Por escrito – críticas

ELVIRA VIGNA:  POR ESCRITO (Companhia das letras, 2014, 312p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro.

– segundo lugar no Prêmio Oceanos;

–  finalista Prêmio Rio.

 

 

arquivos internos de ‘por escrito’:
trecho do livro
críticas no exterior

 

 

livescritog

 

 

Rascunho, por Arthur Tertuliano, março 2015

Durante a adolescência, o título Coisas que você pode dizer só de olhar para ela me parecia inspirador: sugeria que, diante de um olhar arguto, qualquer mulher se tornaria transparente — não vi o filme. Talvez a maturidade possa ser medida pela admiração crescente por outro título, em detrimento do já citado: Coisas que os homens não entendem — romance de Elvira Vigna que ainda não li. Posso enumerar a lista de motivos, terminando com as neves do Kilimanjaro, mas não espero que você entenda. Não espero que você entenda nada nunca. Não ter lido não significa que inexistam expectativas. Pois foi repleto delas que entrei em contato com a obra mais recente da escritora, Por escrito — já lera antes a HQ Vitória Valentina e dois romances, além de alguns infantis. Durante a leitura, lembrei que ler também é comparar: a linguagem, elíptica sem ser hermética, não deixava dúvidas de que o novo livro era da mesma autora de O que deu para fazer em matéria de história de amor; no enredo, contudo, Por escrito se revelou um livro irmão (ou espelho) de Nada a dizer.

Você quer que a gente more junto há muito tempo, já, nesse dia. Casamento é bom para homens.

No romance anterior, a protagonista narra em detalhes o que acontece após a descoberta de que o marido tinha uma amante; sobre como deixou de se permitir piadinhas a respeito do tema, algo possível quando a confiança ainda existe (“Essa brincadeira também sumira, junto com as outras coisas, porque a graça era justamente sua total impossibilidade. Ter um amante, para Paulo ou para mim, sempre foi algo inimaginável. E, portanto, engraçado de imaginar.”), e como ela se viu transformada em um clichê (“Eu não existir para Paulo foi só um preâmbulo rápido antes de eu não existir para mim mesma. Passei a não estar mais em mim. E a me encontrar em cada episódio de CSI, Criminal Minds, SVU, Cold Case e todos os outros, sempre pródigos em relatar adultérios, calhordices e mentiras, antes de um final apaziguador, já que cheio de sangue. Eu, saída de mim, virei a mulher traída de todas as histórias existentes e ainda por existir.”). Em Por escrito também há um Paulo (seria o mesmo?), mas a narração fica por conta do outro lado da moeda: a mulher que é sua amante — dessa vez denominada: Valderez. Nuances Isso por escrito, nas frases cheias de erro, que se atropelam em msgs e skypes. Abreviaturas, carinhas feitas de dois pontos parêntesis, e ainda o silêncio, e ainda os olhos que podem sair da tela, ir para a parede branca e lá ficar por todo o tempo. Mas principalmente o silêncio.
Dessa vez é a narradora que, muitas vezes, não tem nada a dizer — “I would prefer not to”. Mas contar o “outro lado da moeda” não resume o que Vigna faz em Por escrito. Há muito chão para percorrer (São Paulo, Paris, Curitiba, Brasília), muita história para contar: um casamento a ser celebrado, outro desmoronando (e outro apenas uma promessa); uma bailarina e uma sacada; uma montagem teatral, o “Nelson Rodrigues possível”; uma visita a um quilombo e o diálogo com o passado; a onipresença dos eventos corporativos e a linguagem publicitária que reina neles; um câncer. E não apenas: a posição em que a narradora se coloca (“Uma presença ausente, eu sentada por eternidades em cadeiras pré-moldadas de aeroportos, deitada em colchas pré-históricas de hotéis baratos, eu lá e não lá, eu parada ou a mil por hora, no emparelhamento possível com outros bólides que vão, como eu, com toda a firmeza, para lugar nenhum, indiferentes.”) permite-lhe dar atenção especial a coisas quase imperceptíveis, gestos mínimos e automáticos. Como quando ela encontra o irmão em Paris:

O abraço e eu, sem jeito, sem saber o que fazer, passo a mão no rosto dele sabendo que provavelmente ele não gosta mais que passem a mão, que peguem, que se esfreguem, que isso é coisa de brasileiro e ele não é mais muito brasileiro.

Há outros, diversos, por toda a narrativa: “Barbudos que se cumprimentavam ao meu lado com tapas para declararem que, apesar de terem marcado um encontro para irem juntos ao cinema, continuavam sendo muito machos e artistas e fodões”. No aeroporto, ninguém lhe escapa: “Homens cafajestes de diversos modelos, esportista, gordo bem-sucedido, executivo de terno, todos eles apêndices de celular, cocôs que saem de celulares e nem saem de todo, ficam lá, pendurados. Cocôs falantes”. Há um gesto em particular cujas nuances serão analisadas em profundidade, quase no fim do romance. Contudo, não foi esse o aspecto da obra que mais me chamou a atenção. Protagonistas Bem, nas passagens de Jane Eyre que citei, fica claro que a raiva estava corrompendo a integridade da romancista Charlotte Brontë.

Ela abandonou sua história, à qual dedicava inteira devoção, para cuidar de mágoas pessoais. Lembrou-se de que estava sendo privada da devoção à própria experiência — foi obrigada a estagnar em um presbitério cerzindo meias, quando o que queria era vagar livremente pelo mundo. Sua imaginação desviou-se do curso por causa da indignação, e nós a percebemos desviar.

O trecho acima é de Um teto todo seu, e dele me lembrei assim que a narradora apresenta a história de Rosário, a única mulher entre todos cafeicultores que ela conheceu em seu trabalho. Uma história singular, mas que teve de ficar de fora de sua apresentação por alguma razão — chutemos misoginia e não estaremos de todo errados. É palpável a indignação da protagonista quanto a certos papéis sociais reservados às mulheres, da mulher traída às moças invisíveis montando kits de lembrancinhas em um evento — o termo “sororidade” me veio à mente algumas vezes. Porém, em momento algum essa preocupação destoa do resto do romance, o que diferencia Vigna do que Virginia Woolf escreveu sobre Brontë.

Mas acho que não foi por isso o convite. Fico bem, eu. Quer dizer, não fico. Mas justamente por não ficar, fico. Em tempo de politicamente correto, fico bem eu, lá, eu tão pouco televisiva. Fomos cinco naquele palco. Três homens. Do tipo mesmo que se espera: brancos, jovens, descolados. Uma mulher também do tipo que se espera: branca, jovem e descolada. E agressivíssima, como mulheres precisam(os) ser em ambientes profissionais. E mais eu. Componho bem. A agência e a empresa ficam parecendo bem bacanas, assim, comigo lá, meu cabelo ondulado e quase branco, minha cara de parva.

Por escrito não é apenas sobre mulheres, mas, sem dúvidas, delas é o protagonismo. Há coisas que os homens não entendem, mas Elvira Vigna mais uma vez nos dá a oportunidade melhor compreendê-las, creio. Mais um romance brilhante, mas não poderia esperar menos da escritora.

 

 

entre os dez melhores/2014 segundo o globo;
entre os cinco melhores/2014 segundo a folha de são paulo.

 livescritocri01 livescritocri02

 

 

Valor  econômico, por Mariana Ianelli, 31/10/2014

A “dor incurável” de Elvira Vigna
Um broche barato esconde em seu avesso um oco perfeito, que ninguém vê. Sabe-se que está lá, como se sabe que é suposto fingir que esse oco não existe. O oco, o nada em relevo, o vazio. É esse avesso das coisas que Elvira Vigna explora até o limite em seu novo romance, “Por Escrito”. Na fantasia de pudor da bijuteria remendando um tecido, o que brilha, para quem procura olhar sempre o negativo das coisas, é uma ferida obscena. Entre tantos detalhes em geral despercebidos, esse serve como exemplo de uma realidade bruta que, em seu estatuto mesmo de realidade, não existe separada nem da memória nem da fantasia.
Elvira Vigna tem uma maneira muito própria, brutal como a realidade, de ritmar suas narrativas por meio de cortes, recortes de cena, lapsos, idas e vindas que desestabilizam o leitor. A ideia de um desfecho, de um sentido fechado, em que tudo se encaixa, não passa de um blefe de narrador. Histórias e personagens vão se fazendo em pedaços e aos pedaços vão se recompondo, iguais em seus avessos, jamais completos, e, afinal, ocorre que nada é tão antissentimental quanto parece. Os próprios nichos de desolação em “Por Escrito” são armadilhas. Cenários de ausência em aeroportos, quartos de hotel, subterrâneos de metrô, ou fantasmagorias de presença em telas de Skype, celulares, Facebooks, podem a qualquer momento reverter-se em seu contrário.
Difícil, e inútil, resumir aqui a história de Valderez em sua trama de situações e um que outro acontecimento extraordinário, conectados no tempo e no espaço da escrita às histórias de Molly, Pedro, Paulo, Aleksandra, Izildinha, dona Tereza, dona Isaura. Difícil resumir essas histórias, que ora estão cheias de pontas soltas, ora se imbricam, e cujos personagens, espelhados uns nos outros, refletem o que veem (ou não veem) sob diferentes ângulos. Inútil armar esquemas, resumos, sínteses, porque a energia que Elvira canaliza em sua prosa está relacionada com o modo como suas histórias são contadas, com seus cortes, recortes, reflexos, lapsos.
Os “lugares nenhuns” onde Valderez se instala a olhar o nada, em escadas ou “cadeiras pré-moldadas”, são como vãos do pensamento por onde o sentido das coisas constantemente escapa. Num mundo que passa como um “ruído de fundo”, Valderez se empenha em ser uma presença ausente, quase banal, quase invisível, revolvendo suas “pedras nunca compartilhadas”.
Interessante que, para o vídeo de apresentação do livro, a autora escolheu falar sobre “Por Escrito” mostrando cenas de “O Deserto Vermelho”, de Michelangelo Antonioni, cuja fotografia perturbadora de lugares vazios, arruinados ou simplesmente impessoais traz à tona, na história do filme, o vazio da personagem principal. A comparação é clara. Também a personagem principal de Elvira, do interior da Paraíba a Paris, atua em cenas de vazio que inventa para si mesma, num filme particular, numa novela que ela própria dirige ou, ainda, numa peça que tem de Nelson Rodrigues a inteligência sardônica e o patético inevitável.
O ponto de tensão crescente é que a mordacidade da narradora, longe de imunizá-la contra o patético, conduz sua autossuficiência e indiferença ao limite do humanamente suportável. Perde-se a conta, por exemplo, de quantas vezes a personagem fala de suas “trepadas”. Essa repetição obsessiva, propositalmente agressiva, tem ao longo do livro o efeito de um grito surdo num vão entre a palavra e o ato.
Há uma cena em que Valderez observa ironicamente o público de uma festa com sua fachada de sorrisos bem medidos. A razão dessa fachada, ela pensa, é menos um pânico do que uma ânsia do real: “Não que seja assunto, essa vontade disfarçada em pânico, de que algum dia alguma coisa de fato aconteça, realmente aconteça. (…) Não podem admitir que é o que mais querem: o tiro, a bunda, a gargalhada”.
O avesso disso, para uma personagem acachapada pela realidade e atenta a seus avessos, é outra ânsia disfarçada em pânico, dessa vez de que algum dia, em alguma coisa ou em alguém ela afinal se reconheça, com a qual ou com quem se integre ou se comunique de verdade, alguma coisa além do tiro, da bunda e da gargalhada. Por exemplo, uma saudade. Ou ainda o “ridículo” de um amor. Algo destoante da ausência de sentido, do desenraizamento geral, da impessoalidade. Como no filme de Antonioni, as imagens de “Por Escrito” são imagens que se pensam, na acepção rara do verbo, como se pensam feridas que são incuráveis.

 

 

Folha de São Paulo, por Bruno Zeni, 25/10/2014
A obra de Elvira Vigna autora de “Nada a dizer” e “O que deu para fazer em matéria de história de amor” é uma das mais inquietantes da literatura brasileira atual. Seu mais recente romance é narrado por uma mulher que está num momento de chegada: decide parar de trabalhar como executiva, vai a Paris para o que acredita ser sua última viagem, está prestes a se mudar para a casa do amante, a quem dirige seu relato, “por escrito”.
Nessa altura da vida, que combina recordação, relato e acontecimentos presentes, a história às vezes parece banal, mas é traumática – e outras vezes ocorre o contrário. Assim como a narradora tem como marca subjetiva a “não presença”, os demais personagens se sustentam em uma espécie de encenação teatral, que parece se voltar contra a “nobreza cenográfica” da vida social.
O fascinante do enredo é descobrir se as identidades são confiáveis, o que há de decisivo a ser contado e mesmo se há algo a ser contado, nesse estilo tateante e instável, prestes a se desfazer ou a se desprender rumo ao delírio, à morte, à doença, à solidão e ao anonimato, não necessariamente nessa ordem.

 

 

 O Globo, por Beatriz Resende, 25/10/2014
Elvira Vigna é uma das nossas escritoras de carreira mais consolidada. Pessoal sem ser confessional, com uma voz de mulher que recusa feminilidades, certa constância na temática e, o mais importante, dicção própria. No romance “Por escrito”, no entanto, mantendo o que já conquistou com sua escrita, expõe-se a um risco: mais do que o que é narrado, importa aqui o ato mesmo de escrever. Como fica a vida quando ela é escrita, anotada, reescrita, expondo-se não como fala ou relato, mas como um texto deixado na tela do computador, o eu por escrito.
A mulher, seu amante ou companheiro, a ex-mulher dele, o irmão, a mãe e a morte de uma personagem secundária, morta talvez mesmo por ter sido sempre uma personagem secundária.
A personagem narradora vive de colocar em fichas o movimento e os negociantes de uma empresa de agronegócio. Gente enjoada, pedante, ignorante, mulheres enfeitadas e homens obviamente grosseiros em seus ternos italianos. Um trabalho que já acabou.
Um homem gentil, disposto a ajudar e ser companheiro talvez para se redimir dos tempos em que foi um amante casado. Sem maiores encantos, mas bom de cama. E o erótico, o sensual, como sempre na obra de Elvira Vigna importa bastante.
O irmão gay, amigo e meio filho. A mãe que veio do interior, afastada do patrão que a engravidara. Uma mulher batalhadora, mas de quem não consegue ficar muito perto. Um suicídio ou assassinato ou acidente, mesmo no centro dos movimentos narrativos não faz muita diferença, porque a morte, como a vida da dançarina russa, importa pouco.
Nenhum drama e nenhum afeto. Nenhum entusiasmo, nenhuma escolha intencional.
Quase um “prefiro não”, no modelo de “Bartleby, o escrivão”, na personagem que “prefere ficar mais à margem, mais do lado. Em algum entre. Como sempre”. Não dá nem quer receber nada dos que a cercam. A inevitável realidade da vida com seus detalhes banais, isso é que precisa ficar por escrito.
O não pertencimento total parece impossível, mas deve ser buscado. A casa pode ser um hotel qualquer, a mochila guarda tudo e o destino pode ser alterado no meio do caminho, dar a volta na rua ou mudar de cidade. Coisa alguma faz muita diferença para quem olha o nada.
É essa trajetória de idas e vindas, sem partidas ou voltas que importem muito que o romance precisa contar e aí está o desafio que se propõe a enfrentar. Se acompanhar a frieza, a secura extrema dessa mulher pode chegar a irritar o leitor — que não encontrará na leitura nenhum alento, nenhum recurso de sedução —, seguir, porém, o caminho da escrita que a leva de uma cidade a outra, de uma cama a outra, dos movimentos de idas e vindas de que vai tomando notas, num papelzinho ou em notas mentais, é participar de uma experiência original.
Porque a vivência desse mundo real desprezível mas não odiável está sendo colocada por escrito, a temporalidade varia, passado e presente se confundem como os tempos verbais usados na narrativa. “E não sei mais se falo daquele dia ou deste, este. Mas volto, me forço: aquele”. Com o espaço a relação não é mais definida, a mulher pode estar em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Brasília, numa fazenda de café do interior. Cada cidade, porém, tem uma personalidade própria e requer uma linguagem diferente.
São Paulo traz a ideia de fim, mas para lá e para o mesmo homem sempre volta. Paris e o Quai Branly colonialista são uma festa estranha; o interior evoca nomes de passarinho em listagem ao modo de Guimarães Rosa, diminutivos e regionalismos; no Rio de Janeiro uma revelação quase trágica contrasta com o dia lindíssimo numa Copacabana que não dorme. E de novo São Paulo: “Mais um pouco e a cidade goza, espirrando gente, barulhos e gases tóxicos para tudo quanto é lado”.
A narradora passa os verbos para o passado, volta usar o presente, são lembranças do passado ou existem agora: “Não sei quando foi”. Romance e sua escrita vão assim se construindo num processo que se expõe. Cabe ao leitor acompanhá-lo, não sem algum esforço, o que afinal é bom.

 

 

Jornal do Commercio de Pernambuco, por Diogo Guedes, em 27/09/2014

Em um dos momentos do novo romance da escritora Elvira Vigna, a narradora diz que anota “como se escrever não fosse resolver, só deixar pronto”. Nome importante para se entender e percorrer a literatura brasileira atual, a autora carioca radicada em São Paulo parece emprestar à personagem de Por escrito (Companhia das Letras) uma das suas impressões sobre o fazer artístico. Não esperem dela harmonias maquinadas ou personagens que vão do ponto A ao ponto B sem desvios, porque está na natureza do seu caráter ou no destino ser assim.
Por escrito é um livro pronto, mas não resolvido. Na verdade, a produção de recente de Elvira parece se encaixar nessa definição: suas narrativas não são a busca por desvendar a incógnita que equilibra a equação, a coerência que explica as errâncias dos personagens. Assim como a vida, neste romance e no anterior, O que deu para fazer em matéria de história de amor, não há a solução que se finge descobrir por acaso ou por cálculo. Deixar pronto é apenas terminar, talvez formular bem a inquietação sem evitar as suas quinas e farpas.
A trama do livro mostra uma narradora, Valderez, escrevendo para o seu antigo amante na véspera dos dois morarem juntos. O passado deles, a ex-mulher, Izildinha, a relação entre Pedro, irmão gay de Valderez, e uma bailarina, as viagens cansativas para divulgar os perfis de plantadores de café da sua empresa são parte desse texto, que parece um diário tanto quanto um diálogo. Não é um enredo coeso, comportado, porque isso seria mais uma armadilha das convenções que se cria para os romances, a vida, os conceitos. Elvira trabalha com uma personagem que tateia o objetivo de “atar, não as duas pontas da vida, mas bem mais do que duas” sabendo que ele é impossível
A profissão de Valderez exige viagens constantes para outras cidades e continentes – uma sucessão de hotéis, congressos, aeroportos, distâncias. A prosa da autora reflete esse momento de contemplar a repetição (um forma singular de vazio) e extrair dela alguma reflexão sobre a própria vida, sem a ilusão de resolvê-la. Elvira, através da linguagem e do mergulho nessa imperfeições, cria personagens que – pegando a definição de José Luiz Passos para as criações de Machado de Assis – são mais próximos de pessoas do que de tipos. O que nunca é um feito pequeno na literatura ou em qualquer outra expressão artística – prova de que sua escrita é indispensável para o panorama atual.
DÚVIDAS
“Literatura para mim é apresentar dúvidas, convidar o outro a discuti-las. Nunca apresento certezas”, conta Elvira, em entrevista ao JC por e-mail. O norte dos seus romances são as incertezas e, em Por escrito, romance mais longo que as obras anteriores, o leitor se vê no oposto de uma história policial, de um romance psicológico comum. “Resolver uma trama ou um mistério, por exemplo, é o objetivo de livros voltados ao mercado. Resolver problemas pessoais do autor pode ser o objetivo da escrita chamada ‘fluxo de consciência’. E claro, resolver o suposto problema do leitor é o que pretendem os livros de autoajuda. Não são dialógicos, são monólogos”, aponta.
A veia analítica e crítica da literatura de Elvira se reflete nas suas falas e posições. Convidada da Feira do Livro do Vale do São Francisco na semana passada, Elvira tem apontado o preconceito do olhar crítico sobre a literatura feita por mulheres no Brasil. Esses livros são, muitas vezes, tratados como arte de um gênero próprio, enquanto a literatura feita por homens é chamada convenientemente apenas de “literatura”. Na visão da autora, há pouco avanço na questão, principalmente na curadoria de eventos. “Não vejo melhora não. A discriminação existe. E a participação, quando existe, é pelo motivo errado: ‘precisamos convidar algumas mulheres para não pegar mal’ é uma frase que você consegue ver escrita na testa dos que não querem ser vistos como machistas”, afirma.

 

 

A Tribuna de Santos, 16/09/2014, por Alfredo Monte: “A obra-prima da rainha das trevas: ‘Por escrito’, de Elvira Vigna”
Para quem acompanha fielmente a produção de um escritor, é sempre emocionante (mesmo porque o mais comum é ocorrer o fenômeno contrário) quando ocorre um salto quântico e nos damos conta de um fôlego maior, de uma amplitude e verticalização mais pronunciadas do que antes, e nem julgávamos isso possível.
Elvira Vigna vem construindo uma marcante obra como romancista desde o final dos anos 1980, um universo áspero e cáustico, no interior do qual as protagonistas reinventam-se socialmente, acumulando autoenganos e armadilhas, e nem assim se furtando da lucidez (daí o uso feroz de uma primeira pessoa muito peculiar, inconfundível, na narrativa). Ela argamassou os fundamentos desse mundo ficcional com os notáveis < O assassinato de Bebê Martê > (1997) e < Às seis em ponto > (1998), chegando à maestria dos mais recentes < Nada a dizer > (2010) e < O que deu para fazer em matéria de história de amor > (2012). Apreciei deveras este último, porém confesso que fiquei um tanto preocupado, perguntando-me se as travessuras da menina má da nossa melhor literatura não tinham chegado a um impasse perigoso.
Tal ressabio entrou no modo alarme quando descobri que o seu novo livro tinha 300 páginas, mais que o dobro da maior parte dos títulos precedentes (< O que deu para fazer… > já era mais longo que o habitual). Prolixidade e Elvira Vigna não pareciam uma combinação concebível nem desejável.
Como a abertura desta minha resenha indica, foi um temor vão. Temos mais uma protagonista (Izildinha/Valderez) que se “faz”, ou melhor, refaz na vida, social e profissionalmente, para minar essa reinvenção (para a qual ela não tem a menor convicção) ao longo da narrativa, escrita (daí o título do romance, tão enganosamente anódino) para —e contra— o complacente companheiro de muitos anos, só que dessa vez os diques todos parecem ter se rompido, arrostando a reinvenção do próprio Brasil das últimas décadas, o relato adquirindo uma feição radicalmente agônica, para além do cáustico. POR ESCRITO é dolorosamente “humano”, com páginas progressivamente emocionantes, que nos deixam embargados.
Valderez viaja muito, por conta do trabalho (ligado ao ramo do café) e das “pedras” da sua vida interior. Chegando sempre antes (horas, às vezes) aos compromissos, ela se sente à vontade numa espécie de limbo em não-lugares (quartos de hotéis, aeroportos, metrô). Essa rota nebulosa começou muitos anos antes, quando uma menina quilombola deixou-se seduzir por um fazendeiro, no Nordeste, e afastada para bem longe—vai para o Rio—teve uma filha. Mais tarde, haverá um meio-irmão, uma escada (o primeiro limbo?) num edifício, a qual servirá como improvável, nunca substituído espaço de proximidade, e cujo encanto vai se quebrar com a queda de um corpo, uma das “pedras” da autoinventada Valderez (deixando para trás—para os outros, é claro—a origem, o nome, os corpos-vítimas), bem a filha de uma autoinventada Molly, a menina seduzida que vai se desfazendo das migalhas de pão no rastro do passado, sempre em novos avatares.
Empurrando com a barriga, como se costuma dizer, a relação com o destinatário de sua escrita, Valderez decreta, no início do romance, o fim de suas viagens profissionais. No entanto, leva o leitor para círculos cada vez mais enrodilhados e densos de uma viagem por sua biografia, sempre a um passo de se desfazer/ocultar em versões e camadas (para utilizar esse termo tão em voga). Então, vislumbramos o rosto implacável de um país que se modernizou e avançou, tentando ocultar/rebocar a desfaçatez e a renitência de suas forças sociais mais vorazes. O aeroporto-igual-a-todos-do-planeta e o quilombo, pontos de fuga de um dos textos mais reveladores da nossa “contemporaneidade”, tão insólita:
< À nossa frente, avisam as placas, vai acontecer o seguinte, haverá uma retenção. E, depois, tornam a nos avisar, vai acontecer outra coisa. Até o fim desse caminho, se o mantivermos, saberemos o que vai acontecer. E só vai acontecer o que está nas placas (…) O caminho de um aeroporto para um centro urbano. Uma das linhas retas mais absurdas que conheço e as tenho, muitas (…) Tirando o mundo real, o resto continuava direitinho. E nos avisavam o que ia acontecer à frente, e tudo o que não tinha sido avisado estava proibido de acontecer. Tirando o mundo real, o acaso, a gravidez de adolescentes, a chegada inesperada de quem viaja, a queda em janelas ou a mudança climática anunciando que todos os cafezais do mundo inteiro estão indo para o brejo, não são permitidos imprevistos de nenhum outro tipo nesse caminho que, resolutos, seguimos…>
Nesse sentido, tanto pela abertura quase alegórica quanto por um quê de cru, de não lapidado (felizmente) no relato, com suas reiterações, sua obsessividade, sua insistência em não “fechar” harmonicamente, parece-me que a grandíssima escritora carioca meio que mandou às favas a “maestria” e foi às suas fontes, ao seu primeiro (e já acima da média) romance, <Sete anos e um dia > (1987), cuja reedição é muito necessária, um painel simbólico dos anos de “abertura” entre a ditadura e o governo Sarney.
Portanto, nossa Elvira continua a indestronável rainha das trevas, com seu desassombro em inventariar mazelas. Só que os matizes e contornos dessas trevas nunca foram tão variados e surpreendentes. A meu ver, sua obra-prima. O que podemos esperar a seguir?

 

comentários online:

taverna o fim do mundo #29 (podcast)

the huffington post/editora abril
literaturabr
blog 54 quadradinhos
suplemento pernambuco
revista são paulo review
blog homo literatus

 


 

Texto usado para a apresentação do livro (foram feitas duas: uma na Livraria da Vila da Alameda Lorena (SP), com Adriana Calabró e Rita Lobo; em 30/08/2014; outra num Happy Hour Literário com Maria Valéria Rezende e Rosa Amanda Strausz, com mediação de Débora Ferraz, no Café Galeria (João Pessoa), em 06/09/2014

A história principal do “Por escrito” não é bem uma história. Nada acontece com a Valderez, que é a narradora. Ela perde o emprego e isso é mais ou menos tudo. O emprego dela inclui viagens, participação em eventos. Antes de perder o emprego ela fica parada esperando o avião que atrasa, o motorista do evento. Depois que perde o emprego, piora. Fica parada sem álibi mesmo. Fica porque fica.
Não é fácil escrever um livro desses e levei um tempão só parada, igual à Valderez.
O que me fez escrever foi algo que aconteceu na minha vida presente. Esse algo me fez lembrar algo da minha passada e que eu havia meio que esquecido. E aí consegui entender melhor esse ficar parada da Valderez. Ou seja, o meu. Porque é para isso que escrevo livro. Para ver se consigo entender o que nunca entendi.
Não funciona. Aí escrevo outro livros. Eles se parecem sempre, um pouco.
No caso do “Por escrito”, a Valderez fica parada olhando o nada porque não acredita muito no que vê ou vive. Ela acha que aquilo ali em volta pode ser aquilo ali, ou o contrário daquilo.
Muito gente liga esse livro ao “Nada a dizer” que foi o livro escrito antes desse.
E é, tem um pouco a ver.
Se a narradora do “Nada a dizer” delira o que não está lá, ou seja, um amor do cara dela que não existe, aqui, no “Por escrito” a Valderez faz o contrário: não vê o que de repente está lá, que o cara dela, sim, gosta dela. Não ver o que está lá ou delirar o que não está dá mais ou menos no mesmo.
Mas então, vou contar o episódio vivido que  me fez afinal levantar um dedo, apertar uma teclinha, fazer uma letrinha aparecer na tela em branco, e começar o livro.
Vocês já sabem disso. Escrevo sempre histórias reais, acontecidas comigo ou com pessoas que conheci. A história que vou contar aqui não é uma história que eu em princípio escreveria.
Ela é a seguinte:
Tenho um amigo gay que resolveu se casar com uma bailarina russa. E eu jamais escreveria essa história por dois motivos. Primeiro porque é inverossímil. Segundo, porque parece início de piada: ‘tinha esse bar e dentro estavam um gay, uma bailarina russa e um papagaio…’ E a pessoa fica esperando o punch line para dar uma risadinha e esquecer um assunto que merece mesmo ser esquecido.
Não é uma história que eu escreveria, mas escrevi.
E escrevi por causa de uma cena.
Foi num cartório de registro civil e eu estava sentada no banquinho.
Sim, porque a piada na verdade seria: ‘tinha esse cartório e dentro estavam um gay, uma bailarina russa e uma mulher que só prestava atenção ao que não era importante…’. Dá até para esquecer o papagaio.
Eu estava sentada lá há horas. Porque os atendentes nos olhavam de viés, enrolavam, atendiam os outros e não aprontavam os papéis. Sei o motivo. O noivo passava o tempo fazendo imitações da cena final do Lago dos Cisnes. A noiva era estrangeira e não entendia quase nada do que se falava. E o resto da entourage, eu incluída, só tinha gente esquisita. Aqueles papéis não iam ficam prontos nunca. Acabaram que ficaram. Mas antes, meu amigo e a bailarina saíram para fumar lá fora.
Fiquei lá sentada. E quando bati os olhos neles eu vi, ou achei que vi, a cena que me faria lembrar a outra, a da minha infância, e que me faria esse livro.
Aqueles dois diziam para todo mundo que o casamento era um arranjo comercial. Casando, a bailarina conseguiria um visto definitivo no Brasil, meu amigo conseguiria um apartamento para ficar em Moscou, onde pretendia estudar piano clássico. Eles seriam livres para manter o relacionamento sexual/afetivo que quisessem e pronto, ganhavam todos.
Diziam isso inclusive para eles mesmos.
No entanto não foi isso o que vi.
É difícil descrever. Um jeito de corpo, uma expressão. Meu amigo acendeu um cigarro, passou para a bailarina, depois acendeu o seu próprio. Falavam sem que eu os escutasse. Ás vezes sorriam, olhos nos olhos. Uma mão que fazia carinho em um braço, um balançar cúmplice de cabeça. Quem teve um relacionamento profundo, muito próximo, reconhece os sinais. Eu reconheci.
Eles, ao se dizerem a eles mesmos, e dizerem aos outros, que o casamento era de mentira, uma encenação útil, não sabiam o que estavam de fato vivendo. Não percebiam.
Isso me fez lembrar a outra história.
Eu tinha uns sete anos. Era igualzinha ao que sou hoje, só que menor. Quero dizer com isso que já dava preferência a formas indiretas de comunicação. Na época, eu desenvolvia uma estratégia de ficar mudar e enviar ondas mentais para as pessoas. Depois, claro, tive que optar por algo menos ambicioso, a literatura.
Então, eu não gostava de elevadores. Em elevadores, você fica preso lá dentro à mercê de adultos que te perguntam o seu nominho, e que gracinha, e qual amiguinho você tem no prédio.
Eu ia pela escada.
Eu tinha uma amiga que morava no prédio ao lado do meu, em uma Copacabana ainda amena, que permitia que menininhas de sete anos fossem sozinhas brincar uma no prédio da outra, e voltar.
Eu voltava. Pela escada. Aí, pelo vidros sujos dessa escada, vi passar o que me pareceu ser um colchão, com lençóis esvoaçantes. Não falei nada para ninguém. Não quis constranger minha amiga que, pelo visto, morava num edifício chinfrim, decadente mesmo, em que as pessoas jogavam de um tudo pela janela, inclusive colchão.
Depois de um tempo que não sei dizer quanto foi, ouvi minha mãe comentar o caso da noiva que havia se jogado num edifício ali da rua. Não fiz a ligação. Era mais uma dessas histórias do mundo adulto. Noiva que se joga da janela, carro que cai de viaduto porque o motorista está bêbado, nada que me dissesse respeito. Depois de mais um tempo que também não sei dizer quanto foi, liguei as duas coisas.
O que me ficou não foi a tragédia que eu talvez tenha testemunhado. E digo talvez porque nada me garante que eu não tenha de fato visto um colchão. E uma noiva tenha se jogado em um outro dia de um outro edifício.
O que me ficou na memória, e o que eu iria lembrar muitos anos depois, sentada num banco de cartório do Méier, foi essa sensação incômoda de viver coisas que não estão acontecendo. Tanto eu posso ter vivido o testemunhar de uma tragédia, uma noiva que se joga. Como posso perfeitamente ter vivido o contrário disso. Achar que vi uma tragédia quando vi um colchão.
Então é isso o livro. É esse incômodo de você às vezes perceber que está vivendo algo que não está lá. Que a tua vida pode não ser o que você acha que é.

 

 


Trabalhos acadêmicos


TOFANELO, Gabriela Fonseca. A trajetória do feminismo na literatura de autoria feminina brasileira. In: IV SIES, Feminismos, Identidade de Gêneros e Políticas Públicas. Maringá: UEM, abril/2015.

ARRUDA, Helena.  Entre a ausência do não-ser e a presença do não-lugar. In: Forum de literatura brasileira contemporânea, 12a edição. Rio de Janeiro: UFRJ, março/2015.