O que deu para fazer em matéria de história de amor, 2012

ELVIRA VIGNA : O QUE DEU PARA FAZER EM MATÉRIA DE HISTÓRIA DE AMOR (Companhia das Letras, 2012) – trecho & vídeo

– finalista do prêmio São Paulo e do Jabuti.

 

 

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vídeo de apresentação de quatro minutos.

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1
Chega um cheiro de cigarro da mesa ao lado. Aspiro. Não fumo, nunca fumei, se me perguntarem, não gosto de cigarro, não perguntam, já sabem. No entanto, gosto. E podia parar por aqui. Porque é nisto que penso. Nessas histórias que parecem uma coisa e são outra. Se forçar a barra, chego no suspense, no será que. Por exemplo. Espero Roger. Já sei. Oi. Oi. E aí. Tudo bom. E quando afinal ingressarmos no pós-introito, ele vai falar do Guarujá. De eu ir ao Guarujá. E eu vou dizer que não quero. E no entanto, quero.
E quero porque preciso da história. Precisamos. Digo, não eu e Roger. Apenas. Mas todos. Um suspensinho para, uma vez resolvido, acharmos que tudo está resolvido. E pior. Suspensinho resolvido e o ahhh subsequente embora todos – eu e o resto do universo – saibamos: suspense nenhum. Adeus suspense. Já sabemos tudo. Antes. Antes de acontecer já sabemos. Não é nem o vai dar merda. Não vai dar. Já é. Acho que é coisa de pós-guerras. Assim no plural. Não mais guerras, mas batalhas pulverizadas em cada momento de todos os dias. E é isto o que eu quero/não quero. Não mais o suspense. (Porque matou, viu, digo logo: matou sim, é o que eu acho.) Mas a história. Já que, sem nada além de batalhas corriqueiras, todas iguais, só nos resta inventar: interesses, palpitações – e sentidos.
Invenções modestas, é bom que se saiba. Porque depois do nine-eleven dos gringos, tão cinematográfico, tão mas tão, devemos ter a humildade de nos recolher a produções menores. Guarujá pois.
Invenções menores e parciais, vou avisando. Quase que não, as invenções. Porque depois de tantos superpoderes, um em cada esquina, é o que funciona: o contar apenas, como se fosse uma história. Mesmo quando não é. Ou quase não. Ir me contando, como se não fosse eu, como quem fala dos outros.
No caso, os outros são Rose, Gunther, Arno.
Os três pais de Roger.
No Guarujá, eu indo ao Guarujá, como quer Roger, poderia aperfeiçoar a história que quero contar e que não é bem uma história, mas duas. E cujos nomes não são bem estes, só parecidos. E, contando-os, o que me vem por trás destes nomes, talvez me conseguisse contar, eu, a quem não vou dar um nome.
E não sei o final. Ao começar, não sei como acabo, como ficarei, eu. É meu suspensinho particular.
Este final que não sei qual vai ser, quando vier, se vier, será meu pagamento, aquilo que espero receber pela minha estada por lá. O “lá” que, sim, conheço. Um apartamento fechado por muito tempo, e que estava caindo aos pedaços mesmo antes de ficar fechado. E cujas tomadas nunca souberam o que é internet. E numa praia deserta: é agosto. Meu pagamento será, assim espero, um quase ponto final na minha história, a real, com Roger. E aí, a partir deste quase ponto final, como um dominó ao contrário, uma vez este quase ponto final obtido, tudo se levantará ordenadamente na minha frente. O quase ponto final uma vez obtido, trrrrrrr, um barulho das peças se levantando, em ordem, tão em ordem, ah, uma ordem, sequencialmente, ah, uma sequência, até a maiúscula inicial. Ficarão lá, os bloquinhos de pé, perfeitamente visíveis, inteligíveis, formando um caminho claro, veja só, acaba aqui, começa portanto ali. Fazendo o maior sentido.
E é um quase ponto final, e não um ponto final inteiro, redondo, indissolúvel, perfeito, porque a história, por mais que eu (me) imponha uma Rose, um Gunther e um Arno há muito extintos, nunca poderá ser só minha. Só contada por mim. Dela, meu controle é bem relativo. Pois me faltará sempre o conluio dos outros. Um “é sim”.
“Foi sim! Foi assim mesmo!”
Não tenho como obter de antemão uma coisa dessas. Me garantir. Por mais que de fato eu não invente. E mostre: aqui, ó, a foto. Aqui, veja, o documento. É verdade. Juro. Roger, por exemplo, nunca aceitou minhas tentativas anteriores de dominó. Ainda que eu mostrasse: mas vem cá, pensa comigo.
Me escudo em uma vantagem, ao contar. Histórias são recebidas, hoje, sempre com um meio ouvido. Todos meio ouvintes que, mal se iniciam na narrativa, já pensam em outra coisa. Claro, vontade, sim, eles têm, de umas pequenas férias da vida lá deles. Umas pequenas férias de si mesmo, quem não quer. Mas entram (entramos) sem acreditar muito em nada. Tentam (tentamos) uma meia-entrada com nossa atenção a meio-pau em uma seminarrativa sobre o que, mesmo? Ah, sim, vidas alheias que talvez sejam as nossas. Fazem isso (fazemos) para tentar recuperar, à distância e sem grandes esforços, a vida. A nossa. Mas sem acreditar muito que vá de fato funcionar. Eu sei. É igual para mim. Mesmo em se tratando de vidas – estas, as contadas – com certificado de simplicidade, pois se são contadas. Apresentadas frase após frase, elas ficam, as vidas, se não lineares, pelo menos sequenciais. Necessariamente mais simples que as que de fato temos. Mesmo esta aqui. Nem um pouco simples. E que é a que de fato tenho, mesmo quando, o dia cheio, não a conto, nem para mim.
Não me queixo desse meio ouvido que me espera. Já disse. É uma vantagem. Preciso desse meio ouvido em vez de ouvidos inteiros, pois sequer sei como começar.
Posso dizer que Roger está atrasado. Claro. Sempre está. Um começo ready-made.
Ou posso começar pela década de 60. Década de 60 me parece melhor. Década de 60 explica sempre muita coisa (embora o atraso de Roger também explique muita coisa). Década de 60 explica os petrodólares que surgiam como mágica, o início da ditadura militar, esta outra mágica, também bem besta. E é mágica porque as coisas não mais começavam, duravam e acabavam. A ditadura, por exemplo, começou em 64, e depois outra vez em 68. E acabou sem acabar, de tão aos poucos. É o que eu dizia, batalhas diárias, anônimas, quase sem existir. Em vez de guerras.
E década de 60 também é bom por causa da trepada no chuveiro.
Me parece um bom começo, trepadas no chuveiro.
E esta foi uma trepada no chuveiro enquanto as pessoas tomavam cerveja na sala, e diziam aos cochichos, em risadas, mas será que eles estão trepando no chuveiro? Estão. Estávamos. Mas não é nem certo eu falar sobre isso agora, de entrada, porque ainda não sei, neste momento, como podem ser entendidas essas coisas daquela época. Como posso entendê-las, eu, hoje. Preciso criá-las, recriá-las, para saber ou, melhor, para achar que sei.
Quem dirá saber como é trepar no chuveiro enquanto pessoas tomam cerveja na sala, o disco da Elis Regina. Quem dirá saber como é escutar Elis Regina com o braço levantado e aquela cara de animadora de festa infantil que, não, desculpe, mas tinha. Porque as coisas mudam.
As coisas não mudam. Justamente.
Porque poderia contar a história de Arno, Rose, Gunther, Roger – e, em menor escala, da mulher de Gunther – no pós-guerra da década de 40, 50. Como poderia contar a minha, na primeira pessoa, no final da década de 60, início da de 70, a trepada no chuveiro, as pessoas bebendo cerveja na sala. Entre uma e outra, uns vinte anos de diferença. E – acho eu aqui e agora, antes de começar – bem poucas outras diferenças. Por exemplo, em ambas as histórias, nada de tão bombástico. Porque as coisas mudam, as coisas não mudam, mas bombástico definitivamente não é mais uma possibilidade. Mesmo quando o foram. Ao contar não mais o temos. Bombástico é, já disse, o nine eleven. Bombástico, agora, só em inglês.
Perdemos o bombástico, nós. Nosotros.
Até o mar, quando sobe, o faz devagarzinho, ressaca por ressaca, ninguém de fato percebe. E tornam a consertar a calçada. O apartamento do Guarujá não é de frente para a praia. Só perto. Mas dá para escutar a ameaça surda, contínua. Daria. Ninguém escuta. Acostumaram.