Suplemento Pernambuco (entrevista)

“NÃO É FUGA. É BUSCA. DA DOR. DA RESSENSIBILIZAÇÃO”
Entrevista

05 de junho de 2012

Imigrantes. Todos nós o somos, hoje. Quando a viagem não nos move, é o entorno que nos foge, o que dá no mesmo. Ficamos então parados, com tudo o mais indo, imigrantes, a tentar entrar, todos os dias, em nós mesmos”. A protagonista de O que deu pra fazer em matéria de história de amor, novo romance da carioca Elvira Vigna, pela Editora Companhia das Letras, traçou para si um plano de busca, cujo interesse final não poderia ser mais urgente: a sua própria história. O caminho que ela escolhe para compreender a sua vida, naquele momento, marcada por um relacionamento complicado com Roger, é a vida de outras duas pessoas já mortas. A partir dos poucos fatos que conhece do tal casal, a narradora constrói uma história pautada por lembranças e invenções. A empreitada revela segredos que culminam num fato dúbio: seria um crime ou uma prova de amor? Sua angústia pode ser aumentada ao se dar conta que, além das duas probabilidades, há uma terceira: a de que nada daquilo tenha acontecido. “Narrativas são sempre ficcionais. Qualquer uma. Mesmo as factuais. Mais: qualquer aposição de sentido é baseada em escolhas ou limites, ou seja, ficcional, ainda que pela não inclusão do que poderia estar lá”, nos lembra Elvira, nesta conversa sobre o livro, o processo e seu entorno. A autora, que é também ilustradora e crítica de arte, falou ao Pernambuco por e-mail em meados de maio.

 

O que deu pra fazer em matéria de história de amor foi escrito em 2006, mas é publicado apenas agora. Ele sofreu alterações durante este tempo? Como você reconhece que um livro está pronto?
O livro foi recusado por várias editoras. Então teve esse tempo de limbo. Respondendo à pergunta. Pus coisas. É que vou cortando, cortando. Corto antes mesmo de chegar na tela. Corto na cabeça. E continuo cortando depois. E quando reli este livro, havia frases que não consegui entender. Aí devolvi verbos, artigos, sujeitos. E tirei outras coisas. Uma descrição no começo que me pareceu bem ruim, por exemplo. Mas acho as mudanças superficiais. Ou seja, se sua pergunta é sobre o que faz um livro ser recusado ou aceito, não sei a resposta. Quanto a estar pronto, não acho que fique. Fica pronto para aquele momento. Se no momento seguinte você muda, e muda, o livro não está mais pronto.

 

Em busca de compreender o desafeto em torno de um relacionamento, a narradora de O que deu… parte de poucos fatos para construir uma história, que, no fim, é pautada, em suma, pela sua imaginação. Você acredita que as lacunas da memória, se depender de nós mesmos, serão preenchidas com fantasias que pautem as nossas necessidades? Do que é feito aquilo que a gente não conheceu ou, pior, não lembra, mediante a necessidade de narrar um fato?
Narrativas são sempre ficcionais. Qualquer uma. Mesmo as factuais. Mais: qualquer aposição de sentido é baseada em escolhas ou limites, ou seja, ficcional, ainda que pela não inclusão do que poderia estar lá.

 

O ato de tentar recontar sua história através da história de outra pessoa. Há uma tentativa de se redimir de uma culpa, ou maquiar um medo, numa ação assim? Olhar para o outro, na tentativa de encontrar a si, não é uma ação defensiva?
Sua quem? Se é de mim que você fala, não. A resposta sugerida por você, envolvendo culpa, não tem nada a ver comigo. Vem, talvez, de um pensamento religioso, que não é o meu. Culpa nenhuma. Uma curiosidade benigna. Uma leve surpresa, perene, bem-humorada, comigo mesma. Se o “sua” é da narradora, também não. Se ela queria trepar com o cara, ela trepou. ação das mais legítimas. Para isso não enganou ninguém, não traiu ninguém, nem ela mesma. Se trepou por acaso, sem querer, eis uma coisa que pode acontecer. Então, culpa nenhuma, também aqui. Se você se refere a Rose, com a ausência emocional do marido, acho que ela também não teria culpa. Isso, se trepou. Porque a narradora infere que Rose traiu o marido, não que tenha certeza. Nem poderia.

 

Em palestra dada no Instituto Cervantes de Brasília, reproduzida em texto disponível no seu site, você relaciona o jogo entre material biográfico e ficção à participação do leitor. A estrutura utilizada em O que deu… permite a aproximação do leitor, a partir do momento em que ele se vê conduzido pela narradora a recriar, junto com ela, a história das pessoas que, de algum modo, poderiam afetar o seu relacionamento com Roger. Fale um pouco sobre este artifício aplicado ao romance.
Artifício nenhum. E certamente não “aplicado”. O sentido de qualquer coisa é dado pela tensão entre elementos, todos dispostos em uma mesma estrutura que por sua vez também muda sem parar a partir do que acontece nela. Assim, eu, a narradora e o leitor “acontecemos” juntos em um espaço, o do livro. O sentido é feito e refeito por todos. Não detenho um poder maior, dependo dos outros. Digo isso, aliás, no começo:
“E é um quase ponto final, e não um ponto final inteiro, redondo, indissolúvel, perfeito, porque a história, por mais que eu (me) imponha uma Rose, um Gunther e um Arno há muito extintos, nunca poderá ser só minha. Só contada por mim. Dela, meu controle é bem relativo.”
Portanto, não é “aplicado” e não é “artifício”. É este o livro. É isto o livro. E a relação que faço entre material biográfico e participação do leitor no texto citado por você, e que está na página do O que deu… no meu site, diz respeito à espetacularização na escrita. Sem pôr o leitor como plateia de um espetáculo já pronto e impessoal, ele terá sempre a seu dispor um espaço de participação que de outro modo não teria.

 

O que deu… coloca a narradora e, por consequência, o leitor, em uma encruzilhada diante de um possível fato que não se sabe se foi um crime, uma prova de amor ou, pior, se ele existiu propriamente. Neste livro você retoma o tema do seu romance anterior (Nada a dizer), o adultério. Em matéria de história de amor, as consequências de uma traição estão próximas as de um crime?
Não. Imagine. O crime (se é que houve) e a traição (se é que houve) são (seriam) ambos frutos oriundos de uma mesma situação, a de limites severos para uma individualização, agenciamento, subjetivação. Não há uma relação causal entre uma coisa e outra. Há um paralelismo. Trair e matar são duas possibilidades radicais de atuação para pessoas que se encontram frente a limites severos de atuação. Aliás, os crimes, em meus romances, são sempre isso: uma probabilidade mais do que uma certeza, e sem motivo além do de transgredir um limite. A ideia sugerida na pergunta me parece, inclusive, conter um moralismo ausente deste e de qualquer livro meu.

 

No vídeo de apresentação do romance, você diz que os apartamentos ambientados no livro existem de fato. O que deu…, inclusive, você escreveu, isolada, em um deles. Como é sua relação com o espaço durante o processo criativo? Essa espécie de fuga, de ir para um ambiente que não é o seu cotidiano, é uma necessidade para trabalhar?
Não é fuga. É busca. Da dor, do desconforto, da ressensibilização. E sim, é uma necessidade.

 

Em 2010, neste Suplemento, você experimentou dar voz ao silencioso personagem masculino do romance Nada a dizer. Foi um desafio dar voz a um personagem que você mesma julgava de pouca densidade? É confortável para você escrever a partir de um narrador masculino?
Não experimentei. Dei. E não foi um desafio. Foi um tédio. O personagem não é interessante. E ele não era silencioso, como você diz. Falava paca. Só que mentiras. Ao não poder mais falar mentiras, teve que, tanto quanto a narradora, se dar ao trabalho de reencontrar uma voz melhor. Tive um narrador masculino em meu primeiro livro publicado, o Sete anos e um dia. Está integral, no meu site, é só baixar. Foi publicado pela José Olympio. E no Deixei ele lá e vim apresento uma construção — árdua, cotidiana e não terminada — de gênero. Shirley Marlone é uma metamorfose ambulante, inclusive sexual. Descobrir o ponto de vista de uma história é tudo. É o mais importante. E, não, não excluo o ponto de vista masculino. Quando aparece, quando é este o ponto de vista “certo”, é este que eu uso.

 

Pensando ainda o artifício de buscar um “eu” no “outro”, o que a escritora Elvira Vigna busca na ilustradora e crítica de arte Elvira Vigna para a sua literatura? De que forma elas se cruzam?
Bem, já disse que, feliz ou infelizmente, não é um artifício. Lacan que o diga. Quanto a sua pergunta: as artes não andam de braço dado. Saber como uma enfrenta o desafio de existir (nesse nosso momento em que não há mais rituais e espaços privilegiados para nenhuma delas) me permite ver claramente a outra. Gostaria de saber mais de música, por exemplo. Acho que eu teria uma visão melhor de arte e literatura, se soubesse.

 

Qual é a função da ficção na sua vida? Você se apega àquelas definições, um tanto solenes, de que se escreve literatura para se salvar de algo?
Respondendo à sugestão de resposta embutida na pergunta. Não. Não me salvo. Tenho histórias. São minhas. Escrevê-las, pelo contrário, me liga a elas. Me compromete com elas. Respondendo à pergunta propriamente dita: a função da ficção na minha vida é a mesma função que a ficção tem na vida de qualquer pessoa. Sem ela, a gente não faz o menor sentido. Quanto à literatura, foi esta a forma que escolhi para exercer e fortalecer a minha ficção diária e ininterrupta. Por quê? Sei lá. Dados biográficos, acasos, momento histórico ou tudo junto.

 

Seja num intervalo entre um livro e outro ou mesmo durante o processo, existe o momento de cansar da literatura?
Quando acabo um livro fico sempre muito burra. Sendo gentil comigo mesma, me digo cansada. Aí vou pintar. Ou passear, o que é muito parecido.

 

Está trabalhando em algum novo livro? Pode adiantar alguma coisa?
Se você chama trabalhar passar horas olhando o nada. Estou sim. Arduamente. Aliás, há muito, muito tempo.