testa dicendo beeella e mi diede una grattata dietro l’orecchio porgendomi il mio biscottino per cani preferito: gallina e tonno.
Non sono nervosa.
(Noto che la mia voce è leggermente alterata.)
Ma, Tere, rimarrei qui a far niente.
La donna che aveva molti nomi.
Non voglio.
E’ un problema mio – e suonò un po’ più duro di quanto avrebbe dovuto, ma questa volta funzionò.
Allora ok, Tirica, come vuoi tu.
E mi chiede, risentito, se sarei tornata in tempo per il giapponese o se volevo che mi annullasse l’appuntamento.
Sappiamo entrambi che fa questa domanda soltanto perché sia ben chiaro quanto lui è gentile e disponibile e quanto invece io sia aggressiva non volendo che venga con me a Miracema. Sa benissimo che c’è tempo a sufficienza per andare e tornare – come del resto sta succedendo, abbiamo appena pagato il pedaggio, due real e trentotto, grazie, e l’asta si alza, pratico però, solo due real e trentotto – e anche ricevere il giapponese.
Quando ho fissato l’appuntamento con Mr Nakayama, in effetti, pensavo ancora che sarei andata a Miracema soltanto domenica. Dissi che se voleva poteva lasciare la valigia in portineria da me, senza alcun problema, e passare a prenderla prima del volo. Poi mia madre aveva telefonato dicendomi che domenica ci sarebbe stata la messa del settimo giorno, una sorpresa, perché siccome era rimasto nella vasca per tre giorni non sarebbe stato sotterrato, ma cremato, non essendo mio padre una persona religiosa.
Allora in questo caso, vero mami, se c’è la messa non vale la pena che salga domenica, non avremmo tempo di parlare. E’ meglio che venga su sabato.
E spostai il mio viaggio a Miracema il sabato senza annullare il giapponese, ci sarebbe stato tempo a sufficienza, il giapponese sarebbe stato una scusa in più e spiegai tutto questo ad Haroldo.
Vado ma non ci metto molto – voglia di non andare.
Il giapponese imbarca stasera per Tokyo, io vado e torno, un motivo in più perché la visita sia veloce dato che la giornata, oggi – dissi – sarà pesante.
Dev’essere successo tre giorni fa, dichiarò un vicino che fa il medico, chiamato su due piedi, calcolando con approssimazione e facendo la gentilezza di firmare, in pigiama, il certificato di morte.
Non ci fu bisogno di chiamare il medico legale, fu seppellito immediatamente, tre giorni.
La donna che faceva una cosa spaventosa.
Un inizio di storia potrebbe essere dire che mia madre parla al telefono con gli estranei.
Haroldo, mia madre parla al telefono con gli estranei.
La gente telefona, ha sbagliato, invece di dire che ha sbagliato, quando è un uomo e quando ha una bella voce, mia madre attacca bottone. Me l’ha raccontato una volta, un po’ di tempo fa, in mezzo ad un altro discorso. Lo racconta en passant e in quel momento, mentre ne parla, la voce si fa sottile nell’incosciente imitazione della voce che fa quando parla al telefono con questi sconosciuti, prooontoou, una voce da ragazzina, smorfiosetta. Lei me lo racconta, io dico ah sì, rido educatamente, e cambiamo discorso. E’ buffo come cose senza importanza possano diventare a volte così importanti. Pochi giorni prima che mio padre morisse lei ritorna sull’argomento per la prima e ultima volta. Dice che senza volere, una di quelle cose che si fanno senza sapere perché, si era lasciata scappare nel bel mezzo della chiacchierata con uno di questi sconosciuti il nome esatto di Miracema e anche il nome della strada di casa sua e che si sentiva nervosissima. Ma con mia madre non si può mai sapere, lei – mentre lo diceva – sembrava effettivamente molto nervosa, ma poteva anche essere che stesse recitando una parte. Ma lo disse: sono nervosissima.
E aggiunse un commento molto strano: si sentiva molto nervosa perché aveva paura che lo sconosciuto, in possesso di quelle informazioni, potesse localizzare la casa e fare del male. Ma cosa, mami?
Lei non seppe dire cosa e fece seguire una lista di cose brutte che oggigiorno succedono in continuazione, basta leggere i giornali, Maria Tereza.
E io, in quel momento e non quando mio padre morì e neppure oggi durante tutto il pranzo, finché giunse il momento del caffé che io, lei e mia sorella bevemmo e che fu, ad ogni minuto che passa ne ho la certezza più assoluta, un caffé d’addio, io non mi ricordai della sua assurda confessione di temere qualche cattiverìa da parte di uno sconosciuto. Soltanto verso fine pomeriggio, praticamente al momento di andar via, all’ora del caffé, guardando i muri, gli oggetti impilati, il nulla, soltanto il caffé, guardando il nulla per non guardare mia sorella e mia madre, soltanto allora me ne resi conto. Il vero soggetto della frase a volte è l’avverbio. Una storia iniziata com’era iniziata, con uno sbaglio, poteva finire soltanto con un’altro sbaglio.
E’ solo da pochi minuti che mi sono accorta che Haroldo ha indovinato il mio precedente viaggio a Miracema. In quel momento mi sono ritrovata a sudare freddo in tutto il corpo. Adesso, ricordandomi di quel caffé bevuto nel silenzio di quel salotto che credo che non rivedrò mai più, ricomincio a sudare. Fuori è buio, se chiudo gli occhi non fa molta differenza. Così li chiudo. Li riapro. Offerta speciale, suite con sauna a 14 real. Mi fa male la spalla, avrei bisogno di muovermi un po’. Cerco di farlo, lentamente. Sistemo la schiena sul sedile e spingo un poco il corpo in avanti, migliorerà, ho un buco nello stomaco ma migliorerà. Ponte sul fiume Sarapuí.
Quando mia madre mi telefona tutta la settimana, per questo e quel motivo, perché io dia il mio parere su questa e quella cosa e mai sul trasloco quando sa che non do mai il mio parere su niente, quando mi telefona soltanto per dirmi che va tutto bene chiedendomi se va tutto bene, quando telefona perfino per farmi il resoconto di chi ha chiamato e da dove, per fare le condoglianze, sempre finendo la telefonata con la domanda a che ora arriverò sabato a Miracema, e se sono sicura di venire, mi viene da pensare, dato che – dico a me stessa – conosco bene mia madre, mi viene da pensare che tutta quest’ansia soltanto per essere sicura che effettivamente verrò a Miracema questo fine settimana può voler dire soltanto che vuole dirmi:
– Figuriamoci, come sono stata stupida, sai quella cosa che ti ho raccontato l’altro giorno, delle telefonate, poi mi è venuto in mente, a pensarci bene non gli ho detto neanche il nome esatto della strada, mi ero sbagliata, non so dove sto con la testa, fai finta che non te ne abbia mai parlato.
Ma lei non ha sfiorato l’argomento.
Haroldo è solito lasciare la sua macchina in strada, davanti al mio palazzo, quando passa la notte con me. Stamattina siamo arrivati ad un accordo: lui non sarebbe venuto con me – e io entro in garage per tirar fuori la macchina.
Esco in retromarcia, Haroldo mi aspetta fuori per un ultimo salutino, amorino, bacino, ma sento solo la frenata. L’altra macchina arrivava a tutta velocità, è ancora presto, la strada vuota, e no, non ho guardato nel retrovisore.
Il colpo è lieve ma sufficiente.
Il guidatore, un ragazzo di circa trent’anni, esce molleggiando il corpo, facendo gesti di indignazione, facce del tipo “così non si può mica”. Non ho pazienza per questo teatrino maschile.
La donna che non aveva pazienza.
Tiro giù il vetro, mai andare in giro con il vetro abbassato, e gli dico che ha assolutamente ragione: lei ha assolutamente ragione. E’ un raggio paralizzante. Interrompe i gesti, mi guarda senza capire. Ma come! e la scena provata ormai alla perfezione dell’indignazione maschile di fronte alla donna incapace al volante? Sceglie di non avermi sentito e continua: così non si può mica, signora mia.
Io ripeto, lei ha ragione da vendere.
Un altro sguardo d’incomprensione e comincio a pensare che il ragazzo abbia sul serio un qualche problema nel suo sistema cognitivo. Cerco di essere più chiara: pago io.
Prendo nel cruscotto uno dei miei biglietti da visita con il logo dell’azienda.
Il mio biglietto da visita. Adesso ho fretta ma domani mi telefoni, andiamo insieme in un’officina, pago io.
Il ragazzo guarda il biglietto con sguardo da pesce bollito e io comincio ad esasperarmi. Haroldo è di fianco a me. Ha già le chiavi della sua macchina in mano. Prima che io inizi a gridare, lui interferisce e la voce di un uomo, come succede sempre, risulta più comprensibile e anche in questo caso è così. Il ragazzo si rivolge ad Haroldo dimenticandosi di me.
Guardi, secondo me sono almeno trecento, sa (pausa per vedere la reazione di Haroldo, inesistente). Come minimo. Appena riverniciata, il mese scorso, sa com’è.
Haroldo sa com’è e dice: ok, trecento.
Ma il ragazzo tentenna davanti a tanta facilità.
Ma vorrei magari risolverla subito, non che io non mi fidi, figuriamoci, ma la chiudiamo lì adesso senza più fastidi.
Per Haroldo anche questo è ok. Prende il libretto degli assegni dalla tasca.
Senta, credo che sia meglio quattrocento.
Haroldo compila l’assegno senza rispondere, lo dà al ragazzo e, chinandosi dentro al mio finestrino, dice: fatti in là. Il ragazzo tiene l’assegno stretto con le due mani, cercando di capire come ha fatto a vincere quattrocento real.
A volte mi stanco.
Non bisognerebbe stancarsi, lo so. Almeno questo sono riuscita ad impararlo nella vita: tutti perdono ma chi si stanca perde prima. Ma a volte mi stanco. E così mi faccio in là.
Nei momenti in cui, da brava ragazza, obbedisco senza fiatare, sono solita dire che sono Santa Calma Piatta. Ho visto tante calme piatte ma non ho mai visto una Santa Calma Piatta. Ma me la immagino. Una Santa-lago, con lo scialle e il messale, le acque sempre immobili, il sole che batte ma scalda a malapena la superficie, nessun rumore, neanche i grilli.
Mi faccio in là. La donna che era una Santa Calma Piatta.
Mi faccio in là, il sedere più grasso ad ogni secondo che passa, un cartone animato, riesco a malapena a trascinarmi, passando penosamente e diselegantemente sopra al cambio, fino al sedile del passeggero sul quale mi deposito con un sospiro. Il problema non è soltanto la morte di mio padre, Haroldo, i miei molti nomi, ma è anche il mio cognome. Settimana scorsa il mio ex-marito si è risposato e non mi ha invitata al suo matrimonio e io che avevo sempre pensato che noi fossimo diversi, che io non fossi una ex-moglie ma un’amica, la migliore amica, la compagnona, la donna più importante della sua vita, l’unica, quella che nell’ora della morte, quando gli chiedono chi è stato veramente importante nella sua vita lui dice che sono io, io, quella che sempre, in qualsiasi circostanza. E adesso questa, saremo due signore Souza. Soiza. Non sembra avere un gran senso dell’umorismo, credo che non capirà la bellezza di essere chiamata signora Soiza. Meno male, io sarò la signora Soiza e lei sarà la signora Souza. Altrimenti, saremmo due signore Soiza. Io e una ragazzetta di circa vent’anni. E fin qui tutto ok, siamo separati da molti anni, io e il mio ex-marito, ma io non ho preso parte alla nascita di questa seconda signora Souza-Soiza, una cosa nella sua vita alla quale non ho preso parte.
La donna che era una completa imbecille.
E così questa settimana che non dico sia stata la più confusa della mia vita perché la mia vita è prodiga di settimane confuse, ma una delle più, di sicuro, con tante cose a cui pensare, ho passato buona parte del mio tempo a pensare come, perché, mio marito mi abbia fatto questo.
E così è stato per via di tutto questo che mi sono fatta in là.
Ed è stato anche per via di tutto questo che non pensavo a niente quando Haroldo si è fermato al distributore di benzina, il solito, quello che ha la benzina migliore, lì all’angolo, a fare il pieno, dare un’occhiata all’olio e controllare le gomme. Lui ha preso nota per la prima volta in quella giornata dei litri di benzina inseriti e del chilometraggio corrispondente sul foglietto sul manubrio, che mi costringe a compilare. E in quel momento, l’inizio della stratificazione del mio errore Santa-Calma-Piatta, mi viene da dire soltanto quello che sa già:
Poi ti ridò tutto – riferendomi ai soldi della benzina e ai soldi del ragazzo del tamponamento in macchina.
E Haroldo sorride, non ha il minimo dubbio che io possa non ridargli tutto, non sono certo il tipo di donna da sentirsi in debito con un uomo per i suoi soldi, quante volte mi ha sentito dire questa frase, e ingrana la terza con un’aria da adesso inizia il viaggio. E, lui sì, guarda in tutti i retrovisori del mondo prima di immettersi nella corsia. E, sì, sa che non gli passo immediatamente l’assegno soltanto perché a me in macchina viene la nausea e se mi abbasso, prendo l’assegno, lo compilo, che giorno è oggi, mi verà la nausea di sicuro, nonostante il fatto che, adesso lo sappiamo tutti, la nausea mi sarebbe comunque venuta, se non all’andata, al ritorno.
Così a quell’ora, all’inizio del giorno, guardo fuori dal finestrino come sto facendo adesso e cerco di non pensare più a nulla e ancora meno a cosa farò a Miracema. Perché a volte mi viene la nausea anche camminando, anche ferma senza fare niente, quindi la cosa migliore è fingere che non sono io ad essere lì, c’è una ragazza, qui dentro la macchina, che guarda la notte scendere sulla Baixada.
La ragazza che passava in macchina.
Durante un certo periodo della mia vita, pensavo che il giorno che mio padre fosse morto avrei potuto finalmente guardarlo, intendo dire, guardarlo bene, con calma, in ogni dettaglio e così sarei riuscita a sapere che faccia aveva. Pensavo che qualcosa, forse una curva all’ingiù delle sue labbra sottili e dure, uno spicchio dimenticato aperto dei suoi occhi azzurro ghiaccio, la forma, chissà, delle sue guance non più sanguigne ma cerulee, qualcosa avrebbe colmato i vuoti che esistevano nella mia storia. Da morto io l’avrei guardato fino a saziarmene senza temere di essere guardata a mia volta. Questo successe per un certo periodo.
Poi iniziai a metterlo insieme, da lontano, senza guardare, perché per molti anni, anche quando andavo a Miracema, vedevo mio padre solo da lontano, lui nella porta della sua stanzetta sul retro, che mi faceva un cenno, quasi entrando, come se avesse fretta. Così, in seguito, misi insieme io stessa una faccia pensando che, quando fosse morto, sarei andata lì a verificare. Sapere, da un collo rugoso, da una mano macchiata incrociata sul petto, se quello che avevo messo insieme era giusto. Ma non ci sono riuscita, sono impaziente. Ho dovuto anticipare. Sono andata ad accertarmene perfino prima che lui morisse, ci stava mettendo troppo a morire.
Non è stata soltanto impazienza. E’ stato anche perché non avevo niente da fare, perché quando la mia vita si ferma cerco di fare in modo che vada avanti.

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ELVIRA VIGNA: OVERVIEW OF THE SITE (IN ENGLISH, FRENCH, SPANISH, ITALIAN …)

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Elvira’s autobiographical text:

I am a journalist and a writer. As a journalist I worked in – or for – some of the most important Brazilian newspapers, such as O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo and Jornal do Brasil. After Jornal do Brasil, I began to write in a Brazilian web site dedicated to art, literature and music: Aguarras (ISSN 1980-7767) and Etudes Lusophones, a Sorbonne IV French site dedicated to cultural studies, until 2013.
As a writer I began my carrier with children books, receiving some of the most important awards of the Brazilian publishing industry, such as the “Jabuti” (awarded by the Brazilian Chamber of Books), and the award of the São Paulo Association of Art Critics. I also received more than ten awards of the Brazilian branch of IBBY (International Board of Books for Young People). And also an award of the Noma Institute, from Japan. A text addressed to young adults, that I wrote many years ago, was published in 2013 as a graphic novel with my drawings: it’s “Vitória Valentina”, by Editora Lamparina.
But I dedicate myself to literary fiction for some time now.
“O que deu para fazer em matéria de história de amor” (“What could be done about love stories”, Companhia das Letras, 2012, 168p.) was nominee for the Prêmio São Paulo de Literatura. This book was translated to Swedish by Örjan Sjögren and published by Tranan in 2016.
“Nada a dizer” (“Nothing to say”, Companhia das Letras, 2010, 168p.) received the Literary Fiction Award from the Academia Brasileira de Letras and was published in Portugal, by Quetzal, in 2013; and in Italy by Gran Via, in 2016.
Another of my novels, “Às seis em ponto” (“At six a.m., sharp”, Companhia das Letras, 1998, 128 p.), received the City of Belo Horizonte Award. An analysis of this book with the spanish translation of some of its pages was published in “Espéculo, Revista de Estudios Literarios” (number 14, march/2000), of the Universidad Complutense de Madrid.
“Coisas que os homens não entendem” (“Things men don’t understand”, Companhia das Letras, 2002, 160 p.) was translated to Swedish, also by Örjan Sjögren, and published by Tranan.
“Por escrito” (“By Writing”), published in 2014, by Companhia das Letras had an excerpt published by Wasafari in English.
And “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” (“As if we were in a palimpsest of whores”) is to be published by Companhia das Letras in 2016.
I have a diploma in French literature from the Université de Nancy (by Alliance Française); a diploma in arts from the Fine Arts Institute of Rio de Janeiro; a masters degree in journalism from the Universidade Federal do Rio de Janeiro; and attended art classes at Parson’s School of Design, when I lived in New York in the 80’s.

 

Deixei ele lá e vim – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Deixei ele lá e vim (Brasil, Companhia das Letras, 2006, 152p.)

 

In I left, and he stayed there, not even the protagonist’s name is real. Her address is different from the one given, and her affair with Bubi is no reason to think that Bubi is really Bubi, or Bibu or any other similar sounding name. What we do know is that after a night at the beach with Meire and Dô (short for Dorothy or Maria das Dores depending on the circumstances), Shirley Marlone has to invent some kind of story, any story, which will encompass both the undeniable facts as well as those she prefers not to admit – to herself above all – that she remembers.
What she can’t deny is her complete lack of ability to hold down a job, eat regular meals, or keep up any predetermined social or sexual role. What she would prefer not to remember is what exactly happened between the time she retraced her steps to say goodbye to Dô at the beach, and the time she went up the steps to the five-star hotel opposite.
A dog brings a sand-covered sandal, someone finds the stump of a cigar, and the only area of colour on Bibi’s leaden face is the strawberry jam in the corner of his mouth. Shirley answers a call on a mobile phone that isn’t hers, and the swimming pool security guard gets a little closer than she would like. It’s time to go, but she no longer has the key to her ex-room in the Vidigal slum, and the coach to São Paulo is becoming an increasingly remote possibility.
The only certainties are the origin of the large amount of money on an unmade bed, and the existence of another large amount of money, this one floating on the ocean waves.
There is one other certainty: the one that, when the book is over, its story will continue to entice readers and suggest new, though never definitive, solutions (trans. Juliet Attwater).


Chapter 1: (trans. David Lehmann)

 

“Meire is standing in front of me. Her face is the only thing that is changing in a world where nothing has happened for quite some time. So I follow every muscle. She tries to do this thing, with her cheek, on the little apron. Ridiculous, the little apron with the frills. But we already know that. So she stops.
She looks at my flat breasts. Ridiculous, the little boobies.
I almost hear her say: and when are you going to get this little implant increased, which is crooked by the way?
But she told me that not long ago. She caught me naked, coming out of the shower. So she doesn’t repeat it.
I remember everything. I relive it. In the end, nothing had or has any importance. It is just a story. There must be many like this one, where no one will learn what happened, nor care. I will, and among other reasons because I like stories. But there are other reasons.
We stayed a little while like that, me and Meire. She standing in front of my table, the restaurant empty. I remember the ambient music. It was there all the time, still is. It is part of a general softening of everything. Too bad it doesn’t work, didn’t. There was nothing soft about it, there isn’t.
Eventually she asks:
“What are you doing here?”
Now, here is something hard to answer. Anyplace and anywhere.
So far she hadn’t looked once to my backpack all sprawled over the chair. She has that, Meire, a iron-clad force of will. She doesn’t want to look, so she won’t.
“Dinner”.
She is taken aback. She seems offended. Maybe I did offend her. She steps away, grabs a menu. Comes back.
“Jorge Amado Week. Grouper a la gabriella. The Turk’s shrimp.”
That´s a little too much and we laugh. Then we cry. But then, at that moment, you could still say that the tears were from laughter. I’m not hungry, the grouper is to be part of the show line. But I haven’t eaten anything for god knows how much time.
So grouper it is.
“Expensive as hell”.
“Screw it”.
It comes with pepper, the grouper, and late. Empty restaurant, turned-off oven. Everything was like that at the time, then it took a turn for the worse. Dark streets, unlit store windows, cars only once in a while and me with that roll of cash tucked into the bra. The only money in town, other than in the banks, scratching my skin every time I turned my back.
Meire sits. In a corner of the chair, she’s on duty. She looks at the grouper, so do I. A brown rectangle. I sprinkle the pepper. More. Now we have a brown rectangle with details in green. The green is shining. Olive oil. Pepper always comes in olive oil. It wouldn’t appear to be edible if it weren’t for the smell, nauseating, that says, yes, it is edible.
At the same time I shove the fork inside my mouth Meire speaks. It’s on purpose, I can’t answer with my mouth full. All that’s left to find out is who did it on purpose, if it’s her speaking at the time I fill my mouth or if it’s me filling my mouth when I sense she’s about to speak.
“So you’re really going”.
I nod with my head. Then I add a mime to say very hot, lot of pepper, lot of spine, epilepsy attack, anything that would justifie my tearful eyes and my delay, a long one, until the answer.
I end up swallowing. And I still don’t speak, I just shake my head, without the sound that I wouldn’t be able to hear.
She gets up, heads to the chicken.
This is one of the moments in which I´m alone at the restaurant. Or at least I thought I was. That night I was alone a few times, and I used it to look around carefully, where’s the map, any map, a sign, where is the north. Even when I got there I wasn’t feeling too good.
Then I noticed the middle-aged guy in a table in the corner. He’s drinking. Looks at me. Drinks some more. He must have been there doing the same thing last week, last month.
I´m at the table that is closest to the door. As usual. It can be anywhere and I’ll be staying close to the door. My back against the wall. It never protected me from anything. But I still do it.
The middle-aged guy wasn’t very close. An excuse for not having seen him before. I have others. I’ve said it already: I wasn’t feeling too well. And even when I am feeling well. I pay attention to some things and others not. I usually pick the ones that are useless.
So I have to know that now. I am starting to tell something that has holes, gaps. It’s worse than that: I´m going to fill them up.
Somehow.
Meire returns. She had gone to the kitchen not because she had something to do there but because she didn’t want to stay there with me. She went, she watched the cook smoke, pick his nose, pick his teeth, clean his ear with the tip of a fork, read the newspaper, scratch his three-day beard, the balls with different sizes, kill himself with the meat knife, bet on horses, whatever. And then, what else can you do, she returns.
“I was there today”, I say.
She stares at me.
“That thing I was going to see, from that guy”.
She keeps staring. I know she remembers, she doesn’t want to talk, she wants to force me to say the whole thing, so silly.
“The guy from the movie audition”.
“Ahh. So?”
“Dead end.”
She sang it before, don’t go, it’s a dead end.
“Ahh. A dead end? That´s too bad…”
Then:
“There are some people like that, filming crew, you know, staying at the hotel. Overnight. They don’t tip at all. Anyone. The women are all foxy and blond.
“Blond? Maybe it’s the same crew.”
“They are always blondes, or haven’t you noticed?”
What I had noticed is that the fish didn’t go down well. That forkful, the one and lonely, had stopped midway and was threatening a triumphant return. I ask for water.
“Water?”
“Water”.
Meire laughs.
“With lots of ice and lemon?”
“Could be.”
She laughs some more.
“Nuh-uhn”.
Says that if the manager walks in and sees me drinking the vodka I brought from home, she’s fired. Meire has no doubt that inside my backpack there is the vodka. That I, on the last day, walking by the closet for the last time, had filched the vodka and anything else that was there. I say no. Meire always thought I was a jerk. So did I. She confirms it, we confirm it.
“I doubt it.”
She opens my backpack.
“Crap, you really are a jerk”.
And she leaves, searching for the water with ice and lemon.
Maybe because the guy on the other table is paying attention, or maybe because I think sometimes that eating disguises jerkiness, which only proves how much of a jerk I am, or maybe because if there’s a fish in front of a person it means that one will eat the other, the thing is that at this moment I put the second forkful in my mouth.
And of course, it doesn’t get past the throat. I have to throw it out. There’s more stuff to throw out. My unhappy childhood, the unfairness of the world, why I wasn’t born a blonde. The right thing to do is make a list, line them up, organize the vomit. Or maybe start acting, solve the world starting by the fish. The problem is that Meire, just for kicks, gave me the full service, bread, gray pâté, pink pâté, yellow pâté, picles and a serviette. The guy on the other table looks at me without curiosity. I think he knows that I have a list of things to throw out, starting with the fish, and that I´m not enough of a pig to spit food on a serviette.
I spit on little paper napkins. It came wrapping the tableware, trés chic. The guy observes. This was our first relationship, this was what stuck and branded all the rest: I spit fish, he looks at me as if he expected nothing else.
Meire left my backpack open. I close it. Inside I don’t have vodka but I do have the key to my former room. Plan B. If anything goes wrong, I come back. I´m not sure if she saw it, I’d rather she didn’t. She’s already returning with the water. When I drink it, I drink it fully aware that I´m not supposed to, that it will only make things worse. And it does. And it is even worse because I remember all the things I´ve done in life knowing that it would only make things worse, and I did them anyway. Or rather, I do. I still do.
On the way to the bathroom I pass by the guy that is still expecting nothing less or more than seeing me running in front of him towards the bathroom.
I vomited for any reason back then. I think I got better. Actually, I´m not so sure. Writing this is not making me feel so well.”

 

 

(this translation was republished in Machado magazine #4, july 2013)

Coisas que os homens não entendem – reviews

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Coisas que os homens não entendem (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.); Saker som män inte förstår (Sweden, Tranan, 2005, 220p.)

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coisas que os homens não entendem – excerpt

 

La Bibliofiille (Danish litterary blog) – 16/09/2008

 

Ville jag beskriva Elvira Vignas roman Saker som män inte förstår med enda mening skulle jag säga att den handlar om resor i tid, rum och sinne, och om psykets, tankens vindlingar från skulden mot försoning. Men det vill jag inte. Inte bart och blott.
Saker som män inte förstår är en högst egensinnig komposition där en maskulin, korthuggen, konkret och osmyckad prosa ger gestalt åt en vindlande, drömlik, och flyktig tankevärld. Mer än ett tilltal till en andra part är berättelsen en registrering av huvudpersonens – fotografen Nitas -tankeverksamhet, verksamhet använt i ordets mest bokstavliga betydelse, som skiftningarna mellan tider, platser, teman kan växla blixtsnabbt och förefalla vara helt utan samband. Ändå finns det ett en öm punkt som, utan att denna själva punkt tar särskilt stort utrymme i romanen, ändå är dess epicentrum, skrivs om och redigeras, förlöser – det var en olyckshändelse.
Inga resonemang, inga efterkonstruktioner av ageranden och reaktioner, till synes bara avbildningar av tankeflödet. En sinnrik gestaltning av en i själva verket ganska banal intrig.
Kanske lever Saker som män inte förstår inte riktigt upp till sina ambitioner, är inte riktigt det den gör anspråk på att vara, men visst vandrar den i spåren av den sydamerikanska berättartradition den tillkommit i, som Jonas Thente så enligt min ringa mening riktigt påpekar i en recension saxad ur Dagens Nyheter påminner Elvira Vigna om Clarice Lispector (alltid denna Gudinna!), men hon når inte på långa vägar fram. Dock är Saker som män inte förstår mycket friskt vågat, ett högeligen intressant litet stycke prosa som det var ett nöje att ta del av. Ge Er på!
(*The Elvira Vigna novel Coisas que os homens não entendem is a novel about travels in time, space and mind, about how the thoughts make their way from guilt towards atonement. It is an extraordinary compsition in which a masculine and concise prose incarnates a meandering and dreamy world of thought, a registration of the main character’s mental activity, mainly expressed by split-second and seemingly random shiftings in themes, time and space. Yet still, there is in the novel an epicentrical sore spot with an editing and rewriting function that delivers Nita, the photographer – it was an accident.
No reasonings, no rationalisations of actions and reactions, only reproductions of a flow of thoughts. An ingenious depiction of an intrigue that is, in itself, rather trivial.
Elvira Vigna is an author that seems to have large ambitions with her work, possessing all potential of becoming a future Clarice Lispector (always the godess!). Her novel Coisas que os homens não entendem is a daring, higly interesting piece of prose that it was a pleasure to read and experience. Go get it!)
*translation made by the author of the article

 

 

 

Anders Hedman – Slynglar, Stockholm, 12/04/06 Den brasilianska författarinnan Elvira Vigna har rönt stor uppskattning i sitt hemland. Tack vare det spännande bokförlaget Tranan i Stockholm, som framför allt översätter litteratur från andra delar av världen än de anglosaxiska och nordiska länderna, kan vi nu även läsa henne på svenska.
Hon introduceras här med romanen Saker som män inte förstår, som är en liten bok som diskuterar frågor om att komma hem och att fly bort och vad som egentligen är hemma och borta. Fotografen Nina/Nita har ”flytt” till New York från Brasilien efter mordet på en vän till henne i stadsdelen Santa Tereza i Rio. I New York har hon ett förhållande med Eva och lever ett modernt storstadsliv. Hon kan dock inte göra sig fri från sitt förflutna utan känner sig tvungen att återvända till Rio för att reda upp och komma tillrätta med det som varit. Det är där romanen tar sin egentliga början. Berättelsen bygger på berättarjaget Ninas minnesbilder av vad som hände för länge sedan, ibland i olika versioner, som hon förefaller berätta för en tänkt läsare, men i själva verket berättar för sig själv. Berättelsens nutid skymtar endast glimtvis mellan scenerna ur hennes förflutna, och då hon befinner sig i New York i romanens pro- och epiloger. Detta icke-linjära berättarsätt är inte det effektivaste sättet att berätta en historia på om man vill få ett händelseförlopp rappt förmedlat för läsaren, men en desto bättre berättarteknik om det handlar om att skapa en känsla för en plats och en tid, och för händelser som påverkar varandra utan att uttryckligen stå i ett kausalt förhållande med varandra. Boken vill visa hur det som skett för länge sedan fortsätter att påverka människorna och kommer att fortsätta göra det om de inte gör upp med sitt förflutna. Det går inte fly från det förflutna, är undermeningen i denna roman. Trots att huvudfiguren drivs av sin strävan efter att få klarhet i ett tidigare begånget mord har romanen alltså endast den tematiska beröringen vid ett brott gemensamt med raka underhållningsromaner, som exempelvis Liza Marklunds.
Elvira Vigna förmedlar starka scener ur mer eller mindre bemedlade människors liv i Rio, en tillvaro vi känner från filmer som Guds stad, och böcker som En tillräckligt vacker dag för att dö av Jeanette Lindblad. Dock är Saker som män inte förstår långt ifrån så ensidigt mörk som den senare. Det är just i beskrivningen av staden och förhållandena där som Vigna lyckas allra bäst och där hon skapar atmosfäriska målningar med djup och känsla. Människorna i romanen, däremot känns blekare, och inte alls lika levande, även om de är mångfasetterade och nyanserat framställda. Det hjälper inte heller att författarinnan skapar förvirring genom att stundtals kalla Barbosa för hans riktiga namn, stundtals kalla honom för ”Nandos far” och stundtals för ”o Lias far”. Detta må vara ett medvetet grepp men gör en inte helt enkel historia än svårare att följa.
Jag har inte haft tillgång till det brasilianska originalet, men vad jag kan bedöma har översättaren Örjan Sjögren gjort ett bra jobb. Språket är en lättflytande vardagssvenska som passar berättelsen utmärkt. Det jag däremot ställer mig lite frågande inför är titeln. Den portugisiska originaltiteln Coisas que os homens não entendem kan betyda både ”saker som män inte förstår” och ”saker som människor inte förstår”. Varför översättaren valt den första betydelsen är lite märkligt, för även om romanens män inte skildras genomgående positivt så gäller detsamma dess kvinnor. Gruppen män är inte en enskild måltavla för författarinnans kritik av det brasilianska samhället. Den bästa svenska översättningen av titeln hade kanske varit ”saker som man inte förstår”. Då hade originaltitelns dubbeltydighet behållits.
En återkommande symbol i boken är en TV som står på fast ljudet är avstängt. Stundtals ger denna bok en liknande känsla: figurerna handlar, lever och älskar och kopulerar utan att deras liv förmår att till fullo engagera läsaren. Men lika ofta är scenerna i romanen att jämföra med en TV som visar en engagerande film. Det är då Vigna lyckas få läsaren att ryckas med och intressera sig för romanfigurernas öden. Man önskar att författarinnan hade lyckats hålla läsarintresset på den nivån boken igenom. Intresset för att läsa mer av Elvira Vigna har dock fötts hos.

 

Hanna Hallgren – Språkliga Stenkulor, Stokholm, 04/08/05

På tunnelbanan. Tåget. Bussen. Perronger. Stationer. I sängen, soffan, fåtöljen. Har jag närsynt läst Elvira Vignas Saker som män inte förstår och nog inte riktigt förstått, men i högsta grad sympatiserat. Med Vignas förströdda och hypnotiska berättande.
Vignas kunde vara en sydamerikansk (brasiliansk) syssling till österrikaren Thomas Bernhard. Men där Bernhard liksom välte omkull sitt berättande, spillde över det, i monomani, musikaliskt upprepande – ja, där slungar Vignas ut berättelsen som stenkulor över ett golv: berättar här, berättar där – nej, här igen. Far iväg. Där då och så är alltsammans visst redan här.
Jag tänker: det är inte som att söka skapa bilder av språk, utan tvärtom: språk, av bilder. Så handlar romanen om fotografen Nita som återvänder till sin hemstad Rio de Janeiro efter långliga tider i New York.
Det berättas om en man som skjutits ihjäl. I jagform – Nita provar olika berättelser. Minnet, språket. Sanningens många möjligheter. Språket på resa genom huvud och lemmar, Nitasrastlösa resa.
Geografiskt och mentalt. Historiskt. Det personliga helvetet är att inte få asyl i sitt eget huvud. Sedan den resterande världen, det stora stratifierade helvetet: med självklara passeranden och dito avvisanden. Pass eller piss. Någonstans ska den egna kroppen pressas in. Helst återbördas – till vad? En version av berättelsen som tål att berättas om. Så som Saker som män inte förstår tål att berättas om.
Och Örjan Sjögrens översättning; ditpenslad så att man kan röra vid den på tunnelbanan, tåget, bussen. Var du än är, på sidan 127 står det:
“Tillbaka i Brasilien kommer jag /–––/ att tänka på en kvinna som jag en gång träffade och som satt och lyssnade på en brasiliansk sångerska som sjöng på italienska och som gjorde att hon började gråta för hon fick henne att minnas en rumän som hon hade lärt känna i Paris.”

 

 

Björn Gunnarsson – Göteborgs-Posten, Stokholm, 03/08/05

Det är tur att Tranan finns. Annars skulle man kunna få för sig att den brasilianska samtidslitteraturen bara består av Paulo Coelhos menlösa allegorier. Det gör den inte. Här finns också Elvira Vignas vassa roman Saker som män inte förstår: en berättartekniskt, stilistiskt och metalitterärt avancerad historia om Nita, bisexuell fotograf i New York som åker hem till Rio för att reda ut minnet av en traumatisk händelse i ungdomen.
Nita är en vandrerska som ger sig av utan att komma fram, som själv “hittar på sitt liv”, som genom att fara vilse förhindrar att hon tappar bort sig. Det finns, hävdar Nita, “en rad liv som man efter hand kan välja”. Hennes färdväg är en rad kringgående rörelser för att på omvägar hitta hem till sig själv. Hon är med andra ord en inte helt okänd figur i den postkoloniala identitetslitteraturen.
Om en annan av romanpersonerna, offret för grundintrigens fatala vådaskott, heter det att “han berättade för att se om han utifrån lyssnarens reaktion kunde förstå vad det var han själv berättade”. Ungefär så fungerar också Nitas berättelse, författaren låter hennes berättarflöde i jagform bli som en vandring, med många avkortningar och genvägar, utvikningar och omtagningar. Språket är ömsom lakoniskt konstaterande, ömsom som en medvetandeström över en halv sida, trots att det nästan enbart är deskriptivt. Ibland kan detaljfixeringen få drag av Proust, som när arkitekturen i det hus där brottet begåtts beskrivs ur alla tänkbara aspekter. Alla förskjutningar, synvinkelförändringar och prismatiska brottytor gör att hela romanen blir som ett kalejdoskopiskt pussel, där helheten bara framträder när alla bitar skakats om ordentligt.
Som en motsång mot denna nomadiska, stackatoartade men ändå mjuka prosa ljuder stycken och citat ur Camoes hjältedikt Lusiaderna, den portugisiska kolonialismens Odyssé. Förflutet och närvarande tycks existera samtidigt.
Nita har fått i uppdrag att illustrera artiklar om 500-årsminnet av Brasiliens kolonisation, och hennes berättelse blir också en bild av nationens sociala och kulturella nuläge: från Rios favelor med dess blandning av konstnärlig medelklass och kokaindealande gangsterligor, till slumstäderna och turiststränderna i det fattiga nordost. Boken ger dessutom indirekt en stark bild av den brasilianska machismon: konsekvenserna av mäns makt och mäns handlande är dess verkliga tema. Som sagt, det är tur att Tranan

 

 

Jonas Thente – Dagens Nyheter, Stokholm, 02/08/05

Kvinnan heter Nina och har sin bakgrund i Rio de Janeiros halvslum. Hon har bott i New York ett tag. Nu återvänder hon för att fånga sitt hemland i en enda talande bild, och fånga sin egen historia på köpet. Någonting hände nämligen, som fick henne att resa i väg från Brasilien. Ett brott har begåtts, en död kropp ropar på förklaring.
Berättaren Nina snirklar sig fram sin egen och landets förflutna och nutid. Självklart kan man inte ta en bild av en 500-årig nation. Lika lite kan man berätta sin egen historia. Men med omtagningar, perspektivförskjutningar, bilder och motbilder som hjälp – får Vigna fram det splittrade panorama hon åstundat redan från början.
Elvira Vigna vill, nog likt så många andra, likna föregångaren och mästaren Clarice Lispector. Det klarar hon inte, men ibland är ett försök gott nog.
Vad Vigna är bäst på är de mer journalistiskt präglade scener där människor möts på var sida språk-, klass- och könsbarriärerna. Hon håller fram brottstycken av en nation med så nattsvart historia att det enda som återstår är att rycka på axlarna åt den och låta livet gå vidare.
De antikt modernistiska handgrepp Vigna använder för att få fram sin poäng känns inte sällan mer manierade än påkallade. Men att “Saker som män inte förstår” inte helt övertygar, innebär bara att nyfikenheten på Vignas övriga verk växer. Enligt uppgift är denna roman en av fyra som kretsar kring kvinnor som begår brott. Jag skulle gärna läsa även de övriga tre på svenska.

 

 

Professor Tom Moore, University of New Jersey – Brazilmax magazine, August/2003

The naïve browser in a Rio bookstore might see the title of this slim novel and mistake it for one of the plethora of self-help/therapy/relationship volumes often addressed to the modern woman. And indeed Nita, the narrator, gradually (very gradually) lets the patient reader into the web of relationships centered around the house in Santa Teresa where Aureliano (Lia) was shot. The motivation and identity of the killer are unclear to the reader for much of the narrative (who was the man who was shot? who shot him? how? why?), as Nita comes to grips with the events of that day. Though the central axis of the book is a killing (a murder?) the real trajectory of the novel is Nita’s return to Rio and Santa Teresa after the tragedy propelled her to a life in New York.
Nita’s tale requires a patient listener, one who is willing make the journey with her towards her acceptance of her past. Her description (descriptions) of the events, the places, the people are full of detail, but the details critical towards our understanding of her psychology emerge slowly, if at all. There are things that she is unwilling to share, and unwilling to face. Nita is blocked, obsessively turning over the past, revisiting paths, roads, and intersections over and over again. And so as she moves through Santa Teresa in her imagination the reader is taken block by block, almost step by step, up the hill from Lapa into the neighborhood. We perhaps learn more about Nita’s neighborhood than we do about her, about the dynamics of a place that is one of the few spots in Rio where the houses of the middle-class are up on the hill next to the favelas. As Nita reveals more about her past, we also learn more about the entrance of drugs in the bairro, the discreet traffic that goes on along Avenida Almirante Alexandrino.
The mood of the novel is bleak, gray, depressing – no colors, scents, music, dance – a realistic Rio that is not para o inglês ver (for tourist consumption) – the Rio of the drab offices along Rua Riachuelo, of the joyless coupling of older men and younger women for money or for interest in grubby hotels in Lapa, of complicated relationships, fathers with children from a previous marriage. A black-and-white place, not technicolor, like the dirty white of the arches which take the trolley into Santa Teresa. And still a place to which Nita is compelled to return.
Nita is a photographer, and so a smaller part of the foreground of the story is how she will present Rio (and Brazil) to non-Brazilian eyes, as she sells her images to a foreign magazine “focused on positive values,” a Japanese magazine (with an English name) that needs a cover to sum up 500 years of Brazil. Elvira Vigna’s Rio is not focused on positive values, there is no beach, no sun, no sea, but a grittily realistic depiction of “life as it is” to use Nelson Rodrigues’ term. Her style is accessible, not slangy, but absolutely vernacular, a spoken style, and yet she creates a compelling portrait of a person, place and time, one that you may find hard to put down.

Coisas que os homens não entendem – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – Coisas que os homens não entendem (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.); Saker som män inte förstår (Sweden, Tranan, 2005, 220p.)

 

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coisas que os homens não entendem – reviews

 

Cose che gli uomini non capiscono – Riassunto per Patrizia di Malta:

Narrazione non lineare in prima persona, in cui Nita, la protagonista, è una fotografa brasiliana bisessuale di mezza età che vive a New York con Eva, modella e cameriera in un locale di Brooklyn. E’ fuggita dal Brasile anni prima, in crisi esistenziale e in seguito a circostanze misteriose, coinvolta (lo si scopre a metà libro) nella morte del figlio del suo ex-amante; morte che la famiglia della vittima ha messo a tacere. Nita deciderà di tornare in Brasile per saldare i conti e capire cosa sia realmente successo, andando alla ricerca degli stessi luoghi e persone frequentati all’epoca della tragedia.
La grande sfida del libro non è la scoperta dell’assassino ma coinvolgere passo passo il lettore nei ricordi e nelle contraddizioni di Nita, esasperata dai condizionamenti e dalle “cose che gli uomini non capiscono”. Priva di legami affettivi o professionali, straniera a New York e sradicata a Rio, la protagonista non si incasella in nessuno dei clichè abituali per le donne della sua età, sia nella vita reale che in letteratura. Con il suo linguaggio asciutto e crudo, Nita è uno dei personaggi femminili più insoliti della letteratura brasiliana degli ultimi anni. Altro grande pregio è la descrizione dettagliata, attraverso lo sguardo da artista di Nita, del fascino delle atmosfere dei quartieri di Soho e Greenwich a New York, simili a quelle decadenti e romantico-bohemien-malavitose di Santa Tereza e Lapa, a Rio de Janeiro.


Chapter 1:
(trans. David Lehmann)

“It’s been a while now, and it’s the kind of stuff that you tell and then tell again until you forget what you were trying to say, not that I ever knew.  Because this is one of those things that you never know quite well what it is, you just want to say it, it means something, which is already a lot in a world where so few things actually mean something. Well, it’s one of those things, then. And it’s been quite a while, now. But I was in New York and I’ve kept coming back to this city so many times, later on, to the point that there was nothing else about that New York, the first one, in the other New Yorks that I piled up upon it. So this is what is left. A tale, an affair, something that I can tell myself, without thinking about it, like running on auto-pilot. And this is the sole surprise: something that was so moving today is told like this, on auto-pilot. And I tell it like a beginning, a prologue for something that is yet to come, because in this morning, so similar to other mornings, with my wool coat that I can’t stand to look at, I still think that something’s brewing, something’s about to happen. Maybe at the party tonight. But now, because I have to start, I try to remember once more her face that made a moaning “yes” sound – and what’s coming to my mind I don’t know anymore if it’s what her face was, or if it’s me, setting up a face, a restoration of a renaissance painting, for that much I know: she was chubby and pink, renaissantist. Although she was from Brooklyn. I told her I loved the XVI Century.
She moaned.
I feel like laughing when I remember, that moaning sound with her blank look. XVI Century? I was talking in roman characters to an american woman from Brooklyn. I was, just as I always am, mocking. (…)


Capitolo I
(trad. Pratizia di Malta)

(…) A quei tempi stavo facendo una ricerca nelle biblioteche americane per i 500 anni dalla scoperta, già con l’idea di sfruttarla, dopo, in qualche illecito per la commemorazione dei 500 anni brasiliani, chi non ha commesso qualche illecito per i 500 anni? Bene, io sì. In quel primo giorno con Eva parlai molto, mi stava proprio dando gusto chiamarla asina senza usare la parola asina ma i suoi sinonimi: astrolabi, monsoni e Genovesi; altri ha, ha. Quando mi stufai diedi un morso, non a lei, non ancora, ma al sandwich con cipolla.
E allora dissi ih, cipolla, fingendo di non sapere che c’era della cipolla nel sandwich che mangiavo tutti i giorni, tutti i giorni lo stesso. Lei dice che anche a lei non piace la cipolla e io continuo il mio gioco: a me piace. A me piace, dissi. E aggiunsi:
“Il problema è l’alito”, e le diedi un’alitata in faccia.
Lei ride, disorientata. Mi piace, mi piaceva, quando rimaneva disorientata, guardando intorno, non fu tutto soltanto uno sfottò, certe cose mi piacquero veramente. E continuai, quel primo giorno, implacabile come sempre e come sono sempre stata:
“La vela rotonda.”
Lei mi lancia un altro sguardo da pesce e io le spiego, dolcissima, che la vela rotonda in realtà era quadrata, roba da portoghesi, come mai si dirà roba da portoghesi in inglese.
Lei mi chiede cosa farò quella sera. Volevo andare fuori a bere, e siccome non me ne fregava niente, pongo fine al nostro giochino: se vuole venire anche lei. Lei vuole. Allora vai a prepararti. E lei si alza in piedi, chiudendo pudicamente la vestaglia bianca.
E’ una di quelle cose belle che ci sono state, la mensa vuota, mi ricordo di lei che se ne va, il culone grosso sotto alla vestaglia bianca e ricordo come la mensa mi piacesse di più vuota, come diventava di solito a quell’ora. Le sedie ora mute, dopo avere strisciato in continuazione, per tutto il giorno, sul pavimento di piastrelle. E l’audio anch’esso muto del televisore che, con il volume azzerato per tutta la giornata, soltanto adesso gridava il suo silenzio, adesso che tutti gli altri suoni erano scomparsi, con la mensa vuota. Era tardi. Il ragazzo aspetta me per potere andare via, tutti i giorni la stessa cosa. Un primo sandwich, e poi un altro. A quei tempi, ormai verso la fine, lui acconsentiva a darmi il sandwich come lo volevo io, e lo volevo così da tanto, ma lui mi obbligava, caldo o freddo? con sottaceti o crauti? aperto o chiuso?, lo mangia subito o lo porta via?, e io rispondevo, fino all’ultimo ho risposto. Ma alla fine, il secondo sandwich – non il primo, ma il secondo – lui acconsentiva a darmelo senza chiedermi come lo volevo, ma aggiungeva, cosa bevi? come se ci fosse qualche differenza fra un liquido dolce gassato o l’altro. Io compivo il rituale, obbediente: freddo, sottaceti, chiuso, ma alla bevanda mi bloccavo, cosa bevi, e io restavo lì a guardarlo, perplessa, quasi nel panico, cosa bevi. Non vendevano alcool, come stabilire delle differenze se non vendevano alcool?
Quel primo giorno, Eva uscì ancheggiando e io chiesi il secondo sandwich perché volevo far vedere al ragazzo che tutto era uguale al solito e per la prima volta dissi crauti. Chi l’aveva ordinato? Chi c’era al telecomando?
Io, idiota. (…)


Kapitel 1
(översättare: Örjan Sjögren)

 

(…) Och när jag till sist väl gav mig av, inte bara från matsalen, utan från gatorna med de svarta sopsäckarna och de neonblinkande vattenpölarna, när jag gav mig av från det gamla lägenhetshuset och den bullriga gamla hissen, då borde jag ha fått en snilleblixt och sagt:
”Men Eva, det här är ju bara fortsättningen på vårt första samtal, då du avbröt mig mitt i meningen. Att det var rundseglet, som du numera redan vet, som gjorde återfärden möjlig, det var det som var portugisernas stora bedrift, sabba resan för allihop. Farväl, dröm om att fara, fara och aldrig återvända mer. Det är det det handlar om. Jag har återvänt, jag ska återvända, jag är på väg att återvända.”
Men jag var inte i form för snilleblixtar när jag gav mig av i tron att jag återvände till mitt land för gott och misstog mig, för därifrån återvände jag hit och härifrån återvände jag dit innan jag återvände till denna plats och nu vet jag inte om det är här jag är, eller där, som Camões skulle säga. Och det enda verkliga här är min gamla yllekofta som har börjat noppa sig och som jag sätter på mig varje morgon och som jag inte kommer ihåg längre om jag brukade ha på mig redan där, men antagligen inte. Antagligen hade jag på mig en annan, för allt det där är mycket länge sedan.
Så det här fallet, ”Prologen”, som säkert inte ens är någon riktig prolog, för det finns alltid ett före och ett före före, men det här fallet vill jag hur som helst försöka berätta som om det hela började just den där dagen, dagen då jag fick för mig att be Eva följa med ut och ta ett par glas bara för att få roa mig på hennes bekostnad, av leda, av elakhet, en invit gjord i en skolmatsal som skulle ha varit bättre utan henne, om den varit tom, det är så jag börjar, den där dagen, vi båda på gatorna, men det är inte sant. När jag återvände hit, som jag gjorde, trodde jag i själva verket aldrig att jag skulle återvända för gott. Jag köpte en tur-och-returbiljett, jag hade en tur-och-returbiljett. Med andra ord, jag återvände, jag sa att jag återvände, till och med för mig själv sa jag att jag återvände och jag tog farväl av allting, av gathörnen, av soporna, men i fickan hade jag en tur-och-returbiljett, en plan B.
Men den där dagen gick Eva och jag ut på stan tillsammans och strövade omkring på de regnvåta gatorna, hängde efter andra som rörde sig hemtamt på gatorna och gick med stora steg medan de pratade och skrattade och sedan någon gång framåt vad vet jag en grupp japaner framför oss och jag slängde ur mig något på skämt, för dialogen gick trögt.
”Har du tänkt på att shorts alltid ser för vida ut på japaner?”
”Uh-huh.”
Det var sommar i New York. Backen på Femte som avtecknade sig mot New Yorks blodröda sommarhimmel, allt var inte dåligt, det fanns saker som jag gillade.
Japanerna som gick framför mig och Eva den där kvällen hade just kommit ut från någon träningslokal och en av dem slog emellanåt med en racket i luften, en dödande smash, vinandet avbröts av obegripliga, japanska, skrattsalvor.
Eva ville åka med mig till Brasilien, hon ville åka någonstans vart som helst, i den amerikanska tron att det bara är att åka någonstans vart som helst i världen så ordnar sig allt och man tjänar en massa pengar på de infödda. Nu var det Brasilien som gällde för hon hade upptäckt att jag var brasilianska, men det kunde lika gärna ha varit Pago-Pago. När vi senare den där första kvällen sitter i min lägenhet börjar hon snyfta. Hon har druckit för mycket och nu sitter hon och snyftar och för varje snyftning föll axelbandet ner ytterligare en bit. Och hon säger:
”Ta med mig till Brasilien! Ta med mig till Brasilien!!!” detta på engelska – och just då tänkte jag och tänker fortfarande att det var första gången i världshistorien som den frasen yttrades på engelska, jag tror ljudvågorna fortfarande finns kvar där och håller på att förändra atmosfärens fysikaliskt kemiska förhållanden för all framtid. Jag kunde bara skratta, så jag skrattade.
Då gick jag och satte på kaffevatten och hon frågade om jag hade decaf, det är något jag alltid har förundrat mig över hos dem, denna förmåga att till och med med ögonen fulla av tårar och rinnande näsa fortsätta att tänka snabbt vad man vill och inte vill, och hon ville ha decaf. Precis som hon senare alltid ville ha spenatquiche, råsocker och giftfria tomater från amishsekten. Och det är den andra anledningen till att jag satte mig på planet, det första, fast det första var det egentligen inte, det där, som fick mig att åka tillbaka, första återresan. Det var, förutom allt annat, för att jag ville göra just det som jag gjorde så fort jag steg av planet, klockan åtta på morgonen medan solen sken in genom fönstret på flygbussen och det enda jag tänkte på var att sätta mig ner vid någon kioskservering och be att få en sådan där räkempadinha eller en varmkorv med rikligt med sås. Och en bira.
Innan Eva kom på att jag var brasilianska trodde hon att jag var tyska. Det berättade hon för alla vi träffade men hon höll inne med min förklaring till denna missuppfattning, den löd så här: jag talade, eller rättare sagt jag talar en förbittrad engelska som gör den tyskklingande.

Förbittringen: utflykten, till exempel. En gång jag kommer inte ihåg när frågade man mig om jag ville följa med på en utflykt i skogen. En öde park strax utanför stan. Vi går i samlad tropp längs strandkanten till en sjö, där inte heller något liv går att se, då kommer en andfamilj, med ungar, vandrande förbi oss och jag sträcker ut en hand för att fånga en av dem, men bara jag. De andra krympte ihop och stod orörliga för att inte inkräkta på ändernas territorium, ett försiktigt klander för min åtbörd, förlåtlig endast därför att jag är en primitiv varelse, som gjorde vad jag gjorde av okunskap. Männen och kvinnorna i gruppen hade fått ett förstenat leende på läpparna och lät fåglarna tåga förbi innan de åter började röra sig. Otillåtna kontakter. Några dagar senare talar jag med en granne och blir uppiggad – utan tvekan en följd av att man tidigare hade bjudit med mig på aktiviteten i den öde parken – och lägger handen på hans axel. Mannen drar ihop sig med samma förstenade leende, jag, djuret av en annan art som han tillfälligtvis och besvärat såg sig tvungen att leva samman med.

O assassinato de Bebê Martê – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – O assassinato de Bebê Martê (Brasil, Companhia das Letras, 1997, 128p.)

This book received the following insertion in the 58th volume of the Handbook of Latin American Studies of the Library of the Congress of the United States:

“A new-look narrative, fragmented and circular, tells about two women and their stages in life: from riches to rags, from a small town to a big city, from a heterosexual marriage to a dive into lesbianism. Novel is a long reflection filled with irony on appearances and delusions.”

This abstract was signed by Dr. Regina Igel, PhD of the Department of Spanish and Portuguese, University of Maryland, United States.


Hanno ucciso Baby Marty – Riassunto, per Patrizia di Malta:

Due donne di mezza età passano il tempo a litigare fra loro quando non cercano nuovi modi di guadagnare soldi. Un tempo ricche, oggi cercano disperatamente di non sembrare povere. Competono fra loro anche per le attenzioni di un pittore d’avanguardia, più giovane di loro, e forse gay. Sono unite da un legame molto forte; Lucia è sposata all’ex-marito di Vera, del quale era amante da molto tempo. Quando l’avventura extraconiugale è stata scoperta, le due, invece di litigare, sono diventate amiche. Durante una festa, Lúcia, la donna sposata, racconta a Vera di avere ucciso il padre, o che potrebbe averlo ucciso, durante la festa di compleanno per i suoi ottant’anni, forse per gelosia o per l’invidia nel vederlo, nonostante l’età, godersi la vita e le donne. Le due feste, quella attuale a casa di Lúcia, e quella da lei raccontata, si snodano parallelamente nella narrazione, come l’ interesse e la competizione delle due donne. Due gli omicidi: nel primo, Baby Marty – Bernardino Bertolli Martezzi, uno dei tanti italiani del sud emigrati in Brasile all’inizio del XX° secolo – muore per mano di Lúcia, ancora giovane, che lo soffoca con un cuscino. Nel secondo è la stessa Lúcia a morire soffocata da un cuscino. Le due morti avvengono quando le due feste – quella del passato e quella del presente – stanno per finire. La doppia azione è ambientata negli appartamenti decadenti di una classe media urbana brasiliana fallita, e nelle case spaziose di una piccola città rurale dell’entroterra. In questo romanzo costruito su suggestioni, la Vigna attizza la curiosità suggerendo indizi e costruendo ambigue ipotesi, ma i dettagli delle due morti sono lasciati all’immaginazione del lettore. Lo sguardo sulla vita delle due donne esplora le vicissitudini femminili della mezza età, le trasformazioni di corpo e anima imposte dal tempo e dai luoghi alla protagonista. E’ soprattutto la sfera delle relazioni interpersonali ad essere indagata: il lavoro del lettore consiste nello scoprire le analogie tra le due storie che si sovrappongono. La protagonista del romanzo si lascia attrarre ogni giorno di più dalla eventualità di un omicidio come alternativa alla mancanza di prospettive della sua quotidianità, e a poco a poco si appropria della storia di Lucia, e il presente di una va incontro al passato dell’altra. I sentimenti sordidi, i desideri meschini nascosti sotto le convenzioni comportamentali sono smascherati dal tono acido della narrazione.


Excerpt: (trans. David Lehmann)

“Dino dies the same way he said he would: after the party.
Dino is Bernadino Bertolli Martezzi on his ID, Dino for the family, Baby Marty for those beyond the bridge, in alleys so narrow that one can only walk sideways, last time I was there it seemed quite useful, drunks couldn’t fall, the walls would stop them, if it wasn’t so, they would clutter the passage.
Dino is 80 that very day, and as he arrives in the morning from Metropolis Hotel for his usual lunch meal, he falls into bed, a dried drool on a corner of his mouth, the huge hands, eyes wide open, and a muffled sound – like a third-rate diesel generator – coming from his chest.
The doctor says:
“Any moment now.”
And smiles, as he usually does – a good rapport is an excellent healing device, if not for the sick person, in case of death, at least for the family. The perfect white, pearl-white teeth, the stethoscope – pearl necklace on his neck.
I think that now is the time to start sobbing, and that’s what I do. My mistake. While I sob, leaning or hiding on my husband’s shoulders, which is hard to do, because he’s short, all the others, which by accident or not so accidentally, are all men, leave the room. In returning, they have their grieving face, already. That’s what they were away for, to put on their grieving faces, and they left me there looking silly. But Dino is trying to raise his head, say something, and we all get closer and what he says, drooling, with his dying chest, is pork fries and aquavit.
“Pork fries and aquavit.”
A slap to the face.
The doctor whispers whatever, christian charity, at least he’ll depart with his last wish attended, and I get even more angry because at that moment everyone agrees and I can see quite clearly that the thought that someone else instead of me would prepare the pork fries and booze doesn’t cross anyone’s head. I stand still for a little while, unmoving, until one and then another look at me with a puzzled look, their eyebrows saying, it’s supposed to be now, right? we don’t have all day. And I go. I kick myself until this day for having gone, but I went. And I went weeping, because if I must go I’m going au grand complet, crying, nose runnin,g and I use the screeching of the frypan to cry very loudly, screaming, the way I like to do. Touching, say the crystal dishes. Moving, this child-to-parent pain.
The plate has on top of it a starched and ironed laced napkin, the yellowed glass with booze aside, Dino struggles to raise his head slightly, his huge hand picking a pork fry while he is knocking down others, the pig. Sticks everything into his mouth, turns the glass over, the eyes shining, the food slides inside through his neck, perfectly visible in the crackled skin that stretches, he cleans his mouth with the sleeve of the pajama, supports himself with his elbow, looks at each one of us, already with his usual look, so ironic, and says with his usual voice, strong, me hanno salvato, carissimi.
“Me hanno salvato, figli miei. Me hanno salvato. – and laughs with a killer health.
Now everyone is crying, powerless, punching one another. The vexed doctor tries to take his leave, but no one is paying much attention, he leaves alone through the door where he bumps into some people who are arriving, dressed in black. One of us, hasty, had already phoned some neighbors and close friends – guests for the imminent party – so that they would come earlier, and in black. In his bed, supporting himself on his elbow, Dino says he never dies before a party.
“I never die before a party, you imbeciles. First I’ll eat, drink and dance, more than all of you put together. After that, if I want, I’ll die, so I don’t have to look at your silly faces never again”

A um passo – excerpt

ELVIRA VIGNA: IN ENGLISH – A um passo (Brasil, ed. Lamparina, 2004, 188p.)

 

A un Passo – Riassunto, per Patrizia di Malta:

Una festa a Lapa, nel centro di Rio de Janeiro, riserva gay. Il padrone di casa, Próspero, inaugura la sua nuova casa. Ma non è presente. In questa festa, alcune persone si conoscono e si raccontano storie più o meno vere, che li riguardano. Tra le persone presenti alla festa, c’è Gringo, discendente di immigranti tedeschi, uomo corrotto e dalla doppia vita. Ogni riferimento a traffici di droga, strade e regioni dell’Amazzonia non è puramente casuale. Poliziotti corrotti e donne che usano pseudonimi, casseforti stracolme di dollari e una vendetta tramata nei minimi dettagli, conflitti familiari e commissariati maleodoranti si frammettono all’esilio volontario al quale si sono sottoposti tutti i personaggi principali di questo romanzo. Nina, Gringo, zia Conchita, P. ed Evelyn, abitanti della desolata e pericolosa Baixada Fluminense, sono creature che cercano di dribblare la disperazione esistenziale vivendo la tragicommedia di essere brasiliano nel delirio della post-modernità. Partendo da un modello di trama da romanzo giallo, Elvira Vigna scrive come se dipingesse a tinte forti una tela astratta, sovrapponendo a strati informazioni, dialoghi, metafore, seminando qua e là indizi a volte falsi, che sconcertano il lettore. Un patchwork di scarti di sceneggiature cinematografiche, malintesi e perplessità, estetica noir e kitsch, un enigma da decifrare metodicamente, lentamente, la storia di una vendetta, e, allo stesso tempo, di come si possa inventare una storia che, quando finisce, non lascia tracce intorno a sé.


Chapter 1: (trans. David Lehmann)

It´s an old and dirty sofa, and the girl is looking at it like someone who’s thinking how old and dirty the sofa is, and then the yankee says, still standing at the door:
“The sofa is old and dirty”
But the girl just shrugs and arches her eyebrows, answers with disdain – disdain not for the sofa, but for the short, dry man, who was coming up:
“It´s a chippendale”.
But the chippendale comes out as chipaindel, and the yankee smiles. Ahh. It’s one of those. And he gets closer already knowing that for any low-quality gold chain those painted eyes will shine and those full lips covered in lipstick will do as they are told.
The lips open and the yankee, pretending to come closer to take a better look at the sofa, approaches. Until he feels the smell of the dehodorant, because that’s his gauge: on his first approach, the boundary for how near he gets is set by the smell of the dehodorant.
The girl runs nervous fingers through the printed cloth, promising fingers, and the yankee looks at the printed cloth that always gave him the creeps, alligators with raised tails, brown, intertwined with huge tropical flowers of all colors, so it was easy to fake the fear he really felt.
“The pretender…. The pretender…”
And he tries to recite Pessoa using a tv talk-show face, not because he thinks it will make a good impression (there’s no need to make such an effort to impress the lady there), but simply because he remembered the verse. Remembered is just a figure of speech, beyond the word pretender nothing else is coming out.
The yankee rocks his whisky, the girl goes huh.