DE COMO ESCREVER NOSSAS FRAGILIDADES
Trecho:
Já a escritora Elvira Vigna prefere pensar a condição humana a partir do artista — que hoje vive em situação precária por seu trabalho receber pouca ou nenhuma remuneração. Esta realidade, na opinião dela, é benéfica por dois motivos: agora o artista vai estar mais apto a partilhar sua proposta com outros “autores”, o que acelera a transição para a consciência de que todos são potenciais criadores; e isso injeta vida na experiência de vida do artista, e, como consequência, esta mesma vida e a de sua comunidade serão propulsoras das suas propostas artísticas.
Ela escolheu dois trechos para representar essa condição humana do escritor. O primeiro é de seu Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, inédito:
Uma amarelinha em que fico, uma perna, eu também no ar à espera de uma completude prometida pelos vários episódios que crescem de tamanho, mas que nunca de fato acabam. E com uma autoria que fica cada vez mais para trás. Ou melhor, uma autoria que vai se espalhando por várias casas dessa amarelinha, eu mesma virando autora. Se não de uma Eneida, pelo menos das histórias de putas de um João que nunca termina de fato o que conta, e que vai ficando, ele também, cada vez mais para trás. Os detalhes, aqui, são na maioria meus.
O segundo é do Quarenta dias (Alfaguara), de Maria Valéria Rezende:
Vai, piá, vai ver se a Baiana está aí, que ela é de lá de Fortaleza, é lá de Minas. Naquela hora não percebi, mas tinha acabado de descobrir outra coisa preciosa pra os meus dias de desgarramento que eu ainda nem sabia que já haviam começado. Estava momentaneamente esquecida de Norinha, do tabuleiro de xadrez, meio zonza com tudo o que ouvia e me prendia àquele instante e lugar.
A condição humana que Elvira propõe fica ainda mais evidente na dimensão espaço-tempo das obras literárias atuais. Para ela, não há um protagonismo, um “dono”, seja do espaço, da ação, ou que tenha a ilusão de controlar o tempo. “Na literatura que aqui cito, vários tipos de discurso (objetos achados e cita- ções, no caso da Valéria; letras de música e citações, no meu caso), juntos, apontam uma unidade que não o é, por ser justamente quase aleatória, inacabada e inacabável. Nada aponta para uma conclusão reconfortante, não há imposição de um sentido único”.
Os olhares de Auerbach, Elvira e Ricardo partem de um ponto comum: eles mesmos. Ainda que busquem os elementos em si que estão mais próximos da coletividade, a raiz de seus argumentos são os olhares que, baseados em suas experiências, lançam ao mundo. Se um livro nos toca — via intelecto ou sentimento —, é a partir deste afeto que o olharemos, mesmo que procuremos os meios mais assépticos e “neutros” para ler uma obra.
Um autor escreve algo de si para muitos. Nestes muitos, o que vai reverberar é o que está sendo dito com clareza pelas palavras, mas também algo incerto e sempre fora do controle de quem escreve. Esta dinâmica é o que permite a nós, leitores, uma busca pelo humano também nas estantes e prateleiras.