ELVIRA VIGNA: COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS (Companhia das Letras, 2016, 212p.) uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro
- prêmio APCA de Melhor Romance – 2016;
‘Prosa inquietante de Elvira Vigna chega a um novo patamar’, em ilustrada da Folha de São Paulo, 28/01/2017, por Camila Von Holdefer.
Um homem, João, relata seus encontros com garotas de programa diante de uma jovem sem nome, narradora do livro.
Se em “Por Escrito”, de 2014, a escritora Elvira Vigna já havia subido o tom, em “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas”, lançado em 2016, a autora alcança um novo patamar. O humor peculiar continua ali, mas convive com uma espécie de ferocidade nova.
De modo que Vigna passa a ocupar, quando se considera uma série de fatores, um nicho próprio. “Inquietante” é um epíteto fácil para uma obra que vem se destacando desde “Deixei Ele Lá e Vim”, de 2006. E o que inquieta é justamente o caráter único da prosa de Vigna.
Não que a ferocidade não estivesse lá antes. O que muda é a intensidade e o caráter dessa ferocidade. A impressão que se tem é que Vigna finalmente mostra os dentes, em um gesto que é simultaneamente um esgar agressivo e uma gargalhada. O artifício serve para zombar da fragilidade da masculinidade, dos inúteis jogos de poder, da procura exaustiva por algo que pode estar ali ao lado.
Enquanto enumera suas aventuras em um escritório mal-iluminado, João vê a si mesmo como um transgressor. A narradora sabe que não é bem assim. A matéria-prima do romance é, portanto, um clichê. O personagem de João é um estereótipo.
As garotas de programa são meros instrumentos que possibilitam a João uma fuga contínua. João não as vê como pessoas, mas como telas em branco em que ele projeta o que deseja. Uma sucede a outra, compondo uma espécie de palimpsesto.
A intenção da autora era justamente ressaltar o que há de ordinário em João. Partindo do lugar-comum, ou seja, a mediocridade do personagem, o enredo se desdobra a fim de encadear eventos antes insuspeitos.
Como os demais narradores da obra de Vigna, a de “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” também se encontra em uma espécie de encruzilhada.
Seria possível dizer que os personagens criados pela autora são todos desiludidos, não fosse essa uma descrição inexata. Sempre há um resquício de deslumbramento que pode, quando considerado em oposição à agressividade e à melancolia, passar por idiossincrasia.
“Como se Estivéssemos…” é marcada por uma série de conceitos opostos, entre eles os de mudança e estagnação. Entre Heráclito e Parmênides, Vigna fica com ambos.
Mesmo o estilo do livro é dúbio. Pela forma – cortes abruptos, períodos curtos -, é um milagre que a escrita escape de ser rígida. Pode parecer estranho, mas a descrição de uma boate frequentada por João serve bem para definir a própria narrativa: “Ah, sim, tudo se move, tudo nunca está parado, e se moveriam devagar, sinuosos, tudo e todos, mesmo se não houvesse, como há, o ritmo”.
COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS
AUTORA Elvira Vigna
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (216 págs.)
AVALIAÇAO: ótimo. *****
Entre a palavra e a imagem, em Magazine de O Tempo – 31/12/16, Belo Horizonte, Priscila Brito
Considerada um dos maiores nomes da literatura nacional em atividade e agraciada neste ano com o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor romance por “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” (Companhia das Letras, 214 págs.), Elvira Vigna, 70, relativiza e faz provocações sobre esses títulos. Em entrevista ao Magazine, a escritora também fala de seus projetos atuais, a editora Uva Limão, especializada em publicações acadêmicas, e o livro “Kafkianas”. Ainda sem editor, a obra traz contos de Franz Kafka revistos por Vigna com o suporte de desenhos da própria escritora, evidenciando o uso dos dois instrumentos que ela afirma serem seus meios de realização: palavra e imagem.
“Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” foi seu lançamento neste ano. Você está satisfeita com a recepção do romance?
Estou, sim. Tive medo de o livro ter uma acolhida superficial, grosseira, por conta do palavrão do título, mas não foi isso que aconteceu. Recebi resenhas excelentes (no sentido de serem análises acuradas, aprofundadas – e não só no sentido de serem positivas).
O livro ganhou o prêmio de melhor romance pela APCA. Que significado prêmios desse tipo têm para você?
A APCA tem boa fama. Afinal, a instituição é formada por críticos profissionais, em geral com background acadêmico irrepreensível. Mas prêmios nem sempre falam da qualidade do livro premiado. Considero natural: os jurados são pessoas, têm gostos pessoais, agendas regionais etc. Então, respondendo a tua pergunta: para mim, pessoalmente, prêmios não querem dizer muito. Para os livros, os prêmios são importantes. A grande imprensa não dá um espaço para literatura, e prêmios chamam a atenção para esforços que, do contrário, poderiam passar despercebidos.
O que motivou a criação da Uva Limão? Qual o principal objetivo da editora?
Foi uma iniciativa da minha filha, Carolina Vigna, sou apenas sócia. Meu filho também tem uma editora, a Estado da Arte, onde eu também sou sócia.
A editora tem até o momento três publicações. Há outros projetos em curso?
Há, sim. Mas ela pretende ir sempre bem devagar para manter a qualidade altíssima que oferece nas edições. Serão basicamente e-books na linha acadêmica, com revisão de texto (incluindo ABNT), traduções/versões de pequenos trechos, abstracts e citações, diagramação por designer e orientação sobre imagens. A Estado da Arte cuida principalmente de traduções de obras inteiras (ficcionais, inclusive).
Você cuida das redes sociais da Uva Limão – e as postagens têm muito bom humor, diga-se de passagem. Você gosta de redes sociais ou faz uso apenas profissional desses canais?
Não. Eu gosto muitíssimo da liberdade da internet. E (acho, não tenho certeza) o uso de rede social pode até trazer benefícios profissionais, mas disponho dessa comunicação principalmente por me trazer benefícios pessoais: é uma maneira de conhecer pessoas interessantes e divertidas.
Na minibiografia que consta em seu site, você menciona primeiramente seu trabalho como jornalista. Em seguida, fala de sua atuação como editora, do seu currículo acadêmico, dos trabalhos de artes visuais e do curso de cinema. Enfim, no último parágrafo, fala de seu trabalho de escritora, que é o que te tornou conhecida. Qual o peso que o trabalho de escritora tem nesse conjunto diversificado de atividades, tendo em vista tudo o mais que você realiza?
Na verdade, se você for ver, trata-se de vários usos de um mesmo instrumento, aliás, dois: a imagem e a palavra. Os dois, hoje, na minha vida, têm peso igual. Com isso quero dizer que me realizo – ou melhor, posso me realizar – da mesma maneira desenhando ou escrevendo livros.
Você fez um curso de roteiro e chegou a roteirizar livros seus. Foi apenas uma forma de exercitar o que foi aprendido ou você deseja um dia ver esses roteiros de fato virarem filme ou irem para a TV?
Tudo começou como um exercício de escrita. A linguagem do roteiro me parecia ter qualidades que eu gostaria de incorporar. E, de fato, passei (acho eu) a escrever com um peso ainda maior no visual do que já fazia antes, e acho isso bom. Quanto a livros meus virarem filmes, acho que eu não gostaria de fazer esses roteiros, da mesma forma que não gostava de ilustrar meus textos infantojuvenis do início da minha vida profissional. Acho bem-vinda a visão de outra pessoa. Enriquece.
Você tem algum projeto de artes visuais em curso?
Tenho um livro para jovens adultos chamado “Kafkianas”, em que, como acontece no meu “Vitória Valentina”, parte da narrativa se dá por meio de imagens. São contos do Kafka recontados por mim. Na minha visão, Kafka, antes de tudo, não obedeceu a fronteiras: mortos e vivos se falam, bichos e pessoas não são tão diferentes assim, muros não devem ser respeitados etc. Esse meu pensamento está expresso principalmente nos desenhos que abrem cada “reconto”. Esse livro, no momento, ainda está sem editor. Além dele, tenho também prontos projetos para textos do Tino Freitas e da Roseana Murray. O da Rose deve sair por uma editora mineira, a Lê, da Lourdinha (Mendes). O do Tino ainda está sem editor.
No documentário “Chico – Artista Brasileiro”, Chico Buarque fala sobre certo status de superstar dos escritores hoje em dia. Ele diz que antigamente o escritor era uma figura reclusa, mas hoje é colocado à frente dos holofotes, e escrever um livro implica estar presente em feiras literárias, falar com o público, fazer noites de autógrafos. Qual sua percepção sobre isso?
Faz parte de um processo que não acho positivo, que é o da espetacularização de tudo e todos. Mas, no caso de escritores, não esquento muito, não. Acho que, em princípio, ao escrever ou desenhar, o que eu queria desde o começo era me comunicar. De modo que se trata apenas de mais um jeito de me comunicar: num microfone!
É bastante comum você ser adjetivada como uma das grandes escritoras brasileiras da atualidade. Como você encara isso?
Acho engraçado. A língua portuguesa nos prega uma peça: uma das grandes e eu fico sem saber se o feminino me coloca na concorrência com outras grandes escritoras que, sim, temos. Ou se, por um milagre, o machismo e o sexismo não estão atuantes e seria eu um dos grandes escritores – independente de gênero – de hoje. Prefiro a segunda opção!
A Clara Averbuck já declarou que você foi uma das responsáveis por ela ter-se tornado escritora. Quem foram os responsáveis por você ter-se tornado escritora?
Ah, todos os adolescentes meus colegas de escola que não me consideravam bonita ou popular o suficiente para frequentar as rodinhas mais cool de Copacabana. Obrigada, queridos!!!
Prostituição, sexo e ego masculino – HomoLiteratus, 07/12/2016 – Estela Santos
Ao começar a ler Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016), de Elvira Vigna, a primeira coisa que salta aos olhos é a linguagem, que rompe com o tradicionalismo literário, e depois as temáticas nele apresentadas, as quais saem do que é corriqueiro e frequente na literatura brasileira.
A narradora apresenta um vocabulário simples, direto, com frases curtas e poucos adjetivos, marcado pela oralidade. Os fatos apresentados não estão dispostos de modo linear no romance, o qual é composto em blocos, por meio de fragmentos, pensamentos e memórias, reflexões e até suposições sobre aquilo que poderia ter sido, mas que não há como saber: um constante jogo de linguagem que exige um leitor atento.
De início, o romance traz o personagem João em diálogo com a narradora. Um homem maduro e casado que narra suas constantes saídas com prostitutas para sua colega de trabalho, que ele parece julgar ser lésbica pelo seu modo de vestir e sua cara fechada, e que parece que pensar que ela é uma boa pessoa para conversar sobre o assunto, uma vez que ela mora com uma prostituta; talvez conseguiria entendê-lo. João apresenta-se como um homem um tanto caricato, bastante egocêntrico, um tanto babaca e também machista. No entanto, julga-se transgressor e acredita que as prostitutas com as quais se relacionou também são transgressoras em suas vidas.
João tem duas vidas. Uma que ele julga transgressora, na qual vive encontrando-se com prostitutas em viagens de trabalho e até levando-as para hotéis onde ele se instalava; estas mulheres, julgadas como transgressoras, são apresentadas por ele como meras ferramentas e peças em sua vida, para sua habitual tentativa de se sentir bem e vivo. A outra vida, que ele parece julgar necessária e inatingível, é ao lado de Lola, sua esposa; uma vida bem montada e estável, onde a sua mulher parece ser mero ornamento, ou também uma simples ferramenta para o seu bem-estar.
De fato, no início do romance, ele é o típico homem que tem como lema: liberdade, aventuras sexuais e constantes risadas. Uma caricatura de homem machista. No entanto, conforme fatos são apresentados pela narradora, João passar a ser um homem de mais carne e osso, se assim é possível dizer. Não deixa de ser um homem machista, mas é apresentado como um ser humano com medos, emoções, extremamente frágil (como todo ser humano) e repleto de contradições, não somente em suas práticas, mas também em seus pensamentos, isto é, por meio de fatos que a narradora apresenta e que surpreende o leitor: o típico babaca ganha dimensões humanas.
Elvira Vigna, em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, apresenta ainda um texto totalmente contrário a visões estereotipadas no que diz respeito à prostituição e ao sexo. Suas visões sobre ambos assuntos estão longe de preconceitos, idealizações e exageros literários que beiram achismos e visões deturpadas.
Em relação ao sexo, o romance de Vigna não o trata como boa parte do mercado editorial. Pelo contrário, o sexo é descrito como parte da necessidade humana, que não, necessariamente, é belo. Pode ser, e muitas vezes o é, sujo e feito às pressas, de qualquer maneira para suprir necessidades subjetivas. Uma visão crua e bastante realista do que é o sexo na maioria das vezes, sem sentimentalismo barato, sem grandes questionamentos existenciais e sem visões politicamente corretas.
Também não há visões politicamente corretas em relação à representação da prostituta no romance. As prostitutas com as quais o personagem João se envolvia, pagando ou não pelo sexo, não são representadas como deusas da sexualidade e também não são representadas de modo de modo preconceituoso, como reles mulheres que ganham a vida com sexo, seres sem carga e dimensão humana, apenas objetos de desejo. E isto que é bastante interessante no livro. São apresentadas como seres humanos, iguais a todos nós, com suas vidas sociais e seus problemas, sua família e seus sonhos. São mulheres que são prostitutas e batalham todos os dias para sobreviver neste imenso caos que é a vida. A impressão que temos, ao ler o romance é que João, de fato, fala das prostitutas de modo bastante caricatural, mas a narradora expande isso, apresenta-nos fatos e detalhes que marcam pontualmente a condição de ser humano, que merece respeito, das mulheres que se prostituem.
Outra questão muito marcada no romance e que deve, inclusive, chamar muito a atenção de suas leitoras mulheres é a figura do homem enquanto conquistador, se assim podemos dizer. A narradora quebra a visão do macho-foda-comedor-conquistador-irresistível. Apresenta a disputa de egos que os homens vivenciam, o jogo no qual disputam quem é mais homem. Homens que, em suas viagens e em seu trabalho, buscam ser superiores aos amigos e colegas de trabalho em relação ao quesito sexo, em relação às mulheres. Um eterno jogo de egos para ver quem é mais homem de acordo com quem se relaciona com mais mulheres, um jogo quantitativo bizarro. Mulheres estas, envolvidas em suas aventuras sexuais, que em grande parte são universitárias e mães tentando tirar uma grana para conseguirem estudar e dar de comer aos seus filhos, enfim: ter uma vida relativamente digna.
Monte de leituras e A Tribuna de Santos, por Alfredo Monte, 22/11/ 2016
(Ele espantado com ele mesmo, demorando para terminar aquele café da manhã, mais uma xícara, e mais uma.
Porque ele nota que não foi o xixi, o problema. Foi a ideia de que a garota estava achando o que ela falava importante).
Elvira Vigna deixa seus leitores, inclusive os críticos, como baratas tontas. Eu, por exemplo, já considerava “Por Escrito” o auge da sua produção, e eis que ela publica COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PLAIMPSESTO DE PUTAS¸ um livro ainda mais extraordinário e cruel, com suas recorrentes personagens de origem humilde que reinventam, mesmo carregando os traços do passado.
O incrível do romance é que ela parte de um fio mínimo de enredo: a narradora e João trocam intimidades no escritório prestes a ser fechado. João não consegue dominar a compulsão de procurar garotas de programa.
A partir daí nós vamos desvendando o passado e o futuro por várias décadas, tudo misturado labiríntico. A chave desse jogo exasperante, é que não apenas o vivido surge, como também o possível não-realizado; ou seja, as ausências são importantes quanto a existência “real”. Temos uma narradora que faz suposições, e lança hipóteses admitido que não tem controle das vidas de João e Lola. Por isso, as cenas são retomadas, e algum detalhe não percebido, muda toda a sua interpretação dos fatos, o que permiti que, nas suas últimas páginas, Elvira Vigna atinja o cume da prosa de ficção da literatura deste século.
Esperando uma nova obra perturbadora, eu me pergunto: Como não se descobriu que Elvira Vigna é a nossa maior escritora da atualidade?
“Lola fica lá, pensando, sozinha. E ela está um pouco triste porque risadas, principalmente as internas, quando acabam, é assim mesmo. Fica, na ausência delas, a tristeza que estava lá desde sempre”.
Ácida e sulfúrica, na revista Cult, por Ronaldo Bressane, setembro/2016
Em seu novo romance, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, a escritora carioca Elvira Vigna exercita sua verve demoníaca ao esquadrinhar a vida de um dependente de garotas de programa
Elvira Vigna é daquele tipo de escritora que, como Lydia Davis ou André Sant’Anna, tem um estilo tão marcante que faz com que o leitor passe a ver o mundo com a sintaxe e a perspectiva do livro que acabou de ler. Ao terminar Como se estivésemos em palimpsesto e putas (Companhia das Letras), os olhos do leitor estarão chorando com o colírio venenoso despejado a conta-gotas pela escritora carioca de 69 anos pródiga em frases e parágrafos curtos, afiados como estiletes.
Conforme demonstrou em livros anteriores como O que deu para fazer em matéria de história de amor, Por escrito ou Nada a dizer, Vigna se debruça sobre relações entre homens e mulheres sem um pingo de sentimentalismo. Seu método, na linguagem, procura enfocar a migalha do relacionamento em vez de se preocupar com o sabor ou o mofo do pão de cada dia amoroso. O troco, o miúdo e o mesquinho ganham sua forma com uma pontuação em pizzicato: pontos e vírgulas que esmiúçam períodos reunindo a narrativa em síncopes e soquinhos, trancos e barrancos.
Não é agradável.
Mas Elvira Vigna não quer ser agradável.
Ela quer é enfiar um cisco no seu olho.
Talvez sua linguagem nunca tenha se aproximado tanto de seu tema quanto nesse Palimpsesto. “Aquilo que se raspa para escrever de novo”, o palimpsesto designa um tipo de papiro ou pergaminho usado na Idade Média que permitia ser reutilizado após lavado ou raspado com pedra-pomes. Muitos textos clássicos foram perdidos por causa desse método; mas tecnologias avançadas conseguem hoje recuperar os que estavam escritos sob aqueles que lhe tomaramo o lugar.
Do mesmo modo, a linguagem de Vigna vai raspando o que estava escrito antes para melhor recombinar a narrativa. E a narrativa é sempre a mesma: os encontros de João com prostitutas – um exercício quase mecânico que vai aos poucos perdendo o sentido, uma vez que João nunca se sacia nem satisfaz o interesse da narradora do livro. Tudo começa quando dois estranhos por acaso se encontram num escritório atulhado de livros, no arrasador verão carioca: ela é uma designer em busca de trabalho, ele foi contratado para informatizar uma editora em estado falimentar. Nessa espécie de limbo, todo dia ele rememora a ela seus encontros com garotas de programa quando era jovem.
“João entra em um dos cubículos, afastando uma aba do plástico azul que, essa, não está presa em nada, descendo solta da estrutura de alumínio. É uma abertura à guisa de porta. Os cubículos não têm propriamente porta. Não têm teto e também não têm paredes. O que seriam as divisões entre eles é o mesmo plástico azul meio solto, meio preso, que pousa no chão, mas não muito. Então não é o caso de se encostar em nada porque a pessoa pode acabar encostando, sem querer, em alguém que está fazendo a mesma coisa no cubículo ao lado.
A garota diz para João deixar os sapatos do lado de fora.
João acha, num primeiro momento, que sapatos do lado de fora são uma preocupação com higiene. Depois percebe que é uma maneira, talvez a única, além da auditiva, a indicar que o cubículo em questão está ocupado.
Depois, um colchão no chão.”
É desse jeito mequetrefe que João começa a praticar sua arte: transas furtivas com moças desgraciosas, pagas com cachês irrisórios em troca de ejaculações precoces em cafofos de edifícios decadentes (a de cima é uma das “saunas pobres” que existem depois que as repartições públicas de Brasília fecham às seis da tarde, uma sacada hilária). A obsessão sexual de João é totalmente desglamourizada por Vigna, em sua linguagem seca, direta, objetiva e sublinhada por um humor oblíquo ao mesmo tempo cruel e compassivo: as muitas repetições são dissipadas pelas contínuas piscadas de olho ao leitor. Os intercursos que se sucedem quase idênticos seriam deprimentes não fosse o humor de Vigna.
Em um livro antissentimental, cada personagem tem sua psicologia esquadrinhada por uma lupa feito um rato em um laboratório-labirinto. Tal como na guerra conjugal de Dalton Trevisan, tudo é típico no mundo de Elvira Vigna – mas até mesmo os tipos têm suas idiossincrasias. Representante comercial da Xerox (daí nascerá seu impulso ao sexo copiado em série?), o carioca João viaja pelo Brasil enquanto sua esposinha Lola, uma ex-praticante de nado sincronizado, trabalha como corretora imobiliária e fica bonitinha esperando o maridinho voltar. O maridinho aproveita as viagens para ocupar as noites vazias com garotas de programa. As visitas são para João um tempero ficcional, uma forma de se transformar em outro homem, de escapar para um mundo de fantasia – ainda que seja o mesmo insosso mundo toda noite. A própria repetição desse gesto fascina a narradora e, por consequência, o leitor.
A narradora é um caso à parte. Ela vai sendo introduzida aos poucos no romance à medida que nos perguntamos quem seria, afinal, a pessoa que arranca e comenta as proezas tesas de João. A Sheherazade talvez seja a própria Vigna, então uma designer que compartilha um escritório em Botafogo com João – agora um alto executivo de uma grande editora -, onde bebem uísque em copinhos de plástico enquanto ele desfia suas presepadas. Na época, ela divide um apartamento com Mariana, uma prostituta que tem um filho, Gael, por quem às vezes demonstra “uma saudade absurda”, raro resquício de ternura. Por sua inexpressividade, Mariana simpoliza o tipo de garota de programa qu João procurava:
“‘Uma garota novinha, tesudinha.’
E descrevia mais ou menos uma mariana.
Por muito tempo achei que ser novinha era uma fixação mais para a pedofilia da parte dele. Independente se era ou não, acho que também queria dizer que as garotas não tinham marcas. Eram novinhas no sentido de que não tinham marcas, gestos, expressões, coisas que as individualizassem. De algumas ele lembrava alguma coisa, um nariz um pouco maior, um jeito mais sacana de rir inflando as narinas ou franzindo o nariz. Ou era ele que punha, nelas, características, lembranças e ilações que nelas não havia. Da maior parte das garotas, nada ou quase nada ficou para ele.”
Vigna é uma narradora não confiável, posto que o tempo todo deixa claro que preenche as lacunas das histórias de João com suas ilações e juízos. Ouvir João é um modo de ouvir, pelo avesso, Mariana e, por que não, Lola. É um modo de reindividualizar mulheres que não têm peso nem serventia para o mundo, de reinvidicar personalidades a essas bonecas inanimadas. A estrutura do romance, por sua vez, construído em fugas, do tempo presente ao passado e daí ao pretérito imperfeito de cada personagem, em si é uma metáfora da impossibilidade de João se estabelecer como um porto seguro. João é o que foge, de uma mulher para outra, sempre voltando para Lola. Daí então o ponto de fuga de todo romance residir na ambígua psicologia da mulher de João.
“Porque quero contar, eu, o que é de outra autoria. E não estou falando de João.
Porque é isso o que faço agora: estabeleço uma autoria. Não a minha. Nem a de João. De Lola, a grande ausente, a de quem não falávamos. A que estava fora de tudo.
É sobre ela, isso.”
Assim, outra camada narrativa desse Palimpsesto refere-se não só às escapadas de João, ou às tentativas de Vigna representar essas escapadas, mas ao universo de Lola, de quem João escapa, porém nunca escapa. Um retrato de Lola, a enganada, seria o grande objeto do romance. No entanto, ela também escapa o tempo todo – até sua impressionante virada de jogo no final, depois que se separa de João, ao pegá-lo no pulo.
Como o romance, de certa forma, nasceu dentro de uma editora – entre as estantes de livros do escritório em que ambos jogam conversa fora -, Vigna faz questão de mostrar-lhe suas estruturas, alicerces e convenções. E o que sustenta a trama são os jogos de poder do pequeno mundo de João. Como espertamente o sociólogo Robert Michels escreveu, “qualquer coisa no mundo trata de sexo, menos o sexo em si: o sexo trata de poder”. João justifica para a narradora que procura garotas de programa “para ter uma transgressão na vida”, mas também para alimentar uma velha fantasia de infância: “o garoto pobre em frente à loja de doces”.
Da cronologia ziguezagueante, estruturada em idas e vindas ao passado – mas sempre narrada no presente -, o livro se complica com a entrada em cena de outros personagens. Há o arquiteto, um empreendedor com quem a narradora planeja comprar apartamentos velhos, reformá-los e então vendê-los a um alto preço. Um desses apartamentos é comprado pela narradora, que por coincidência passa a ser vizinha de João. Há também Lurien, uma travesti vizinha da narradora e de João. A princípio antagonistas, João e Lurien acabam de tornando amigos. E há, sobretudo, Cuíca, colega de firma de João com quem ele costuma ir a puteiros famosos, tais como o nostálgico castelinho da Kilt na Praça Roosevelt, em São Paulo. Em outra sequência engraçadíssima, Cuíca convida João e coleguinhas para um gangbang com uma garota em um hotel – mas João “amarela”.
“Garota de programa é uma coisa, assim, de meninos”, João analisa. “Meninos, apenas, que não sabem o que fazer, o dinheirinho na mão, na frente da vitrine de doces da padaria. Só isso.” Para confrontar sua tese de que só vai trás de garotas de programa como um exercício imaginário de poder, a narradora diz a João: “Pra mim, vender a buceta ou o bíceps é exatamente a mesma coisa”. João se esquece de que, em uma transação comercial, o poder nem sempre está com quem compra – talvez, sobretudo, com quem vende. “João e seus colegas buscam um gozo sob controle. Pagam, controlam. Buscam também, e é engraçado pensar isso assim junto com a necessidade de controle, estar livre de regras e controles. E buscam, além disso, a sensação de que são superiores aos outros, embora estejam fazendo exatamente a mesma coisa, todos.”
A comédia de erros desse Palimpsesto soluciona-se quando as camadas narrativas de João, Lola, Lurien, Cuíca, o Arquiteto e da narradora – deliciada com o caótico caminhar dos fatos – se sobrepõem e se interpenetram, dando origem a surpeeendentes ocorrências. Uma verdadeira suruba da qual o leitor participa como um animado voyeur. Não vou aqui estragar a experiência do leitor com o desfecho inquietante – um final que nem mesmo a narradora tem certeza se aconteceu de verdade. Uma vingança, uma derrota, uma amargura? Esse divertido romance de Elvira Vigna sublinha o que já desconfiávamos: nada é muito real no que acontece com um homem e uma mulher entre quatro paredes.
Inverso e reverso, Pedro Fernandes, 01/09/2016
O termo que salta aos olhos do leitor nesse título de Elvira Vigna é, não o que parece ao olhar comum, o que encerra a expressâo, e sim palimpsesto. Isso porque é essa a manera como a narradora compõe a narrativa: uma variação sobre um mesmo tom, ora derivado de um acontetcimento, ora uma repetição, ora ainda um acontecimento sobre outro, como se num processo de contínua recriação. Essa maneira que é, por fim, a composição da própria estrutura desse romance se não é um todo inédita no tratamento do fato ficcional é uma maneira muito original no âmbito da literatura brasileira contemporânea. Vejam: não se trata de uma narrativa estratificada pela diversidade de pontos de vista ou pela exploração de uma mesma situação por ângulos diferentes – para citar duas possibilidades estruturais há muito repetidas por escritores; trata-se de um conjunto de situações marcadas pelo mesmo tempo que tanto se repetem quanto se sobrepõem uma à outra; um texto construindo-se ora por subtexto ora por hipotexto. É um puzzle que, cada vez que o leitor avança, melhor constrói uma possibilidade sobre o narrado.
Nesse sentido, Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, pela própria estrutura, rompe com a ideia de narrativa enquanto externalização de um acontecimento. Claro, esse exercício de subversão do contar remete para a literatura de Marcel Proust – porque intimista e, logo, centrada numa interioridade psíquica do eu-que-narra – mas aqui na maneira de contar dessa narradora de Elvira Vigna é a própria certeza sobre o que se diz o que é colocado em xeque: também não é a substituição do realizado pela sua possibilidade essa inovação a que nos referimos, é a maneira como a escritora constrói esse possível, assim como a sugestão oferecida pelo termo palimpsesto, impressa desde o título da obra. A escritora constrói uma narradora que – ao contrário daqueles narradores clássicos cuja força do narrado é medida pela veracidade do relato – gaba-se de contar o que não viveu, viu, mal ouviu. E prefere externalizar, como se uma fantasista, não algo sobre si, mas sobre um casal, Lola e João.
Até parece – imagina o leitor ingênuo – que estará numa história de amor das comuns, o que, evidentemente, não se concretizará (e agora nossa atenção recai sobre o útimo termo do título) devido ao tratamento de dissociação que logo se poderá fazer entre o comum das histórias de amor, sempre pensadas entre figuras amparadas pelo ideal estabelecido social e culturalmente de uma ordem fundada sobretudo nos princípios machistas. E é esse modelo, altivo embora corrompido desde o levante da burguesia, o criticado implacavelmente por Elvira Vigna neste romance. Lola e João, as figuras principais da imaginação dessa narradora (fornecidas ambas pelo ponto de vista de João, em quem ninguém deve se fiar), formam o casal bem apresentado socialmente. Enquanto ele, muito ciente da posição farsesca que construiu para si e para os outros, mantém a vida como se uma longa avenida marcada pelo uso de todas as mulheres que se lhe atravessam. Talvez porque ele nunca se desvencilhe do padrão macho-caçador e esteja, pela vida profissional que criou, favorecido pelo sexo fácil, produto de outra relação corruptora, a do capital.
O ir e vir da narradora, que por vezes age como se conversasse com João (seja porque é o ponto de vista e as situações dele filtradas por ela), lhe permite desconfiar e duvidar da gabolice dele. E aos poucos revela, não uma face dessa personagem work in progress – visto não nos ser oferecido, mesmo que a narradora tenha em parte esse interesse, um retrato realista seu; mas, quando muito, um amontoado de visões que dão à personagem um caráter de figura deformada, cubista: acentuada em algumas características e esmaecida em outras. Também, apesar de ter para si todas as possibilidades de construção de uma figura caricata, risível, rebaixada da sua condição, essa narradora prefere, ao investigar sobre a maneira de seu comportamento maníaco por mulheres, dizer que o homem, dessa maneira, é já criatura risível e caricata. Não é tarefa da visão literária distorcê-la a esse limite. Muito embora essa escolha da narradora possa demonstrar, primeiro por uma atração sexual (não há como esquecer nos traços de fantasia que ela constrói com esse garanhão um qualquer de não interesse em usurpar esse lugar do homem); mas, olhando mais atentamente para essa tela cubista, o que prevalece é a constatação de que não se pode ridicularizar o que já-é ridículo. Anotemos aqui o que a certa altura se apresenta como um vazio enfrentado por João, o de ir e vir sedento com outros pela noite e já incapaz de se o garanhão de quando jovem.
Nesse território do possível em que se pode cogitar mesmo uma projeção imaginária de quem narra, um fascínio pela descoberta de João no interesse atento dela – sempre julgado porque a convicção dele é de que esteja diante de uma lésbica e, por isso, tem a liberdade que tem de expor sua vida sexual – arma-se outra reflexão, esta talvez a mais cara para a mulher. É a figura entrevista de Lola, quem só se mostra por entre os relatos de João, como um pálido sujeito não visto por ele. Ora ciente e conivente com tudo, ora iludida por acreditar que a manutenção de um status quo social é motivo para não desconfiar de uma possível vida pregressa levada por João. Até que compreendida esta, decide-se pela separação, numa clara alusão ao extenso movimento de resistência das mulheres pela dignidade e não só isso, desccobre-se possível a vender o corpo igualmente por valor muito alto só pela prazer de ver o homem que sempre lhe humilhou às favas.
Ainda nesse tema sobre a condição da mulher é necessário não esquecer da extensa galeria de mulheres anônimas que transitam pelos quartos de hotéis, bordéis, casas de prostiuição, campo ideal para servir a tipos como João e os amigos. Ou ainda, por outro lado, a não menos extensa galeria de mulheres resignadas à condição de apresentáveis à sociedade. Aos olhos dessa narradora, a história do homem é movida pela força do sexo e este é o grande produto na história do capital e da exploração das mulheres pelos homens; e isso, embora designado pela via do imperativo, conforme dissemos, social e cultural. É a revelação de um universo machita que se desdobra pelas confissões naturais de uma figura que tem no sexo oposto a necessidade de edificar sua própria convicção de macho. Claro, fora ao fato de que se refere ao tema, esse romance zela pela compreensão de que não é por essa situação binária tampouco o que faz as mulheres eternamente presas à redoma imposta pelos homens. Elvira Vigna é ciente dos movimentos de ir e vir e sobre os prrocessos de variação das identidades individuais bem como de que a história das subjetividades é contínua movência.
E não é isso até agora exposto o único tema de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas; há toda uma série de outras presenças designadamente históricas e sociais há muito recorrentes quando o assunto é o das relações afetivas e, acrescente-se, o da identidade brasileira. Sobre este útimo ponto, Elvira Vigna não se descuida de lembrar que é papel da literatura fornecer subsídios para pensar sobre o que nos é caro coletivamente: profanação das relações em nome do capital, a violência, o preconceito, a corrrupção estão, entre outras, no interior das relações mais simples – como as investigadas nesse romance. Mas recaem sobre o coletivo e sua máquina deteriorada, tal como o conhecemos. É um livro único porque sabe combinar os assuntos mais caros sobre o que somos, individual e coletivamente, com a inventidade estrutural e formal da narrativa. E isso, convenhamos, numa ocasião quando proliferam toda sorte de literaturices e modismos, tem uma valia extrema: lembra-nos que ainda há fôlego no universo criativo da literatura.
Como se estivéssemos em palimpsesto e putas – Eric Novello, Goodreads, 23/08/16
Li toda a obra da Elvira, desde o comecinho.
Quando o André Conti disse que esse livro era pura Elvira, mas ao mesmo tempo diferente de todos os outros, pensei “hum, sei.” Era como a gravadora dizendo “esse é o disco mais comercial da Bjork”, e a Bjork dizendo “pobre gravadora, sempre diz isso.” Mas nesse caso, o André tem razão.
Esse é um livro diferente. No modo de narrar, mais irônico. Na exposição dessa narradora, aqui mais próxima da autora do que de um personagem construído. Na sua estrutura, que não tem capítulos, e sim uma cadência de blocos de pensamento estruturado, como se fosse uma conversa que vai fluindo, fluindo. E que ao mesmo tempo oferece ao leitor mais momentos de pausa para um café, um xixi, para ir dormir, do que um romance tradicional ofereceria.
O livro vai além de um feminismo também. Não gosto desses termos tipo “pós-feminismo” e tal. E nem de resumir um livro a feminismo, não mesmo. Então eu diria que ele é contemporâneo além do que “literatura brasileira contemporânea” pode abarcar atualmente, sem aquele nariz pra cima de “ó, como sou contemporâneo”. Porque ele é contemporâneo ao quebrar hierarquias babacas que estamos tentando quebrar desde o séc XX. Ele desconstrói um monte de coisas, e mostra homens e mulheres como iguais, ali, olho no olho. Inclusive nas fragilidades, apontadas com muito estilo. Ele coloca as escolhas nas mãos de seus personagens, que é como a vida deveria ser, nossas escolhas nas nossas mãos, e não nas mãos do estado, de religiosos retrógrados, do vizinho fifi, daquele cara que a gente tenta agradar na vida pessoal, família, trabalho.
Seus personagens escolhem por onde seguir. E essas escolhas trazem, obviamente, consequências. Que uns notam mais rápido do que outros, inconsequentes. Até que notam e não tem mais volta.
Ah, o livro não é sobre putas. É sobre vidas. Um homem conta à sua amiga suas histórias sobre as putas com quem dormiu. Pra ele sempre iguais, porque pra ele tanto faz a mulher, sendo ele o protagonista de suas transas. Conta pouco, e o que conta é desinteressante para a amiga, por isso a amiga vai inventando as histórias. Tornando humanas, transformando em pessoas as putas, a esposa, aquilo que o sujeito tenta ver como um artifício de si mesmo. E nisso a narradora inventa (nunca sabemos em que medida) a vida das putas, sua própria vida, a vida do homem com quem se encontra, a vida da esposa de quem o homem pouco comenta, mas que está sempre presente.
São muitos os personagens que passam por esse palimpsesto, um dando lugar ao próximo, numa versão mais firme, menos rascunhada, a cada vez que a narradora repassa na cabeça aquelas histórias. É, de certo modo, um processo de humanização daquilo que nos cerca.
Para quem curte literatura, ãhn, contemporânea, é um prato cheio. Aquela literatura que vai além do “homem branco de meia idade conhece uma menina mais nova que muda sua vida completamente.” Fora um momento mais lento aqui e ali, a história não perde o ritmo.
Ah, para quem escreve, é uma aula. Uma aula de como dizer, onde dizer, quando dizer aquilo que se quer transmitir ao leitor. A estrutura deixa espaço para irmos completando as histórias, do mesmo modo que a narradora faz, e mais tarde retoma esses espaços meio que dizendo “viu só como deu certo?”
E tem o final, um final forte, daqueles que ecoará no leitor por muito, muito tempo, depois que o livro se fecha. Se você nunca leu nada da Elvira Vigna, “Nada a Dizer” e esse “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” são ótimas portas de entrada.
Guilherme Sobota no Estado de São Paulo de 20/07/2016
(chamada de capa: Elvira Vigna publica décimo romance e continua sua série de exploração formal dos relacionamentos)
O primeiro parágrafo do novo livro de Elvira Vigna, de 69 anos, oferece um resumo involuntário do próprio romance: “Mas nessa hora que faço”, escreve, “vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo”. Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Companhia das Letras) é o décimo romance da escritora carioca, e ninguém vai achar estranho quando um crítico disser que é o melhor deles.
A estrutura formal da narração é um aspecto que a autora explora com um vigor particular na literatura brasileira contemporânea. Aqui, quem conta é uma designer que relembra uma série de conversas com João, um editor que virou seu amigo, e cujo assunto principal era o relacionamento dele com garotas de programa: mas dizer que o assunto principal deste livro é a prostituição seria reduzi-lo. Com uma série de repetições ritmadas entre frases, parágrafos e segmentos, ele se espalha e recompõe a história do casamento de João e a própria trajetória da narradora.
Os livros de Elvira não são explicitamente políticos, mas, entre essas camadas que se formam com a habilidade da escritora em narrar, existe, implícita, uma maneira muito única de ler as relações interpessoais, necessariamente políticas. Não muito fã de entrevistas, Elvira concordou em responder a algumas questões por e-mail.
(a entrevista abaixo foi a que eu mandei pro jornal e não a que foi publicada, que teve trechos cortados)
— Você disse que não queria fazer uma teorização para o trabalho das garotas de programa. Como foi fazer o romance sobre o assunto sem escorregar nesse risco?
Primeiramente, fora Temer.
Agora a entrevista:
Meu romance não é sobre garotas de programa.
É, como todos os outros, sobre relações interpessoais.
Mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens. E Transexuais, para nos lembrarmos que o mundo não é binário e que fica melhor não o sendo.
As mulheres do livro são vistas da mesma maneira, façam ou não programas sexuais.
O perigo de teorização nunca foi meu.
Jamais faria teorização sobre o trabalho de garotas de programa em um romance.
Então nunca tive esse risco.
O risco era que os leitores, esses meus co-autores, o fizessem.
— Porque é tão diferente para o João sentir empatia pelas mulheres (seja sua esposa, sejam as outras garotas com quem ele se relaciona) e pelos homens?
Acho (e me arrisco aqui, por não ter formação em antropologia ou sociologia) que “João” é exemplo de um fenômeno mais geral.
E que abrange mais do que as relações de gêneros.
Uma onda conservadora muito violenta.
Uma vingança contra as tímidas conquistas libertárias que anunciavam um Contemporâneo.
Acho que vale uma comparação com a Renascença européia: várias tentativas até enfim conseguir estabelecer seus novos paradigmas.
“João” é um homem do Moderno, não consegue estabelecer relações equalitárias com mulheres.
É o que mais tem.
— Eu queria que você me falasse dessa opção que você faz dos narradores/as. Porque é sempre alguém que se coloca claramente como narrador, contando a história de outra pessoa, e aí meio que misturando, lembrando, destacando reminiscências, etc… são sempre muitas camadas. Que que você tá buscando com essas camadas? Me parece uma torção da “realidade” tão acentuada que ela… quebra.
A realidade descrita será sempre, primeiro, a realidade do processo de escrita.
Aí tem a realidade que está sendo descrita.
E que caminha junto com o processo de descrevê-la.
O/a narrador/a está sempre, de fato, ele/ela próprio/a, escrevendo algo ou contando algo para alguém.
Às seis em ponto – Tereza fica tentanto dizer ao namorado, com quem está fazendo uma viagem curta, o que aconteceu na viagem curta anterior;
Nada a dizer – a narradora quer contar o que ela acha que foi uma morte provocada pela amante do marido. Nâo consegue, interrompe antes.
Por escrito – É uma longa carta de fim-de-caso falando das razões para isso.
E até mesmo nos meus infantis, com que comecei minha atividade de escritora:
O livro A breve história de Asdrubal foi seguido de A verdadeira história de Asdrubal.
O segundo livro contava o que seria a história ‘verdadeira’, ‘oficial’ do primeiro, mas era tudo mentira.
Bem, pode soar familiar hoje, mas era uma refência ao golpe, o militar, o de 1964.
— E nesse livro, inclusive, há uma repetição insistente (entre frases, parágrafos, segmentos), que cria mais uma camada por si só.
Essa é a “camada” (como diz você) que considero mais sofisticada.
Diz respeito exclusivamente à forma.
O livro brinca com as epopéias medievais.
Tem uma cadência, um ritmo; é a métrica, típica deste gênero literário.
Mas os feitos retratados nele não são grandiosos e o grupo de homens responsável por eles não são heróis.
E não pretendo, claro, essa dimensão.
— Esse título é muito bom, e o fato de você ter apagado o primeiro manuscrito (confere?) transforma o próprio livro numa espécie de palimpsesto. O que foi que havia no primeiro rascunho que te desagradou?
Gostei da observação de que o próprio livro é um palimpsesto.
Não tinha notado e adorei.
O primeiro original tinha uma linguagem grave, um tom dramático.
Achei que podia induzir uma leitura/co-autoria moralista, teorizante.
Eu não quis correr o risco da teorização a posteriori de que você falava na primeira pergunta.
Títulos são – em geral, e foi o caso aqui – das últimas coisas de aparecem na escrita dos meus romances.
Esse título tem o ritmo e sílabas tônicas internas de versos de redondilha maior.
A redondilha é uma forma que surgiu na Renascença e foi usada em epopéias inclusive por Camões.
Mas tem, na sua história, um uso mais ameno, mais popular.
Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, portanto, só faz sentido como título da segunda versão, a versão publicada.
Não se aplicaria na primeira, que não chegou a ganhar título.
Chico Buarque parece também gostar da cadência e, me parece, pelos mesmos motivos (um ar mais leve para epopéias mais atuais):
“O meu pai e-ra pau-lis-ta”
“Meu a-vô per-nam-bu-ca-no”
“O meu bi-sa-vô mi-nei-ro”
“Meu ta-ta-ra-vô bai-a-no”
“Meu ma-es-tro so-be-ra-no”
“Foi An-to-nio bra-si-lei-ro”
— Você fala de um fake-feminismo em mais de um momento nesse livro, como na comparação entre minissaia e long neck. Cito: “quem inclina seu longo pescoço para além do espaço previamente demarcado do feminino. Porque o espaço continua sendo previamente demarcado”. O que é esse fake feminismo? Quão problemático ele é? Você acha que tem alguma coisa a ver com as redes sociais?
É uma estratégia usual.
Você pega uma reivindicação legítima mas difícil de atender; dá algo parecido e menor; e anuncia o atendimento que, não, não houve.
Na questão em pauta são frases do tipo: ‘mas, veja só, este evento literário é dedicado à mulher!’
Respondendo à segunda parte da tua pergunta:
Acho a internet tudo de bom. Acho redes sociais um instrumento ótimo de equalização e denúncia.
Acho que a espetacularização do ‘eu’ e a falsa aparência de sucessos irreais – inclusive na luta de gêneros – é um aspecto dos mais nefastos do nosso capitalismo tardio.
Não uma consequência de redes sociais, como quer a antropóloga Paula Sibilia e como você sugere na sua pergunta.
— No filme ‘A Grande Beleza’, do Paolo Sorrentino (a quem eu cito por considerar uma experiência estética bem diferente da sua), um personagem, homem, depois de ser chamado de misógino, diz: “Não sou misógino, sou misantropo, porque até no ódio há que se ter ambição”. Isso faz algum sentido para você?
A frase é ótima e vou adotá-la.
Mas acho dois fenônemos bem diferentes.
Acho que a misoginia atual, tão prevalente, é uma reação à perda de poder do estar-no-mundo masculino.
E, veja bem, esse estar-no-mundo inclui indivíduos com ou sem o apêndice sexual masculino; é uma ideologia.
Acho mesmo que a misoginia de fundo religioso recebe uma espécie de tolerância de setores – que se dizem liberais e mesmo de esquerda – por uma questão de identificação.
É a mesma raiva pela perda de um poder – aliás, fantasmático, imaginado, ideológico – de religiosos e laicos que então se unem, uns na ação, outros na inação.
Já a misantropia, olha só, consigo entender mais facilmente!!
Estou brincando.
Uma espécie animal que constrói cidades para viver em grupo não pode ser de todo má.
— Seus livros não são estritamente políticos, mas existe uma dose grande de relações políticas entre aquelas camadas que mencionei. O que você está pensando sobre a situação política do Brasil esses dias?
Agora você me pegou.
Acho que a única, ou pelo menos a mais importante, função do Estado é a de incluir quem foi jogado para fora.
E aí tenho consciência de uma contradição no meu pensamento.
Pois que dentro é esse, não?, que desejo para quem está fora?
O dentro geográfico do Estado-Nação?
O dentro de uma mesma cultura (quando sei que elas são sempre uma construção a partir de um passado feito e refeito)? E qual das culturas ditas brasileiras eu escolheria?
O dentro da abrangência de um mesmo código-civil (feito necessariamente por uma elite que, no nosso caso, é bem pouco elucidada)?
Complicado.
Mas, ainda assim, sim, sou por um Estado Includente.
O que significa laico e anti-mercado (que é quem exclui).
O que significa lealdades (alianças) com excluídos e não com quem exclui.
— São Paulo passou a ser sua cidade definitiva, é isso mesmo? Rio, nunca mais?
De definitivo não tenho nada na vida.
O Rio me dói.
Sou muito velha. Vou falar de coisas que você não conheceu.
Um Rio de músicos, criadores, pensadores, em cada esquina, em cada bar.
De Vila Isabel a Ipanema, os subúrbios, andar pelas ruas era uma aula sobre vanguardas.
Agora é uma cidade de culto ao corpo.
Esportes, com sorte, cafajestes, no mais das vezes.
Quem sabe muda outra vez.
Fabrício Vieira – Valor Econômico – 29/07/2016
A recriação do que pode ter sido
Em seu décimo romance, Elvira Vigna apresenta uma linguagem direta e envolvente, criando uma complexa rede temporal (legenda da foto)
O nome de Elvira Vigna talvez ainda não ecoe como deveria quando se fala em literatura brasileira contemporânea. Uma das grandes escritoras da atualidade, Elvira chega a seu décimo romance mostrando domínio pleno da arte narrativa. Este novo “Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas” é um dos momentos fortes de sua trajetória literária iniciada em meados dos anos 80 com a publicação do hoje fora de catálogo “Sete Anos e um Dia”.
Por trás de uma aparente simplicidade, sob uma linguagem direta, com frases curtas e sem divisão em capítulos, o romance se desenvolve por meio de um bem arquitetado complexo temporal, em que lentamente vamos conhecendo os protagonistas. João e a narradora se encontram todas as tardes em um abafado escritório no Rio de Janeiro. Ele conta sobre seus muitos encontros com prostitutas. Ela ouve e, em sua imaginação, tapa as lacunas dos relatos, recriando as histórias e os personagens a seu modo, em um jogo no qual é cada vez mais difícil saber o que de fato aconteceu.
As histórias de João com as garotas de programa se sucedem em camadas sem fim e, apesar de algumas variantes, sempre repetidas, como em um sintoma neurótico que retorna de forma irrefreável – a narradora parece assumir a posição de psicanalista, sentada no sofá nas quentes tardes apenas ouvindo o que ele parece ter necessidade de revelar.
A agilidade narrativa logo enreda o leitor e o arrasta por uma intrincada construção temporal, em que os encontros com João ora parecem acontecer no momento em que se narra, ora em algum ponto indefinido do passado. A primeira noite com uma prostituta, as muitas vivências em hotéis baratos, os quartos de bordéis, os apartamentos minúsculos das garotas, as escapadas durante o período em que foi casado, o divórcio, a ex-mulher, Lola, aos poucos vamos, entre idas e vindas no tempo, montando o mosaico da vida de João.
A narradora também fala sobre ela. É aí que saberemos que se trata de uma jovem designer à procura de emprego, que vai até a editora onde João trabalha – ele foi contratado para informatizar a empresa – e, mesmo sem conseguir uma resposta positiva para o projeto de reforma que oferece (“fazer uma modernização da livraria da editora”), acaba retornando todos os dias para ouvir suas histórias. João se sente à vontade para desabafar após saber que ela divide o apartamento com uma garota de programa, Mariana – é como se a narradora fosse a escuta ideal, alguém que, de alguma forma, estaria próxima ao mundo que tanto o seduz, mas sem estar maculada por ele.
A narração dos infinitos encontros de João é cheia de lacunas, superficial, o que faz sua interlocutora recriar os acontecimentos, fantasiando como seriam as garotas, as vidas e desejos dessas anônimas. “Uma garota de programa por cima de outra garota de programa, sem nunca individualizá-las, acabá-las, sempre faltando alguma coisa, calcando mais da próxima vez, quem sabe agora. Até a última”, diz ela. Esse esquema vale também para a ex-mulher de João, Lola, de quem ele praticamente não fala, mas que vamos conhecendo progressivamente através da narradora.
Entre o que João revela, o que a narradora conta e o que de fato correu pode haver um abismo, nunca saberemos com certeza. “Não sei se aconteceu. (…) Acho que pode ter acontecido”, diz ela, por exemplo, após contar algo sobre Lola. Com os desdobramentos dos relatos, outros personagens surgem em cena, além das várias mulheres que chegam e desaparecem, como o amigo Cuíca, Mariana e Lurien, o vizinho transexual.
Além das garotas que se sobrepõem nos relatos de João, o palimpsesto do título pode remeter também à própria criação do romance. Elvira tem contado em entrevistas que esta é uma segunda versão do livro: a primeira que escreveu acabou no lixo, pois estava muito pesada, fora do tom desejado. Ao leitor que apreciar o livro, fica a angústia da primeira versão perdida, esse texto oculto sob a obra final.
A cuidadosa escrita de Elvira já rendeu algumas importantes premiações a ela, como a de melhor ficção da Academia Brasileira de Letras (ABL) e o segundo lugar no Prêmio Oceanos (antigo Portugal Telecom). O que falta é ser descoberta por um público mais amplo, que muito perde desconhecendo sua obra.
“Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas”
Elvira Vigna, Companhia das Letras, 216 págs., R$ 44,90. / AA+
AAA Excepcional / AA+ Alta qualidade / BBB Acima da média / BB+ Moderado / CCC Baixa qualidade / C Alto risco)
resenha de rodolfo viana, caderno ilustrada da folha de são paulo, 02/01/2016
Foram quase 40 dias isolada em um pequeno apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro, escrevendo um romance sobre as incursões sexuais de um homem com garotas de programa. Ao terminá-lo, Elvira Vigna leu o que havia produzido e, em seguida, deletou o arquivo. “Joguei fora”, diz, sem remorso algum, a escritora e artista plástica de 68 anos, que recentemente foi segundo lugar no Prêmio Oceanos de Literatura. “Havia um peso ali que eu não queria.”
“Como se Estivéssemos em Um Palimpsesto de Putas”, que será lançado pela Companhia das Letras no primeiro semestre de 2016, é a história reescrita – agora, com a densidade estética que a autora julga ideal. A narrativa traz João, um sujeito casado que relata à narradora suas transas com prostitutas.
“Eu queria um livro em que não houvesse diferença entre quem presta um serviço sexual e quem não presta”, explica Elvira.”Na primeira versão, Lola [mulher de João] tinha uma presença mais dramática e, com isso, embora não fosse minha intenção, as garotas de programa ficaram numa posição de serem alvos de teorizações. Eu não queria isso, de jeito nenum.”
Moralismo não cabe na obra: prostituta e esposa têm o mesmo peso, pois são feitas da mesma matéria “Tem inclusive uma frase – que eu não vou saber repetir textualmente -, mas é mais ou menos assim: se João conseguisse se dar ao trabalho de olhar para qualquer uma das mulheres com quem se relacionava, ele poderia ter se encantado”, comenta.
“A frase é dita de maneira que não há nenhuma diferença entre a mulher dele, o eu – a narradora, que é uma jovenzinha – e a amante. Era isso que eu queria dizer.”
QUESTÃO DE GÊNERO
Se, por um lado, o julgamento de valor passa em branco nas páginas do livro, por outro extrapola qualquer ficção e transborda na realidade. Elvira acredita que existe uma expectativa silenciosa para que a mulher trate de certos assuntos “de uma maneira mais distante, menos detalhada”.
O sexo é um desses assuntos, e não apenas na literatura. Elvira, que também tem uma carreira premiada como artísta gráfica – com um Prêmio Jabuti em Ilustração em 2013, pelas imagens de “Primeira Palavra”, de Tino Freitas, e trabalhos nas bienais de Bratislava, na Eslováquia, e Brno, na República Checa -, observa que, enquanto “o nu feminino não choca”, a nudez do homem causa espanto, sobretudo se for objeto de arte de uma mulher.
“Eu tenho uma marchande mineira que levou para vender uma coleção quase anódina de desenhos de nus masculinos”, comenta. “São nus frontais – mostra ‘piru’ e tal – e ela me contou que tem tido dificuldade, que as pessoas ficam chocadas. Uma mulher desenhando um homem nu deixa as pessoas um pouco desestabilizadas.”
E ainda que escape do machismo escancarado, esbarra no preconceito velado, escondido em notícias que, apenas à primeira vista, soam positivas.
Recentemente, ao se deparar com notícias que apontavam 2015 como um ano favorável às mulheres em premiações literárias, Elvira se sentiu ofendida.
“O livro da Maria Valéria [Rezende, autora de ‘Quarenta Dias’, obra que ganhou o Jabuti de 2015 como Ficção do Ano] e o meu são os dois melhores livros de 2014, eu não tenho a menor dúvida. Então alguém botar a manchete ressaltando o fato de sermos mulheres é diminuir a ideia de que o livro possa ser bom por si mesmo.”
editorial do suplemento pernambuco # 118, dezembro 2015
Escolher o mais novo romance de Elvira Vigna para ilustrar a capa da última edição de 2015 do Suplemento Pernambuco não foi uma decisão aleatória. A escrita e o posicionamento político da autora, dentro e fora da sua literatura, falam de questões que nos interessam para refletir sobre esse ano estranho que acaba de passar, ano de emergências: da luta do movimento feminista e, num plano maior, da busca por um mundo possível diante de tantas adversidades. Elvira não escreve sobre isso, nem para isso. Mas isso, leia-se, a inquietação, está nela. E fechar o ano colocando em relevo esse desassossego a partir de personagens que dialogam com o conflito entre o ser moderno e o ser contemporâneo diz muito sobre o lugar que a literatura deve ocupar. Em uma conversa exclusiva com nossa editora Carol Almeida, Elvira fala desses desvios, de palavras e ideias, e das desconstruções que precisam ser feitas. O Pernambuco é o primeiro meio de comunicação do país a escrever sobre Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, que será lançado no primeiro semestre de 2016 pela Companhia das Letras, um livro que dialoga diretamente com as construções sociais de homem e mulher em nossa sociedade patriarcal.
trabalhos acadêmicos:
Os espaçamentos de Elvira Vigna – Leonardo Tonus em Estudos Lusófonos – dez. 2015
A construção do real – Elvira Vigna – março 2017, palestras sobre o mesmo assunto em universidades brasileiras.
texto-base para a palestra na biblioteca são paulo (estação carandiru) com mediação de manuel da costa pinto em 20/08/2016;
vídeo da palestra na biblioteca carandiru: https://www.youtube.com/watch?v=-QWSvZhNGlY;
E no entanto (texto competo)
Sempre falo, nos meus livros, de acontecimentos vividos, vistos ou ouvidos. São reais as pessoas, os lugares e as ações. O livro começa, muito antes das primeiras palavras serem digitadas, quando há um encontro entre dois tempo. Algo objetivo, externo, no tempo presente da minha vida, evoca um acontecimento passado, também objetivo. Para haver esse encontro, preciso de uma série de fatores, esses sim internos, emocionais, psicológicos. Num processo de ficcionalização que começa, como vou explicar, desde o momento mesmo do registro mneumônico do passado, e segue em grau crescente a cada vez que o registro é recuperado, esse encontro dos dois tempos é o momento em que passo a considerar tal registro do passado como matéria ficcional. Embora real.
Então, outra vez, é tudo real. A junção desse tudo é ficcional. Não porque o que está dito seja inventado. Não é. Mas porque o que não está dito faz, daquilo que está dito, uma ficção. O que digo é uma escolha, e é minha. Outro a contar a mesma história contaria outra história porque escolheria outras coisas, também reais, para dizer. O que escolho para dizer a respeito do acontecimento vivido tem uma finalidade simples. Serve para responder a uma pergunta que faço para mim mesma: o que foi aquilo?
Porque essas lembranças nunca fazem o menor sentido.
Esse texto tem três partes: na primeira, falo do acontecimento real que vai ser contado; na segunda, falo como o acontecimento real que é contado só pode ser ficção; na terceira, falo sobre aquele que conta, o narrador.
I – O que é contado
Conto então uma lembrança.
Não são todos os tipos de lembrança que me servem para dar início a um livro.
Uso lembranças-imagens.
Não considero que os outros tipos de lembrança tenham a polissemia necessária para que eu dê início a um texto. Há uma diferença entre lembranças e memórias. As memórias já nascem integradas a uma estrutura, uma lógica ou cronologia. A lembrança é só aquilo mesmo. Sem lógica inerente.
As memórias que não uso são as memórias buscadas, em seus três subtitpos e as memórias coletivas. Vou explicar o porquê:
1) As memórias buscadas (esse vocabulário é do Paul Ricoeur).
a – A memória buscada simples em geral cobre um acontecimento de duração mais longa que tem elos com a experiências de vida de quem conta, mas não só. Seus lapsos exigem uma pesquisa para serem cobertos. Essa pesquisa impõe uma linguagem impessoal, fria.
b – A memória buscada com indício. Neste caso, há algo concreto que diz respeito ao acontecimento vivido. É um pouco melhor do que a anterior, porque o indício garante algo vivo daquilo que pode se transformar facilmente em mais um tedioso exercício de documentação. Mas o índice também raz um perigo: será em volta dele que escrita vai se organizar. Portanto, a memória buscada com índice traz uma estrutura rígida bem cedo na gênese da escrita o que, a meu ver, é um defeito.
Esse indício pode ser uma foto, uma visita a uma casa antiga hoje com outra função, roupas de pessoas que morreram etc.
c – A memória buscada impedida. É igual à memória buscada com indício, só que o indício é interno, psicológico e traumático. O termo aqui é de Freud, e é sintoma neurótico. A pessoa não pode se lembrar do vivida por ser nuito assustador e transfere sua lembrança para algo próximo, para uma sinapse ocorrida no momento do registro mneumônico. Não gosto dessa também porque não acho que literatura deva ter função psicanalítica como motivação inicial.
No entanto, reconheço possibilidades de lembranças-impedidas nos meus livros, como a repetição de mortes talvez criminosas que aparecem mesmo quando eu achava que não iam aparecer.
d – Uma espécie radical de memória buscada é a que não existe. Vai ser criada. Ela terá uma estrutura determinada pelo autor, antes mesmo de virar memória. É um processo artificial de memorização. Um exemplo é quando você se expõe voluntariamente a algo que você acha que vai ser importante ou impactante, já com o intuito de escrever a respeito. E toma nota de tudo que acontece. O que, aliás, te impede de avaliar a importância ou sentir o impacto de seja lá o que for.
A memória buscada, seja de qual tipo for, tem também, a meu ver, outro defeito. Ela não se beneficia do processo de esquecimento. Não lhe é permitido ter lapsos e, assim sendo, não oferece picos emocionais. Fica tudo igual. Sem o esquecimento, essa lembrança não tem seletividade, não é, por assim dizer, pessoal. É muito fria.
2) A memória coletiva. Não é ‘solta’, está integrada em uma contextualização sempre muito contaminada por agendas politico-ideológicas. E, além disso, tem também a seu desfavor uma situação problemática com o tempo, já que é um tropos constitutivo de uma identidade coletiva. Ou seja, é algo que aconteceu no passado, tem função no presente e uma projeção utilitarista no futuro.
Além disso, essa memória – que já vem, portanto, com uma narrativa manipulada e manipuladora com a qual eu não necessariamente concordo – só se sustenta frente ao ‘outro’ através de uma coerção. Qualquer lembrança individual pode colocar a qualquer momento uma memória coletiva em cheque. Só o descrédito prévio dos discordantes a faz continuar de pé. E a memória coletiva quase sempre existe com o intuito de dourar, amenizar, um acontecimento violento perpetrado pelo próprio grupo.
Então, resumindo. O início dos meus textos é uma lembrança-imagem. Melhor dizendo, uma lembrança-sensorial, já que ela pode ser visual, mas também auditiva ou olfativa. E ela me chega evocada, não buscada. No vocabulário de Bergson é a ‘recordação instantânea’ e não a ‘recordação laboriosa’.
E eu gosto dela e não das outras porque ela é o início mais polissêmico que existe. O que equivale a dizer, o início mais livre que consigo obter, mas também o mais difícil, falho e sem desenvolvimento pré-traçado.
II – O que é aquilo que é contado ficcionalmente por alguém para outro alguém, a respeito de algo que, sim, aconteceu
1) Então o primeiro evento da escrita de um livro meu é a evocação involuntária de uma lembrança-imagem que não me vem como um quadro completo, compreensível, do acontecimento traumático a que ela se refere. Ela me traz apenas elementos a partir dos quais vou tentar reconstruir algo legível, em vez de visível. Tem uma diferença grande aí entre o lógico e o analógico.
Além disso, é mesmo embaraçoso confessar que o ponto de partida, essa lembrança-imagem, é diferente já, ela própria, do que de fato houve, embora seja o que há de mais verdadeiro a respeito daquilo. Isso porque quando vivi o acontecimento, não fiquei olhando em volta, registrando a cena, entendendo tudo à medida mesmo em que vivia. Não. Eu, enquanto vivia e durante todo o tempo que se passou desde o vivido e até o momento do início do livro, eu não entendi nada.
2) O segundo passo é o reconhecimento dessa lembrança-imagem como algo válido, verdadeiro, que diz respeito ao mesmo tempo àquilo que aconteceu no meu passado e ao que acaba de acontecer no meu presente. Então, nesse segundo passo, a lembrança-imagem aparece na minha cabeça sem eu pedir ou esperar, e reconheço ela como sendo algo que fala verdadeiramente do acontecimento, embora saiba, já, que não é bem assim. Estabeleço o reconhecimento como um ato de vontade, uma decisão. É verdadeiro e pronto.
Piora. O próprio ato de reconhecer essa lembrança-imagem – que já não era tão confiável assim no momento mesmo do seu registro, pois nela falta quase tudo – não é, esse próprio ato de reconhecimento, confiável. O reconhecimento da lembrança-imagem é suspeito porque está contaminado pela passagem do tempo e inclui várias narrativas anteriores que fiz sobre a mesma lembrança-imagem, nas várias vezes em que ela foi evocada e reconhecida, desde o seu registro, até o momento em que vou usá-la para dar início a um livro.
Não só o reconhecimento da lembrança-imagem já é falho por esses dois motivos – falha ela, de nascença, e falho ele, pelas narrativas a ele integradas, como também vai ser falho por um terceiro motivo: eu mudei. Quem reconhece a lembrança-imagem na hora de fazer o livro não é a mesma pessoa que viveu o acontecimento, nem quem juntou narrativas a cada vez que fez esse reconhecimento antes. Minhas ansiedades mudam. Mudam minhas perguntas a respeito daquele acontecimento que nunca entendi.
E só insisto na feitura do livro porque essa lembrança-imagem, capenga a mais não poder, mantém ainda assim um grau de familiaridade com o real, mesmo dentro de um unheimlich freudiano inevitável. Então, embora saiba que não é bem assim, nem na origem nem no que resta, mantenho a convicção, para mim, de que a lembrança que tenho e sobre a qual vou trabalhar é uma unidade valiosa de um dado momento da minha vida, que ela é legítima. De um certo modo, sirvo de testemunha – no sentido quase jurídico – de mim mesma. Dou testemunho de que aquilo que ali está de fato aconteceu. Sou assim então uma falsa testemunha de mim mesma.
Digo: Eu estava lá, foi assim mesmo. E emposto a voz para fingir que sou testemunha confiável.
Então, até aqui. Tenho uma lembrança-imagem falha, que reconheço como verdadeira sendo que esse reconhecimento eu também sei que é falho, porque um tempo se passou e eu sou outra, minhas condições psíquicas e emocionais são outras, e a lembrança também mudou porque incorporou outras lembranças e outras informações.
Então eu já não posso dizer se estou no terreno da verdade ou da ficção desde aqui. E ainda não teclei uma letra do livro.
Há mais um problema, e vou falar mais dele depois: para quem eu falo, para quem dou esse falso testemunho que juro que ser verdadeiro, e é. De que modo esse alguém me escuta.
3) O terceiro passo é recuperar o lugar e o tempo em que o acontecimento se deu. À epoca do acontecido, o entorno pode não ter me parecido importante e sequer constar da minha lembrança-imagem, mas hoje preciso disso, ao sentar para escrever. Agora, não dá mais para me manter no âmbito estrito da lembrança-imagem.
Amplio ela, trabalho ela. Não ‘lembro’ mais o acontecimento. ‘Me lembro’ do acontecimento. Entro de fato em uma ação consciente sobre aquilo que veio de graça. “Me lembro’. Isso é uma ação, um trabalho feito.
Esse trabalho tem uma existência. Ele reinvidica um status de verdade ao lado daquilo que decidi que era verdade, ou o mais verdade que dá para ser.
Não tento, ao iniciar então o texto, uma representação do acontecimento.
O texto é um trabalho, uma experiência, ele também. A feitura desse texto é algo a ser vivido, narrar tem o mesmo status de acontecimento daquilo que está sendo narrado.
Por ser considerada, portanto, como uma experiência de vida tão verdadeira quanto o assunto dela, a narrativa não tem outro jeito senão existir de fato, lado a lado com o acontecido, dentro dela própria.
E, assim como o acontecimento que vira lembrança-imagem, que vira reconhecimento, que vira livro, a narrativa, ela também, tem um caminho próprio, uma vida própria.
A narrativa, à medida que passa a existir, vai falar comigo e me apontar verdades que eu desconhecia. São verdades que nascem dela e não mais de mim e de meus falhos processos mneumônicos. E preciso me manter humilde, não impositiva, com ouvidos abertos para escutar.
Há uma coerência aqui, que não é mais conteudística ou, no meu caso – já que trabalho com o vivido ou com o que acho que foi vivido -, referencial. É uma coerência puramente narrativa, e preciso aceitar isso. Não sou a dona de nada.
Então, começo a pensar no tempo e no espaço. Na continuidade temporal de quem viveu um acontecimento e vai trabalhar sobre a lembrança dele. Estou falando de uma identidade que, como todas as identidades, tem o sonho da casa própria. De se manter estável, reconhecível, através da passagem do tempo. É a terceira parte dessa apresentação.
Mas antes, preciso decidir qual tratamento do tempo me parece mais verdadeiro para aquilo que quero contar. Pode ser uma cronologia facilmente inteligível, externa a mim. Ou uma sequência não-cronológica, emocional, interna.
Aqui já estou falando de uma trama. Aqui já estou na narrativa. Embora ainda não tenha escrito nada. Mas já estou vendo na minha frente o tempo e o lugar, e com isso, uma percepção melhor das coisas e pessoas. Uma estruturação. Aquilo que evitei até aqui. Mas de onde vejo isso? Ou, em outras palavras, de onde narro?
Cabe a esse lugar, que pode ser chamado de narrador, levar à frente a empreitada que partiu, então, como eu disse:
- a) de uma má percepção, já que no momento do acontecimento eu não tinha controle de todos os fatores, não sabia de tudo, aliás de quase nada, e estava sujeita a pressões e afecções pessoais e grupais;
- b) de uma má retenção mneumônica que provocou e provoca um mau reconhecimento da percepção inicial, já que, no decorrer do tempo, a lembrança-imagem foi se modificando a cada vez que era evocada e eu fui me modificando a cada vez que com ela me defrontava.
- c) de uma ausência total de estruturação, sinônimo por exeemplo do storyboard dos americanos. E isso porque a história a ser contada no livro – história essa que eu nunca soube qual é e cujo reconhecimento não é confiável – muda a partir da resposta que a narrativa aos poucos me dá à pergunta que faço a ela, e que por sua vez, também muda. Então, como posso estruturar de antemão a narrativa de algo que desconheço e que me será desvelado, com sorte, durante a própria feitura da narrativa?
Então, outra vez. Não sei a resposta daquilo que pergunto antes do nanossegundo mesmo em que essa resposta se apresenta aos meus olhos, na tela, na frase que faço. A resposta à minha pergunta vem, ou não, a partir do próprio caminhar da narrativa, o que não é antecipável por mim e que tem, para mim, status de acontecimento, tanto quanto o acontecimento que é o motivo de ela existir.
E aqui chego perto de uma coisa que também é visto como algo antecipável ou controlável e que, para mim, não o é: o estilo. Não tenho. Tenho uma poética. Coisas que se repetem, como as mortes criminosas de que já falei. Ou as frases curtas de uma contenção emocional que me é necessária até para conseguir escrever, já que trato de acontecimentos duros da minha vida. Não tenho um sistema de regras que encontrei por acaso ou inventei, e que repito porque funcionam. Tenho um jeito de fazer. E que não funciona.
E no entanto continuo contando histórias.
III – Quem conta
Tem uma analogia de que gosto. As narrativas que partem de acontecimentos, como as minhas, são como cidades. Elas se mantêm reconhecíveis, com um nome, se inserem no âmbito de uma verdade, de uma realidade. Mas há construções que se erguem, e que se relacionam com uma dada tradição arquitetônica ou que, pelo contrário, trazem à cidade uma renovação. Outras mantém um rastro emocional do vivido ou o destróem. São registros de tempos diferentes. Mas a cidade se dá a ver – porque partiu de uma lembrança-imagem considerada o tempo todo como válida. E se dá a ler, pois traz um sentido, oferece um significado histórico, digo, de histórias, que a imagem não dava. E mais, ao morar nela sou testemunha disso, são histórias que existem e existiram. Acontecem e aconteceram.
Quero dizer com isso que, assim como em uma cidade, nos meus livros o narrar se integra ao narrado, é ele próprio um acontecimento traumático, não passível de compreensão no âmbito da lógica e que, como qualquer outro trauma, não termina quando acaba. Há nas cidades, e nos livros, a co-autoria de um ‘outro’, que se estende para um depois, e essa co-autoria será integrada a mim quando eu lá voltar.
O texto ficcional é alguém dizendo alguma coisa a alguém, a respeito de algo. Já é complicado e é preciso incluir, ainda, esses co-autores, que recebem esse algo sobre outro algo, carregando uma expectativa deles-leitores, estruturada por sua visão própria de mundo. Reconfiguram tudo.
Há uma resistência da literatura e de seus estudiosos contra elementos extratextuais. A análise da literatura, seu conteúdo e valor, é considerada interna, enclausurada. Não é essa a postura que adoto. E não por estratégias quase infantis para impor como verdade uma verdade que estou longe de considerar como tal. Mas porque exibo o fazer ao mesmo tempo em que o faço. Já disse antes aqui que o narrar, em dado momento, se põe de pé e compete de igual para igual com o que é narrado. O narrar está presente e do jeito mesmo que é: falho, hesitante, perplexo, pedestre. Não é um juiz quem escreve, é um historiador (ou melhor ainda, um cartógrafo).
Lembrar de alguma coisa é lembrar de um si-mesmo. A identidade de alguém supõe um si-mesmo de agora reconhecível, nomeável.
Para encobrir que não sou, hoje, em pleno movimento, reconhecível ou nomeável, estabeleço o que eu chamo de triunfo da presença, também chamado de verdade. É uma espécie de teste: o que, ou quem, ou onde, está aquilo capaz de resolver esse impasse de um si-mesmo mutante, e me devolver, de forma mais ou menos inteira, à mim mesma enquanto narro. Ou seja, o que, quem ou onde está o olhar exterior capaz de me fazer verdadeira enquanto narro.
Aqui dou mais um passo na estruturação iniciada com a inclusão de um espaço e tempo narrativos. Agora chamo, para me ajudar, algumas apropriações. São as associações de ideias que recusei naquele primeiro momento ao escolher como ponto de partida apenas lembranças-imagens não buscadas, portanto não estruturadas, portanto muito polissêmicas. Agora as coisas vão entrando num funil, por um lado, já que imponho uma ordenação. Mas por outro, se ampliam, já que lanço mão do similar, do verossímil.
Eu uso o narrador pessoal e já discorri sobre meus narradores em vários textos teóricos, não vou repetir. Mas o que falei até agora, aqui, indifere se o narrador está na primeira ou na terceira pessoa ou se simplesmente não aparece. Tem a ver com a distância, o ponto de vista em relação àquilo que está sendo narrado. E tem a ver com a noção, hoje bem assimilada, de que o narrador, seja ele quem for e do tipo que for, será sempre o representante de uma situação social, um situ, um lugar dentro de um grupo e, sendo assim, será sempre inconfiável, pois reproduzirá os limites desse lugar de onde fala. O que inclui a posição do narrador-deus, pairando onipotente, onipresente e onisciente. Esse também tem limites, porque estará longe.
Há uma dicotomia prevalente, que diz respeito ao ‘eu’ e ao ‘ele’ da figura do narrador. Eu uso um ‘eu’ abatido. Um ‘quase-ele’. Não é nunca o agente da ação, o dono da verdade. Em uma apresentação espacial, não seria o ‘eu’ dono de alguma coisa, e também não o ‘ele’ enfiado em uma identidade-tipo, coletiva, distante emocionalmente. É um ‘eu’ próximo que não é bem eu. Entre a lembrança individual de dentro e um olhar exterior a mim, meu narrador seria a voz de um afeto, aquela pessoa que oscila em atividades e passividades, em jogos de distanciamentos e aproximações. O narrador não é um ‘eu’ nem um ‘outro’. É uma espécie de amigo meu e é desse lugar que ele me conta.
Ele inventa o que não sabe, e no entanto só fala a verdade.