O triste fim de Asdrúbal, o Terrível, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS : O triste fim de Asdrúbal, o Terrível (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infaasdrubal04

 

 

 

dedicatória: para o Aníbal

 

 

O título, o subtítulo, a página em branco e a dedicatória do livro

Para o Aníbal, com a saudade do Asdrúbal

Não.
Aníbal, uma lembrança do nosso encontro, Asdrúbal

Também não.

Ao Aníbal, uma modesta contribuição para sua biblioteca, do amigo Asdrúbal
É. É isso.

Asdrúbal ficou um tempo olhando o ar. Ele fazia assim toda vez que conseguia dar uma adiantada no seu livro de memórias. Seu livro se chamava ‘Minha lufa-lufa’.

Asdrúbal já tinha escrito o título, a página em branco do começo e agora estava nas dedicatórias. Já tinha três prontas: para o Durango Kid, para o Superqualquercoisainterespacial e agora essa aí, para o Assurbanipal, a quem Asdrúbal chamava carinhosamente de Aníbal, mesmo porquê, escrever Assurbanipal assim inteiro, sem errar, não é mole.

Um livro. Eis um inimigo que Asdrúbal nunca tinha enfrentado antes. Mas é que um dia Asdrúbal tinha escutado não-sei-quem dizer não-sei-pra-quem:

— Puxa! A sua vida daria um livro!

Asdrúbal morreu de inveja. Vai daí que ele resolveu fazer duas coisas: primeiro, fazer com que sua vida também desse um livro; segundo, escrever o tal do livro.
A primeira parte tinha sido mole. Foi só sair por aí falando grosso e matando umas borboletas furrecas. A segunda parte já não era assim tão fácil. Há três meses que Asdrúbal não saía das dedicatórias, apesar de toda ajuda prestada pela sua barata de estimação nas curvas e minúcias das maiúsculas.

Asdrúbal achava que ser um monstro era uma coisa incrivelmente importante. Nem todos concordavam com ele e esse era mais um motivo para escrever o livro:
— Vou provar a esses moleirões. Vou provar quem foi o batuta da história.

Asdrúbal achava que ele tinha sido muito, muito importante e inteligente e muito, muito mais esperto do que todo mundo. Quando reclamavam das borboletas mortas, dos bichos apavorados na finada Floresta DumDum, Asdrúbal perdia o olhar, não no horizonte que esse sumira de há muito, mas no edifício mais próximo. Ele não se lembrava direito de quantas borboletas ele tinha encontrado na vida. Sim, claro, ele poderia ter pisado sem querer em uma ou noutra (são sempre tão frágeis e bobocas essas borboletas), mas tinha muito exagero aí na boca do povo.
Asdrúbal iria provar seu ponto de vista aos outros, nem que fosse enfiando-lhes goela abaixo os pês, os quês e os ipsilones do seu livro que ele já via pronto, lindo, em cinco volumes, ilustrado e com o subtítulo: Mais uma obra-prima da literatura universal, lançamento da editora tal.

Mas tinha uns outros motivos menorezinhos para Asdrúbal escrever o livro. Por exemplo, a faxineira.

Duas vezes por semana dona Isaura aparecia na casa do Asdrúbal para fazer a limpeza. Asdrúbal, aposentado, ficava meio sem graça de ficar sentado sem fazer nada com a mulher espiando-o com o rabo do olho. Um lápis e um papel na mão, uns óculos na ponta do nariz e, de vez em quando, quando dona Isaura estivesse espanando por perto, uma palavra bem difícil soletrada com ar pensativo:

— Paralelepípedo…. Hum, ham. Ô dona Isaura, faz favor de não me interromper aqui no trabalho. Ah, e telefonema, só atendo se for  muito urgente.

Pronto. A ordem, o respeito e, por que não dizer, o progresso voltavam ao mundo.
É claro que o telefone não tocava. E é claro também que nem dessa feita tinha seu nome no jornal. Antes era comum a manchete principal ser: Asdrúbal vai amanhã para Tribobó; Asdrúbal voltou de Tribobó; Asdrúbal pegou um resfriado; Asdrúbal sarou do resfriado; Pique um dois três, declarou Asdrúbal na Câmara.

Hoje não, mas quem já teve seu nome aparecido uma vez em jornal sabe disso. Vicia, não se consegue esquecer nunca mais. Passa-se o resto da vida procurando o próprio nome no jornal. Até nos anúncios. Até nos avisos fúnebres:

— Vai ver que eu morri.

Mas qual, nem mesmo esse programa aí, tipo cemitério, acontecia na vida de Asdrúbal.
O livro emperrado, o telefone mudo, o jornal lido, o carteiro doente, só podia estar doente, e dona Isaura olhando tudo, ai meu deus.

Asdrúbal foi até a janela, mas para isso teve que pedir licença à sua barata de estimação que estava por lá, regando as samambaias. As samambaias tinham começado em um vasinho pequeno, inofensivo. Depois outro e mais outro.
— Ecologia, entende? Verde que te quero verde.

Asdrúbal era amarelo e aquilo soava à agressão. Ele via a sala diminuir dia a dia com samambaias de todos os tipos: renda rasgada, xixi, cabelinho português e até mesmo a raríssima samambaia 87 cms.
Asdrúbal cortou um pedacinho com a mão (85 cms, para arredondar) e antes que a barata dissesse alguma coisa, largou:

— Vou sair.

— Onde você vai?

— Não é da sua conta, ora! Mulher mais enxerida!

Asdrúbal foi andando, o que não era muito simples. Primeiro ele tinha que ajeitar as pernas para não andar com as pernas duras, sem dobrar o joelho, o que chamava a atenção dos outros. Depois Asdrúbal tinha que reparar como os outros faziam com as mãos e imitar. Depois era a vez da cara. Asdrúbal se lembrou da cara confie-em-mim da televisão, do sorriso qualidade-global da televisão, do ar tudo-vai-correr-bem do noticiário da televisão, mas resolveu ser ainda mais ambicioso: escolheu o olhar não-tenho-a menor-ideia-de-quem-está-por-trás-desta-roubalheira da televisão. Não ficou perfeito, perfeito, mas dava.

Pronto. Asdrúbal estava preparado para iniciar seu passeio na rua. Um nadinha a mais e ele iria ficar igual a qualquer outra pessoa, mas foi aí que ele se deparou com um poste recém-pintado de verde escuro.

— Bom dia, general!

Foi o quanto bastou para tudo, pernas, mãos e televisão, voltar ao que era antes no quartel de abrantes.

Asdrúbal desistiu do passeio.

— Como será que os rapazes estão fazendo?

Os rapazes eram os outros monstros, colegas do Asdrúbal. Eles se reuniam todas as sextas-feiras 13 para balançar a cabeça e dizer como tudo estava tão ruim que só ia mesmo piorar e como só eles saberiam resolver todos os problemas. Para cúmulo do azar já fazia um tempão que não caía nenhum dia 13 em sexta-feira.

Era por isso que o mundo estava na maior meleca.

Os rapazes discutiam também seus problemas pessoais: como fingir que não eram nem nunca tinham sido monstros e como lidar com as baratas de estimação. Todos eles as tinham, todas elas usavam sutiã 48.

 

Mudança de autor

Não sei dizer como foi que Asdrúbal virou Vasconcelos. Foi virando. Talvez o que primeiro mudou foi o ombro – mais caído. Ou quem sabe foi o jeito de falar – mais arrastado. O caso é que Asdrúbal virou Vasconcelos.

Não sei também se isso teve alguma coisa a ver com o livro. Talvez, pois um vasconcelos entra até na Academia, asdrúbals já fica um pouco mais chato.
O novo Vasconcelos era igual aos outros. Meio barrigudo, meio barbado e meio careca. De manhã, ele punha um calção, ia comprar pão com a cara ainda vermelha da água – sem sabão, que é para ninguém dizer que eu estou fazendo versos com a vida alheia.
Vasconcelos tinha lá as manias dele. Gostava de futebol, era Vasco – o que me faz pensar o que veio primeiro, se o nome Vasconcelos, se a paixão (moderada) pelo Vasco.
Quem gostou da transformação foi a barata. Passava o dia gritando:

— Ô Vasconcelos! Olha aí a porta batendo! –  e baixinho – que esse homem não presta para nada…

— Ô Vasconcelos! Olha aí a campainha, homem! – e baixinho –  parece que é surdo…
— Ô Vasconcelos…

Do passado asdrubaliano nem um pio. Até parecia trato: nem ele falava de suas vitórias e guerras, nem ela falava do ex-noivo milionário e dos seus sucessos nos palcos portenhos (tinha sido cantora em Buenos Aires, parece).

Mas se ela cantarolava às vezes velhas canções só para deixar ele de mau humor, ele também, todos os dias, se trancava no banheiro e, com um urro forte, virava Asdrúbal outra vez no espelho da pia.

— Ô Vasconcelos! Que barulho! Olha os vizinhos pela-mor-de-deus!

Asdrúbal passou a fazer esse exercício só aos domingos.

Asdrúbal tentou também, no começo, dar o urro e virar ele mesmo dentro de sua roupa de gala (a gala sendo um lindíssimo rabo dourado com estrelinhas fumê que, infelizmente, nunca resistiam ao impacto).

— E você acha que eu vou passar minha vida costurando essas coisinhas aí para você?!
Asdrúbal passou a virar ele mesmo pelado mesmo.

E com isso, tudo parecia arranjado. Asdrúbal, quero dizer, Vasconcelos, não tinha mais que se preocupar se estava chamando a atençao, se tinha gente cochichando. Como Vasconcelos, ele podia se dar ao luxo até de andar de ônibus sem despertar nenhuma suspeita. O fato de Vasconcelos passar muito tempo no banheiro não causava espécie: tem muita gente que tem essa mania.

— Ah! eu fico lá dentro muito tempo porque eu gosto de ler o jornal (e de tirar meleca do nariz…).
— Ah! eu gosto de fazer minha ioga no sossego, antes do banho (e de ficar sem fazer nada sem ninguém para me chatear também…).

— Ah! eu estava com uma dor de barriga (e com uma vontade danada de ver como é que meu peru fica quando eu fico de cabeça para baixo…).

— Ah! é que eu fiquei lendo uma revistinha (e ensaiando cara bonita no espelho…).
Pois Asdrúbal estava virando ele mesmo no espelho do banheiro e ele podia dizer qualquer coisa como desculpa que ninguém ia mesmo estranhar nada. Quem é que não usa uma desculpinha de vez em quando?

Além da mania de demorar no banheiro, tinha outras coisinhas que poderiam denunciar que atrás daquele Vasconcelos se escondia um horroroso Asdrúbal. Mas tal qual a demora no banheiro, eram coisinhas assim pequenas, que ninguém estava muito atento para reparar. As ordens, por exemplo. Vasconcelos era um cara que gostava de dar ordens.

— Ô Vasconc..

— Fale. Ordeno-te que fale!

— Hum, me passa a batata, por favor.

Ou no fim da tarde, quando Vasconcelos ia até a janela lutar contra as samambaias em busca de um arzinho:

— Sol! Você tem exatamente aí umas … umas … que horas são, benhê?

— Cinco e meia.

— Exatamente umas duas horas para sumir da minha frente, ouviu?
Vasconcelos sorria satisfeito. Suas ordens seriam obedecidas. Como antes.
Pois é. Tirando uma ou outra coisinha como essa, Asdrúbal tinha virado um Vasconcelos perfeito, e se não fossem os urros ocasionais no espelho do banheiro, ninguém – nem mesmo ele mesmo – nunca mais se lembraria que algum dia tinha existido alguém chamado Asdrúbal.

Vasconcelos e Cucaracha (não é que a barata tenha mudado de nome, não. Ela nunca tinha tido um e Vasconcelos passou, com o tempo, a chamá-la de Morocha, Cuchinha ou Cucarachinha) às vezes até faziam visitas.

— O senhor aceita mais um uisquinho, seu Asdrúbal?

— Não, obrigada, o general já tomou o suficiente.

E Vasconcelos sorria amarelo, agradecia com a cabeça, pedia licença e ia ao banheiro.

Sorrir amarelo sempre dava vontade ao Vasconcelos de ver amarelos fortes, totais, asdrubalianos. No banheiro, pelado, Vasconcelos dava um urro, crescia, gargalhava. Na sala, Cucaracha se desculpava.
— Não é nada, não. Problemas seríssimos de estômago, coitado. Ele passa os dias inteiros escrevendo, curvado lá na mesa dele, isso afeta a digestão.

As pessoas concordavam com a cabeça e a vida ia continuando.

 

 

O prefácio e o último capítulo do livro

Asdrúbal escreveu o prefácio do seu livro de memórias em alemão, língua muito difícil para as pessoas normais, mas facílima para monstros. Depois, empacou outra vez. Foi aí então que ele teve a ideia de ir botando palavras soltas dentro das páginas. Quem sabe se elas, à noite, não acabavam se embaralhando e virando frases? Frases completas, com predicado e tudo: vovô viu a uva. Ou melhor ainda, em um estilo menos coloquial, mais seco, direto, jornalístico: Ivo viu a uva.

A primeira palavra que entrou dentro do livro foi inspeção que é a palavra mais difícil que existe para jogo de forca. Não tem nenhuma letra repetida e aquelas três consoantes juntas não tem quem mate, para não falar no c cedilha.

Depois veio aliás, palavra lindíssima; bule, porque era esquisita, ovo e osso porque dava para se ler de trás para diante, tolocototinham porque era mágica, gostosura era de estimação, dadim, putuca e dedéu tinham sido, há muito tempo, amigos inventados, mas cazuza, fofura e tontura soavam tão bem que dava até para esquecer piolho tomate amargo. Formosura era chique, gatinho piou no telhado. Telha molhada, xixi na calça. E mais peteca com suas pernas abertas e mais bolota com seus braços para cima.

Depois:

Aaron, artur abiu

bubudo barco babalho.

Cauzinho, cauzinho,

dorisdou dazinzo.

Ernesto entero terou

fudega finzo abobou, oh! que piom!

E o que vem mesmo depois do f?

Vista cansada, cabeça girando, lápis sem ponta, Vasconcelos soluçando com vide verso paropra descansar. Dolores de mis penas. Ué. Vasconcelos ficou na dúvida: palavras suas ou de asdrúbal, essa palavra roubada sabe-se lá de onde?

Vasconcelos parou.
Depois foi ao banheiro, banheira. Bidê. Biribinha no bidê logo mais à noite ia ser uma boa, mas Asdrúbal não apareceu no espelho da pia para receber o convite.

Um copo d’água para refrescar e quinto capítulo.

Uma coisa bem forte para o quinto capítulo.

Independência ou norte!  – gritou o espadachim ao descobrir uma importante fórmula matemática. Não, não. Foi Eureka o que o espadachim gritou ao descobrir uma importante fórmula matemática.

Não foi espadachim. Foi Newton. Newton Gonçalves, o famoso compositor.

Shakespeare? D’Artagnant!! Ah, me lembrei: foi d. João VI, o Louco, aquele dos portos. Portos. Isso mesmo!!! Porthos!! Porthos, Athos e Aramis!!! Os três mosqueteiros que eram quatro.

Espadachim, diminutivo de espadacho. Cabeçorra, bocarra, pratarraz, casinhola e elefoa, feminino de elefante. Ah, ah, quem é o burro??? Aipim, diminutivo de aipo. Canhoto, canho, canhão. Constelação, coletivo de avião e dragão, aumentativo de… Vasconcelos se lembrou de repente que não era d. João VI que era louco, era a mulher dele, a rainha dona Maricota, a Louca. E Vasconcelos achou que, realmente, por falar nisso, era melhor descansar senão ia acabar tendo um troço, mas antes ainda rabiscou uma ‘atenção, atacar na tapioca’ lá pelo sétimo capítulo, só para não esquecer. Vascondelos deu um sorrizinho.

Vasconcelos deu um sorrizinho quando percebeu que a tapioca, bem devagarinho, ia se transformando em baitola aí na margem, achando que estava escondida só porque na sua frente tinha um carnegão. Um berro, dois tapas, tapioca voltou para seu lugar.
As palavras lhe obedeciam. Vasconcelos ficou tão contente que cauda houvera, abanenta estaria.

(Puxa, como obedeciam!!)

Mas os tapas e o berro, dado meio baixo que Cuchinha já estava dormindo, fizeram voltar a vontade de ir ver o Asdrúbal. Asdrúbal andava tão sumido. Mesmo no livro era uma palavra rara. E, depois de uma sugestão da barata, era agora apenas um sujeitinho de terceira pessoa.

— Ex-eu é quase ele. – dissera ela. Escreve as memórias na terceira pessoa, fica melhor.
Talvez fosse mesmo melhor assim, pensou Vasconcelos, enxugando o suor do rosto. Asdrúbal era uma vez.

E assim podia acabar a história.
Não seria a primeira vez que ex-monstros acabam de fininho atrás de sorrizinhos amarelos com cheirinho de hortelã.

Mas esse monstro aí é meu – e choveu.

Chuva da grossa, com relâmpago e trovoada. E cada trovoada horrorosa no céu dava um tremelique trembembé dentro do peito do Vasconcelos. Um relâmpago riscava o céu e dentro do Vasconcelos um risco amarelo reaparecia. Tempestade alta e Vasconcelos sentindo um trovão dentro dele. Asdrúbal sempre tinha gostado de tempestades.
— Asdrúbal não morreu, está aqui dentro. Trum! Bum! Bum! Eu sou o Asdrúbal! Avante tambores, para frente, capitulões!!

E qual um louco já abri, abriste, isto é, abriu a porta para lavar as vasconcelices com grossas gostosas gotas de chuva. Mas no pé ainda um chinelo de dedo. Boa marca, a legítima, feita para vasconcelos de fino trato. O pé de Asdrúbal tropeçou, torceu, sei lá, na borracha passo a passo. Tropeçou e caiu.

Dentro do livro.

Um acento agudo fez corte grave no seu coração. Uma circunflexão mal feita acentuou o trêfego relâmpago transatlântico enquanto sua única metáfora fazia caretas de verdadeira metástase, Asdrúbal gritou por socorro:

— Help!

Mas foi só abrir a boca que se lhe entraram pitágoras ponteagudas dentes adentro. Vasconcéus. Trovões e enxurradas lhe sufocavam com palavras polissilabíssimas. E, de repente, no meio do aguaceiro, se balançando qual barquinho de papel, veio vindo uma frase, a primeira completa, com sentido, linda, a primeira frase completa do livro – e a frase dizia assim:

Queira se dirigir ao guichê ao lado

Um relâmpago afundou-os, ambos – monstro e frase.

 

 

O post-scriptum do livro

Quando a barata acordou pela manhã, procurou pelo Vasconcelos e pensou:

“Ai, como é duro ter um ex-monstro como bicho de estimação!”

Botou anúncio no jornal, perguntou para todo mundo, depois de um mês resolveu dar uma arrumada nas coisas dele e então viu aquela mancha de uma amarelo aguado no último capítulo do livro. Tinha ficado tão bem.

Ela hesitou em botar a palavra “fim”, mas quando o editor começou a insistir e a dizer quanto dinheiro ela poderia ganhar com as memórias de Asdrúbal, o Terrível, ela se resolveu.