Coisas que os homens não entendem, 2002

ELVIRA VIGNA: COISAS QUE OS HOMENS NÃO ENTENDEM (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.; Suécia, ed. Tranan, 2005, 220p.)

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Epígrafe:

“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho, que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”
(Canto V dos Lusíadas, Luís da Camões)

 

 

Capítulo 1:
Já faz muito tempo e é dessas coisas que a gente conta e reconta até perder completamente o que queria dizer e nem que soubesse. Porque é dessas coisas que você nunca soube bem o que queria dizer, mas apenas que queria dizer algo, o que já é muito num mundo em que tão pouca coisa quer dizer alguma coisa. Mas enfim, é uma dessas coisas então. E faz muito tempo. Mas eu estava em Nova York e eu já voltei a esta cidade muitas vezes, depois, a ponto de não haver mais nada daquela Nova York, a primeira, nas Novas Yorks posteriores que eu fui colando por cima. Então só ficou isto. Um conto, um caso, algo que eu já vou contando sozinha, sem nem precisar lembrar, no piloto automático. E é este o único espanto: que uma coisa que foi tão marcante hoje seja contada assim, no piloto automático. E eu conto como um começo, um prólogo de algo que ainda está por vir, porque eu nesta manhã tão igual a todas as manhãs, com meu casaco de lã que eu não agüento mais nem olhar, eu ainda acho que vai haver algo, acontecer algo. Talvez na festa de hoje à noite. Ou depois. Mas agora, porque preciso começar, tento lembrar mais uma vez da cara de Eva dizendo hã, hã e o que me vem não sei mais se é o que era a cara dela ou se sou eu, montando uma cara, restauração de pintura renascentista porque isto eu sei: ela era gorda e rosa, renascentista. E no entanto, do Brooklyn. Eu disse a ela que adorava o século XVI, ela respondeu hã, hã.
Eu tenho vontade de rir quando lembro o hã, hã e o olhar em branco. Século XVI? Eu estava falando em algarismos romanos para uma americana do Brooklyn. Eu, para variar, estava de sacanagem.
Na época eu fazia uma pesquisa nas bibliotecas americanas já pensando em aproveitá-la, depois, para alguma picaretagem da festa dos 500 Anos, quem não teve alguma picaretagem com os 500 Anos? Bem, eu tive. Naquele primeiro dia com Eva falei muito, estava mesmo gostando de chamá-la de burra sem usar a palavra burra mas seus sinônimos: astrolábios, monções e genoveses: mais hãs, hãs. Quando cansei dei uma mordida, não nela, ainda não nela, mas no sanduiche com cebola.
E aí eu disse, ih, cebola, fingindo que não sabia que tinha cebola no sanduíche que eu comia todos os dias, igual todos os dias. Ela diz que também não gosta de cebola e eu continuo meu jogo: eu gosto.
Eu gosto, disse. E completei:
“O problema é o hálito”, e dei uma baforada na sua cara.
Ela ri desarvorada. Eu gosto, gostava, quando ela ficava desarvorada, olhando em torno, não foi tudo sacanagem, teve coisas de que eu gostei.
E continuei, naquele primeiro dia, implacável como sempre sou e fui:
“A vela redonda.”
Ela me dá outro olhar em branco e eu explico, dulcíssima, que a vela redonda na verdade era quadrada, coisa de português, como será que se diz coisa de português em inglês.
Ela pergunta o que eu vou fazer de noite.
Eu ia beber, e porque tanto fazia, termino o nosso joguinho: se ela quer ir. Quer. Então vá se arrumar. E ela levanta, fechando pudica o roupão branco.
É uma das tais coisas boas que afinal as teve, a lanchonete vazia, lembro de ela indo embora, a bunda grande embaixo do roupão branco e lembro gostando mais da lanchonete vazia, como sempre ficava, naquela hora. As cadeiras agora mudas, depois do arrastar contínuo, o dia inteiro, no chão de ladrilho. E o som também emudecido da televisão que, sem som o dia inteiro, só ficava gritantemente sem som agora que os outros sons sumiam, a lanchonete vazia. Era tarde. O rapazinho me espera para poder ir embora, todos os dias a mesma coisa. Um primeiro sanduiche, e depois o segundo. Nesta época, já no fim, ele aceitava me dar o sanduiche do jeito que eu queria e o queria igual há tanto tempo, mas ele me obrigava, quente ou frio?, com picles ou repolho?, aberto ou fechado?, para levar ou comer na hora?, e eu respondia, até o fim eu respondia. Mas no fim, o segundo sanduíche — não o primeiro, mas o segundo — ele aceitava me dar sem perguntar como eu o queria, mas acrescentava, qual a bebida?, como se houvesse diferença entre um ou outro líquido doce gaseificado. Eu cumpria o ritual, obediente: frio, picles, fechado, mas na bebida eu me encalacrava, qual a bebida, e eu ficava olhando para ele, perplexa, quase em pânico, qual a bebida. Não vendiam álcool, como estipular diferenças se não vendiam álcool?
Naquele primeiro dia, Eva saiu rebolando e eu pedi o segundo sanduiche porque queria mostrar ao rapazinho que tudo continuava igual e pela primeira vez disse repolho. Quem mandava? Quem estava no controle? Eu, seu idiota.
E quando afinal fui embora, não só da lanchonete, mas das ruas com os sacões pretos de lixo e as poças piscantes de néon, quando eu fui embora do edifício velho e do barulho do elevador velho, eu devia ter tido o ataque de gênio de dizer:
“Mas Eva, o que está acontecendo é a continuação daquela nossa primeira conversa, a frase que você não me deixou terminar. Que a vela redonda, agora você já sabe, possibilitou a volta, foi isso o grande feito português, foder com a viagem de todo mundo. Adeus sonho de ir, ir, e não voltar jamais. Pois então é isso. Voltei, vou voltar, estou voltando.”
Mas eu não estava para ataques de gênio quando saí de lá achando que voltava de vez para minha terra e me enganando, que de lá voltei para cá e daqui voltei para lá antes de voltar para aqui e agora nem sei se aqui estou, ou se lá, como diria o Camões. E a única coisa real é o meu casaquinho cuja lã, velha, faz bolinhas, e que eu visto pelas manhãs e que eu não lembro mais se já o vestia por lá, mas provavelmente não. Provavelmente vestia outro, porque isto tudo faz muito tempo.
Este caso, então, o “Prólogo” e que vai ver nem é prólogo, porque tem sempre um antes e um antes do antes, mas este caso eu gosto de contar como tendo começado naquele dia em que eu achei de convidar Eva para beber por puro desfrute, por tédio, por acinte, convite feito em uma lanchonete que melhor ficaria se sem ela, se vazia, é assim então que eu começo, naquele dia, nós pelas ruas, mas minto. Eu na verdade, quando voltei para cá, como voltei, não achava que ia voltar para sempre. Eu comprei passagem de ida e volta, acabo de me lembrar disto, eu tinha uma passagem ida e volta. Ou seja, voltava, dizia que voltava, mesmo para mim me dizia que era a volta e me despedia das coisas, dos cantos, do lixo, mas no bolso uma ida e volta, um plano B.
Mas naquele dia, eu e Eva fomos pelas ruas molhadas, seguindo outras pessoas que davam passos largos e falavam e riam, à vontade nas ruas, elas, e lá pelas tantas, na nossa frente, um grupo de japoneses, e eu fiz uma brincadeira, o papo rolando difícil.
“Já reparou como calção sempre fica largo em japonês?”
“Há, há.”
Era verão em Nova York. A subida da Quinta fazia seu recorte no vermelho sangue do céu de verão de Nova York, nem tudo foi ruim, houve coisas de que eu gostei.
Naquele dia, os japoneses que iam na frente de mim e de Eva pelas ruas tinham saído de alguma academia de ginástica e um deles, de vez em quando, dava uma raquetada no ar, mortal, o zzzzz interrompido por gargalhadas ininteligíveis, de japonês.
Eva queria vir comigo para o Brasil, queria ir para qualquer lugar, na crença americana de que basta ir a qualquer lugar do mundo para se dar bem, ganhando muito dinheiro dos nativos. Então era Brasil porque ela tinha descoberto que eu era brasileira, mas podia ser Pago-Pago. Naquele primeiro dia, depois, já no meu apartamento, ela soluça. Bebeu demais e agora soluça e a cada soluço a alcinha caía mais um pouco. E ela diz:
“Me leva para o Brazil! Me leva para o Brazil!!”, isso em inglês – e eu pensei na hora e ainda penso que foi a primeira vez na história do planeta que esta frase foi dita em inglês, acho que as ondas sonoras ainda devem estar por aí modificando para sempre as condições fisico-químicas da atmosfera. Eu só podia rir, e ri.
Aí fui colocar uma água para esquentar e ela perguntou se tinha decaf, sempre admirei isto neles, esta capacidade de, mesmo com o olho cheio de lágrima e o nariz escorrendo, continuar pensando rápido sobre o que quer e o que não quer, e ela queria decaf. Como depois quis sempre quiche de espinafre, açúcar mascavo e tomates dos amishes sem agrotóxico. E este é o segundo motivo de eu ter entrado naquele avião, naquele primeiro, não foi o primeiro, enfim, naquele, no que me fez voltar, a primeira volta. Foi, além de tudo mais, porque eu queria fazer o que fiz assim que desembarquei, o sol pela janela do frescão, oito horas da manhã e eu só pensando em sentar num quiosque e mandar descer, a empadinha de camarão, o cachorro quente com bastante molho. E a birita.
Antes de Eva descobrir que eu era brasileira, ela achava que eu era alemã. Sempre contava isto para as pessoas mas não acrescentava a explicação que eu lhe dei para este seu engano e que era a seguinte: falava, falo inglês com raiva, o que fica parecendo alemão.
A raiva: o passeio, por exemplo. Lá pelas tantas fui convidada para um passeio campestre. Um parque das redondezas, deserto. Nosso grupo na beira de um lago, também deserto, passa por nós uma família de patos selvagens, com seus filhotes, e eu estico a mão para tentar pegar um deles, mas só eu. As outras pessoas estavam imóveis e se encolhendo para não invadir o espaço dos patos, uma leve censura pelo meu gesto, perdoável apenas porque sou um ser primitivo, fazendo o que fiz por ignorância. As pessoas tinham um sorriso petrificado na cara, e esperaram os bichos passar para voltar a se mover. Contatos não admitidos. Depois de uns dias, falando com um vizinho, me animo — decorrência sem dúvida de ter sido convidada, antes, para o programa no parque deserto — e toco em seu ombro. Ele se encolhe com o mesmo sorriso petrificado, eu, o animal de outra espécie com quem ele momentanea e desconfortavelmente se via obrigado a conviver.
Então teve isso, a raiva — o maior motivo de ter havido Eva. E quando começa uma raiva? difícil saber, mas foi antes, muito antes. Então o prólogo verdadeiro é a raiva, o que me fez chamar, psiu, aquela mulher cor-de-rosa e rebolativa, na lanchonete quase vazia. Já a conhecia, claro, e ela a mim. Ela era a autora das poses ridículas, dos pastiches de sensibilidades das terças e quintas. Era daquele rosa de anilina que eu extraía traços pretos de carvão a quase rasgar o papel rough, reciclado – a escola, de arte, seguia o esperado do bom-mocismo vigente: papel, só reciclado. Tem uma hora que de fato tanto faz e então eu fiz psiu.

Eva preferia, em sua atuação de modelo, as poses que exigiam braços para cima, sobrancelhas idem. Depois fiquei sabendo do seu sonho de criança, de bailarina de tutu e long cou, no francês rimado e intrinsicamente errado de uma judia do Brooklyn. Mas não conseguiu, primeiro os croissants dos lanchinhos. Depois Daniel. Então ficou naquilo que eu conheci, os cisnes mortos que eram matados outra vez com a frase de atenção, pessoal, à curva do braço. As mãos de capelas sistinas mas as unhas às vezes sujas, e para terminar, ou melhor, para o grand finale, joelhos ao chão nas pietás das duas e meia – sempre muito rápidas porque Eva se atrasava mas o homem que vinha depois, não. O homem que vinha depois era um negro com o sexo também negro, embora de tom arroxeado, testículos e pênis em um degradé sutil chegando ao roxo batata que eu, estrangeira a mais não poder e não só do ponto de vista geográfico, olhava avidamente, tentando buscar lembranças cromáticas, olfativas, (obs)cênicas. Inutilmente. Cheguei a insistir comigo mesma por um bom tempo, depois desisti, e fiz o psiu, no foda-se.
Este modelo masculino fazia bem mais sucesso do que Eva, e era este o problema, me explicou ela entre seus soluços de bourbon — que ela, falsa abstêmia, tomou “só para me acompanhar”. As poses do homem não pertenciam à categoria sensibilidade, pelo contrário, pernas abertas, cara de tédio, talvez peidasse. O homem olhava os alunos nos olhos enquanto, não só eu mas todos, nos esforçávamos para olhar pênis, testículos e o resto todo da negritude como se — uma impossibilidade ôntica — natureza morta fôra. Natureza morta sendo o assunto da aula seguinte, destruíamos assim, cotidiana e firmemente, a ordem linear, científica, anglo-saxônica do currículo do curso, cujo nome correto, o do folheto, eu já esqueci.
Freqüentei esta escola só no primeiro ano em que fiquei por lá. A finalidade das aulas era ampliar as técnicas offline do curso acadêmico de animação em 3D. Eu trabalhava como assistente da sala de fotografia e, com isso, ganhava o direito de freqüentar um dos cursos, à minha escolha. Peguei modelo vivo porque queria chegar perto, nem que fosse só com o fio – queimado, já tornado carvão – a ligar a natureza mais, ou menos, morta ao papel necessariamente reciclado.
Não posso dizer que não tenha dado certo.

Na minha frente, naquele primeiro dia, no meu apartamento, Eva soluçou sobre a falta de caráter do diretor. Porque, em que pese o esforço de considerar pênis e testículos natureza morta, ou por causa mesmo deste esforço, todos preferíamos o modelo masculino. Só a necessidade politicamente correta de haver um homem e uma mulher na aula de modelo vivo ainda mantinha Eva no emprego. E, conforme me explicou entre soluços/arrotos etílicos, a professora que tinha indicado o nome dela para a escola acabara de cair em desgraça por pura implicância do diretor, um fascista, e eu concordei, fascista, fascinada. E ela então queria ir para o Brasil. Bem simples. E o filho, se apressou a me dizer, ficaria com o pai por uns tempos. E me olhou esperançosa.
Nós, os que temos um sonho, os que nos inventamos a cada dia, os que fazemos as nossas viagens sem saber se são de ida ou de volta mas que desejamos que seja para sempre. Foi neste momento que gostei um pouco, o pouco que deu para gostar até o fim, dela.
No bar onde tínhamos ido beber naquele primeiro dia, pedimos sushis. Eu, uma cerveja escandinava, depois vários screw drivers. Ela, uma bebida não alcóolica indiana, depois bourbon. O bar era uma imitação de pub inglês, e o bartender, que falava um inglês australiano, mexeu por muito tempo no telão até achar um clip do Haiti. Falavam uma língua eslava perto de mim, dava para fechar os olhos e viver em lugar-nenhum, nem sempre foi ruim.
Não sei quando Eva começou a desistir, a perceber que não ia acontecer, essa viagem de sonhos comigo para o Brasil. Foram vindo outros sonhos, um deles na forma de um rapaz, um cara que prestava serviço no escritório onde ela acabou por arranjar um emprego de digitadora, depois de ter sido despedida como modelo. Eu o conheci, um rastafári tecnocrata. É um tipo comum por lá: uma fera no computador, mas de trancinha e olho vidrado. Mas não foi este o motivo de nada, imagine, um homem, tão pouco.

No último dia, antes de eu sair pela porta mal pintada, ainda sozinha na mesa de fórmica, comi um pão preto com queijo sem gordura pensando que aquela era a última vez em que eu ia comer pão preto com queijo sem gordura. Não esperava ninguém. Achei que iria levantar, sacudir os farelos, sair, tlec. Daniel, minha sorte, passando uns dias com o pai, Eva só devendo chegar do trabalho – um extra que fazia aos sábados – depois de eu sair. Chegou antes. Se Daniel estivesse lá seria pior, acho que não ia conseguir sair sem dizer ciau, sem dizer, bem, querido, até daqui 15 dias, de qualquer maneira a gente vai se ver. Ou qualquer coisa assim, sem conseguir parar de falar e de passar a mão no seu cabelo sempre tão curtinho que chegava a espetar. Se fosse Daniel seria difícil, mas Eva?, foi fácil.
Chegou antes da hora em que devia ter chegado, tomou um banho, colocou uma blusa decotada e ficou lá, sem fazer nada, me olhando para ver se eu falava alguma coisa que permitisse a ela gritar, falar, me apontar o dedo. Já vinha ensaiando há algum tempo. Trazia às vezes uns plásticos — mais de mil anos para se decompor — de salvem as baleias. Num dos últimos fins de semana disse que ia, junto com o rastafári e sua turma, abraçar uma árvore perto da usina nuclear. Chegou morta de frio, aumentou o termostato. Eu nem rio. A Amazônia tinha virado assunto de uns comentários enviezados. Se Eva fosse mais esperta eu ia pensar que ela estava já preparando o fim, ajudando, de uma certa maneira. Mas como não era esperta, acho que ela realmente achava tudo o que falava.
Compro então a passagem, ida e volta, o plano B: qualquer coisa e eu voltava, oi, oi, foi tudo bem na viagem, e aqui? Mas tiro todo meu dinheiro da conta, o aluguel já estava em nome dela. E fiquei pensando, já com o verbo no passado: foram dois anos. Eu tinha tido só dois relacionamentos longos em toda minha vida, e este — em termos de tempo corrido — foi o mais longo dos dois. Dias antes ela tinha perguntado, perguntou sem perguntar, afirmando, que eu não precisava viajar, que não havia uma necessidade real e objetiva para vir para o Brasil, e era verdade. A encomenda podia ser feita perfeitamente no computador.
Perguntou nesta mesma ocasião se eu ia ficar em Seinta, caprichando na pronúncia que ela sabia errada, e querendo dizer com isto que eu ia para um lugar ridículo, vagabundo, com o nome de Seinta. Disse que sim, surpresa de ela se lembrar da palavra, e na hora em que eu disse que sim — para contrapôr uma seriedade ao seu Seinta ridículo, acrescentei: é, Santa, sim, Santa Tereza — embora eu naquela hora ainda não soubesse que era para isto que eu vinha.
Como se pudesse ser diferente, como se desse, se houvesse alguma chance de ser diferente. Eu nos meus enganos, sempre achando que o próximo passo eu que invento, me enganando, não querendo lembrar o que já sei desde o Século XVI, que a chegada está já na partida. E ainda hoje, no meu casaquinho, tentando descobrir se o vice-versa também é verdadeiro.
Mas sim. Mesmo depois de ela dizer Seinta e eu corrigir Santa, ainda achei, por um tempo, que eu vinha para nada, para andar na praia, empadinha de camarão. E criei para Eva uma Seinta/Santa de TV, a imagem mais babaca e estereotipada que há e que estava lá, na minha cabeça, pronta desde sempre. Eu disse e dá até vergonha:
“Um lugar onde pobres e ricos se misturam em bares onde a qualquer hora do dia e da noite há sempre um samba sendo executado por gênios, verdadeiros gênios, alguns desconhecidos, outros famosos na Europa, no mundo inteiro. Negros, viu, negros de pau enorme. E índios, também de pau enorme. E cobras.” Nosso apartamento é no Village, ela franze as sobrancelhas, se perde um pouco, hein?, só falta olhar em volta.

Casas ricas lado a lado da favela, todos irmãos. Casas, lindas, antigas, de tijolos vermelhos e telhados inclinados de ardósia, bem inclinados, por causa da neve, dentro os pisos de tábua corrida em jacarandá. No terreno baldio uma goiabeira ou uma maple tree. E minha tia e um piano. E as grades de ferro trabalhadas, e as ruas de calçamento em pedras pé de moleque. Street boys’ feet stones on the street. Eu olho pela janela, um tratamento de imagem, em layers, e eu poria Nova York em Santa Tereza. E um rinoceronte, por motivos cênicos, dentro da rain forest, macacos, onças pintadas e rinocerontes.
“Rhinos, big rhinos.”
E eu ia ter de tomar cuidado com os rinocerontes que invadem, quando chove, a cidade. Garanti, e vim.
Antes peguei a mochila amarela, botei umas coisas dentro. Passo por ela na sala e de pé, perto da porta, não digo ciau. Ela também não. Saio e fecho a porta, o tlec. No táxi, naquele dia que era o último, eu pergunto ao motorista se ele conhece o caminho do aeroporto que evita os pedágios.
Ele se vira para trás com um sorriso nos dentões amarelos e um brilho no olho:
“Yes ma’m.”
O táxi daquele último dia balançou macio pelas ruelas e descampados da Nova York dos sem-dinheiro. Era quase noite. O vermelho ficou ainda por um bom tempo, à minha direita, recortando a cidade, e eu senti um pouco de frio.
Durante todo o tempo em que freqüentei a escola de arte, havia sempre uma exposição dos alunos no corredor da lanchonete. Naquele primeiro dia, quando Eva se levantou, ajeitou o roupão a caminho do vestiário e seguiu rebolando sua bunda grande, o fez por uma galeria de exercícios de agit-prop pretos e vermelhos, e seu andar bem nutrido e desatento por entre os cartazes de agit-prop era, ele em si, um agit-prop sobre a inutilidade das agitações/propagandas políticas, o andar dela falava de uma das minhas inutilidades, eu tinha outras. Tenho.