ELVIRA VIGNA – ÀS SEIS EM PONTO (Companhia das Letras, 1998, 128p.)
– prêmio Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance.
arquivos internos de ‘às seis em ponto’:
críticas
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Capítulo 1:
Não estou bem. O perfume me enjoa. Fome também. E os camparis. E a Baixada, cuspindo ônibus, carro velho, kombi, de supetão na frente do carro, soltando fumaça negra, o carro no máximo a sessenta, às vezes menos, porque Haroldo é prudente e freia antes, bem antes, e não ultrapassa quando não dá. Na dúvida ultrapasse. Mas ele não, não sai de trás da fumaça mas se eu fechar a janela piora.
É bem simples. É só contar.
Haroldo, eu estive em Miracema sexta passada.
Eu sei que ele já sabe. O papelzinho.
O papelzinho balança pendurado no guidon, não é guidon, é direção. Coisas que ficam. Guidon, eu repito minha mãe nas suas palavras tão finas, aprendidas tardiamente e por isso mesmo colocadas nas frases como jóias — das que ela comprava uma depois da outra, em prestações. E que depois observava, virando e revirando a jóia e o português, a concordância, a pronúncia nos esses, erros sempre à espreita, imperfeições a serem banidas, inadmissíveis carvões em diamante. Uma vez ela foi operada. Deitada na cama, perguntou à enfermeira que entrava: a senhora agora vai fazer minha toalete? E a mulher ficou olhando para ela, sem entender. Aí entendeu. Ah! raspar os pentelhos? É, é agora. E saiu rindo — toalete! — para pegar a gilete.
Haroldo, sexta-feira passada eu levantei às seis em ponto.
Um bom título para uma história: A mulher que levantava às seis em ponto.
E é também por isso que não estou bem. Cansaço, acordei cedo, seis horas é cedo. Se eu pudesse desgrudar os olhos das casinhas com seus tetos abaixo do nível da estrada, varal, antena, árvore, luzes que se acendem, garotos tardios empinando ainda suas pipas, eu olhava para o relógio — deve estar na hora do uísque — mas não posso fazer nenhum movimento. Qualquer movimento e tudo se precipita, perguntas, olhares e vômito. O papelzinho balança preso no guidon e eu sei, sem olhar, sem me mexer, que seus números estarão repetidos. Também não é necessário que eu olhe Haroldo para saber: as duas mãos na direção, o olhar na estrada, a velocidade constante sempre que dá porque às vezes não dá e na Baixada nunca dá e eu tenho a impressão que tanta constância não mais dará, mesmo depois, o carro estacionado, a sala, nós dois de pé na sala.
Haroldo, foi médio, nós.
Mas esta história não é para ele, esta faz parte de outro repertório, um que é apresentado e reapresentado em salas, outras salas, frescas, com plantas, almofadas, mulheres de saias compridas, chá.
Hoje eu acordei às seis horas.
E não pensei em como seria essa minha ida à Miracema que acabou sendo não minha ida mas nossa ida, minha e de Haroldo, à Miracema. Eu acordei e tornei a fechar os olhos e não pensei em Miracema, pensei em ontem. E pensei: foi médio.
A mulher que achava médio (seria o título).
Acordei às seis e eu sei que acordei às seis porque acordo todos os dias às seis, mas apesar de saber disso confiro, mesmo assim, os numerozinhos verdes – marcianinhos afinal, do jeito mesmo que sempre nos disseram que existiam. Um certo prazer em me dizer: ainda seis. E em não conseguir dormir outra vez, mesmo assim.
Torno a fechar o olho de qualquer maneira porque gosto, quando acordo, de fazer uma espécie de contabilidade do dia anterior: devo começar este novo dia triste? alegre?
E a contabilidade de hoje, minhas amigas de saias compridas, foi a seguinte: foi médio.
Olho para o horizonte de onde poderiam surgir vultos conhecidos, andando como nuvens deslizam. E quando eu digo isso: foi médio, lábios se apertam, olhares me fuzilam e a mais sincera — Lúcia? Vera? — berra histérica que eu sou doida, completamente doida.
Porque, é verdade, depois da primeira que, como sempre, foi muito boa, ainda consegui extrair uma segundinha aos ganidos despudorados antes de desabar sem fôlego – um dia desses eu fico definitivamente velha – em cima do peito dele.
Consenso geral verbalizado pelas nuvens no horizonte: eu não dou valor ao que tenho.
E estivera eu em uma dessas salas frescas, com plantas, almofadas, e uma de nós levantar-se-ia declarando categórica: vou esquentar a água do chá. E, ao passar por mim, esbarraria violenta no suporte do vaso na parede, no vaso e não em mim, porque faltou coragem de me empurrar, me unhar, homem é tão raro e eu fico esnobando.
Contamos tudo de nós, nós, nessas salas. Dizem que nós, mulheres, somos assim, contamos. Dizemos que sim, é verdade, contamos tudo. Mas não é bem assim. Contamos histórias. Não é a mesma coisa. E são histórias específicas, pertencem não bem a nós mas a estas salas, saias, samambaias, chá ou vinho branco. Um homem presente e as histórias não aconteceriam.
Haroldo, eu não vou contar.
Fiz um erro. Mais de um. Mas vou me ater ao erro de hoje, está sendo um erro eu neste carro, Haroldo na direção, o papelzinho na direção, a Baixada ao meu dispor e eu sem conseguir prestar atenção à Baixada, perdendo portanto a oportunidade de prestar atenção à Baixada, gosto tanto de, andando de carro, ficar olhando tudo. Não estou dirigindo, poderia olhar, seria tão bom deixar o olhar na Baixada ao longe, tão longe, a distância ideal: a do carro que passa na sua velocidade hipnotizante e repetitiva mesmo quando não constante, os ritmos diferentes se repetem afinal – igual a estar parado mas longe. E ao longe a Baixada. A vida inteira neste equilíbrio de uma velocidade que não se move, e a Baixada.
Acidentes de trânsito, diz a placa, você também é responsável. Cinto de segurança – seu amigo do peito, Luminosos Vitória, Pneus Michelin, Assembléia de Deus – culto às sete.
Haroldo pode escolher entre Penha, Região Serrana e Brasília mas ele segue reto. Atenção ao cruzar a pista mas ele não cruza. Bob’s, Benfica Pneus, Stoptime Hotel.
Eu sei qual foi meu erro de hoje. Foi o mesmo erro de sempre, o erro lagoa da conceição.
A mulher que era uma lagoa da conceição.
Quando eu acordo, hoje de manhã, abro os olhos, fecho os olhos e torno a abrir os olhos. Entra uma luz pela cortina. A luz vem por trás dos pelos do peito de Haroldo e eu fico parada olhando os pelos que a luz torna dourados e a poeira do ar que a luz também torna dourada. Fico muito quieta pensando que o universo acabou e só resta isso: uma luz, pelos e poeira que, para existirem, precisam de olhos que por sua vez só estão ainda vivos porque há a luz, os pelos e a poeira e que todos – olhos, luz, poeira e pelos – estão com muito medo, imobilizados pelo medo. Porque por um nada que seja, um movimento mesmo que só em pensamento, e tudo termina em um nanossegundo, incluindo os peixes, grandes, brancos e também imóveis, igualmente evitando qualquer movimento, lá no fundo sem luz do mar, os peixes sendo a antimatéria desta matéria matinal. Eu poderia ficar assim para sempre. E saber que eu efetivamente posso ficar assim para sempre me enche de um outro tipo de medo, este bem real. O antídoto é, claro, eu me mexer. Mas se me mexo, detono o oizinho, meu benzinho, cafezinho, sorrisinho. E então, hoje de manhã, achei que eu ainda merecia um tempo.
Me enganei.
O telefone toca.
Eu penso: não é possível.
Não outra vez.
E é neste momento que me dá o primeiro – de uma série que, temo, ainda não acabou – mal-estar do dia. Porque na segunda-feira passada a empregada da minha mãe disse alô com sua voz aguda mais aguda ainda, como é possível alguém ter uma empregada com uma voz tão aguda.
E este alô, como hoje de manhã, veio não eram nem sete ainda.
E ela disse, na segunda-feira passada, que quase teve um troço. Quase tive um troço dona Tequinha. E emendou sobre como ela não teve nenhuma culpa de ter chegado tão tarde na noite anterior, uma desgraça dessa, dona Tequinha, e ela não estava em casa para acudir mas que eu não sabia o que ela passara, imagine eu que a colega dela tinha tido um problema e aí. Mas que eu ainda nem sabia o que tinha acontecido com meu pai e ela me aborrecendo com os problemas dela. Mas que ela chegou muito tarde de fato, embora não tivesse sido culpa dela, e como era tão tarde ela foi direto para o quarto dela e por isso ela nem viu e só naquele dia de manhã então viu.
E estava me telefonando porque dona Clotilde tinha pedido para ela telefonar.
Então, quando o telefone toca, hoje de manhã, eu fico achando que eu vou ouvir a empregada com sua voz aguda num paroxismo recorde de agudez dizer outra vez: uma desgraça, dona Tequinha.
Fica a pergunta que desgraça teria restado. Minha mãe pendurada no teto.
Minha mãe pendurada no lustre pelo pescoço. Que mau-gosto, Maria Tereza. Que coisa de mau-gosto. Imagine se eu iria ficar pendurada no lustre, as pernas penduradas. E depois a troco de quê? Não fiz nada.
Lady Macbeth em montagem pós-moderna, os lustres da casa de Miracema são de formiplac.
Me ocorre que eu teria uma impossibilidade técnica de produção: em formiplac os lustres se quebrariam com o peso do corpo pendurado e, por conseguinte, da lógica contemporânea, a mesma que nunca atrapalhou Shakespeare.
Mas mesmo sem montagem, Lady Macbeth tem razão. Não fizemos nada. Nenhum de nós, nem mesmo ele, o morto.
Haroldo, sexta-feira passada eu estive em Miracema e não fiz nada.
O Hotel Palmeiras, o Hotel Luxemburgo, o Capri Motel e Hotel — suítes, hidromassagem, e o Las Vegas Motel — R$15,00 — o amor ao alcance de todos, entram e saem da minha janela, em fila indiana. Mas hoje de manhã, ao contrário de agora quando nem os olhos, Haroldo ainda se movia.
Hoje de manhã o telefone toca, o universo volta a existir, e Haroldo se mexe na cama ao meu lado. Não são nem sete e ele levanta a cabeça, perplexo, me olhando como se fosse eu a fazer trim.
Ele pula da cama levando o lençol para se enrolar, pudico, mas eu chego a ver uma fatia de bunda branca flutuando em direção à minha estante, os lençóis sendo pardos, branca só a bunda.
Haroldo já foi um cachorro, começo, me dirigindo às nuvens do horizonte, saias laranja – que vão ficando vermelhas – se agitam e eu escuto as vozes de minhas amigas: lá vem a Teca outra vez, cachorro, imagine, um homão daquele.
O homem que começou sendo um cachorro.
Domingos pela manhã eu acordo e faço sempre tudo sempre igual: café, cama, gata e planta. Saio para andar e ando. Canso e sento, um coco.
Em um domingo, eu ando, canso e sento. No meio-fio. Passa o Haroldo, devagar, língua para fora, sem a menor pressa. Pára na minha frente e fica me olhando, as orelhas em pé mas não muito, a cabeça grande mas não muito, de um branco meio sujo, fica lá, só me olhando, simpático, solidário. A dona puxa papo.
Chama-se Haroldo, o cachorro. E está procurando noiva.
Dia seguinte, dez horas, na minha sala, a secretária bate o telefone, o senhor Plocó, que está fazendo um trabalho na empresa, precisa falar comigo um instantinho.
Ele entra, me estende o cartão, H. Plaucowzski Consultoria em Telecomunicações. Fica parado na minha frente, sem pressa. Eu tento ler o nome. Sorri simpático: pode me chamar de Haroldo. E fica lá, me olhando, a cabeça ligeiramente inclinada, os cabelos grisalhos mas não muito. Tenho vontade de perguntar se está procurando noiva mas quem fala primeiro é ele: está procurando um lugar para colocar o cabo dele.
Quase que eu acerto.
Os trins continuam, imperturbáveis, quando Haroldo, hoje de manhã cedo, já de volta da estante e sem bunda aparente, sem nada aparente (ele toma, pelo visto, mais cuidado com o nu frontal do que com o nu dorsal), me estende o telefone para que eu atenda, sempre tão cavalheiro. Meu alô sai forte, defensivo, para o caso de alguém perguntar se é da borracharia da esquina ou se for outra vez — nem sempre ficção é ficção — a voz da empregada da minha mãe, alô, é dona Tequinha? uma desgraça, dona Tequinha, imagina a senhora que.
Me ocorre que, caso seja de fato a empregada da minha mãe outra vez, eu teria a liberdade de ser absolutamente sincera, por uma vez pelo menos: dona Tequinha? sê-lo-ei eu, a dona Tequinha? Eu não tenho a menor idéia de quem é dona Tequinha, minha senhora, deve ser engano. Dona Tequinha será a mulher que está nua na cama pegando o telefone de um homão parado na frente dela? As unhas de uma dona Tequinha deveriam estar pintadas de vermelho, acho. E talvez ela fosse um pouco gorducha.
E tem mais: quando digo que uma dona Tequinha — esta, aquela, a das unhas pintadas de vermelho e um pouco gorducha e nua na cama — pega no telefone e o encosta em sua boca ainda com restinhos do baton da noite anterior, estaremos falando de telefone-telefone? acho que sim, não tenho paciência para metáforas, não antes das sete da manhã mas é o Beto.
Devolvo o telefone para o Haroldo e digo, é o Beto.
Haroldo atende, diz sei, sei, olhando para mim e acho que foi aí, bem aí, que eu comecei a errar. Entrei neste momento — estava distraída, seis da manhã — no meu papel de lagoa de conceição.
Porque Haroldo diz, sei, sei, não tem importância, filho, claro, claro – e olha para mim e foi nessa hora que eu deveria ter tido um olhar de distanciamento brechtiano bem cafajeste, é impressionante como o que foi considerado cultura, ontem mesmo, vira cafajeste num piscar d’olhos. Mas meu olhar foi, ao contrário, solícito, o que foi?
Eu sempre digo que o Beto precisa de uma surra. Camisa social branca de bolso, noiva virgem, meia preta, colégio militar em regime de internato ou emprego em fábrica, seis da manhã o apito uóóóó, todo mundo na fila do refeitório para ganhar o pão com manteiga e polenguinho, o copo de café com leite, fábrica de concepção empresarial moderna, dá café da manhã para quem chega cedo e o filho do Haroldo é músico.
Música new age.
Very cool, man.
Tem 16 anos, brinco na orelha e me olha de igual para igual, bem dentro dos olhos, me chama de A Tereza, fico me sentindo uma corda. Ele não tem nem vestígio de cerimônia. Os sábados são passados com o pai. Com o pai, não. Com o sampler, o processador de sinal, o vocoder, o digital audio tape ao qual ele chama de o meu (meu-dele) velho dat, o seqüenciador, o minidisc Sony, todos computadorizados, que Haroldo comprou, depois da separação, uma isca.
Beto vai puxando as teclinhas de volume devagar para cima, a mão firme, lenta, o rosto concentrado, o olhar fixado em mim impassível, cada milímetro para cima são vários milhares de decibéis a mais. Faz isso toda vez que eu, estando lá, tento alguma conversa. Um refinamento sádico. Se esse garoto chegar à idade adulta vai dar um bom amante.
Hoje o Beto não vai poder, me informa Haroldo.
O Beto está chegando naquela hora na casa da mãe dele. A festa foi ótima. As pessoas adoraram. Ele é o máximo. E agora vai dormir porque mais tarde vai ter outra festa e ele tem de passar o som com a banda dele até no mais tardar o final da tarde.
E então Haroldo diz que se eu quiser, ele pode vir junto.
Não.
De jeito nenhum, não se preocupe, o que é isso, não tem sentido, imagine, você só vai se aborrecer, descansa aí, aproveita para resolver o que mesmo? qualquer coisa, pode deixar, eu vou bem, que besteira, são só duas horas, mas o que é isso, sei o caminho de cor, deixa de ser bobo.
Mas não adiantou, eu já tinha iniciado a derrapagem com meu olhar não brechtiano quando Haroldo falou sei, sei, no telefone com o Beto.
Era melhor ele vir junto porque eu estava nervosa, disse ele e acrescentou: é natural.
E sorriu.
E deu uns tapinhas de leve na minha cabeça e disse boniiiiita e coçou atrás da minha orelha e me estendeu meu biscoitinho favorito de ração: galinha com atum.
Não estou nervosa.
(Noto minha voz um pouco alterada.)
Mas, Tezinha, vou ficar aqui à toa.
A mulher que tinha muitos nomes.
Não quero.
Assunto meu — e soei um pouco mais dura do que precisava mas desta vez funcionou.
Então está bem, Tirica, está tudo bem.
E ele pergunta, ressentido, se eu voltava a tempo do japonês ou se eu queria que ele desmarcasse por mim.
Ele e eu sabemos que ele pergunta isso apenas para que fique bem claro o quanto ele é gentil e disponível e como eu sou agressiva não querendo que ele venha junto comigo à Miracema. Ele sabe perfeitamente que dá tempo para ir e voltar – como está dando aliás, acabamos de passar o pedágio, R$ 2,38, obrigado, e o pau levanta, que prático, por míseros R$ 2,38 – e ainda receber o japonês.
Quando eu marquei com o Mr. Nakayama, é verdade, eu ainda achava que iria a Miracema só no domingo. Disse que não haveria problema de ele deixar a mala na minha portaria e passar antes do vôo para apanhar. Depois minha mãe ligou dizendo que no domingo ia ter a missa de sétimo dia, uma surpresa, já que não fôra a banheira por três dias sequer enterro teria havido, mas cremação, meu pai não sendo uma pessoa religiosa.
Então neste caso, não é mami, com missa não valerá à pena, não vamos ter tempo de conversar. Melhor eu subir no sábado.
E transferi minha ida à Miracema para o sábado mantendo o japonês, daria tempo, o japonês sendo mais um motivo e tudo isso eu expliquei para o Haroldo.
Eu vou mas não demoro — a vontade de não ir.
O japonês embarca à noite para Tóquio, eu vou, eu volto, mais um motivo para a visita ser rápida porque o dia, hoje – eu disse – vai ser pesado.
Você fica, eu disse, vou porque não dá para não ir, já não fui ao enterro.
O momento da ocorrência deve ter sido há uns três dias, declarou o vizinho que é médico, chamado às pressas, calculando por alto e fazendo o favor de assinar, de pijamas, o atestado de óbito.
Não precisou chamar legista, o enterro foi imediato, três dias.
A mulher que fazia uma coisa espantosa.
Um começo de história é dizer que minha mãe fala com estranhos no telefone.
Haroldo, minha mãe fala com estranhos no telefone.
A pessoa liga, é engano, em vez de dizer, é engano, quando é homem e quando a voz é bonita, minha mãe puxa papo.
Ela comentou isso comigo uma vez, faz algum tempo, no meio de uma outra conversa. Comenta en passant e naquele momento, ela contando, a voz afinou na imitação inconsciente da voz que ela faz quando fala com estes estranhos no telefone, alou, uma voz de garotinha, coquete. Ela me diz isso, eu digo, ah é, rio polidamente, e o assunto muda. É engraçado como coisas sem importância ficam às vezes tão importantes. Poucos dias antes de meu pai morrer ela volta ao assunto pela primeira e última vez. Diz que sem querer, dessas coisas que a pessoa faz sem saber por quê, ela tinha deixado escapar no meio de um desses papos com desconhecidos, o nome certo de Miracema e também o nome da rua da casa dela e que ela estava nervosíssima. Mas com minha mãe nunca se sabe, ela — ao falar isso — parecia estar nervosíssima, mas podia ser só que ela estivesse fazendo o papel de nervosíssima. Mas ela disse: estou nervosíssima.
E acrescentou um comentário muito estranho: estava nervosíssima porque tinha medo de que o desconhecido, de posse dessas informações, pudesse localizar a casa e fazer alguma maldade. Mas o quê, mami?
Ela não sabia dizer que maldade e enveredou por uma lista de coisas ruins que acontecem hoje em dia todos os dias, basta ler os jornais, Maria Tereza.
E eu, não naquela hora e não quando meu pai morreu e não mesmo hoje durante todo o almoço, até chegar a hora do café que eu, ela e minha irmã tomamos e que foi, a cada minuto tenho mais certeza disso, um café de despedida, eu não atinei com a estranheza de ela me dizer que temia alguma maldade de um desconhecido. Só no final da tarde, já quase na hora de ir embora, na hora do café, olhando para as paredes, para os objetos empilhados, para o nada, só no café, olhando o nada para não olhar para minha irmã e minha mãe, só então fui me dando conta. O sujeito verdadeiro da frase às vezes é o advérbio. Para uma história que começou do jeito que começou, com um engano, só podia acabar mesmo com outro igual.
Não faz mais do que poucos minutos que eu percebi que Haroldo adivinhara da minha ida anterior à Miracema. Na hora fiquei coberta de suor frio. Agora, lembrando do café no silêncio daquela sala que eu acho que nunca mais verei, o suor volta. Está escuro lá fora, se eu fecho o olho não faz muita diferença. Então fecho. Abro. Promoção, suíte com sauna a R$ 14,00. Meu ombro dói, eu teria que me mexer um pouquinho. Tento, devagar. Acomodo as costas no banco e agora puxo o corpo um pouco para a frente, vai melhorar, meu estômago é um buraco mas vai melhorar, Ponte sobre o rio Sarapuí.
Quando minha mãe me liga a semana inteira, por isso e por aquilo, para que eu desse opinião sobre isso e aquilo e mais sobre a mudança quando eu nunca dou opinião sobre nada, quando ela me liga só para dizer que está tudo bem e para perguntar se está tudo bem, quando ela liga até para dar o relatório de quem ligou e de onde, para dar os pêsames, sempre terminando o telefonema com a pergunta sobre a que horas eu vou no sábado a Miracema, e se está certo de eu ir, eu fico pensando, porque — me digo — conheço bem minha mãe, eu fico pensando que tanta ansiedade para garantir que eu de fato vou a Miracema neste final de semana só pode ser porque ela quer me dizer:
Imagine, que bobagem a minha, aquilo que eu comentei com você, sabe, dos telefonemas, depois me lembrei, nem o nome certo da rua eu na verdade disse, eu me enganei, não sei onde estou com a cabeça, esquece isso.
Mas ela não tocou no assunto.
Haroldo costuma deixar o carro dele na rua, em frente ao meu prédio, nas noites em que ele passa comigo. Hoje de manhã chegamos ao acordo: ele não viria — e eu entro na garagem para tirar meu carro.
Tiro meu carro de ré, Haroldo me esperando lá fora para um último ciaozinho, benzinho, beijinho, mas só escuto a freada. O outro carro vinha rápido, cedo ainda, rua vazia, e não, eu não olhei pelo retrovisor.
A batida é leve mas suficiente.
O motorista, um rapaz de seus 30 anos, sai gingando o corpo, fazendo gestos de indignação, caras de que assim não é possível. Não tenho paciência para teatro de homem.
A mulher que não tinha paciência
Abaixo o meu vidro, nunca ande com o vidro abaixado, e digo que ele tem toda a razão: o senhor tem toda a razão. É um raio paralisante. Interrompe os gestos, me olha sem compreender. Mas como!, e a ceninha já treinada à perfeição da indignação masculina frente à mulher barbeira no volante. Ele escolhe não ter ouvido e continua: assim não dá, minha senhora.
Eu repito, o senhor está coberto de razão.
Mais um olhar de incompreensão e eu começo a achar que o rapaz tem um problema qualquer, de fato, em seu sistema cognitivo. Tento ser bem clara: eu pago.
Pego no porta-luvas um dos meus cartões de visita com o logotipo da firma.
Meu cartão. Agora estou com pressa mas amanhã o senhor me liga, vamos juntos a uma oficina, eu pago.
O rapaz olha o cartão com expressão em branco e eu começo a ficar exasperada. Haroldo está ao lado, a chave do carro dele já na mão. Antes que eu comece a gritar, ele interfere e voz de homem, como sempre acontece, é mais bem compreendida e neste caso também. O rapaz passa a se dirigir a Haroldo e me esquece.
Olha, bem uns trezentos, viu (pausa para ver a reação de Haroldo que é nenhuma). No mínimo. Pintura nova, feita mês passado, sabe como é.
Haroldo sabe como é e diz: está bem, trezentos.
Mas o rapaz fica inseguro diante de tanta facilidade.
Mas eu queria de repente resolver logo, não que eu esteja desconfiando, que é isso, mas a gente resolve logo e não se aborrece.
Haroldo acha que isso também está bem. Pega o talão de cheques do bolso.
Olha, acho que bem uns quatrocentos.
Haroldo enche o cheque sem responder, dá para o rapaz e, se inclinando na minha janela, diz: chega para lá. O rapaz está segurando o cheque com as duas mãos, tentando entender como foi que ganhou quatrocentos reais.
Às vezes eu canso.
Não é para cansar, eu sei. Consegui aprender pelo menos isso na vida: todo mundo perde mas quem cansa perde mais rápido. Mas às vezes eu canso. E então eu chego para lá.
Nestas horas em que, menina boazinha, eu obedeço e pronto, costumo dizer que eu sou a lagoa da conceição. Não conheci uma lagoa da conceição de todas as lagoas que conheci. Mas imagino. Uma lagoa católica, de xale e missal, as águas sempre paradas, o sol bate mas mal esquenta a superfície, nenhum ruído, nem de grilo.
Eu chego para lá.
A mulher que era uma lagoa da conceição.
Eu chego para lá, a bunda engordando a cada segundo, um desenho animado, mal consigo me arrastar, penosa e deselegantemente por cima do câmbio, até o banco do carona onde me deposito com um suspiro. O problema não é só a morte do meu pai, o Haroldo, os meus muitos nomes, mas é também meu sobrenome. Na semana passada meu ex-marido tornou a se casar e não me convidou para o casamento e eu sempre achei que nós éramos diferentes, que eu não era uma ex-esposa mas uma amiga, a melhor amiga, a companheirona, a mulher mais importante da vida dele, a única, aquela que na hora da morte, quando perguntam quem realmente foi importante na vida dele ele fala que sou eu, eu, a que sempre, em qualquer circunstância. E agora isso, seremos duas madames Souza. Soiza. Ela não parece ter senso de humor, acho que ela não vai entender a graça de ser chamada de madame Soiza. Menos mal, eu serei a madame Soiza e ela será a madame Souza. Do contrário, seríamos duas madames Soiza. Eu e uma mocinha de uns 20 anos. E até aí tudo bem, estamos separados há muitos anos, eu e meu ex-marido, mas eu não participei do nascimento desta segunda madame Souza-Soiza, algo na vida dele de que eu não participei.
A mulher que era uma completa imbecil.
E então nesta semana que eu não digo a mais confusa da minha vida porque minha vida é pródiga em semanas confusas, mas uma das mais, com certeza, com tanto para pensar, passei boa parte do meu tempo pensando em como, por que, meu ex-marido foi fazer isso comigo.
Então foi por causa disso tudo que eu cheguei para lá.
E foi por causa disso tudo também que não pensei em nada quando Haroldo parou no posto de gasolina, o de sempre, o que tem a melhor gasolina, e que fica na esquina, para encher o tanque, olhar o óleo e ver os pneus. Ele tomou nota pela primeira vez no dia dos litros de gasolina colocados e a quilometragem correspondente no papelzinho do guidon, que ele me força a ter. E naquela hora, o começo da estratificação do meu erro lagoa-da-conceição, só me ocorre dizer o que ele já sabe:
Depois a gente acerta tudo — eu me referindo ao dinheiro da gasolina e ao dinheiro do rapaz da batida do carro.
E Haroldo sorri, ele não tem nenhuma dúvida de que eu vou acertar tudo, não sou mulher de ficar com o rabo preso por causa de dinheiro de homem, quantas vezes ele me ouviu dizer isso, e ele engrena a terceira com um ar de que agora a viagem começa. E, sim, ele olhou por todos os retrovisores do mundo antes de entrar na pista. E, sim, ele sabe que eu só não passo o cheque imediatamente porque eu enjôo andando de carro e se eu me abaixar, pegar o cheque, encher o cheque, que dia é hoje, eu vou enjoar na certa, embora, agora sabemos todos disso, eu iria acabar enjoando da mesma maneira, se não na ida, na volta.
Então naquela hora, o dia começa, eu olho pela janela igual como faço agora e tento não pensar em mais nada e muito menos no que eu vou fazer em Miracema. Porque eu enjôo às vezes mesmo andando a pé, mesmo parada sem fazer nada, então o melhor é fingir que não sou eu que estou ali, e eu finjo agora que não sou eu que estou aqui, tem uma moça, aqui dentro do carro, olhando para o anoitecer na Baixada.
A moça que passou em um carro
Eu, durante um período da minha vida, ficava pensando que quando meu pai morresse eu enfim iria poder olhar para ele, eu digo, olhar bem, com calma, para cada detalhe e então eu iria saber que cara ele tinha. Pensava que algo, talvez uma curva para baixo de seus lábios finos e duros, uma nesga esquecida aberta do seu olho azul frio, o formato, quem sabe, de suas bochechas não mais sangüíneas mas cerúleas, algo iria preencher os hiatos que existiam na minha história. Ele morto eu iria olhar até me fartar sem ter medo de ter de volta o olhar dele.
Isso foi por um período.
Depois eu mesmo comecei a compor, de longe, sem olhar, porque por muitos anos, mesmo quando eu ia a Miracema, eu via meu pai só de longe, ele na porta de seu quartinho dos fundos, me acenando, já meio entrando, como que apressado. Então, depois, eu fui compondo eu mesmo uma cara e ficava pensando que, quando ele morresse, eu iria conferir. Saber, por um pescoço enrugado, por uma mão manchada cruzada em cima do peito, se o que eu tinha composto estava certo. Mas não deu, eu sou impaciente. Fui antes. Fui fazer a averigüação antes mesmo de ele morrer, ele estava demorando para morrer.
Não foi só impaciência. Foi falta do que fazer também, que quando minha vida pára eu tento fazer com que ande.