SP Review (trecho de livro)

* Por Carolina Vigna *

Compartilhei de algumas paixões com a minha mãe. História da arte era, sem dúvida, uma das grandes. Acabei indo para a Academia. Tenho pós e mestrado na área e, em breve, doutorado. Minha mãe achava que eu era séria demais. Talvez seja. De toda forma, ela, uma figura absurdamente generosa, quis me ajudar e decidiu então escrever um livro a quatro mãos comigo. A ideia do projeto foi dela, mas eu abracei imediatamente. E olha, deixa eu contar, eu sou mais pra ranzinza. Não sou de sair abraçando projetos assim, não. Enfim, ela terminou a parte dela e eu ainda não terminei a minha. Além de séria e ranzinza, eu sou também lerda. A ideia da gente é de escrever “uma” história da arte. Não “a” História da Arte. Então o texto está cheio de brincadeiras, humor e opiniões pessoais. É fácil de ler (espero) e vai contra a sacralização de qualquer coisa, de qualquer um, inclusive das autoras.

Leia abaixo, com exclusividade, trecho da obra escrito por Elvira.

A matéria é a homenagem da São Paulo Review ao Dia das Mães.

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* Por Elvira Vigna *

Todo templo grego era um complexo turístico, um resort. Tinha o templo com suas colunas, em geral em um terreno elevado, dominando o resto. E mais: alojamentos para visitantes e artistas, ruas internas, padarias e docerias, lojinhas de souvenir, pracinhas com estátuas, locais de relaxamento e diversão, espelhos d’água e coretos. E um teatro. O teatro era parte essencial da coisa. Parte integrante do processo religioso de êxtase e gratificação emocional-psicológica. Não só teatro. Todas as artes tinham essa mesma finalidade. Serviam para reencenar as histórias daquele povo. Serviam para que as histórias (ou mitos) pudessem ser contadas outra vez e outra vez mais. Para que não fossem esquecidas, para que fossem repensadas, atualizadas sem parar.

É uma cultura oral. Não há mentiras ou verdades. Há versões maleáveis, há atualizações, há a possibilidade, sempre renovada, de integrar o já sabido com o desejado.

É preciso que seja assim. O grego primitivo (chamado de aqueu) era tão violento e sem escrúpulos quanto o bárbaro oriental seu vizinho. Ou quanto seu vizinho aí do prédio, ponto. Mas qualquer horda em fase de organização social – ou de dissolução social, como é o caso do seu vizinho – precisa criar um passado de que possa se orgulhar. Assim, o estupro vai virando amor eterno, e as matanças passam a ser glórias militares. Bandido se torna herói. E uma vez isso feito, é o caso de estratificar a nova versão, torná-la “oficial”. É onde entra Homero. É ele que funda o grego escrito, e o que ele escreve é a epopéia do herói. Ele, aqui, é um coletivo. Homero deve ter sido vários. Platão não gostava da palavra escrita, dizia que era um breque à inteligência, um enrijecimento a interromper o fluxo livre das ideias, das conversas.

Homero estratificou heróis e também deuses. Seus deuses têm apenas duas características a separá-los dos não-deuses: são eternos e têm memória perfeita. Tirando isso, deixavam muito furo porque, inclusive, dormiam de noite. Não sabiam de tudo o que acontecia e podiam ser enganados com relativa facilidade. Os heróis também podiam ser enganados, inclusive por suas mulheres adúlteras. E alguns deles, que se deram mal, tiveram filhos vendidos como escravos. Quer dizer, mesmo na estratificação por escrito de mitos glorificantes, os gregos pegaram leve se comparados com algumas culturas atuais.

É nesse contexto de lembrar e atualizar histórias que as artes gregas entram um pouco na esfera do divino. As artes serviam para manter viva a memória dos mortais. Eram derivadas das musas, filhas de Zeus. O inferno desse povo era o Ades. Nada de muito ruim. Apenas o lugar do esquecimento. Entrando lá, ninguém mais se lembrava de você, e esse era o pior castigo.

O sufixo “tia” era relativo à visão. Idiotia era uma doença de olhos que impedia as pessoas de ver um palmo diante do nariz. Diferente de cego. Homero seria cego, mas se você fosse cego, isso queria dizer que talvez você visse muito bem o que há de mais importante, o que está por trás do visível, o que se mantém mesmo quando o visível – ou o relato – muda. Longe, portanto, de ser um idiota.

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Carolina Vigna (1971-) é escritora, artista plástica, especialista em História da Arte e professora universitária.

Elvira Vigna (1947-2017) foi autora, ilustradora e jornalista. Publicou inúmeros livros, entre eles Nada a dizer e Por escrito, ambos pela Companhia das Letras.