Nexo

Elvira Vigna em trechos escolhidos por três conhecedores de sua obra

Juliana Domingos de Lima

Um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, autora morreu nesta segunda em São Paulo, aos 69 anos

 VIGNA JÁ É CLASSIFICADA COMO INCONTORNÁVEL POR UMA ANÁLISE PÓSTUMA

A morte da escritora Elvira Vigna foi divulgada na tarde de segunda-feira (10) em sua página no Facebook.

A autora sofria, desde 2012, de um tipo grave de câncer de mama e não tornou a doença pública, segundo a nota, por recear ser excluída das atividades profissionais que dependessem de convite.

Nascida no Rio de Janeiro e residente de São Paulo, Vigna teve seu romance mais recente, “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, publicado em 2016. O livro venceu o prêmio de melhor romance do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte. Outros de seus nove romances foram finalistas de prêmios literários.

Já classificada como incontornável por uma análise póstuma, Vigna possui um trabalho “marcado por um trato particular da linguagem e da memória. Nela, o que importa é como vemos o fato, e não o que ocorreu na realidade, uma lembrança incerta vira a história”.

A autora deixou três livros para serem publicados. Formada em Literatura pela Universidade de Nancy, na França, também era  tradutora, ensaísta, artista plástica e trabalhou como jornalista.

A pedido do Nexo, três conhecedores do trabalho da escritora selecionam e comentam abaixo trechos de suas obras:

Estilo reconhecível

Antônio Xerxenesky

escritor e tradutor

“Meus vinte e poucos anos.

Tenho vinte e poucos anos e moro com Mariana, fato do conhecimento do João, que deduz, a partir daí, que sou lésbica. Sendo lésbica, ele também deduz, sou uma pessoa vivida, que saberá como são os fatos da vida. E sendo uma pessoa vivida que saberá como são os fatos da vida, sei sem dúvida apreciar a vida dele, João, que não é que seja uma vida legal apesar de ele ter feito programas com garotas de programa sua vida inteira. A vida dele é uma vida legal porque ele fez programas com garotas de programa sua vida inteira. Não apesar de. Porque. Sublinha o porque.

E eu sou capaz de entender isso.

‘Porque tem dessas coisas. Não é?’”

Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas (2016)

“Elvira Vigna é — foi, infelizmente, verbo ser no passado — uma escritora original. A palavra original está fora de moda, mas só ela serve.

É impressionante observar como Elvira Vigna, neste trechinho que colhi aleatoriamente de seu último romance, desmonta todas as dicas de uma oficina literária: evitar repetição de palavra, evitar conjunções em excesso, evitar começar frase com ‘E’. Vigna tinha um estilo imediatamente reconhecível. Ninguém escrevia como ela no cenário brasileiro atual. As repetições furiosas que vão dando peso às frases. A ironia brutal, violenta, que se constrói palavra a palavra.

Nunca conheci Elvira, nunca apertei sua mão. Gosto de imaginar que ela era forte como seus livros. O universo de Elvira não tem leite quentinho servido pela avó, não tem conforto, não tem ilusões. Seus romances são pedradas pontiagudas miradas na cabeça. E a sua morte se torna ainda mais trágica se constatarmos que ela escrevia cada vez melhor.”

Não é o que parece

Carol Almeida

jornalista e mediadora do clube de leitura Leia Mulheres de Recife. Escreveu, em 2015, um perfil da escritora

“No dia em que te conheço, você está com uma camiseta em que está escrito ‘Sexo Não Tem Gênero’. Cochicha no meu ouvido outras frases também sem muito sentido, mas com a aparência de que têm. Fico com a impressão de que você deve ser muito culto. Só pode. Depois vejo meu duplo engano. A camiseta nem é sua. Derrubaram vinho, daquele de garrafa de plástico que ambulante vende. Ou foi vômito e você falou que foi vinho. O caso é que você arranja outra camiseta, essa. Aquela. O segundo engano é que sexo para você, naquela ocasião, não só tem gênero, e bem definido, como também tem endereço fixo: o apê em que você mora com Zizi há mais de dez anos. Só vou saber da Zizi uma semana depois.”

Por escrito (2014)

“Linhas retas só parecem retas quando vistas de mais perto do que deveriam. Qualquer um, de binóculos em outro universo, veria que são curvas.

Que transgridem.”

Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas (2016)

“Acho que essa coisa de ‘histórias que parecem ser uma coisa e são outras’ é a essência de Elvira. A literatura de Elvira foi sempre muito construída com base na própria história dela. No que estava muito próximo dela, em pessoas que, de fato, cruzaram, algumas mais marcadamente, outras menos, sua vida. Mas como ela era hábil em fazer essa coisa de ‘isso aqui parece uma coisa que não é’, esse texto fincado nos gestos que marcaram sua memória parecia ser sempre algo ‘inventado’. E ela fazia questão de dizer que não inventava nada. De modo que, me parece que sua própria morte faz parte desse exercício dela em ter passado tanto tempo com a gente falando uma coisa, quando na verdade ela estava falando de outra e essa outra coisa era também a sua própria morte. Curiosamente, boa parte de seus livros terminam com algum episódio de morte. A vida como uma metaliteratura.”

Incômodo necessário

Schneider Carpeggiani

editor do Suplemento Pernambuco e curador

“Chega um cheiro de cigarro da mesa ao lado. Aspiro. Não fumo, nunca fumei, se me perguntarem, não gosto de cigarro, não perguntam, já sabem. No entanto, gosto. E podia parar por aqui. Porque é nisto que penso. Nessas histórias que parecem uma coisa e são outra. Se forçar a barra, chego no suspense, no será que. Por exemplo. Espero Roger. Já sei. Oi. Oi. E aí. Tudo bom. E, quando afinal ingressarmos no pós‑introito, ele vai falar do Guarujá. De eu ir ao Guarujá. E eu vou dizer que não quero. E, no entanto, quero.”

O que deu para fazer em matéria de história de amor (2012)

“Esse trecho de ‘O que deu para fazer em matéria de história de amor’ talvez seja, para mim, o mais bonito começo de romance da literatura brasileira neste começo de século. E é também uma aula rápida e direta do que é a ficção: essas coisas que incomodam, mas a gente precisa delas; essa incerteza entre saber o que se sente e, no fundo, estar blefando para si mesmo. Elvira nos atacava dessa zona cinzenta, desses não-lugares, dessas fumaças que nos chegam da mesa ao lado”.