Entrevista conduzida por Rogério Pereira, publicadada no jornal Rascunho, de Curitiba, de abril de 2010.
Elvira Vigna busca na literatura uma experiência radical. Não está interessada em enredos. Acha um “saco saber o que aconteceu”. É obsessiva no diálogo com os livros durante o processo de escrita. Nunca está satisfeita. Não relê seus romances para evitar reescrevê-los a caneta, exemplar por exemplar. A radicalidade também se apresenta em exemplos concretos. Ao ministrar uma oficina de criação literária, sugeriu aos alunos que “só começassem a escrever em situação de desestabilização. Nus, em pé, com fome ou sede”. Para a autora, a literatura nunca será um simples entretenimento. Será sempre uma viagem em busca de algo. Mesmo que esta viagem tenha invariavelmente um destino desconhecido. Nesta entrevista concedida por e-mail, Elvira Vigna fala de Nada a dizer, seu romance mais recente, e também da literatura brasileira contemporânea, do mercado editorial, sua produção ficcional, amor, sexo, traição e artes plásticas, entre outros assuntos.
• Nada a dizer é narrado do ponto de vista feminino. Como se deu a construção desta voz narrativa? É possível prever como seria o desenvolvimento do romance se partisse do olhar masculino?
Nunca escrevi do ponto de vista masculino. Mulheres e gays, sim. Não sei se não tenho interesse ou se não sou capaz de me imaginar homem. Há uma outra questão também. Acho que homens héteros brancos de classe média têm muito pouco a dizer. Acho que é por isso que lemos tantos livros em que há sempre uma tentativa de recuperação de adrenalina, uma espécie de nostalgia de um poder perdido. São as narrativas sobre infâncias tensas, terras distantes ou desconhecidas, esportes radicais. Ou, claro, sobre a suposta marginalidade de se vomitar na avenida São João noite e dia sem parar. Ou tudo isso junto. É como se na vida presente, adulta, do escritor com esse perfil, nada de fato acontecesse.
• A narradora e Paulo (o marido que a trai) formam um casal de meia-idade que atravessou com intensidade os conturbados anos 1960. Uma das marcas mais fortes para esta geração foi, sem dúvida, a instauração da ditadura militar em contraponto a uma acentuada liberdade sexual. Que marcas ambas lhe deixaram como cidadã? E como influenciaram a sua produção literária?
Feliz ou infelizmente, comecei a trabalhar com 17 anos no finado jornal Correio da Manhã (publicado no Rio de Janeiro de 1901 a 1974). Casei com 18 anos. Minha filha nasceu de um segundo relacionamento, aos 21. Era eu quem a sustentava. Portanto, tanto o desbunde quanto a luta política não foram um componente presente dentro da(s) minha(s) casa(s). Eu trabalhava sem parar. Mas, claro, a liberdade, ou a ausência de, me marcou como a todos da época. Tínhamos, então, uma metanarrativa onde nos encaixávamos, cada um no papel que melhor lhe servia. O meu era periférico, não me envolvi na luta armada, não trepei com todos os homens do mundo. Mas, sim, eu tinha uma metanarrativa. Continuo com ela em meus livros. Em todos os livros que faço, há uma narrativa (a história que está sendo contada) e uma metanarrativa em que eu penso a respeito da primeira. Nada a dizer tem a seguinte estrutura: o homem conta para a mulher seu caso com a amante. A mulher reconta essa história. Ao recontar, ela destrói a história original, pois acrescenta detalhes e aspectos que o homem preferia não levar em consideração. Ela destrói a história do homem e destrói, portanto, o próprio homem. Pois você não sobrevive sem uma narrativa própria. Essa é, digamos, a história do livro. Essa história é problematizada em uma metanarrativa quando a mulher — que é a narradora — interrompe seu narrar. Ao contar a história (a de uma narrativa que é destruída por outra) na primeira pessoa, ela se vê em um impasse. Ela não é mais aquela que viveu aquilo tudo. Ela não é mais um “eu” viável. Ela também foi destruída. E há mais um detalhe. Tudo isso — as narrativas contadas, recontadas e interrompidas — não é a narrativa real do livro. Esse livro deveria contar a história de um crime. A morte do personagem Antonio Carlos é delineada, mas não é narrada. Fica como um aviso de que em todas as narrativas há o que se lhes escapa. Tudo a ver com a década de 1960.
• O leitor pode confundir o enredo de Nada a dizer com a sua vida, pois a narradora deixa alguns sinais de que se equilibra na fronteira entre realidade e ficção. Esta aproximação a preocupa? A senhora acredita na existência dessa dicotomia ou na possibilidade de sua ficção construir uma nova realidade?
Vou responder com uma citação em que tropecei faz pouco: “Então, o que é autobiográfico nas minhas histórias, e o que é imaginado? Tudo é autobiográfico: se um dia eu escrever uma história sobre o caso de amor entre madre Teresa e Abba Eban, com certeza vai ser uma história autobiográfica, não há história que não seja confessional. O mau leitor quer sempre saber, e rápido, ‘o que aconteceu na realidade’. (…) A satisfação do mau leitor depende de ele ter a certeza de que sobre Dostoiévski pesava a suspeita de uma mórbida tendência a assaltar e matar velhinhas, e de que William Faulkner, sem dúvida, era inclinado ao incesto; Nabokov, à sedução de menores; Kafka, com certeza, tinha uma alentada folha corrida na polícia (pois não há fumaça sem fogo); para não falar no que o tal Sófocles fez ao pai e à própria mãe, pois, se não tivesse feito, como é que ele saberia descrever com tanta perfeição? E que perfeição! Perfeição é apelido — mais perfeito que a realidade! Então não pergunte: O que é isso? São fatos reais? De verdade? Pergunte a si mesmo. Sobre você. E a resposta, pode guardar para si. Faça a comparação (cujo resultado você poderá manter em segredo) não entre o personagem da história e os diversos acontecimentos da vida do autor, mas entre o personagem da história e você, o seu eu secreto, perigoso, infeliz, louco, criminoso, o ser ameaçador que você mantém sempre bem preso, bem no fundo, dentro de sua masmorra mais tenebrosa para que ninguém no mundo jamais suspeite de sua existência”. É do Amós Oz, em De amor e trevas (em tradução de Milton Lando para a Companhia das Letras).
• Novas tecnologias — como computador, e-mail e celular — desempenham um papel importante em Nada a dizer. A certa altura, a narradora percebe que pode estar sendo enganada pelo marido porque um e-mail não estava em negrito, sinal de que já havia sido lido. Como você lida com esses aparatos? Não teve receio de incluí-los no livro? O que pensou ao dar um papel importante para e-mails e internet em seu romance?
Apenas situei minha história na minha vida presente. Faço isso sempre. O assassinato de Bebê Martê é uma história antiga que é narrada e reatuada no momento presente da narração. A descrição do escritório em que a narradora trabalha é a descrição real do escritório em que eu trabalhava na ocasião. A cidadezinha em que aconteceu a história do passado é Jaú, no interior de São Paulo, e sua descrição é real e minuciosa, do jeito como Jaú era na época do que está sendo narrado. Às seis em ponto é uma viagem que reproduz uma viagem feita pelos personagens na semana anterior, e os nomes dos motéis da Baixada Fluminense, por onde o carro passa, são os nomes reais dos motéis existentes no momento em que o livro foi escrito. O livro foi escrito, aliás, em lanchonetes vagabundas e postos de gasolina desse trajeto. Coisas que os homens não entendem faz referência a Os lusíadas, com o impasse entre o que é a ida e a volta de uma viagem. Isto é, o que exatamente é ir para um lugar e para onde exatamente você acha que volta, até mesmo no nível mítico. Esse livro se passa em Santa Teresa, um bairro do Rio de Janeiro que visitei diariamente durante a escrita, e que era, ao mesmo tempo, um bairro importante de uma época do meu passado. Deixei ele lá e vim descreve com todos os detalhes reais uma parte da favela do Vidigal, com seus grafites, endereços, personagens, vans. E até mesmo o passado dos personagens é fruto de uma pesquisa que fiz com professores da escola Almirante Tamandaré, que serve à comunidade. É tudo real. Nada a dizer fala do meu cotidiano atual, em cima de um computador de manhã à noite.
• À página 82 de Nada a dizer, lê-se: “Para mim, poder trepar com qualquer um é uma coisa que me encanta, uma possibilidade valiosa”. Há aqui uma clara satisfação pela possibilidade da liberdade sexual. A senhora concorda que esta liberdade sexual pode ter reforçado também uma banalização do sexo?
Não. Sou uma firme defensora de que se deve poder trepar com quem quiser — ou puder. O que trouxe a banalização do sexo foi o capitalismo. Poder trepar não quer dizer precisar trepar. Precisar trepar, e mais e mais (e precisar comprar, e mais e mais), é uma deturpação capitalista.
• De que maneira a sua formação acadêmica (a autora é diplomada em literatura pela Universidade de Nancy — França) interfere no momento da concepção de uma peça ficcional?
Em nada. Aliás, essa questão do Nancy sempre é mal compreendida. O Nancy que fiz foi através da Aliança Francesa, como explicito claramente na biografia que consta do meu site. Morei na França por um período. Mas isso não teve relação com o Nancy. Minha formação acadêmica é em arte. Embora tenha feito um mestrado em Teoria da Significação na UFRJ — e que abrange texto, imagem e outras linguagens.
• A senhora começou escrevendo para o público infanto-juvenil. Depois, abandonou a literatura por um tempo. Ao retornar, em 1988, com o romance Sete anos e um dia, a senhora passou a se dedicar à literatura adulta. Por que esta mudança? A literatura infanto-juvenil não a satisfazia como escritora? Quais as principais diferenças ao escrever para estes públicos?
Exato. A literatura infantil deixou de me trazer prazer. Acho que minha atuação em literatura infantil se deveu principalmente à minha filha. Eu escrevia para ela. Sempre fui ruim de falar. Ou, como diz um amigo, eu falo muito melhor por escrito. Ela bebê ou muito pequena, eu tentei me comunicar com ela do modo que acreditava ser o melhor: por escrito. Aí ela cresceu e eu parei. Depois tive outro filho, o David, mas com ele essa questão do falar não se colocou. E isso porque David também não era de falar. Aliás, ainda não é. Então, tudo bem, éramos os dois mudos. Não sei falar das diferenças entre escrever para crianças e adultos. Sei falar das semelhanças. Por exemplo, em ambos os casos, há coisas muito importantes a serem ditas. E não é como escovar bem os dentes, ou descrever que lindas são as florzinhas. Não. São as angústias, as incertezas, a possibilidade de afeto que persiste malogrando tudo. Então, livro para criança ou para adulto, tanto faz, literatura ou é boa ou não é. A boa fala das coisas importantes, para que quem a leia também possa “falar”. Minha filha fez no final do ano passado um livro que fala da auto-estima (Godô dança, de Carolina Vigna-Marú) — que é um aspecto importante para a vida pessoal dela como adulta. Mas quer assunto mais importante para uma criança do que a auto-estima? O leitor precisa ter uma grande presença no livro, não importa que tamanho ele tenha na vida real. E para que isso aconteça, não é pescar um assunto em um catálogo (ahn, acho que vou fazer um livro que fale da dificuldade de aprender matemática na escola…), mas falar do que é importante para você, o escritor. Aí você garante a presença do leitor, ao oferecer a sua. “É comum entrarmos em livrarias só para perceber que há um setor de ‘literatura brasileira’ escondido no lugar pior, no menos visível, na estante perto do banheiro.”
• Durante cinco anos a senhora esteve à frente da editora Bonde. Também editou a revista literária A Pomba. Como avalia o momento por que passa o mercado editorial brasileiro, com a chegada de grandes grupos estrangeiros e a edição de uma quantidade imensa de livros todos os meses?
Tenho muita raiva do Fernando Henrique Cardoso, que foi quem abriu o setor, permitindo que o lixo internacional aportasse por aqui a preços baixos. Preços esses obtidos pela diluição, em escala, dos custos de propriedade intelectual, por exemplo. Ou pelo marketing de repercussão. São as célebres frases que dão conta do sucesso, real ou suposto, do livro em mercados “nobres” como Estados Unidos — o que é ridículo, além de criminoso, porque trata-se de um leitor completamente diferente do brasileiro, com outros enfoques e predileções e que, inclusive, não tem nada de “nobre”. Ou, ainda, para citar o setor infantil, trazendo a economia advinda das imagens pasteurizadas que servem para a impressão brasileira, turca ou chinesa, tanto faz. Mas acho que Fernando Henrique infelizmente não está sozinho. Há mais culpados. Por exemplo, também acho que o livreiro brasileiro não está à altura de sua função. É comum entrarmos em livrarias só para perceber que há um setor de “literatura brasileira” escondido no lugar pior, no menos visível, na estante perto do banheiro. O lugar nobre da loja é ocupado pelo lixo imposto, de momento. Acho que o setor livreiro precisava de aulas de cidadania. E para diminuir a impressão raivosa que com certeza eu dei com esta resposta, cito as exceções de sempre: o livreiro independente, ou mesmo médio, como a Travessa, no Rio, a Livraria da Vila, em São Paulo, e outros que resistem a desaparecer, como em Juiz de Fora, por exemplo. Que é uma cidade mineira que veio de uma tradição de livrarias pequenas e boas e hoje é um ninho de blogueiros literários que exercem função similar via internet.
• Além da grande produção editorial, o Brasil demonstra em todas as regiões um imenso fôlego para o surgimento de feiras, festivais, bienais do livro. A senhora acredita que a literatura passa por um bom momento ou estes movimentos demonstram apenas que o país corre atrás do tempo perdido?
Acho muito bom haver esses eventos. Acho que é uma maneira de se chegar em quem não entra em livraria. Acho que essas feiras, em lugares periféricos das grandes cidades ou em cidades pequenas, têm papel importante. Que, claro, poderia ser complementado com uma atuação do poder público em cima de bibliotecas, programas de viagens com escritores etc. E nesse etc. entra, como fator principal, só para lembrar, a educação. Educação e cultura são coisas diferentes e o Estado deveria investir mais em ambos. Mas, gente, sem educação não dá nem para começar.
• A senhora estudou roteiro cinematográfico e chegou a roteirizar alguns de seus livros, além de ser co-roteirista de Balada dos infiéis, de Geraldo Santos Pereira. Também se dedica às artes plásticas, produzindo e escrevendo sobre. Entre estas artes, a senhora acredita que a literatura seja mais capaz de compreender a complexidade do ser humano?
Texto. A grande divisão é entre texto e imagem. E você fala de compreender complexidades. Acho que é muito mais do que isso. É dar significado mesmo. Sem texto, você tem sua capacidade de emprestar significados altamente comprometida. E, claro, texto polissêmico — que é o texto literário — é o que mais dá conta do recado porque se presta à obtenção mais abrangente de significados. O processo de significação da imagem é um processo de impacto. De afeto, no sentido etimológico do termo, afeto de afetar, um termo nietzschiano. Não é que não exista, imagine. Mas esse processo, o da imagem, propicia vários impactos sucessivos, através dos quais só pode surgir uma noção identitária fragmentada e presentificada. O texto, ao contrário, traz um processo de narrativas necessariamente recorrentes, não fixas, não relativas a “essências”, nada disso. Pelo contrário. Tais narrativas, feitas e refeitas incessantemente, propiciam uma temporalidade que o processo de significação imagético não tem. Há um antes e um depois, aqui. Há um resíduo de narrativas anteriores que é aproveitado e reaproveitado nas seguintes. Com isso, o processo de significação por narrativas se torna lento. Mas inclui o eixo histórico, diacrônico. As imagens, ao contrário, terão sempre referências sincrônicas. Textos falam de tempo. Imagens falam de espaço. Você precisa dos dois. Mas o que vimos é que por muito tempo houve um privilégio da imagem sobre o texto. E o resultado é que ninguém mais sabe de si. Falei muito sobre isso em uma palestra que dei na UFMG e que vai sair publicada agora, sob o título Livros e telas, com mais autores.
• A senhora se alinha a Roland Barthes quando ele diz que o escritor é um imitador, seja de gestos, seja de palavras?
Não é imitação de gestos e palavras porque, se não for vivido, não fica bom. Mas você imita vidas que não teve. E nessas vidas imitadas faz os gestos e palavras reais. É possível fazer uma comparação com atores. Bons atores não estão imitando nada, estão vivendo vidas.
• Nada a dizer pode servir de catarse a muitos leitores. Podemos considerá-lo uma tragédia contemporânea?
Não. A mulher é anacrônica, não é contemporânea. Ela ama o homem. Quem você conhece que ama alguém hoje? A tragédia contemporânea é o não amar. Só há uma busca por momentos agradáveis. E parciais. Todos estamos sempre apenas parcialmente presentes nas situações que buscamos. Há sempre uma parte de nós guardada em casa, a salvo, para que possamos estar com aquela pessoa de uma forma segura. Assim, fragmentados, temos a ilusão de um controle sobre o que poderia ser visto como ameaça — que é o amor. Você fica vulnerável ao amar. Melhor amar só um pouquinho, compartilhar só o agradável. A tragédia é que isso não é viver. Li um livro muito bom. Vou reproduzir um trechinho. Vai em francês mesmo: Le sexuel ne conjoint pas, il sépare. Que vous soyez nu(e), collé(e) à l’autre, est une image, une représentation imaginaire. Le réel, c’est que la jouissance vous emporte loin, très loin de l’autre. Le réel est narcissique, le lien est imaginaire. (…) S’il n’y a pas de rapport sexuel dans la sexualité, l’amour est ce qui vient suppléer au manque de rapport sexuel. Lacan ne dit pas du tout que l’amour, c’est le déguisement du rapport sexuel, il dit qu’il n’y a pas de rapport sexuel, que l’amour est ce qui vient à la place de ce non-rapport. C’est beaucoup plus intéressant. (O sexual não une, ele separa. Você estar nu[a], colado[a] ao outro, é uma imagem, uma representação imaginária. O real, é que o gozo nos leva para longe, bem longe do outro. O real é narcísico, a ligação é imaginária. […] Se não há relação sexual na sexualidade, o amor é o que vem suprir a falta de relação sexual. Lacan não diz, de modo algum, que o amor é o disfarce da relação sexual; ele diz que não há relação sexual, que o amor é o que substitui essa não-relação. É muito mais interessante.**) É do filósofo francês Alain Badiou, e se chama Éloge de l’amour. Ele diz que o amor, hoje, é a única possibilidade de liberdade. Eu concordo com ele.
• Amor e infidelidade podem habitar o mesmo casal?
Não. Ao ser infiel, a pessoa adquire um poder muito grande sobre o traído. Você não só faz o outro de babaca, como o torna um babaca real. Você, ao traí-lo, o olha com um olhar superior, de quem sabe o que está acontecendo, enquanto o outro não sabe de nada. Esse desbalanceamento é completamente antagônico a uma situação amorosa, em que há necessidade de um compartilhamento mútuo, de uma equalização emocional para que aconteça a troca. Com traição, o que existe é narcisismo — que pode ser muito gratificante, mas não é amor.
• Hoje, no Brasil, há várias oficinas de criação literária, com destaque para as de Luiz Antonio de Assis Brasil (Porto Alegre) e de Raimundo Carrero (Recife). A senhora acredita na capacidade de formação de escritores destas oficinas?
Nunca fui aluna de oficinas literárias. Tentei dar uma, uma vez, e não acho que tenha conseguido muito sucesso. Baseei minha atuação nas condições anteriores ao texto. Por exemplo, sugerindo que os alunos só começassem a escrever em situação de desestabilização. Nus, em pé, com fome ou sede, pressa. Que berrassem e falassem alto sozinhos. Que saíssem de sua zona de conforto. Que esquecessem a nostalgia. Não começassem sabendo o que iam fazer, deixassem o tempo presente entrar no livro (está frio?, tem cheiro de comida do apartamento ao lado?) Que, se achassem alguma frase “bonita”, deviam deletar na mesma hora. Que jogassem fora tudo que tinham escrito até então, e começassem do zero absoluto. Me olharam com um risinho nervoso. Acho que nenhum seguiu meus conselhos.
• Quais são os autores que a senhora persegue hoje em dia? Costuma ler figurões como Philip Roth e J. M. Coetzee? Consegue identificar — ou apontar — a influência de algum escritor na sua literatura? (Cito Roth porque algo na sua narrativa me fez lembrar a dele. O texto seco, livre de firulas estilísticas, os temas envolvendo traição, casamento…)
Leio sem parar e leio tudo, do figurão ao completo desconhecido que me manda o livro ou cujo livro eu cato nessas livrarias que citei acima. Minhas influências não foram literárias. Tive professores que conseguiram abrir minha cabeça, companheiros que compartilharam comigo seus saberes. Amigas alucinadas cujos pontos de vista me espantaram e me mostraram novas formas de ver o mundo. E filhos. Que me obrigaram a pensar tudo outra vez, e outra vez…
• E na literatura brasileira contemporânea, que autores lhe chamam a atenção? Qual a sua opinião sobre esta produção?
Gosto muito do autor brasileiro contemporâneo. Acho que o Sul do Brasil, não sei a razão, de repente explodiu em uma altíssima qualidade de texto. Minha filha me trouxe umas antologias de gente sem experiência alguma, alunos, pelo que entendi, de uma oficina literária de alguém chamado Charles Kiefer. Pois os textos eram bastante bons. Fui jurada uma vez de um concurso literário para amadores, isso já faz tempo. E também achei os textos que retratavam o Norte, a Amazônia, muito bons. Então, quer saber?, acho nossa literatura atual ótima.
• Que tipo de literatura não lhe atrai de maneira alguma? Por quê?
As de enredo. Acho um saco saber “o que aconteceu”. Gosto de conhecer gente, gosto quando são as pessoas descritas que levam até a ação, e não ao contrário. Não tenho nenhum interesse por livros de conteúdo espiritual. Zero. Também não procuro fantasia, embora o Eric Novello, que é meu sócio na nossa firma de traduções, seja um ás no assunto e me traga, volta e meia, textos que considero muito bons e que leio com grande prazer.
• A senhora se dedica ao romance e ao conto. Quais os desafios criativos mais lhe chamam a atenção nestes dois gêneros?
Os contos foram um acidente na minha vida. Não sei se voltaria a eles. Na época (início dos anos 2000), eu estava vivendo complicações sem fim e resolvi escrever o que vivia. Criei então a personagem Izildinha, que era uma versão ainda mais babaca do que eu já sou normalmente. E a Izildinha então vivia aquelas brigas e fazia todas as decisões erradas que eu procurava não fazer e me via fazendo. Foram os únicos textos meus na terceira pessoa e isso foi um truque para me distanciar mais daquela cretina. Na terceira pessoa, eu pude falar do que eu não conseguiria falar na primeira pessoa. Depois, uma meia dúzia desses contos publicados, joguei fora o resto. Aquilo que eu sugeria para meus alunos na oficina literária? Pois cumpri. Deletei tudo, joguei fora as cópias em papel, Izildinha não existe mais. Se voltar a fazer contos será em uma clave completamente diferente. Acho que gostaria de tentar uma linguagem muito dura, muito rápida. Mas não é um plano concreto. Não sei se vou voltar ao conto. O romance me atrai mais. Assim como na vida privada, eu também na literatura prefiro os relacionamentos mais longos, o conviver por mais tempo com as pessoas que habitam as frases. Há um meio termo meu, entre romance e conto, que é o A um passo. É um romance. Mas é feito de cenas, que poderiam passar por contos, já que essa palavra às vezes parece abarcar tanta coisa. É o romance de que mais gosto, de todos que fiz. Mas, nesse gostar, é primordial a temporalidade de romance que ele tem. O fato de que se trata, mais uma vez, de um pensamento sobre a narrativa. Há uma história narrada, a de um roubo violento. E há a saída dessa história, com a apresentação do verdadeiro narrador, que não tinha aparecido até então. Trata-se de Próspero, em uma referência à A tempestade, de Shakespeare. Até ele aparecer em carne e osso sentado no sofá sem nada para fazer, quem conta a história é sempre um personagem que fala de outro personagem. E você nunca sabe se o que ele está falando é mentira ou verdade. E não há propriamente uma continuação entre os capítulos. Quer dizer, a continuação existe, mas é inferida. Adoro.
• Como é o seu processo criativo, a sua rotina como escritora? Como nascem os livros?
Não nascem. Já estão lá desde sempre. Meu trabalho é descobri-los. Daí eu levar tanto tempo para fazer cada um. Eu tenho que saber o que eles são, e eles só me dizem isso muito devagarinho. Quanto ao processo, há várias etapas bem definidas. No começo eu fico olhando o nada por muito tempo. Depois, quando acho que entendi o que o livro quer ser, me isolo para escrever. Em geral estou enganada, não entendi nada. E aí preciso repetir o processo outra vez, eu conversando com o livro até que nós dois, eu e o livro, nos damos por satisfeitos. E em geral eu também me engano aqui também, e fico desesperada porque o livro está já em produção e não era nada daquilo. Por causa disso, não leio meus livros depois de publicados. Para não ficar maluca tentando consertar à mão cada exemplar dele ainda na livraria ou no depósito do editor.