Suplemento Pernambuco

ESSES “LUGARES NENHUNS”, INCLUINDO AQUI

 

Composição de quadros de Edward Hopper

 

A literatura de Elvira Vigna não está em lugar nenhum, porque está em todos. Não tem uma só identidade, porque veste várias. Uma literatura de pessoas que repentinamente aparecem ao seu lado quando, na verdade, sempre estiveram ali. Algo um tanto hegeliano de afirmar somente na negação da negação. Transitória e transeunte, como tantas outras ela se encontra nos diversos caminhos de (re)significação entre livro e leitor. Mas, como poucas, enxerga nesses infinitos percursos o leitmotivde sua verdade. Do nosso processo nunca constante e nunca linear de percepção do mundo, a escritora faz uma literatura igualmente inclinada a ter sinapses interrompidas. É no vaivém e no entrelugar de mulheres e homens excepcionalmente comuns — e há um humor quase britânico de tão mordaz nessa aproximação com o “comum” — onde catamos e moldamos sua escrita.

 

Não é estranho, então, que alguns dos cenários mais recorrentes em seu novo livro, Por escrito (Companhia das Letras), sejam hotéis e aeroportos. “Esses lugares nenhuns, incluindo aqui”, ela escreve. Também não é estranho que Elvira tenha chegado ao café onde marcamos de nos encontrar alguns minutos antes do horário combinado, e não alguns minutos depois, como é de bom tom para quem mora em São Paulo. “Eu sou uma pessoa que posso ficar parada em um lugar sem fazer absolutamente nada horas a fio. Meu lugar é esse, contra uma parede, olhando o nada. Ou seja, não é bem um lugar, porque pode ser qualquer um”, ela diz.

 

Imigrante em si mesma a observar os muitos outros imigrantes que andam pela capital paulista, onde ela, carioca, mora há sete anos, Elvira Vigna apresenta agora mais uma obra aberta. Assim como dois outros trabalhos, Deixei ele lá e vim Coisas que os homens não entendemPor escrito traz aos poucos a ideia de que um crime (terá sido um crime?) está ali como a linha solta de um novelo de personagens. Também a exemplo de romances anteriores, a primeira pessoa a lembrar desse episódio em uma narrativa fragmentada é ela própria um estilhaço de identidades. Seu nome só aparece na página 17 do livro, costurado de incertezas: “Já fui Izildinha”, mas “você tem toda a licença para continuar a pensar em mim como Valderez”.

 

Desenhar os personagens de Por escrito é, tal como acontece em outros livros da escritora, uma tarefa que exige bem menos contornos e muito mais texturas. E é esse o primeiro assunto da nossa conversa. Pergunto se ela não se incomoda com o fato de que as orelhas de seus livros costumam tentar criar um tipo de sinopse — o que, onde, quando — para narrativas intencionalmente disruptivas como as suas.

 

“Acho complicado. Por exemplo, Por escrito, para mim, é um livro sobre hesitação, espaço vazio, erros, dúvidas e, ao mesmo tempo, existe no enredo a presença de um possível crime. Se eu tiver que te dizer, em poucas palavras, como na orelha de um livro, o que ele é, eu teria essa dificuldade básica. É claro que cada um tem o direito de ter sua leitura, mas pra mim o livro é sobre esse vazio e isso talvez não caiba numa sinopse. Em geral as orelhas buscam a trama, e não as intenções da trama. Não tenho muita certeza sobre as coisas que acontecem nesse livro. E essa falta de certeza eu deixo transparecer, há um convite para que as pessoas façam o seu final”, esclarece.

 

Essa ideia da construção colaborativa do livro é tema central naquilo que Elvira entende como sendo um dos papéis mais importantes da literatura (e da arte contemporânea): “Essa coisa do autor (ser dono de sua obra) é uma arrogância. Na minha opinião, essa questão é nuclear para a discussão do que é literatura. É o debate de qual é o seu papel como proponente daquilo. Digo proponente porque não, você não é dono de porra nenhuma.”

Mas ainda que ela nos ofereça usucapião dos desígnios de seus personagens, a escritora sempre deixou claro que eles representam sim parte de sua vida vivida, e não exclusivamente da vida imaginada. Em Por escritonão é diferente. Existem fatos e pessoas próximas a Elvira, repensadas para a literatura, mas sempre extraídas de uma de suas “malas” onde separa e guarda memórias.

 

“Essas malas ficam mais ou menos… não direi dormentes porque essas experiências, como te disse, nunca acabam. Mas ficam lá, elas não têm uma urgência. Aí algo acontece e faz com que elas fiquem urgentes. No Por escrito, por exemplo, há uma série de experiências de uma determinada idade minha, menina, que estava lá desde sempre. Também, há relativamente pouco tempo, aconteceu d’eu participar de uma experiência de vida de um amigo meu gay que quase casa com uma bailarina russa [ambos personagens estão no livro]. A figura dessa bailarina me fez lembrar de uma experiência guardada nessa mala específica.” O ato de abrir qualquer uma dessas malas, segundo ela, faz a escrita ficar urgente.

 

Essa emergência é então seguida de um processo de afastamento da escritora de sua zona de conforto. “Saio do ambiente conhecido e vou pra outro lugar. Em geral, desconfortável. É importante que seja desconfortável, porque escrever é muito duro. Se você vai pra um lugar bonito ou agradável, que tenha uma Starbucks do lado você não escreve. Então vou sempre para algum lugar desconhecido que tenha a ver, na minha cabeça, com o cenário do livro, e fico lá escrevendo dia e noite, obsessivamente, até conseguir algo que eu considere viável. Em geral me engano quanto a isso. Quando releio acho que não está legal, mas aí já há uma malha que segura a história e eu consigo fazer essa nova escrita sem precisar me isolar. Exemplo, a primeira versão de Por escritofoi feita num hotelzinho aqui na Vila Mariana e o meu quarto era do tamanho de uma cama de casal onde havia uma cama de solteiro e uma mesinha. Foi esse o lugar em que fiquei trancada.”

 

IZILDINHA É NÓS

Memória maior da última mala aberta por Elvira, a já citada Izildinha, nome que já esteve em um dos contos da escritora, é testemunha dessa relação de dentro e de perto que ela estabelece com suas histórias. Porém, sua aparente fragilidade e vocação para se machucar fez dela uma terceira pessoa no livro. A escritora explica, no vídeo de apresentação da Companhia das Letras, que não seria capaz, ainda, de colocar tamanha vulnerabilidade na voz da narradora. Em nossa conversa, ela diz: “Nunca pude escrever desse lugar. Não sei se algum dia serei capaz de fazer isso. Quando vou escrever sobre esse conjunto de experiências que podemos chamar das experiências de Izildinha, não consigo colocá-las em primeira pessoa.”

 

Pergunto então se o ato de escrever, em si, já não é um exercício de assumir essas fragilidades. “No meu caso, sim. Não acredito que se possa dizer isso de todo mundo. Mas para mim, o escrever tem essa função bem clara que é de falar de experiências em geral que vivi, ou que vivi por tabela, e que por qualquer trauma você não consegue explicar logicamente. Então você é condenado a reviver. Ao escrever, eu convido as pessoas a colaborarem nesse processo de significação. Os meus livros são sim muito expostos e próximos. Tenho orgulho disso. Acho que se você for pensar em arte, qualquer uma delas e não somente a literatura, elas são pensadas dessa forma, como um convite de coautoria. E não é que, ao saber disso eu decida ser assim, é porque eu realmente sou assim.”

 

Portanto, como diria Caetano, Izildinha que eu/Elvira fala é nós. A priori, ela é apenas uma mulher traída. Mas aqui as primeiras impressões nunca são as que ficam. Há nela uma natureza de rocha travestida em porcelana que se encontra na bailarina russa, na mãe da narradora e na própria narradora. Questiono se há mesmo uma estranha cumplicidade entre Valderez e Izildinha, no que ela afirma que não apenas isso, mas também uma relação sólida, margeando afetividade, entre ambas. São elas, e não ele, os vértices de um possível triângulo amoroso que guia a narradora. “Diria que é quase uma relação lésbica”, sustenta.

 

Sobre o assentamento do gênero feminino em seu trabalho, a pontuar que praticamente todos os seus textos partem de uma primeira pessoa feminina, a escritora assegura que não se trata, de forma alguma, de uma opção estilística. São decisões exclusivamente políticas: “Tem a ver comigo de saco cheíssimo de só encontrar narradores masculinos na vasta maioria dos textos literários”, explica. E acrescenta: “Para você avaliar a amplidão do alijamento, essa é uma pergunta que um escritor homem não precisa responder. Por que ele não tem narradoras femininas? O narrador masculino é considerado o ‘normal’”.

 

Esse debate do lugar de fala dos gêneros tem presença forte na sua literatura. Em Por escrito, ele se apresenta de várias formas e uma delas vem carregada de ironia. Quando o amante de Valderez lhe é apresentado, ele usa uma camisa onde se lê “Sexo não tem gênero” e imediatamente se cria uma empatia por um sujeito disposto a vestir essa ideia. Mas isso logo se prova equivocado, como explica a narradora: “A camiseta nem é sua. Derrubaram vinho, daquele de garrafa de plástico que ambulante vende. Ou foi vômito e você falou que foi vinho. O caso é que você arranja outra camiseta, essa. Aquela.” Para a escritora, as marcações deixam claro: “Esse homem branco, de classe média, jovem e heterossexual não vestiria essa camisa.”

 

VERDADES E MENTIRAS

Não apenas interessada, como fundamentalmente movida pelo contato com seus leitores, Elvira acredita que o mercado literário, não apenas no Brasil, é muitas vezes mobilizado por uma soberba que com frequência ignora essa construção do leitor e se preserva em um parnasianismo descartável. “Existem vários tipos de literatura. Inclusive tem a literatura… estou aqui gaguejando para não ser antipática, mas acho que vou ser sim: existe uma literatura de vaidades. Em que você cata um formalismo, frases bonitas, de efeito, coisas que você vai repetir em um coquetel e vão te achar fodão, genial. Para essa literatura não é preciso desconforto. A minha precisa.”

 

Tal como Diego Velázquez, o pintor espanhol barroco a quem ela atribui uma influência constante em sua escrita, Elvira se sustenta tanto na ideia de obra aberta, quanto nesse atrito necessário que a arte precisa ter entre verdades e mentiras, algo aliás amplamente abordado por ela no romance Às seis em ponto. É dessa fricção que surge seu desconforto. Velázquez, ela lembra, viveu uma vida de mentiras, simulando um bem-estar burguês no seio da corte real, para transmitir sua verdade, a crítica a essa elite, em seus quadros. Mas a realeza, pobre menina rica, nada entendia. Será Elvira também uma criação fictícia a nos revelar personagens reais que não vemos ao nosso lado? Será que Elvira somos nós? Na dúvida, criamos juntos.