Viviam como gato e cachorro, 1978; 2005

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Viviam como gato e cachorro (primeira edição pela Paz e Terra, 1978, 48p.; segunda edição pela Dimensão, 2005, 48p.; edição em cd para deficientes visuais através do pnbe-especial, 2010)
– prêmio Melhor Ilustração da APCA, 1979;
– participação no Ciranda de Livros da Fundação Roberto Marinho, 1980 ;
– menção Altamente Recomendável da FNLIJ, 1979;
– participação no catálogo da Feira de Bolonha, 2006.

 

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críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

infaviviam02

(capa da última edição e da versão sonora para deficientes visuais, em cd)

 

 

Essa é a história de Joaquim e Alfredo.

Os nomes

Alfredo quando era pequeno também se chamava Fefê. Depois que cresceu, ele virou Alfredo, Barão von Alfred, ou só Barão.
Isso porque, além de ser muito antipático e besta, também diziam que ele era um herói de guerra. E os heróis de guerra às vezes acabam virando nobres: condes, viscondes ou barões.
Mas para Alfredo tanto fazia chamá-lo de Barão ou de Antunes, de Pedro, de Chato, Você aí ou Alfredo.
Qualquer nome que chamassem, ele não respondia mesmo.
Quinho sempre foi Quinho.
Depois, inventaram que Quinho queria dizer Joaquim pequeno, mas era mentira.
Inventaram isso só porque Quinho ia viver com Alfredo e não ficava bem um quinho qualquer ficar ao lado de um Barão.
Joaquim, então.
Ou, se é para inventar coisa, Joaquim fon Seca, Barão também. Barão português.

A história de cada um

Diziam que Alfredo tinha sido militar. Ele tinha lutado na guerra, do lado dos alemães.
Até hoje ele gostava de ficar na mesa do quintal, olhando para os lados, procurando os inimigos.
Cada folhinha que se mexia, cada nuvem do céu, todos os barulhinhos… Alfredo vigiava e espiava tudo.
Joaquim sempre tinha sido isso mesmo que se via.
Barulhento, comilão, sempre com uma pulga nas costas ou um carrapato grudado no pé.
Do seu passado, Joaquim só se lembrava do jantar de ontem.
Planos para o futuro? Só continuar com essa vidinha: dormir, comer, passear e se coçar.
Joaquim e Alfredo realmente não podiam se dar muito bem.

O encontro dos dois

Quando Joaquim chegou ele ainda estava meio enjoadinho da viagem de carro. Foi tropeçando se esparramar num canto para descansar.
Alfredo viu aquela cena e, sem dar uma palavra, subiu na cama e com um xixi grande e caprichado escreveu no travesseiro: detestei.
Em comparação com esse começo tão triste até que a amizade dos dois, depois, não pode ser considerada assim tão ruim.

A comida

Alfredo ganhava sempre os melhores pedaços.
Barão e herói de guerra, ele tinha se acostumado ao luxo. Se não ganhasse o melhor pedaço, não comia nenhum outro e ameaçava morrer de fome.
Ganhava então os melhores pedaços. Comia devagar e sempre deixava um pouquinho no prato.
Gente fina, dizia a gente.
Oba, pensava Joaquim, que sempre ganhava o restinho de Alfredo.
Joaquim não se importava de Alfredo ganhar sempre os melhores pedaços, de sempre comer antes dele e de usar um pratinho com enfeites vermelhos na ponta.
Ele não se importava porque ele comia de tudo, a qualquer hora e de qualquer jeito.
E comia tão depressa que nem percebia se estava comendo carne ou peixe, galinha ou casca de mamão.
Alfredo, quando acabava de comer, limpava os bigodes e ia dormir.
Joaquim, quando acabava de comer, saía sempre com a barba pingando molho e também ia dormir.

A casa de cada um

Joaquim morava num quarto e sala separado. O quarto era de papelão e apesar de pequeno, muito gostoso e quentinho.
A sala era de chão de terra e não tinha teto, ficava para os lados do quintal e era lá que Joaquim guardava as coisas dele.
Poucas coisas: um ou outro pano, um ou outro pedacinho de madeira, às vezes um osso velho de boi.
Alfredo não tinha casa.
Dormia uma noite no cobertor da cama, outra noite numa pilha de roupas de lã ou em qualquer outro lugar.
Mas a gente via que ele não estava à vontade em nenhum desses lugares. Parece mesmo que ele só estava contente e à vontade quando ele pulava. Ele dava pulos enormes, sem fazer o menor barulho, sem derrubar nada.
Vai ver até que a casa do Alfredo era o ar.
Vai ver que ele, na guerra, tinha sido piloto de avião e, pulando bem alto, matava as saudades dos seus tempos de herói.

Um dia inteiro na vida de Alfredo e Joaquim

Alfredo passava o dia inteiro espiando.
No começo ele espiava para ver se vinha algum inimigo.
Como o tempo foi passando e não vinha nenhum inimigo, ele começou a espiar as coisas que estavam em volta dele.
Ele espiava as formiguinhas e sabia onde elas moravam: elas moravam em um buraquinho.
Ele espiava as flores e sabia quando elas estavam com sede: elas olhavam para o chão quando ficavam com sede.
Burras, pensava Alfredo, elas acham que a chuva vem do chão.
Ele espiava tudo.
E espiava principalmente se Joaquim não estava por perto. Joaquim era muito barulhento e sempre inventava alguma coisa bem movimentada e bem barulhenta para os dois fazerem.
Joaquim era detestável, pensava Alfredo.
Joaquim passava o dia inteiro procurando Alfredo.
Quando encontrava, corria atrás dele e convidava-o para uma boa luta livre. Alfredo dizia não obrigado. Mas Joaquim era muito maior do que Alfredo. Isso fazia com que Alfredo às vezes tivesse que aceitar.
Então os dos rolavam pelo chão, levantando poeira e derrubando tudo que estivesse na frente.
Joaquim sempre dava um jeito de ficar em cima do herói de guerra.
O Barão fingia não ligar. Fugia correndo assim que podia, xingando o outro: “cachorrão!”
E Joaquim: “hi, hi, deste Barão eu faço gato e sapato…”

As lutas de Joaquim e Alfredo

Pois foi em uma dessas lutas entre Joaquim e Alfredo que começou a amizade dos dois.
Em um momento de descanso, Alfredo, preso embaixo de Joaquim, coçava a cabeça pensando: “mas que situação para um Barão!”
Coçou a cabeça e foi coçando, coçando … até que começou, sem perceber, a coçar o pé de Joaquim que estava ali do lado.
Joaquim adorou a coçada.
A partir deste dia Joaquim começou a lutar com Alfredo com mais vontade ainda.
A gente não sabia se ele lutava porque não gostava mesmo da cara do Barão ou porque gostava e muito do cafuné que coçava seu pé nos momentos de descanço.
Mas os dois iam ficando velhos e as lutas iam ficando mais curtas.

Cafuné sem luta

Durante muito tempo ainda, os dois tinham que lutar um com o outro só para disfarçar o carinho que aparecia nos momentos de descanso.
Pouco a pouco, a luta foi diminuindo e o carinho aumentando.
Até que um dia, ninguém sabe muito bem como, Joaquim e Alfredo começaram pelo carinho e esqueceram a luta.
O carinho deles era o seguinte: para Joaquim, cafuné no pé. Para Alfredo, uma coçadinha nas costas assim de leve.
E quem chegasse de repente sempre dizia não ter nunca visto gato e cachorro assim tão amigos.

Os barulhos

Agora que Joaquim e Alfredo quase não lutavam mais, eles passavam a maior parte do tempo fazendo cafuné um no outro.
Isso não quer dizer que eles não tivessem lá suas implicâncias, suas quizumbas, seus quiprocós, suas pendengas.
Um bom motivo para isso eram os barulhos que cada um fazia.
Joaquim tinha inventado vários barulhos novos, todos eles muito chatos.
Já não era só a barulheira de boas-vindas quando chegava alguém na casa.
Agora ele tinha inventado uma nova maneira de coçar as pulgas, com uns tapas, também bem barulhentos.
Isso para não falar dos barulhos mal-educados que ele sempre fez ao comer.
Alfredo começou, ele também a fazer barulho, pela primeira vez na vida.
Seu barulho era uma espécie de música que ele cantava aos berros, à noite, quando tinha lua.
Nessas noites nem Joaquim nem ninguém conseguia dormir.
E aí, para passar o tempo, eles brigavam.

Os banhos

(Outro bom motivo para briga eram os banhos)
Joaquim era quem mais tomava banho.
Ele era bem-humorado e não se irritava tanto quanto Alfredo quando a água estava fria.
Joaquim tomava banho quase todas as semanas.
Alfredo só tomava banho de mês em mês.
Ele tem medo da água fria, caçoava Joaquim.
Ele não gosta do cheiro do sabonete, dizia a gente.
E não gostava mesmo, pois assim que saía do banho, Alfredo se lambia todo, inteirinho, e só parava de se lamber quando o cheiro do sabonete virasse cheiro de lambida.
Tanto Alfredo quanto Joaquim, quando se molhavam, ficavam de perna fina. É que o pelo deles grudava todo e as pernas, antes tão bonitas, ficavam fininhas.
E como era Joaquim quem tomava mais banho, eram suas pernas finas as que mais apareciam.
Quando Joaquim tomava banho, Alfredo gostava de ficar passando por perto.
Ele não dizia nada, mas fazia cara de quem estava pensando oh! que perna tão fina!
Perna fina é sua avó!, rosnava Joaquim furioso.
E pronto! Se a gente chegasse de repente se espantava de ver aqueles dois brigando outra vez feito gato e cachorro.!

Gato e cachorro?

Gato? Cachorro?
Nós não sabíamos ao certo…
Às vezes nós nos perguntávamos: será que Alfredo é realmente um gato? Será que Joaquim é um cachorro?
Não sabíamos.
Quando eles ficaram velhos eles ficaram parecidos – é verdade – com um gato e com um cachorro.
Latiam e miavam e, reparando bem, dava para ver que eles andavam de quatro.
Ou será que éramos nós, também ficando velhos, e dando para enxergar as coisas de modo diferente?
Está bem. Se vocês quiserem, nós mudamos o começo desta história.
Fazemos assim:
“Essa é a história de um gato e de um cachorro.
O gato se chamava Alfredo.
O cachorro se chamava Joaquim.
Esse gato e esse cachorro, embora fossem muito diferentes um do outro, acabaram ficando amigos.
Eles eram muito parecidos conosco.

 


 

crítica:
“Elvira Vigna deu mostras de criatividade na série de histórias que narram as aventuras de Asdrúbal, o terrrível. Em Viviam como gato e cachorro, de 1979, a autora vale-se da tradicional disputa entre os animais para manifestar os conflitos perenes entre os seres humanos, dentro e fora da família.”
(Regina Zilberman em Como e por que ler a literatura infantil brasileira)