Asdrúbal no museu, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Asdrúbal no museu (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infaasdrubal03

 

 

Primeiro Capítulo

Dia chato. Ô diazinho chato, sô!

Asdrúbal bocejava: nada mais chato para um dia chato do que ficar onde ele estava.

Ele estava em um museu.

Não como visitante, como eu ou você estaríamos se fôssemos a um museu; ele estava no museu como uma Peça Rara. Peça Rara é assim: em uma prateleira, entre outras Peças Raras. As outras Peças Raras deste museu eram o Gato de porcelana chinesa, o Tratado de 1823, as Dez Capitanias Hereditárias, as Preposições e várias outras. As Preposições, por exemplo, ficavam arrumadas, como convém, em ordem alfabética. Embaixo da prateleira onde Asdrúbal estava, havia uma plaquinha: Asdrúbal, o monstro amarelo.

Uma das maiores raivas de Asdrúbal era essa placa, assim simplesinha, só dizendo o que dizia sem mais nada. Sem dizer seu nome completo que era Asdrúbal, o Terrível. Sem dizer seu orgulho: Monstro perigoso em extinção, encontradiço outrora na Floresta DumDum. Sem dizer: Inimigo de borboletas, gatos, corujas, tartarugas, cachorros, sapos, caramujos, periquitos, valsas, sonhos de valsa e piqueniques em geral. Sem nem mesmo dizer, ao menos, quantas pernas ele tinha e como o feitio de sua sobrancelha era insinuante e charmoso. Nada, nada. A plaquinha não dizia nada. E, no entanto, Asdrúbal continuava o mesmo que, nos bons tempos, fazia o terror da Floresta DumDum com suas aparições assustadoras.

Asdrúbal continuava tão amarelo quanto antes, se bem que, com a péssima iluminação do museu, às vezes ele ficava com uma cor meio assim, mais para pastel. Mas por dentro ele era o mesmo que tinha acabado com a última Borboleta Azul Real Gigante do planeta (isso lá pelos idos não sei quantos). O mesmo, mesminho, se bem que estivesse agora em um museu, com esse verniz de coisa importante nos cabelos e esse frio de coisa acabada dando dormência na ponta dos dedos.

Era Asdrúbal, transformado em Peça Rara.

Vamos ver como isso foi possível.

O emprego no Museu DumDum ia das oito da manhã às seis da tarde, quando então Asdrúbal dava uma espreguiçada e continuava no mesmo lugar porque, nem todos sabem disso, o que hoje é museu, antigamente era a toca do Asdrúbal. A toca de Asdrúbal, durante uma de suas viagens à Argentina, tinha sido transformada em museu por seus inimigos. Quando Asdrúbal chegou e viu que tinha passado a morar em um museu, resolveu tirar partido da situação e arranjou esse emprego de Peça Rara.
Bom, então, como dizíamos, era das oito às seis. Das oito às seis Asdrúbal deveria fazer cara de monstro e barulhos assustadores toda vez que entrasse um visitante. Não era um emprego difícil e o guarda do museu, por uns tempos, andou muito satisfeito com a nova aquisição do acervo. Depois é que a coisa desandou. Asdrúbal começou a fazer cara de monstro e barulhos assustadores mesmo quando não tinha nenhum visitante por perto. Isso era muito ruim, embora tanto a cara quanto os barulhos fossem o que há de mais perfeito no ramo. Mas é que a cara e os barulhos de Asdrúbal assustavam as outras Peças Raras do museu: o Gato de porcelana chinesa, de tanto escutar berro fora de hora, estava ficando todo rachadinho; as Capitanias Hereditárias não gostavam das caretas e ficavam tentando se esconder atrás das Frações Decimais. As Preposições, coitadas, volta e meia saíam correndo de lá para cá, que nem doidas. Consequência: barulhos assustadores e cara de monstro só quando tivesse visitante na sala. Se não houvesse ninguém, era tratar de ensaiar um sorrisinho do tipo meigo ou então cantar baixinho uma dessas músicas assim bem bobas, de namorado. Essa era a ordem! E ordem superior!

Asdrúbal só podia obedecer.

Como se isso não bastasse. Como se fosse pouco, mixaria, café pequeno. Como se sorriso e musiquinha fossem sopa no mel, como se, Asdrúbal, ainda por cima, em sei lá quanto tempo de emprego, não tinha visto uma, uminha, nunca, jamais, nem sombra de borboleta! Nada, nadinha, nem mariposa chulé aparecia por lá. Até mesmo mosca era raro! Convenhamos: para o célebre Matador de Borboletas Azuis Reais Gigantes, isso era o cúmulo!

Asdrúbal não aguentava mais.

E, nesse dia, nesse, que era um dia chato, para cúmulo dos cúmulos, Asdrúbal notou uma pontinha verde de bolor no dedo mindinho da sua terceira perna, à esquerda de quem vem, contando de lá para cá. O que antes era amarelo ouro, puro, da gema, agora tinha um pontinho verde de bolor. Asdrúbal pigarreou, penteou a sobrancelha com cuspe e cochichou para sua barata de estimação: “presta atençao que lá vai…”

O que vinha ou o que não vinha nem a barata nem nós nunca ficamos sabendo: aconteceu um inesperado

 

 

O inesperado

– Aiiiii!

(Silêncio)

— Urrrr!
(Silêncio)
— Ahhh!

(Silêncio)

Esse foi o inesperado que, trocado em miúdos, deu-se assim: Asdrúbal, de repente, olha para a janela e vê o que? Uma Borboleta Azul Real Gigante!!! Quer dizer, não era na verdade uma Borboleta Azul Real Gigante!!!, era simplesmente uma pipa de papel de seda azul que Asdrúbal confundiu com sua arqui-inimiga. Confundiu e engoliu, já sentindo gosto de Floresta DumDum nos dentes e cheiro de bons tempos aqueles.

Engoliu. Engoliu e o dono da pipa, o Raimundinho, lá do lado de fora – que Raimundinho nunca foi muito de botar o pé em museu -, botou foi a boca no mundo.

— Aiiii! Minha pipa campeã!!

Pipa campeã engolida por Asdrúbal que junto também engoliu um metro e vinte de vareta e cinco de linha. Linha com pó de vidro, é claro, que Raimundinho era terrível. Linha com pó de vidro só podia dar ‘urrr!’, é claro. E é claro também que, com tamanha barulhada na sala das Peças Raras, o guarda veio correndo a tempo de escutar o ‘urrrr!’  bem no ouvido e fazer um ‘ahhhh!’, esse de susto, que não é qualquer guardinha de museu que aguenta um ‘urrr!’ asdrubaliano nos ouvidos sem morrer de medo, não.

Quer dizer, morrer não morreu, mas dizem que foi daí que começou a doença nervosa dele, que acabou levando-o ao hospital.

Mas isso é papo para depois. Vamos por partes.

Quando passaram o ‘aiii’ do Raimundinho, o ‘urrr’ do Asdrúbal e o ‘ahhhh’ do guarda, Raimundinho teve a ideia de ficar freguês. Freguês do guarda que teve que pagar do bolso dele uma pipa nova para o menino, pois Raimundinho não parava de chorar nem por nada.

— Nunca, ouviu, nunca que eu vou parar de chorar! Buááá … minha pipa!

E era aquela água inundando tudo, fazendo poça bem na passagem, já entrando sala de Peças Raras adentro e era também aquele barulho infernal de pulmão de 12 anos a todo vapor.

— Toma! Toma! Estão aqui dez pratas, vai comprar uma pipa nova, mas some!

— Obrigadinho, meu chapa!

“Esse Asdrúbal me paga”, pensou o guarda.

“Esse guarda é um panaca”, pensou Asdrúbal que, já refeito do seu próprio urro, acompanhava a cena com cara de quem estava achando tudo péssimo.

“Isso é dinheiro paca”, pensou Raimundinho, que aí então achou de ficar freguês.
O plano de Raimundinho era simples: toda a semana, variando o dia (ora uma quinta, ora uma terça), Raimundinho iria passear com uma pipa azul lá por perto do museu. Asdrúbal comeria a pipa pensando que era borboleta. Raimundinho botava o pulmão para funcionar. O guarda soltava mais dez pratas.

Plano ótimo. A pipa era fácil, Raimundinho fazia três por dia para vender para os garotos ricos da redondeza. O choro é que não tinha problema mesmo, Raimundinho se garantia. As dez pratas não eram tão certas, podiam virar cinco, dependendo do salário do guarda, mas haveria que se tentar. Mas… e se Asdrúbal, enjoado de papel de seda, se recusasse a comer as pipas? Asdrúbal não tinha feito uma cara muito boa ao engolir a pipa campeã! A pipa, com gosto ruim, era um ponto falho no plano perfeito de Raimundinho.

Raimundinho pensava de lá em como tornar as pipas irresistíveis para Asdrúbal e o próprio, do lado de cá, tentava pensar alguma coisa, qualquer coisa. Não conseguindo, voltou a falar com sua barata de estimação:

— Onde é que a gente estava mesmo? Ah, sim, pois é! Não pense você que eu não sabia que era uma pipa. Sabia. Comi só de tédio, assim, para passar o tempo… Sabia, sim senhora! Então eu, Asdrúbal, vou me enganar com uma brincadeira de criança?!
Asdrúbal inventava respostas e poréns. O problema de falar com a barata é que há dois anos ela não respondia mais. Asdrúbal sabia que ela estava lá, no cantinho, porque se ela tivesse saído ele teria visto, mas, às vezes, Asdrúbal ficava pensando se ela não tinha morrido.

Asdrúbal sacudiu a cabeça com força para espantar a ideia ruim. Afinal, monstro ou não monstro, Asdrúbal detestava pensar que estava sozinho no meio daquelas Peças Raras chatíssimas, que sua amiga e companheira de tantos anos tinha morrido.
Asdrúbal, nos tempos da Floresta DumDum, chamava a barata de “aquela cascuda do contra”. Já a barata costumava chamar Asdrúbal de “hepatite ambulante”. E era desses belos diálogos que Asdrúbal sentia falta.

Em vez do saudoso “hepatite ambulante”, o que Asdrúbal escutou naquela hora foi um “ô pudim! tu prefere papel de seda sabor cola polar ou sabor seiva de alfazema?”.
Asdrúbal, ainda com pipa, vareta e pó de vidro no estômago, e na cabeça uma certa tristeza por causa da barata, pensou que estava ouvindo coisas, que estava passando mal.

Depois pensou que talvez fosse a barata que afinal voltava a falar! É isso mesmo!  Só podia ser a barata! Pois se não tinha ninguém por perto e as outras Peças Raras eram mudas, era ela!
– Ô cascuda!!! Você está aí?!

— Cascuda é a vovozinha! Se você não gosta do perfume de alfazema da minha irmã e da cola polar da minha mãe, então vai dizendo aí do que você gosta!

Irmã? Mãe?! Não, não. Não era a cascuda. E depois, Asdrúbal se lembrou de repente: sua barata de estimação era argentina e só falava castelhano. Não, não, não era ela.
Mas então quem era?

Asdrúbal estava tentando descobrir o dono da voz quando…

— Ouvi uns barulhos… o que está havendo nesta sala? – Berrou o guarda que, ainda nervoso, vinha de minuto em minuto na sala das Peças Raras.

– Seu Asdrúbal, faça o favor! Olha a compostura durante o expediente!

O guarda ainda deu mais umas voltinhas e acabou saindo.

Saiu e a voz voltou:

— Ô pudim! Colabora…

 

O guarda tem um suspeito

No dia seguinte não aconteceu nada. E Asdrúbal ficou pensando o dia inteiro de quem era aquela voz que o tinha chamado de pudim, ofensa que, no primeiro instante, ele nem tinha percebido.

“Pois vai ver só quem é pudim!”

Acontece que, para Asdrúbal pensar, tinha que ficar quieto, bem quieto, lutando com todas as suas forças para extrair o pensamento. E o guarda, ouvindo aquele silêncio, sem saber de nada achou que sabia de tudo.

— Já sei. Essa mesmice, essa quietice, isso é truque! Asdrúbal acha que é esperto, só que a mim não engana. A mim, não.

E o guarda ficava lá na portaria descobrindo o que não havia. De vez em quando dava um salto e saía em desabalada carreira para a Sala das Peças Raras. Chegava lá ofegante e remexia em tudo.

— O que você estava fazendo, hein? O que você estava fazendo que estava tudo tão quieto? Hein?

Sem interrupção, pensar, para Asdrúbal, já era difícil. Com interrupção, então, ficava quase impossível. E assim o dia passou sem que ele chegasse a uma conclusão.
O outro dia era domingo, dia muito difícil de Raimundinho driblar mãe e pai e, por consequência, a voz misteriosa também não apareceu pelo museu.

Segunda-feira logo de manhã cedo, entrou um visitante. Visita rápida porque o guarda ficou rondando em volta dele o tempo todo, até que deu briga.

— Escuta, eu não sou ladrão não, seu guarda! Pode desgrudar…

— Não, doutor, o que é isso? Não estou pensando nisso não, é que…

O visitante saiu meio chateado, não só com o guarda mas também com o urro de Asdrúbal, bem-comportadíssimo.

— Escuta aqui, seu monstr…

— Ah, bom dia, seu guarda!

— …!

— O senhor ia dizendo…

— É! É isso mesmo, pensa que eu não vi!

— Não viu o quê?

— O senhor, fazendo um urro para aquele moço que visitou agorinha mesmo o museu!

— O urro estava muito baixo?

— Não!

— Muito alto?

— Não!

— Uai, então o quê?

— Ainda pergunta?! E você acha que ele veio aqui para ver as coisas certinhas? Acha?!
E o guarda, então, explicou a todos que quiseram ouvir, e mesmo para os que não quiseram, mas que estavam nas redondezas naquele momento, que Asdrúbal era na verdade um elemento perigosíssimo. Isso todos já sabiam. Perigosíssimo porque tinha inventado um plano. Que plano? O de fazer exatamente as coisas que estavam previstas no regulamento e impressas no catálogo do museu. Coisas chatíssimas e monotíssimas que, se cumpridas à risca, levariam o museu à falência e o guarda ao desemprego em três tempos.

Asdrúbal então quis se virar para sua barata para dizer que o guarda estava maluco. Mas, quando ia começar a falar, se lembrou de que talvez a barata nem existisse mais e ficou assim meio triste.

 

Os pensamentos de Asdrúbal

Asdrúbal sacudiu a cabeça com força uma, duas, quatro vezes, até que sentiu aquele arzinho fresco soprando lá dentro. Nenhum pensamento triste sobre a barata, mas nenhum alegre trambém. Aliás, resumindo, as sacudidelas tinham tirado qualquer pensamento de dentro da cabeça dele. O método tinha lá seus inconvenientes, mas Asdrúbal não estava perdendo grandes coisas em ficar com a cabeça vazia (cá entre nós, mesmo o melhor de seus pensamentos não valia muito). Depois de algum tempo, os pensamentos foram voltando para dentro de sua cabeça, devagarinho. O primeiro que chegou foi o dos noves fora:

1 – Pensamento dos noves fora:

As preposições eram 24, porque 24 vezes 2 igual a 48, com um 0 fica 480, noves fora 37 que, somando a data em que estamos, fica igual a 74, que era justamente a idade do único professor de português que Asdrúbal tinha tido na vida.

2 – Pensamento profundo preferido, também chamado 3P:

O mundo era assim porque não era assado, e se fosse assado, ele, Asdrúbal, também seria diferente e então ele ia achar que o mundo não era assado mas assim e então não ia adiantar nada, de modo que, nada adiantando nada, tudo era realmente péssimo.
3 – Pensamentos menorezinhos:

Fogão: o fogão se chama fogão porque a primeira cozinheira do mundo, não estando acostumada com o fogão, exclamou: “nossa, que fogo enorme!”, jogando uma panela d’água em cima. Ficou conhecida como a mulher do fogão e o nome pegou.
Galinha: diminutivo de gala, mulher do galo. O nome gala vem da época em que os bichos eram muito maiores do que os de agora. Com a evolução das espécies animais, os bichos enormes foram morrendo e da gala original, para mais de cinco coxas, só sobrou mesmo a nossa galinha de duas coxas.

Tinta: nome que todo mundo diz errado. Na verdade o nome certo é pinta. Por exemplo, nas frases ‘eu me agasalho com o agasalho’ e ‘eu pinto com a pinta’. Mas é que o povo é mesmo muito ignorante e vive trocando letra.

Pássaro: outro nome errado. Prova disso é a palavra passarinho, diminutivo de passário e não de pássaro!

— Esse pessoal não vai à escola e depois fica falando os nomes tudo errado.
E depois desses, muitos outros pensamentos foram entrando de volta na cabeça de Asdrúbal. Quando os pensamentos acabaram de entrar, a manhã de segunda-feira já tinha ido embora e na hora do almoço o guarda foi à farmácia comprar remédio para dor de cabeça.

Pois foi justamente nesta hora que a voz misteriosa tornou a aparecer.
— Ei! E se em vez de vareta eu puser talharim, você jura que come?
Talharim? Vareta? Comer? Comer o quê? Quem estaria falando? Seria para ele mesmo, Asdrúbal, o Terrível, que a voz estaria se dirigindo?

— Ô gema de ovo, responde!

Era. Era com ele, pelo menos isso Asdrúbal já sabia. Que bom. Faltava só descobrir o resto!
Raimundinho, depois de quase uma semana de esforços para entabular conversação com Asdrúbal, acabou desistindo e resolveu mudar de tática. Botou uniforme da Escola Pública, lavou a cara e as unhas e foi lá dentro da sala das Peças Raras para levar um papo franco, pois se Asdrúbal era monstro amarelo, ele, Raimundinho, era monstro em esperteza. Seria, então, um papo de monstro para monstro.

 

A conversa de Asdrúbal e Raimundinho

– Bom dia, seu guarda, vou fazer uma pesquisa que a professora mandou, com licença.
“Onde é que eu vi essa cara antes?” – O guarda bem que desconfiou, mas Raimundinho de cara lavada, penteado e sorrindo realmente ficava outra pessoa.
Uma vez lá dentro o papo foi maravilhoso.

— Asdrúbal, o plano não tem falha: você come as pipas, eu berro, o guarda solta as dez pratas para eu parar de berrar e pronto!

Raimundinho disse por que precisava das dez pratas. Era para comprar um lugar para ele morar, um lugar assim tipo fazenda, só que maior. Assim tipo paraíso. Asdrúbal ouviu tudo com atenção, o tal lugar do Raimundinho era realmente sensacional!
— Asdrúbal, eu quero encontrar esse lugar e comprar ele. O riozinho de pedras que eu te falei vai desembocar na praia, entendeu? Na praia, no meio de umas palmeiras, indo pela areia, até se misturar com o mar. Lá tem tartaruga, daquelas grandes, nadando, nadando… e para dentro, no meio da floresta, já te falei, tem uma porção de bichos. Esquilo, coelho, veado, todos os passarinhos que existem no mundo, peixe de rio, cavalo solto, pato solto… Esquilo já falei? Pois é… todos eles meus amigos, me conhecendo. Tem a casa grande, é claro, com a escada secreta que vai direto no meu quarto e tem as pessoas que moram lá, como pai, mãe e essas coisas. Sou eu que pesco e pego as frutas para a comida. Não te contei das frutas? Ah, todas! Goiaba vermelha e branca, fruta-do-conde, laranja lima e a de umbigo, amora, jaca, manga, mamão, banana, abacaxi, carambola, jamelão, tamarindo, sapoti, jambo, cajá… As árvores ficam na floresta, aqui e ali, misturadas umas com as outras. Tem jabuticaba e pitanga também, quase que eu esqueço! A horta não sou eu quem cuida, tem um cara que só faz isso. Tem a casa pequena, é lá que eu guardo, numa geladeirona, as lagostas, os peixes que eu pego nas pescarias. Na casa pequena tem uma cama e é comum eu passar a noite lá. É lá que tem um subterrâneo onde estão guardados os doces, os chocolates e as balas – em prateleiras – arrumadinhos por qualidade: perto da escada ficam as cocadas, de um lado as de fita, de outro lado as de colher.

Asdrúbal suspirou fundo, encantado.
— É para isso que eu preciso do dinheiro, entendeu?

— E vai precisar de muito? Quer dizer, vou ter que comer muita pipa?

— Não sei, mas eu acho que para tudo isso aí deve precisar, sei lá, de uns bons cobres.
— (Suspiro) … Mas que lugar lindo!

— Você topa então? A gente compra de sociedade e você fica de guarda, espantando caçador que apareça por lá querendo pegar nossos bichos.

— Topo, claro. Está topado.

 

As coisas ficam pretas

Mas as coisas não foram tão fáceis como eles estavam pensando. É que o guarda, coitado, desde aquele dia em que tinha ouvido o berro de Asdrúbal bem nos ouvidos, tinha ficado meio doente. O berro tinha mexido com os nervos dele. O guarda agora tinha dado de cismar que não era só Asdrúbal que estava tramando alguma coisa contra ele. O guarda estava começando a achar que todas as Peças Raras do museu estavam mancomunadas. Ou pior até: que se tratava de um plano internacional, de todas as peças raras de todos os museus do mundo inteiro, feito para acabar com ele, Doberval Ramos da Costa, funcionário nível 3 do Museu DumDum. Ele já tinha até escrito para os jornais contando a história toda, alertando as autoridades para o perigo.
Ele já tinha denunciado as Capitanias Hereditárias que, tendo sofrido uma mutação transgenética, haviam se tornado carnívoras e exigiam índios ao molho pardo nas refeições! E o Teorema de Euclides era chefe de um comando secreto cuja única função era jogar zerinhos pelo chão para que ele, ao entrar, escorregasse!

Os jornais, no começo, ainda publicaram uma carta ou outra de Doberval, mas no fim não publicaram mais nada e ele continuou sozinho com suas certezas. Por exemplo, a de que Asdrúbal era o líder. Isso não havia dúvida. Mas Doberval às vezes achava que talvez Asdrúbal fosse só o porta-voz do verdadeiro chefão. O chefão, segundo esta teoria, seria uma barata milenar, de origem estrangeira, e o elemento de ligação entre os vários comandos, um perigoso espião-anão que se disfarçava de estudante de Escola Pública para transmitir as mensagens dentro do museu. Esse espião perigosíssimo era conhecido por Raimundinho nas rodas do crime e, na verdade, se tratava de um embaixador do país do desrespeito, da avacalhação e dos jogos incompreensíveis! O embaixador do país Pipa Azul!!
Os pipenses-azuis tinham, desde muito tempo, o plano de invadir todos os museus do mundo para se apoderar de todas as Cadeiras dos grandes homens, todos os Leques das imperatrizes, todas as Regras de três e todas as outras dignidades de todas as salas de Peças Raras. A arma usada pelos perigosos pipenses era pó de vidro com vareta e o grande erro dele, Doberval, era ter permitido que um monstro entrasse no museu. Asdrúbal, um monstro, por mais interessante que fosse para os estudos do passado da Floresta DumDum, nunca deveria ter podido entrar em um museu. Afinal, monstro é monstro, e museu é museu!

Mas o erro estava feito. Asdrúbal tinha sua prateleira e sua plaquinha e Doberval tinha uma dor de cabeça monumental.

E foi essa dor de cabeça (de exclusivo fundo nervoso) o azar de Raimundinho e Asdrúbal. Doberval acabou tirando licença para trabamento médico, pois começou a ver pipenses-azuis até mesmo dentro da cerveja do almoço. E não tendo ninguém que desembolsasse dez pratas por pipa comida, Raimundinho e Asdrúbal ficaram no ora-vejam. O plano de comprar o tal lugar maravilhoso estava indo por água abaixo.
Raimundinho e Asdrúbal ainda esperaram uma semana para ver se Doberval melhorava e voltava. Não voltou, estava em licença pelo INSS, não voltaria tão cedo.
— Te falei das pedrinhas do rio?

— Falou.

— ……

— Não pode esquecer de regar as avencas do pé do muro.

— Não carece. O lugar é úmido. E depois, está chuviscando, olha aí.

— Raimundinho …

— Hein?

— Não tem avenca, não tem muro, não tem “lugar”, não tem guarda nem dez pratas!
— É, só tem mesmo esse chuvisco..

— É, mas só chuvisco, que graça tem?

Nenhuma.

 

Asdrúbal dá no pé (aliás, nos pés)

– Não tem nada não, Asdrúbal, vamos sair daqui. A gente espera uns tempos, a maré melhora, não deu certo agora, dará depois. A gente acaba comprando nosso lugar.

— Sair como, Raimundinho? Sou Peça Rara do museu!
Raimundinho pensou que Asdrúbal podia ficar na sua casa. Mas na sua casa já tinha cachorro, três irmãos (um pequenininho), o papagaio que tinha sido do pai, as galinhas do quintal, os gritos da mãe e o radinho de pilha da irmã mais velha, sempre ligado ao máximo. Asdrúbal nisso tudo? Não iria dar certo.

Asdrúbal pensou que Raimundinho podia ficar no museu: Raimundinhus pipensis. Mas no museu tinha portas e janelas fechadas, silêncios longos e chão encerado. Raimundinho dentro disso? Não iria dar certo.

Estava parecendo que Asdrúbal e Raimundo, sem lugar maravilhoso para comprar, iam acabar tendo que se separar.

— Puxa, que azar o guarda ficar doente! – disse Raimundinho dando um chute na parede.
— Nem fale. Azarzão mesmo! Puxa, nem fale! Pensar naqueles peixes todos esperando pelo anzol da gente!

— Peixes? Deixe de ser bobo! Quem quer os peixes? Está na época de sapoti, meu velho! Você fica lá, dando minhoca para os peixes, que eu fico te esperando comendo sapoti, está bem?

— Você é besta! Dá esse sapoti para mim também! Pensa que eu sou bobo? Hi, hi…
— Ri baixo, Asdrúbal! Olha aí o bibelô rachando…

O bibelô era o Gato de porcelana chinesa e Asdrúbal, de repente, se lembrou que ele estava era no museu, que o sapoti e os peixes eram invenção do Raimundinho e que eles, mesmo se conseguissem encontrar o tal lugar maravilhoso, não iam ter dinheiro para comprá-lo.

— Droga de guarda, ficar doente logo agora!

Raimundinho e Asdrúbal quase choraram. Só não o fizeram porque Raimundinho tinha aprendido que homem não chora. Asdrúbal não tinha aprendido nada mas, como não queria ficar atrás, decidiu que monstro também não chora.

Raimundinho convidou Asdrúbal para sair, tomar fresco, botar o pé no mundo enfim, que lá dentro do museu estava sufocante. Asdrúbal não quis.

Primeiro disse que não podia sair no meio do expediente (mesmo sendo uma droga de emprego). Depois disse que não era bem por isso, mas é que ali tinha sido sua toca e, embora ele achasse essas coisas uma besteira, ele não gostava de ir para muito longe de sua ex-toca (mesmo ela sendo agora uma droga de museu). Depois falou da barata e explicou muito detalhadamente para Raimundinho como eles se tinham conhecido, como ela era cascuda e feia, com voz ranheta e como desafinava nos tangos. Depois não falou mais nada, pois já tinha dito tudo.
Raimundinho então começou a explicar uma ideia que tinha nascido lá na cabeça dele. Falou primeiro “que bobagem” que, emprego por emprego, ele, Raimundinho, poderia arranjar outra profissão para Asdrúbal.

Depois explicou que, quando ele falava em sair por aí pelo mundo, mundo no caso era até a esquina da avenida, que na avenida passava ônibus e para lá da avenida ele não tinha permissão de ir. Raimundinho falou ainda que a barata não tinha nenhum compromisso com ninguém, ficasse se quisesse, fosse com eles se tal lhe conviesse. Raimundinho não tinha nada contra baratas, se ela quisesse ir, tudo bem.
Escurecia quando Raimundinho se despediu e voltou para sua casa. Tinha combinado que voltaria no dia seguinte de manhã cedinho e que então ele e Asdrúbal sairiam juntos pelo mundo – com ou sem a barata, Asdrúbal fingindo que era a sombra de Raimundinho.
Sombra?!
Pelo seguinte: como todos nós já sabemos, o que foi a Floresta DumDum está isso que está aí. Um monstro amarelo na Floresta DumDum não espantava nem filhote de passarinho, acostumados que estavam todos não só com monstro, mas duende, coisas sem explicação, cores sem meio-tom. O amarelo de Asdrúbal em uma trilha da Floresta DumDum estaria compondo um arco-íris usual. O amarelo de Asdrúbal (mesmo meio mofado) em uma rua desse nosso tumulto ia ser um ponto de espanto na população local.

Não dava.

Aliás não dava nem para o próprio Asdrúbal, com olhos argutos na caça de borboletas, mas míope como uma toupeira na praça principal. Sem enxergar sinal fechado, bueiro aberto, gente e mais gente. Não dava.

Não dando, a ideia (de Raimundinho) era Asdrúbal fingir que era sombra quando tivesse alguém perto. Quando estivessem só os dois, não. Raimundinho usaria a sombra antiga, aquela com a qual ele nasceu e Asdrúbal usaria as próprias pernas para se locomover, todas as oito. Ou eram seis? Há quanto tempo ele não andava!
Pois no dia seguinte, tudo pronto, Asdrúbal ainda pensou em chamar a barata mais uma vez, mas desistiu: se ela continuasse não respondendo, ele ia ficar triste e esse dia não era para se ficar triste.

Raimundinho chegou sem demorar e disse: vamos.

— Pois vamos.

 

Último capítulo

Foram. Não foi um nem dois passantes que se espantaram com aquele menino que tinha uma sombra tão amarela em um dia nublado que nem sol tinha (o chuvisco do dia anterior ainda continuava de vez em quando). No começo os dois ainda tiveram uns probleminhas, pois Raimundinho, com duas pernas, tinha uma sombra com várias.
— Ei, psiu! Anda mais devagar, poxa!  Assim vão desconfiar!

— Desculpe! É que enquanto você dá um passo eu dou quatro.

— Pois é!  Mas disfarça, disfarça!

Chegaram enfim no oiti.

— Tem oiti?

— O que?

— Tem oiti, lá?

— Lá? Tem. Tem oiti, ipê, quaresmeira, acácia, cambuí, angico branco. A gente vai acabar conseguindo o dinheiro e aí, quando a gente se mudar, eu vou levar esse oiti daqui para lá. Ele é de estimação. Sempre que eu quero me esconder das pessoas eu venho aqui.

Sentaram, puseram as meias para secar, afiaram o canivete, tiraram um formigueiro que estava se formando na raiz do oiti, fizeram um xixi no chão quente do mormaço só para ver fumacinha saindo da terra. Asdrúbal fez um buraco e tampou com folha (“para o primeiro cretino que passar por aqui”), falaram um pouco da vida de cada um, mas, sem querer, como se fosse visgo, o papo ia e voltava para “lá”.

— Asdrúbal, você sabe tirar favo de mel de árvore?

— Então não sei? Você se esquece que eu sempre vivi em floresta?

— Ah é, desculpe.

Depois falaram ainda de como ali, onde hoje tinha o oiti, uma vez, há muito tempo, Asdrúbal tinha visto um ninho de cobra limpa-campo, a cobra que come as outras cobras. Depois Raimundinho ensinou como se fazia pipa, só que Asdrúbal não aprendeu.
— O bom de usar é bambu, que é leve.

— A gente usa os que forem ficando amarelos, dos da sebe lá de perto do maracujazeiro.
— Boa ideia.

Ficaram nesse papo mole, falando de “lá” o dia inteiro.

E depois de um dia inteiro, cansaram.
Cansaram e ficaram assim, disfarçando, um sem querer olhar para a cara do outro para o outro não perceber que o papo tinha acabado.

Raimundinho botou as meias, fechou o canivete (“esse é fogo, dá até para matar porco, cuidado”), inventou uma desculpa besta e foi embora cuidar da vida: comer, dormir, fazer pipa e estudar de vez em quando mode a mãe não chatear.
Asdrúbal suspirou aliviado: tudo bom, tudo bem, mas esse negócio de ser sombra não dava muito para ele não. Já estava fazendo cinco horas desde que Asdrúbal tinha saído do museu. Ele levantou, espreguiçou as pernas e, procurando não olhar para o museu que ficava para trás, foi andando devagar.

Não foi longe, tropeçou três passos depois em uma coisinha marron:

— Ah, el Hepatite! Aonde piensas que vai?

Era a barata. De mão na cintura e cílio postiço, a barata olhava para Asdrúbal.
— Cascuda! – Asdrúbal se abaixou e cochichou:

— Eu não “pienso”, minha velha, eu só vou. Vou por aí.

E foram.

 

A festa no museu (quase que eu me esqueço!)

Quase que eu me esqueço de contar como foi que a barata saiu do museu. Depois que Asdrúbal e Raimundinho foram embora, a barata – que tinha emudecido esse tempo todo só para chatear o monstro – ficou sem saber o que fazer. As Peças Raras, tendo descoberto que Asdrúbal não estava mais lá, mandaram  chamar o guarda de volta. Doberval veio logo. E, querendo comemorar não só a saída do mau elemento como também o que ele achava que ia ser a cura definitiva de sua dor de cabeça, organizou uma festa.

Às oito horas chegaram os convidados, às oito e meia serviram licor de cacau, às nove tocaram ‘Feito para dançar’ na Eletrola a manivela (uma das Peças Raras convidadas).
Mas ninguém dançou, pois foi o primeiro acorde ir pelo ar que pelo chão apareceu uma barata gritando: “música! viva para los músicos!” e, soltando uns puns fedorentíssimos, atravessou o salão. As senhoras desmaiaram enquanto alguns cavalheiros tratavam de fazer de conta que os puns eram na verdade os fogos de artifício da festa.

Às nove e cinco a festa acabou.

Quando tudo ficou novamente em silêncio, o guarda, já de pijama, achou que ouviu, lá longe, uns pedaços de tango cantados a duas vozes:
— Adiós muchachos…

É o vento, pensou. E tomou outra pílula para dormir.

Será que nunca as coisas voltariam a ser como antes? choramingou ele.