ELVIRA VIGNA: TEXTOS INTEGRAIS DE FICÇÃO, coluna ‘morrendo de rir, minha vida de intelectual’, publicada por um ano na revista ‘pessoa’.
Vila Riso, Rio de Janeiro (meados de 2002)
(publicado em outubro/2016 pela revista ‘pessoa’)
Não era meu amigo, o Gerd Borhneim, embora eu gostasse muito dele e, acho, ele de mim. Nos conhecemos em um caminho profissional cruzado e o sorriso dele, sempre meio aéreo por trás daqueles óculos de quem não estava vendo nada, mas enxergando tudo, me encantou.
Em 1998 fiz minha segunda e última exposição individual. Foi na Vila Riso (RJ) e era um experimento com impressão mecânica em grandes dimensões sobreposta à tinta automotiva. Essa tinta, muito rebelde, me fascinou por décadas, até eu começar a desmaiar no ateliê e me dizerem que aquilo era venenoso.
Também venenosa era, pra mim, a convivência com ricos compradores de arte. Então, foi mesmo a última. Chamei o Gerd pra fazer a apresentação e ele, que não fazia essas besteirinhas, topou.
Perdi esse texto. Perdi dois textos nessa época de muitas mudanças (bem, a época permanece). O do Gerd foi um deles.
Acho que fiz bem em perder. Por mim e por ele. Eu ia ficar tentada a seguir em frente, tendo um padrinho desse quilate. E ele não ia gostar de eu brandir o texto dele, uma concessão a uma simpatia mútua, no meio da sua vastíssima, seriíssima bibliografia. Então, uma vez o texto perdido, do Gerd só posso brandir uma lembrança.
A da primeira vez que ele foi na minha casa.
Eu morava na Bambina, a rua citada no meu “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, e o apartamento era o seguinte. A gente tinha comprado ainda na planta. Na verdade, a gente comprou vendo um grande buraco, o das fundações do futuro edifício. Mas atrás tinha um morro e a gente achou que a vista ia ser linda. O apartamento, de último andar, vinha com uma opção já aprovada de construção de um terraço, mas ele mesmo, do jeito como foi entregue, era um dois quartos com uma varandinha em que não cabia uma pessoa, varanda essa que dava pra vila ao lado, pro Dona Marta a médio plano e pro Cristo Redentor, por sorte de perfil, irreconhecível, ao fundo.
Aí o Gerd entra, suspira e vai direto pra vidraça da varandinha. Mantém as mãos nas costas do seu corpanzil, suspira outra vez e diz:
“Nossa, Elvira, que apartamento lindo o seu!”
Ele, com seus óculos grandes e tortos, não tinha visto nada do apartamento. O apartamento, pra ele, era a possibilidade de ver o que havia fora do apartamento. O mundo. Era por essas coisas que eu gostava dele.
Depois passamos um tempo sem nos ver, a não ser por acaso, no meio de um carnaval, ele com o mesmo sorriso aéreo, os mesmo óculos inúteis, olhando um menino que dançava na rua, na frente dele. E que, achava, o tolinho, que Gerd prestava atenção nele, nele pessoalmente, e não no movimento bonito de uma dança genérica.
Gerd queria sair do apartamento em que vivia no Morro da Viúva. Disse que era porque era muito grande. Mas acho que qualquer apartamento iria incomodá-lo, a não ser que oferecesse um não-apartamento, um fora de si, uma possibilidade outra, de si.
Morreu em 2002, pouco antes do meu aniversário. Soube quando quis convidá-lo, dizendo que a gente tomaria uma cerveja e eu daria pra ele meu “Coisas que os homens não entendem”, recém-publicado. E fazia e refazia o convite na minha cabeça, já escutando o riso aberto, solto, aéreo, que ele daria ao escutar o título.
Ah, como eu teria gostado.
O outro texto perdido nessa época era um texto meu, ainda de quando eu escrevia pra criança. Uma peça de teatro chamada “Sem cabeça nem pé” e era inteiramente formada de locuções televisivas de jogos de futebol (que pra mim não fazem nenhum sentido), acompanhadas por músicas feita pelo Roberto. Era um musical, na verdade. As músicas também não tinham sentido. Suas letras eram um acúmulo de provérbios, expressões idiomáticas, bordões populares contendo as palavras “pé” e “cabeça”.
No palco dessa peça que nunca foi montada, dois times de futebol se enfrentavam com grande entusiasmo, mas eram disciplinados pelo apito do juiz que, de minuto em minuto, expulsava um jogador de campo. O palco ia ficando vazio. Acabava só o juiz ali, sozinho, agora em um silêncio total. Um jogador voltava, pé ante pé, atrás dele, pegava a bola que estava num canto e saia de fininho. Aí, em off, se ouvia gritos de alegria de um novo jogo começando.
Era a época da ditadura, fazia sentido o sem sentido das músicas e das locuções sempre forçadamente entusiasmadas.
Esse texto estava datilografado (sim!, ainda!) em laudas com o logotipo do jornalão em que eu tinha trabalhado até um pouco antes. Ainda vi essa pilha cada vez mais amarela, aqui e ali, numa e outra gaveta, até que não vi mais. Deve ter virado pó ou sido jogada fora no meio a outras tralhas em alguma das mudanças.
Ninguém nunca quis encenar essa peça. Nem me pergunto por quê. Não dava mesmo pra ter muita coragem. Entendo o amarelamento geral – não só do papel – e que, aliás, me incluía.
Também o “Vitória Valentina” foi recusado por todo mundo em sua primeira versão, chamada “Dez momentos de paixão” (que eram as dez fantasias eróticas da personagem, mantidas na versão que afinal saiu publicada). Esse texto mereceu comentários de que uma feminista não podia escrever algo açucarado. Sempre me espanto com isso. O engraçado é que, ainda quando era “Dez momentos de paixão”, o texto já vinha com uma integração a imagens. Cada “momento” era acompanhado de uma espécie de “quadrinho”, já adivinhando a forma final, tantos anos depois. “Vitória Valentina” foi recusado por todo mundo, mesmo na sua versão atual.
De todas as covardias dessa época, minhas e dos outros, restou a coragem do Gerd, de botar o nome dele em um texto sobre uma artista desconhecida, que ia expôr fora do circuito nobre das galerias da época, mas que ria pra ele, entendendo perfeitamente bem o que era isso de buscar, sempre, o que está lá longe, lá onde só a vista alcança e às vezes nem isso. Minha exposição que o Gerd apresentou se chamava “Imagens mentirosas”. O nome é porque as imagens tinham o rastro do real das fotos impressas, nos seus poucos traços contrastados em PB e afundados nas cores da tinta automotiva. As cores se expandiam sem se importar com as margens do papel tamanho A2. Como também ele e eu não nos importávemos com o tamanho acanhado de uma varandinha. As cores loucas, jogadas pra mais longe que desse, sendo, tanto quanto o olhar do Gerd, o único real em que se podia acreditar. Assim como as mentiras do dia-a-dia iriam ocupar, de lá pra cá, todo o primeiro plano dos noticiários sobre um “real” que, bem…
Depois, indo para outros apartamentos, sempre tive esse pensamento secreto antes de me mudar. Se o Gerd, entrando na porta, iria gostar. O atual é minúsculo, num edifício muito velho e num lugar central de São Paulo. Mas dá pra uma pracinha e, depois da pracinha, pra um desses vãos entre edifícios que às vezes tem. O sol nasce justamente nesse vão, que se estende bem, bem longe, nos outonos. Hoje escrevo isso antes das seis da manhã e o vão está de cor laranja, o resto do céu preto, os carros na rua ainda com faróis acesos. E fico contente porque o Gerd entrou há poucos minutos, foi para a janela e disse:
“Que apartamento lindo esse seu, Elvira.”
E, como sempre, já penso em me mudar. E fico olhando pra o que não existe. O Gerd deixou comigo o texto sumido e um olhar que não some. Que vê além do que nos dizem e mostram. Dedico esse ‘morrendo’ a ele. É o último. A todos, obrigada, e até o que ainda não existe.
Haddock Lobo com Antônio Carlos (primeiro semestre de 2008)
(publicado em setembro/2016 pela revista ‘pessoa’)
Eu tinha acabado de me mudar pra São Paulo e ainda estava naquela ilusão de que paulista passa na casa da gente. Nem minha prima do edifício ao lado.
“Passa lá em casa.”
Não passou. Até que marquei dia e hora e ela apareceu toda vestida e de salto alto, segurando o biscoitinho do café embrulhado em papel de presente. O resto do povo, nem isso.
Mas na ocasião eu ainda estava iludida.
Aí recebi uma visita e fiquei contentíssima. Ok, era visita carioca, mas, puxa.
Além de ser carioca, também tinha o problema de ser visita-hambúrguer.
Explico:
Uma coisa que eu sempre soube, e nada a ver com São Paulo, é que hambúrgueres são parte integrante da minha vida. Somos uma espécie de carne moída, nós, os que escrevem, desenham, fazem música, minicursos, teatro, coreografia, desenvolvem pensamentos ou ficam olhando fixo pra tudo que não existe. Pra sermos úteis, ou seja, pra essa carne moída virar hambúrguer ou qualquer coisa minimamente vendável, precisamos do resto. E a visita que chegava era desse tipo, pão-alface-maionese.
Nunca fez um texto inteiro, embora tentasse. Mas quem sou eu pra falar de quem tenta. Só de editoras estou na minha terceira, sei que não posso contar comigo pra nada. Nem jantar de quibe comprado na loja aqui embaixo dá muito certo. Muito menos projeto cultural, com plano de comunicação, target, e outras palavras em inglês. Fico me imaginando no telefone com o jornalista:
“Oiii tesão, você recebeu meu release sobre o ‘Putas’, querido?”
A voz arrastada, risinho sedutor, gutural, ênfase em ‘Putas’.
Não, né. Então tenho consciência de que preciso das pessoas pão-alface-maionese e sei que elas precisam de mim, a carne moída. Portanto, um relacionamento com tudo pra dar certo, esse meu com a moça que me visitava. Só que não.
O problema foi a expectativa de atenção. Ela esperava alta, a minha era baixa. E não que eu não me esforçasse, porque me esforçava, eu como sempre sem trabalho.
Era do tipo magro que conhece famosos, e andava de cá pra lá em cima dos saltos, citando patrocinadores louquinhos de vontade de ter sua marca associada ao meu trabalho. Ela andava, eu desandava.
De presente, uma saboneteira dourada que levei logo pro banheiro, escondendo envergonhada a antiga, de plástico com furinho, que funcionava bem. Mas é a tal coisa: me deslumbrei. Nunca houve nada dourado em qualquer casa minha e achei que enfim meu destino ia mudar. Agora eu era uma pessoa com saboneteira dourada!
“Víntege.”
“Ahn?”
Víntege, ou seja, coisa de antiquário. Como aliás descobri rapidinho, alguns banhos depois, no recinto que ficava meio úmido mesmo sem banho. Não tinha furinho a víntege, o sabonete melava, o dourado esfarelava.
Mas isso foi depois e, na hora da visita, a moça andando na minha frente, eu ainda tinha esperança de mudar de vida, com dourados que se sucederiam e não só no banheiro, aquela maçaneta, e até mesmo minha jeans, meu deus!, jeans douradas e tudo mudaria!
Então tá.
Eu lá, sentada no sofá, a moça andando de lá pra cá, fui me distraindo com o brilho do meu futuro. Porque a razão da visita era explicar um projeto. Todo mundo tem projeto, já eu tenho delírio. O dela envolvia o governo do Estado do Rio e viagens. Adoro uma mochila, e quanto mais longe eu e a mochila formos, melhor, então não era que eu não tivesse interesse. Mas, sei lá, vai ver foi o toc, toc dos saltos no chão, os vínteges já virando quarênteges.
Não deu certo, mas por uns minutos achei que ia, porque, de vez em quando, eu balançava a cabeça com grande energia e caprichava uns ahns, ahns de concordância total, onde assino, puxa, que maravilha.
Até que notei a expressão dela de olhar em torno, de onde fica a saída, ó deus, meu hambúrguer caía das alturas, bife virado pro chão.
“Um vinho?”
Sem taça, expliquei, porque eu me mudara há pouco e não fazia a menor ideia de onde estavam as taças. O que não expliquei é que ia ser mesmo difícil achar taças porque nunca tive taças.
Mas ela não queria.
E aí pegou o celular pra chamar amigos, os realmente importantes, a razão de ela ter vindo a São Paulo. E que iam passar de carro pra pegá-la na sua marcha vitoriosa sobre todos os moídos do mundo rumo aos hambúrgueres lindos em caixinhas criadas por designers de alimento (existe, viu), vendidos aos milhares no mundo inteiro.
E ela falando no celular, só escutei a frase quase final, quase fatal:
“Ok, desço em cinco minutos. Certo. Rua Haddock Lobo. Espera aí.”
Virando a linda cabeça loura bem penteada em minha direção, disse, enquanto tampava o telefone com a mão:
“Haddock com…?”
A sobrancelha exprimiu com perfeição o ponto de interrogação da frase inconclusa e óbvio que era pra eu responder que a esquina da Haddock Lobo, onde ficava meu apartamento da época, era com a Antônio Carlos.
E se eu tivesse feito isso, talvez ainda conseguisse salvar o hambúrguer do dia, uns dourados aqui e ali, minha vida em São Paulo e eu, nesse exato momento, não estaria escrevendo uma coisa chamada “morrendo de rir”, mas outra, chamada “vivendo sem rugas” (ou seja, sem rir). Que pelo menos me daria algum dinheiro. Quer dizer, não escrevendo, imagine, vlogando um vlog de cosmetologia chamado “vivendo sem rugas”. Taí, quem sabe. Mas me perco. Justamente, outra vez. Igual naquela hora, ela na minha frente ao telefone, esperando eu completar o “Haddock-com-…?”
Não falei que era com a Antônio Carlos. Ó deus, não falei. O que eu disse foi:
“Com Agá.” – ela ficou parada, me olhando. “Haddock com agá.” – repeti.
E com isso deixei claro que: 1) – por mais que eu precisasse de hambúrgueres, nunca, nunquinha, eu ia realmente prestar atenção em pão-alface-maionese; 2) – eu era alguém com grande empatia emocional com letras mudas ou quase. Hambúrguer oferecido na minha frente, só pensava em agás que estão lá!, estão lá! O que na época não estava claro, mas ficou agora, era que tal empatia era premonitória. Alguns anos depois era eu a virar letra muda ou quase. Eu só, não, toda uma classe de gente que lida com cultura, educação, todos nós hoje letras mudas ou quase. Não é que a gente não exista. Só não somos levados em conta nas políticas públicas atuais que, bem, vou simplificar: não nos levam em conta.
Mas nesse dia distante, a moça parada lá, o telefone na mão por não sei quanto tempo.
Até que: “Bem, foi um prazer, vou esperar lá embaixo.” – e saiu.
E eu fiquei lá, também por não sei quanto tempo, sem trabalho. Na verdade, até hoje.
A saboneteira não sobreviveu à mudança seguinte. As jeans douradas não sobreviveram à visita seguinte da Caró, que rolava de rir só de pensar. E eu estou aqui, ainda, berrando na minha pouca voz:
“Ei, a gente existe, viu. E existiremos, sempre. Em mesóclise pra você entender melhor:
existir-lhe-emos! Nós, os letras mudas ou quase, estamos aqui!!!!!!
Porto Alegre, 25/10/2012
(publicado em agosto/2016 pela revista pessoa)
Olha, só avisando. Um mau-humor desgraçado. E claro que é culpa do Temer, de quem mais. Pincipalmente, pelo menos. Então escolhi o assunto: vou falar mal de homem em geral e não do Temer, o próprio. A ‘Pessoa’, afinal, é literária e homem é o que mais tem no meio literário. Então aqui estarão literatos (o que exclui o Temer: gente, que versinhos são aqueles!) e, pra completar as mal traçadas, jornalistas e publicitários, um povo que se não é literato é porque não conseguiu. Porque querem, é o que mais querem. Mas sem mudar a cabeça e sem desagradar “clientes”, né. E mais, ahn, deixavê, bem, vou botando aqui, que nem linguiça, opa, nem sei porque me veio essa metáfora, mas agora ela já se impôs: vou botando gente aqui então, como lixo em linguiça, e se entrar quem não é do ramo, paciência, a linguiça (sem trema) lhes serve. Ora, dirão as estrelas, perdi o senso: tá cheio de mulher literata. Verdade. Mas o que eu queria é que a gente não fosse mulher-literata, só literata. E que jornalista desse notícia, só isso. E que publicitário se tocasse, só isso. E que o Temer… Mas sim. Começando. O primeiro.
E é, escrevo muito bem, começo pelo primeiro.
O cara que disse que ser escritor era legal porque pegava muita mulher e riu. Não fiz nada na hora, mas só sei que até hoje ele me olha alguns segundos a mais do que mereço, acho que pra tentar adivinhar se vou reagir imediatamente ou daqui a pouco. Foi daqui a pouco, Sérgio. Gostou?
Em segundo lugar vem o vaidoso do Ary Quintella, a quem tive a distração de editar na minha primeira editora a falir, a Bonde.
(Depois tive mais editoras falindo e mesmo agora, que acabamos de abrir a Uva Limão, acho prudente já botá-la, coitadinha, recém-nascida, na lista, porque não sei não.)
Voltando. Meu deus, como homem é vaidoso. Caceta. Aliás, acho que essa é outra palavra, como a linguiça, que eu não devia usar porque vai fazer com que fiquem mais vaidosos ainda. Nossa, né! Tão, mas tão impressionantes, que até viraram interjeição!
(No Rio, tem o bloco Trema na Lingüiça, fundado por poetas e professores indignados com a reforma ortográfica. Portanto, nada do que você estava pensando.)
Mas sim, onde eu estava? Na caceta. Não, no Ary. Que era desse tamanhinho, o Ary, mas sempre dava um jeito de me olhar de cima. Aí ele fez cara de, sei lá, Bogart? Vanitas, vanitas. Mas não é momento pra filosofia. O Ary. Fez caras, me apresentando o original, a mim, que ele desprezava porque, em ordem: eu era mulher; pior, era a mulher de um amigo dele, com quem eu brigava todos os dias (ou seja, não só não era comível, como era intragável); e obviamente não sabia o que estava fazendo nesses assuntos de homem (literatura). Sendo que no terceiro item ele tinha razão. Não sabia mesmo. Por exemplo: não devia ter editado o livro dele.
Mas, sim, o Ary. Me apresenta o original e faz cara bogartiana enquanto acende um cigarro e o cigarro cai no chão e eu na gargalhada e foi essa nossa história. Claro, depois nos encontramos outras vezes, eu era a editora dele, mas nunca mais deu liga.
O terceiro, deixovê o terceiro. Ah, sim. Claro, Porto Alegre, que dá título a esse “morrendo”. Uma mesa com mais dois, tempo de fala e tema previamente determinados. Eu a única mulher. O mediador olha o relógio, me constranjo e finalizo. Outro componente da mesa começa e diz que não vai aborrecer a audiência. Sai do assunto estabelecido e discorre longamente sobre a etimologia do verbo foder. Depois tinha um jantar. Sempre tem, nunca vou, não fui. Acharam que eu tinha ficado ofendida. Não. Fiquei só muito, muito cansada do mundo. No bar deserto do hotel comi, sozinha, uma omelete com pão e cerveja, e foi a melhor omelete com pão e cerveja da minha vida.
Agora o Josué Montello, na única vez até hoje que editor me convidou pra festa de editora: José Olympio. Fui contentinha. Achei que, agora sim, convidada e tudo, eu estava virando alguma coisa, o quê eu não sabia, mas só podia ser bom.
“E aí, professora, e seus livrinhos, estão vendendo bem?” – disse ele.
Nunca dei uma aula na vida. Tenho o maior respeito por quem dá, mas nunca dei. Na época eu fazia livro de criança, e livro de criança só pode ser coisa de professora, certo? Escritores eram o Josué e os outros ternos que se batiam nas costas uns dos outros. Eu era aquilo que alguns deles inclusive tinham em casa, mulher, e que vinha às vezes com esse apêndice, criança. Em editora, o apêndice supunha livros. Livrinhos. E era isso.
E teve o cara numa recepção do Itamaraty. Sim, fui. É, nunca vou. Sei lá porque fui. Só pode ter sido culpa do Roberto. Mas o caso é que estou lá naquelas mesas redondas em que cabem seis pessoas e já éramos cinco e aí chega esse cara, um editor, como vim a descobrir mais tarde e bota mais tarde nisso. Porque à pergunta inicial de “o que você faz?” o infeliz responde, olhar de cama, voz rouca, mão passando pelo meu braço:
“O que funcionar pra você.”
Soube depois quem era ele mas não qual a sobremesa. Saí arrastando um relutante Roberto que até estava gostando do vinho, e até hoje não sei o que perdi de docinhos.
E teve o lance da UPI, eu a melhor redatora mas sentando perto da porta. Veio um amigo do editor, outro Sérgio, e claro que ganhei um: “vê um cafezinho, querida.”
E teve o Chico, amigo total, irmão. Numa crise braba do jornalismo, uma das muitas, abre vaga na editoria dele.
“Vou chamar o fulano, né, Elvira, ele é homem, tem responsabilidade.”
Sendo que nessa ocasião eu já sustentava minha filha, sozinha.
Acho mesmo que vou dedicar esse “morrendo” ao Chico, que não vai ler porque continuo aqui, labutando, mas ele virou especialista em gastronomia e não lê besteira em revista literária que não paga ninguém porque não dá dinheiro. Aliás, gastronomia é só mais um campo profissional que atrai homem assim que começa a dar dinheiro, ou será o contrário, ao atrair homem começa a dar dinheiro. Ahn, faltou alguma linguiça?
Faltou. Faltou o repórter que queria me entrevistar pra uma revista feminina. Nem vou falar de existir revista feminina. Vou só falar do repórter que é pra vocês não ficarem de saco tão cheio quanto o meu e pararem de ler. Pois o repórter queria uma entrevista sobre as várias fases da vida da mulher e as tais fases eram: juventude, casamento, maternidade e velhice. Perguntei se as fases do homem eram punheta, estupor alcoólico, estupor tout-court e viagra.
Numa mesa em Belo Horizonte propuseram o tema “Literatura e experiência”. Não, nada sobre a transposição estética de experiências de vida. Experiência era eufemismo de velhice. Era sobre escritora velha, esse horror de todos os editores mundo afora. Mulher não pode ficar velha. Também não pode mandar no próprio corpo e, pra ser escritora, precisa sair bem na foto, conhecer seu lugar (o de ‘nicho’) e fazer charminho pra plateia/editor/jornalista. Aliás, mulher também ofende homem se for presidenta da república, né, quer mais o quê.
Tanto no caso da revista como no caso de Belo Horizonte, mandei à merda. Mas de maneira fina porque sou fina. Quase sempre. Só quando não dá mesmo é que não. Mas voltando porque tem mais.
Tem o prêmio em que meu livro foi descrito como de “rara agressividade no gênero” sendo que o gênero era o meu, feminino, e não o do livro, romance. Mas já falei disso.
E tem meu livro novo. Caró é de opinião que, toda vez que eu disser que o título do “Putas” é formado por dois versos heptassilábicos em cadência de redondilha maior, devo acrescentar que a redondilha vem nas opções cromo, couro e aço escovado. Só assim os carinhas da plateia vão prestar atenção no que falo. Não devia ter falado falo.
Poços de Caldas (férias escolares de julho de 1956)
(publicado em julho/2016 pela revista pessoa)
Em 1956, Juarez Távora, um militar fascistão em ostracismo temporário, pescava sem isca e levei quarenta anos de militância na área cultural pra perceber a abrangência de tal ensinamento.
Hoje também pesco sem isca. Nem sorrio, que é pra ninguém achar que vai ter isca porque não vai.
Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica. Não faço mais sucesso porque:
1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir.
Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância.
Na época em que, aos nove anos de idade, não percebi a relevância do que se passava ao meu lado, eu também pescava.
Hoje, em retrospecto, acho mesmo que nunca cheguei a gostar. Mas havia dados biográficos a me empurrar pra atividade.
O primeiro é que meu pai não queria dar o braço a torcer de que eu, mesmo reta e desengonçada, não era o que lhe haviam prometido. Pois minha mãe tinha dito, nove anos e nove meses antes:
“Quem sabe agora vem um menino.”
Então era isso eu: short largo, camiseta velha, e uma vara, ainda que de bambu.
O segundo dado biográfico também é meio ruim. Eu lá sentada, olhando o nada e com uma vara na mão, até parecia estar fazendo alguma coisa. Sou assim desde pequena, meio parada, meio olhando qualquer coisa que não seja importante. Então, se pusessem uma vara de pescar na minha mão eu ficava mais fácil de ser apresentada:
“Ah, é nossa filha…”, e um risinho nervoso. “Ela adora pescar.”
E pronto. Ninguém precisava explicar que eu era assim mesmo e que todo mundo que nos conhecia já sabia que eu não ia dar em nada. E que paciência, né, toda família tem um. Se pelo menos eu conseguisse casar! Mas isso é o que menos estava garantido, já que eu não era recatada nem ao sentar nem ao falar e, adivinhavam, também não o seria ao transar. Não era do lar, de onde fugia sempre que dava. E quanto ao bela, aí é que a coisa piorava mesmo.
Outra hora volto a esse assunto, das tentativas da minha família pra eu dar certo. Nem foram muitas, mas tendo a me alongar nelas, é um tique nervoso meu. Ok, não resisto: só mais uma. A insistência a respeito do cursinho de datilografia.
“Pelo menos alguma coisa desse lance de ficar escrevendo pelos cantos pode vir a ser útil no futuro.”
Útil sendo igual a ganhar dinheiro, claro, pois a profissa óbvia de mocinhas, casar, esbarrava naquilo que já falei antes e que envolvia perfis mais propícios. Perfis latu e strictu sensu, sendo que o strictu era de fato strictíssimu.
Mas chega. Voltando ao Juarez.
Então eu estava lá e acho que o lá era Poços de Caldas porque lembro de passar umas férias na cidade. Mas não tenho certeza. Palavras sempre tentam puxar a gente como comboio atrás de locomotiva. E Poços de Caldas tem a palavra poços a me jogar pro fundo dela. Dela sendo a cidade ou a palavra, nunca sei. E nem vale a pena ficar aqui teorizando sobre a diferença entre referente, significante ou um bom susto ontológico, desses lacanianos mesmo.
Então não sei. Porque na verdade eu pescava em qualquer cidade e em qualquer poço ou poça. Não precisava ser no plural. Não precisava ter peixe. Aliás, melhor se não tivesse. Poço(s), poça, laguinho de entrada de hotel, canal de irrigação cheio de agrotóxico, inundação pós-temporal. Ou delírio visual em pleno ar, nas nuvens. Até mesmo uma narrativa bem construída. Não Hemingway, que não gosto. Mas qualquer descrição minimamente interessante sobre alguém que arranca algo significativo do fundo de uma massa disforme, azul ou não.
Qualquer coisa servia, eu sentava e ficava.
Mas eu usava isca.
O Juarez Távora tinha perdido a eleição pro Juscelino (gúguel, crianças, que acabei de fazer a mesma coisa pra checar essa data). E quem perde – então não sei! – seja eleição, rumo na vida ou mesmo o arquivo word do livro novo, pode sempre dar um tempo em um lugar nenhum. Era o que o Juarez fazia. E tinha escolhido, pro lugar nenhum lá dele, o espacinho ao meu lado. Meu pai, reaça como ele só, quando foi me pegar no fim do dia e viu quem estava ali, foi logo sorrindo e estendendo a mão e perguntando se ele era ele, e essa é a única razão de eu saber que aquele velho que me pareceu meio maluco era o Juarez Távora.
Pois o anzol do Juarez não tinha isca e não que isso significasse modificações na postura do pescador. Sentado e com um olhar de quem não vai desistir nunca, igual ao olhar de quem tem isca.
Foi isso que aprendi com décadas de atraso. Não tem peixe nas nossas águas. Tudo bem alucinações, sou a favor totalmente. Mas aqui entre nós: não tem. Não nos nossos lagos/canais/poças habituais, onde chafurdamos dia sim outro também.
Cardume de olhos te olhando fixo, enquanto você fala sobre a excitação de uma análise semiótica sobre os falares de fronteira do Rio Grande do Sul, com notas ao pé de página que seguem as normas ABNT em duas línguas?
Não.
Rostos como corais coloridos, em deleite por conta da apresentação de um romance chamado “Putas”, cujo título em heptassilábicos traz a cadência da redondilha maior?
Não (rárárá, só rindo).
Filas a perder de vista pra evento de videomakers de vanguarda sobre o Sertão do Cariri, tão difícil de viabilizar, mas que você conseguiu através de captação de patrocínio, apoio, parceria e outros nomes pra dinheiro, sem Lei Rouanet, embora tendo de adaptar um pouco o lado vanguarda da coisa?
Tíquetes gratuitos esgotados uma semana antes da vernissage de esculturas, feitas de matéria orgânica que deverá apodrecer durante o período de visitação, com direito a performance a partir de música não-harmônica?
O corpo de bombeiros mandando dizer que não pode entrar mais ninguém no clube de leitura previsto pra um sábado de sol às nove da manhã na biblioteca pública, com pedido pra que a chegada se dê às oito e meia?
Não, né. A gente sabe que não.
Lançamento de livro quando você tem três amigos, sendo que um deles acaba de mergulhar num de seus periódicos ataques de pânico e não sai de casa de jeito nenhum?
Pois é.
E aí, se não tem peixe, o Juarez Távora tem toda a razão. Porque sem isca, a coisa vira. Não é mais que não tem peixe e você fica lá, com a vara possível na mão. Sem isca, passa a ser resistência cultural, manifestação, protesto pelo desmonte das políticas culturais e educacionais de um governo ilegítimo e retrógrado.
Porque tem isso. Se você ganha pouco, não ganhar não faz diferença. Se não respeitam o que você fala, você fala sem respeitar quem não te escuta.
Sem isca é essa a diferença, me disse o Juarez Távora: você encara de frente. Quer dizer, não disse. Porque também aprendo o que quero, mesmo quando não está lá.
Paraty (junho de 2016)
(publicado em junho/2016 pela revista pessoa)
Festa de aniversário na casa da minha mãe, cheia de atores da TV Globo porque nessa época minha irmã anda com gente da TV Globo. Aí tem essa mulher no sofá e eu olho pra ela. Vagamente.
Chego, dedo em riste, um olho meio fechado, aquele risinho de você não me engana:
“Você… Externato Atlântico!”
“Não. Papel principal da novela das oito.”
E fico me lembrando disso porque escrevo esse “morrendo” em outro aniversário, esse de catorze anos que não sou convidada pra Flip. Já cantei em fast foward um parabéns pra mim no espelho do banheiro e agora está na hora de ficar realmente alegre porque aniversário é pra ficar alegre: a gente aguentou um ano inteiro desde a última vez que pareceu que não ia aguentar nem mais um minuto. Uma sorte, portanto.
E fico alegre, também, porque me conheço.
Eu olharia pro cara na mesa do bar, e vagamente. E chegaria perto, dedo em riste, já com risinho de você não me engana:
“Você costuma ir na padá da Domingos com Estela!”
“Não. Prêmio Nobel de Literatura.”
Então, viva. Comemorem comigo. Sou mesmo uma sortuda.
Mas não é sorte. É merecimento. Não vou dar esse vexame em Paraty esse ano mais uma vez porque me preparei pra isso. Há muito tempo me perguntaram:
“O que você acha da Flip?”
“Um Simba Safari.”
(Por aí vocês veem como faz tempo.)
A gente no papel do leão. Nem urrando muito alto a ponto de assustar, nem muito baixo a ponto de decepcionar.
Nunca mais falaram comigo. Depois me ocorreu que aquilo podia ser uma sondagem. Prum convite. Gosto de pensar assim. Pessoas me sondando prum convite. O que eu acho de Paris.
Porque já tenho tudo esquematizado.
“Obrigada, mas não.”
E sairia segurando a ponta da saia de cetim com uma das mãos, a outra protegendo o colo. Porque nessa hora não tenho peito, tenho colo. E sumiria no portal de mármore de carrara (o do Michelângelo), em meio àquele barulhinho que saia de cetim faz. Saia comprida. Várias, uma por cima da outra. E tenho decote nas costas que é pras pessoas verem minhas costas (magras, mas promissoras), justamente nessa hora em que me viro de costas e saio. Em algum ponto, pendurada do lustre, desce a palavra Altiva, toda feita em pedrarias.
Variações da cena:
“Por escrito” foi lançado na Copa do Mundo, época em que, é sabido, a meia dúzia que sabe ler desaprende subitamente. E o livro foi lançado sem sequer entrar no site das livrarias, sequer no da própria editora. Pré-venda? Nem pensar. Aliás, eu só soube que o livro tinha saído porque alguém de rede social avisou. Me mandou foto do livro na Cultura, porque custei a acreditar. Deve ter dado algum erro, sei lá. Ou então é normal isso. Talvez eu deva me convencer de que é normal. Porque, depois, o livro foi segundão num prêmio e ganhou aquele selinho de livro premiado. Só que se enganaram e o selo que puseram no livro era de outro prêmio, do qual eu não tinha sido sequer finalista. E antes disso tudo, eu já tinha tido uma prévia, porque na hora de fazer a orelha, nem o nome da personagem principal o orelhista acertou. Precisei eu ir lá e corrigir. Enfim, vai ver é normal. Ou normal comigo. Acho que só comigo. Então tenho outras cenas, daquele tipo com cetim, pras reedições futuras do “Por escrito”.
Vamos imprimir uns banners pra porta de livrarias.
‘Obrigada, mas não.” E bate um reflexo dourado na minha bolsa Hermés.
Vamos mandar o livro pras editoras estrangeiras com quem temos contato.
“Obrigada, mas não.” E jogo meu cabelão – estou com cabelão – pra frente, pro lado e pra frente outra vez. Já vi fazer. Acho que dá pra repetir.
Vamos chamar os livreiros pra você apresentar o livro pra eles.
Isso só ouvi dizer que existe, talvez seja lenda urbana. Comigo nunca rolou. Então é possível que eu esteja em pleno delírio, de modo que vou parar por aqui. Mas paro embicada pra cima, que é meu jeito de parar. Embicada pra cima e com marcha engrenada em primeira, senão eu rolo ladeira abaixo de volta ao inferno tudo outra vez. E a marcha engrenada é uma frase que repito como mantra:
“Tudo vai mudar.”
Acho. Não acho. Me convenço que acho. E pulo da cadeira/caixote de feira/poço do elevador cheia de energia, tudo vai mudar, e ainda acrescento uns pontos de exclamação:
“!!!!”
Por exemplo, ao contrário do caso da Copa durante o “Por escrito” (sentiram a inversão?), esse de agora, o “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas”, não vai sair durante as Olimpíadas. Me jurou o André Conti:
“Pós-Flip, pré-Olimpíadas.”
Que foi quando comecei a preparar a festinha dos catorze anos sem-Flip, porque pós-Flip quer dizer exatamente isso, sem-Flip. Pelo menos, pensei eu animada, também sem Olimpíadas. O que considerei um presente mercadológico, uma espécie de marshmallow na ponta do pauzinho e vou explicar essa imagem que é pra não pegar mal.
Morei nos Estados Unidos uns tempos.
Tinha um jacaré. O pessoal lá tem mania de queimar bolinha de marshmallow na ponta de um pauzinho, coisa de reunir em volta de fogueira. Incentiva a vida em comum, o espírito solidário, os bons sentimentos. Não acho que dê certo, mas nunca me perguntaram. Aí conheci o jacaré, enorme, numa reserva ecológica. E era só enfiar a mão na água com um marshmallow tostadinho que ele vinha devagar (pra não assustar), mas não tão devagar (pra não decepcionar). Você jogava o marshmallow e ele abria a bocarra e sumia com o premiozinho dele, depois de te mandar um olhar resignado de que a vida é essa merda mesmo.
O que me lembra: preciso de um apelido pro livro. “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é um título completamente inadequado, enorme, nunca que as pessoas vão decorar isso. O tradutor e todos os funcionários da minha tão bem-educada editora se referem ao livro como “Palimpsesto”. Eu e Caró, que somos grossíssimas, só o chamamos de “Putas”. Mas nunca perco a esperança de virar senhora distinta (já que perdi o bonde da moça fina) e ensaiei um “Como se estivéssemos”. E três pontinhos. Mas quem ouvia me olhava com cara de pena, me dava tapinha nas costas.
“Pois é. Igualzinho mesmo, quem não lembra, né. Mas não vamos desanimar. Quem sabe numa nova eleição.”
Pedro Taam também gosta de “Putas”. David, meu filho, não chama o livro de nome algum porque não lê as barbaridades que a mãe escreve. Eric Novello e Roberto, consultados, não deram retorno até o fechamento dessa edição.
Todos vocês que não são Flip-material (ler matíriou) estão convidados pra festa sem-Flip. Haverá votação pro apelido do livro. Tolinhos, nós acreditamos em voto.
7) FNAC da Paulista (março de 2012)
(publicado em maio/2016 pela revista pessoa)
Você fala Irmãos Karamazov, entram música e luz indireta, e o cara solta:
“Sim! É mesmo interessante refletir sobre comunidades reminiscentes do arcaico e seu choque em relação ao dinheiro no contexto do pós-capitalismo. Vou pegar. Em russo ou traduzido?”
Mas, claro, imagina. E desnecessário. Pois, mesmo sem isso, sempre gostei de vendedor de livraria. Pra mim, que detesta quem tenta me vender seja lá o que for, havia essa exceção.
Mudei. Primeiro, não tenho mais esperança de chegar e ter uma standing ovation, ela chegou!, ela chegou! O máximo que houve até agora foi uma vendedora de óculos e espinha no nariz que teclava meu CPF pro desconto futuro na Cultura. Apareceu meu nome, ela olhou, era o mesmo da capa.
“Ah! você é você?!”
E achou engraçadíssimo, me esforcei pra achar também e ficou nisso.
São coisas que machucam. Por exemplo, essa ausência de standing ovation.
Mas o problema foi outro. Um livro meu tinha saído um mês antes, de modo que nem procurei. Literatura, todo mundo sabe, é uma espécie de legume. Na prateleira, no máximo as de ontem, então fui direto.
“O que deu para fazer em matéria de história de amor.”
O vendedor me olhou com total enfado.
“Sei. Mas qual livro a senhora quer?”
Foi isso que de fato mudou minha vida. Digo, pra pior. Sim, uma das vezes.
Porque tenho esse carma.
O que pensei:
1 – O vendedor olhou pra minha cara e achou que eu estava tentando contar minha vida pra ele porque minha cara é mesmo de alucinada que vai tentando contar a própria vida pra vendedor de livraria;
2 – O vendedor achou que eu estava tentando contar minha vida pra ele porque isso acontece todos os dias, várias vezes por dia, mulher de montão entrando lá só pra contar a vida pra vendedor da livraria; nada comigo, pessoalmente, imagina.
E eu precisava saber então se era o 1 ou o 2.
Fiquei com essa angústia até que conheci o Tuca. Mentira. Conhecia o Tuca de antes, de Curitiba. Ele fazia pós, era hilário, tinha um blog literário e nem pensava em trabalhar em livraria. Depois é que veio pra São Paulo e foi trabalhar na Cultura.
“Você me dá uma entrevista?”
E aí ele sentou no meu sofá, ofereci bolo e tasquei.
“É comum mulher entrar em livraria e despejar a vida dela pro vendedor?”
“Não.”
Achei que ele não tinha entendido a pergunta.
Dei mais bolo, contei uns casos, que chuva, né. E repeti.
“Não.”
Ele acabou indo embora, eu afundada no sofá, o olhar vago, os ombros baixos, não conseguia nem falar.
Depois me consolei.
Essa lance do “O que deu para fazer em matéria de história de amor” foi na FNAC da Paulista. E foi o único. Então, podia ser pior. Podia ser sempre.
“Nada a dizer.”
“Claro, perante a infinitude do universo, ó meu saco. Poesia é ali, na prateleira de baixo perto do banheiro.”
“Deixei ele lá e vim.”
“Fez muito bem, querida, é o melhor mesmo. Mas qual livro vai ser?”
“Coisas que os homens não entendem.”
“Vou chamar uma vendedora mulher que não estou nessa vibe de feminismo, não.”
“Por escrito.”
“É como é hoje em dia, ninguém mais tem classe, vai tudo em mensagem do Whatsapp. Mas vai escolher qual livro?”
“Às seis em ponto.”
“Obrigado, seria até legal, mas vou direto pra faculdade, quem sabe outro dia. E não quer levar um livro em vez de?”
E só vai piorar, tenho certeza.
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas.”
“Estivéssemos, nós quem, minha senhora?”
E aí ele vai dizer que eu é que sei da minha vida. Mas que com ele foi só daquela vez porque depois ele entrou pra igreja e jogou a peruca fora. E vai me olhar com aquele olhar de ira divina quando a ira divina recebe o reflexo azul de um monitor aberto em programa de controle de estoque.
Vai ser horrível.
Melhor me preparar. Ou vai ver passou. Vai ver minha cara melhorou, e nunca mais.
Vou criar coragem, nem é tão tarde. Acabo isso aqui rapidinho e saio com essa roupa mesmo, vou na Martins Fontes que é séria pra cacete e perto, dá pra ir a pé.
“Três mulheres altas.”
E o cara não vai dizer, não vai, não vai:
“Logo três?! Que cafajeste. Mas a senhora vai levar o quê?”
Aí eu piro e digo que as três eram as irmãs Karamazov, minhas vizinhas, as piranhas, tudo biscate. Viviam se insinuando e aí deu no que deu. E vou continuar, e ele vai apontar pra algum lugar no fundo da livraria, que ele tem de ir ali arrumar uns livros urgente e eu vou atrás, dizendo, não tem importância, estou com tempo. E ele vai subir a escadinha de dois em dois degraus, já suando, e eu atrás.
“Era sempre de tarde, sabe, quando eu saía pra buscar as crianças.”
Se você assume e radicaliza, às vezes dá certo.
É o que penso. Não penso. Mas não me ocorre mais nada. Botox não topo.
“O que deu para fazer em matéria de história de amor” tem esse título, entre outros motivos porque na época havia esse projeto editorial/filmístico/blogueiro/midiático chamado “Amores expressos”. Os felizes escritores participantes, na hora de fazer o livro, iam pra Londres, Tóquio, tudo pago, equipe atrás filmando os lances imperdíveis do gênio em ação. E eu fui pro Guarujá num apartamento da minha prima, caindo aos pedaços, e era agosto e chovia sem parar e eu estava sozinha e não tinha um puto e queria tanto fazer uma história de amor. E foi o que deu.
Podia falar de mais coisa que foi o que deu, um monte. E do que não deu por causa da truculência, do abuso, do interesse contrariado que aparece como sendo processos supostamente legais, mas que é só dinheiro mesmo. E mais as coisas que a gente não espera que aconteçam e acontecem. E, tenho certeza, eu e o vendedor da livraria íamos sentar num cantinho da escada e ficar lá até fechar, sem espichar conversa nenhuma, porque às vezes nem dá mesmo vontade de falar mais nada.
06 – Elevador da Gastão Bahiana (1980)
(publicado em abril/2016 pela revista pessoa)
Esse “morrendo” é ele próprio um “morrendo” porque comecei a escrever durante a passeata contra a Dilma do dia 13/03 e fiquei meio enrolada: tinha o complemento “de rir” que eu também deveria honrar, mas estava difícil.
Enfrentei, com a passeata, minha própria burrice: eu não esperava a radicalização.
Acabei lembrando que, afinal, tenho 68 anos e por causa disso eu sabia muito bem do repeteco. Se conseguisse escrever ficava até engraçado, porque a primeirona, a de 1964, se chamou Marcha Com Deus Pela Liberdade e a liberdade foi aquela que se viu depois, todo mundo preso. E torturado, e sumido e fugido, os mais sortudos, largando tudo. E forcei, sozinha no quarto, um rárárá, não é engraçado?, mas não era.
A janela estava fechada por conta dos buzinaços e dos gritos de exultação dos que protestavam porque nunca vi protesto mais feliz. Todo mundo tão feliz, papai, mamãe, criancinha, todo mundo fitness e feliz (e branco) acenando e sorrindo para a câmara da TV Globo com aquela confiança dos que acham que vencem sempre.
Porque eu estava no quarto com a janela fechada, mas pus a TV Globo sem som e tinha The Voice Kids, com menininhas lindinhas que franziam a sobrancelha e faziam biquinho num microfone, presumo cantando músicas românticas, falando de experiências amorosas que não poderiam ter. Uns oito anos. Vestidas de oito anos, aliás, com saias no meio da canela, rodadas, tão bonitinhas. E quase, pois, que esse “morrendo” não sai porque tinha esse programa, interrompido de cinco em cinco minutos pra mostrar Goiânia, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, e a Paulista, cheias de gente vestida de amarelo. E foi me dando uma tristeza paralisante e quem me salvou foi o Chico. O Buarque. O petista. O que reclama.
Porque pensei: pronto, bobeia começa tudo outra vez, vão me hostilizar outra vez nos lugares cotidianos em que todo mundo tem de ir. Vou ter de me defender de abusos todos os dias, ou talvez até de coisa pior. E eu e o Chico podíamos então fazer o que a gente já vem fazendo – e com tantos mais – e além disso também fundar um bloco, o Hostilizados Da Esquina. Pro próximo carnaval, que com certeza há de vir.
Mas só se eu conseguisse me dar bem com o Chico, o que não era nem um pouco garantido e não estou nem me referindo ao fato de eu não ter gostado de um ou outro livro dele. Não, é bem pior. E está aqui o meu “de rir”:
Começou no início dos anos 1980 e naquele tempo ele não era ainda um escritor e eu sim. E trabalhava em O Globo, onde eu entrava sempre que a chuva em cima de mim ficava mais forte, e de onde saía sempre que arranjava um sol.
Portanto chovia, e forte, em cima de mim, naquela época.
Mas eu tinha alguns momentos em que conseguia me sentir sensacional e um deles era quando pessoas olhavam, surpresas, pro grupo formado por mim, Roberto, Edu (o pai biológico da Caró), Ellen (a nova mulher do Edu) e as crianças todas, sempre juntas. Sempre juntos, nós. Nos dávamos bem, estávamos sempre juntos, rindo o que dava pra rir.
E foi um dia em que a Mônica (filha da Ellen) fazia aniversário e era um dia desses, em que as pessoas olhavam pra gente, admiradas, e eu me sentia então, mesmo que por poucos minutos, sensacional.
Então era uma rara Elvira do tipo sensacional que esperava o elevador, Caró segurando o presentinho da Mônica, na Gastão Bahiana, casa do Edu e da Ellen. Aí chega o Chico com a Silvia, também com seu presentinho. Silvia era colega da Mônica na escola. E ficamos lá os quatro.
Eu, a sensacional, achei que era uma oportunidade pra ser sensacionalíssima e começo a olhar o teto, as paredes, o chão e sou boa nisso, de olhar pra tudo que é desinteressante com máxima atenção. O raciocínio é que o Chico devia estar de saco cheio de olhares, palavrinhas e tentativas de aproximação. E que a boa educação era nem cumprimentar.
Depois piora porque, crianças entregues, ficamos os dois esperando o elevador de volta. Que chega. Ele abre a porta, gentil, mas rosno.
“Pode ir, vou no próximo.”
Ficou me olhando com olhos esbugalhados de quem não conseguia acreditar na minha – achava eu, que sou completamente louca – sensacionalíssima boa educação.
E piora mais ainda.
Porque mesmo depois que me toquei que eu era isso, uma completa louca, dei de ombros. Paciência. O cara famosão, imagine, nunca mais vou encontrá-lo, dane-se.
E claro, né.
Um desses eventos em que às vezes tenho de ir. O Chico. Gritos de “chico” e saias passavam voando em direção a um buraco negro que devia ser ele. Não averiguei. Me virei de costas e teve uma hora em que tive que dar uma andadinha um pouco mais pra direita e dei a andadinha de costas. Isso tudo, como é meu hábito, olhando o teto. Podia dizer aqui que eu estava tentando ser educadíssima outra vez. Mas não. Acho só que eu preferia que ele não me visse. O lance com o elevador, as meninas ainda pequenas, tinha sido há muito tempo. Mas resolvi não arriscar.
Depois me ocorreu que justamente por ter ficado o tempo todo de costas pra ele, que era a estrela da noite, eu me tornava reconhecível. Quem mais, no mundo.
Até hoje não sei. Sei que não sei o que vai acontecer outra vez neste país, eu provavelmente perdendo, que é uma tendência minha. Sei que tenho muitas histórias dessas. Em que eu, frente a algo ou alguém pra o quê ou quem o mundo espera que eu sorria e acene como pinguim de desenho animado, eu rather not.
Nem mesmo bilu-bilu faço, embora do bilu-bilu eu me arrependa.
Foi antes disso tudo. Tinha me separado de quem parecia ser o único amor da minha vida e, porque essas coisas vêm sempre juntas, também tinha perdido o emprego. Outro elevador, eu indo visitar minha mãe que costumava (e fez isso por décadas) me olhar com cara de pena, cara de eu não disse. E ajeitava um pouco meu cabelo e suspirava.
“Faz um corte mais pra cima, vai te rejuvenescer.”
Eu tinha 19 anos.
Junto comigo no elevador uma ex-vizinha pra quem tudo dava certo. Ficou noiva por dois anos de rapaz de futuro, eu vivendo em uma quase república sem marido formal à vista. Casou com bela festa de muitos convidados (eu inclusive, mas não fui), enquanto acabei casando, sim, mas no cartório e sem avisar ninguém. Adiei filho até conseguir dinheiro pra comida, enquanto ela, nove meses depois do casório, aparecia com belo rebento. E menino!!! A cara do pai!!!
Ela estava de costas pra mim, a criança no seu colo me olhando por cima dos ombros. Fiz uma careta horrorosa, o pobrezinho abriu o choro. O que foi, o que foi? A moça se virou, fiz gesto de não entender nada de criança, ela saltou do elevador e entrei na casa da minha mãe me sentindo muito bem, ela até estranhou.
Casei legalmente uma segunda vez, muitos anos depois, sempre em cartório, meu lugar preferido pra essas coisas. Comigo e com o Roberto estavam o Edu e a Ellen, as crianças todas, as dela e as minhas (nunca filho meu nasceu eu estando casada com o pai da criança) e foi inesquecível de bom. E é bom até hoje. Porque tem isso, a gente perde até a hora que ganha. Não fiz careta pro Chico, então ele até que deu sorte. Ou fui eu quem deu sorte. Hoje posso aventar a possibilidade do bloco. E estão todos convidados. E do riso (quando der). E estão todos convidados.
05 – Pacaembu, 11/11/2013
(publicado em março /2016 pela revista pessoa)
Estou com um saco de batatas nas mãos e um vestidinho novo. Tenho de explicar as batatas e não o vestidinho novo porque, afinal, estou indo prum evento em minha homenagem e não quero que vocês pensem que vou em eventos em minha homenagem segurando batatas, embora não haja problema de ir nessas coisas com vestidinho novo – o que dá um ensaio filosófico sobre gênero e capitalismo, mas numa outra hora.
Não vou com batata de propósito de jeito nenhum, como às vezes pode parecer.
Nesse caso, e em outros parecidos que sim, os houve, é porque não tenho nada pra fazer.
Nunca tenho. Passo a vida olhando o vazio. E aí saio sempre cedo de casa e chego cedo nos lugares e as pessoas estranham. Então, posso escolher: ou as pessoas estranham de eu chegar tão cedo ou as pessoas estranham de eu ter passado antes no supermercado pra fazer hora.
Mas chego. E pergunto na portaria onde é o evento com a escritora, me indicam e eu entro e é no auditório que é enorme e está vazio porque, apesar das batatas, ainda é cedo pra cacete.
E aí sento numa das últimas filas e fico lá rezando pra não ter mosquito porque, já falei, estou de vestido.
Entram pessoas, algumas olham pra mim de cara feia, o que estou fazendo lá, o evento é interno da escola e tinham avisado que não era pra chamar os pais porque só de alunos já enchia aquilo tudo.
E encheu.
Quando enfim deram por mim, que eu era eu, tinha bem uns, sei lá, sou ruim de número, mas acho que bem uns trezentos.
E dar por mim quer dizer que olharam bem pra minha cara e eu não era nem um pouco o que eles esperavam que fosse, não tinha luzinhas piscando na testa e eu não tinha nem um pouco cara de quem merecia evento em sua homenagem.
Mas eu era o que havia, então, que remédio, me levaram pro palco e as crianças, em uníssono:
“Elvira!!! (pam, pam, pam) Elvira!!!! (pam, pam, pam).
O pam, pam, pam, não sei como faziam, se com os pés no chão, as mãos na poltrona ou batendo com toda a força nos livros (os meus) que tinham no colo.
Colégio Benett. Enorme. Em Botafogo, Rio de Janeiro.
E há muito, muito tempo.
Depois larguei a literatura infantil e nunca mais.
Esse dia ficou conhecido como meu Dia De Zico. Não sei muito bem quem foi o Zico, além de ter sido um jogador de futebol. Mas Dia De Zico porque escritores de literatura pra adulto me disseram, verdes de inveja:
“Aí, hein, parece o Zico.”
Nunca mais.
Até Pacaembu.
E eu não estava mais com o saco de batata nas mãos, mas com o Nada a dizer.
Que vem a ser o seguinte: palavrões em uma história de adultério com detalhes de quarto de motel.
Mas, na minha frente, as mesmas trezentas crianças. Devem ter juntado das cidades vizinhas.
E eu pensando que algo deu errado. Porque avisei que ia ser o Nada a dizer e que o público, portanto, era de adulto, e mais do que adulto, adulto com a mente aberta e preparado pra discutir essas coisas que às vezes acontecem com adultos. E acrescentei que eu, aliás, há mais de trinta anos, não escrevia pra criança.
Mas nessas cidadezinhas que dormem, é difícil convencer adulto. Criança está lá, você manda: vai pra lá, vem pra cá. E elas vão. Fica mais fácil.
Então, o público era de criança.
Analisei algumas possibilidades de improvisação.
1) A falibilidade do ser em um contexto não teológico:
“Papai e mamãe às vezes fazem caca. Quem mais faz caca aí?”
E depois de algumas histórias de caca, lápis e papel pra todo mundo desenhar a caca feita.
2) O limiar da indiscernibilidade entre ética individual e moral coletiva.
“Mentir é feio, estão ouvindo. Quem mentiu aí?”
E depois de algumas histórias de mentira, lápis e papel pra todo mundo desenhar o inferno bem vermelhinho.
“E nada de passar o vermelho por cima da margem, hein!!”
3) Estruturação da linguagem no inconsciente, segundo Lacan.
“Não pode falar palavrão. A tia escreveu esse livro aqui inteirinho pra mostrar que é feio falar palavrão.”
E lápis e papel pra todo mundo escrever Um Dia Com O Vovô sem usar nenhum palavrão.
“Nenhunzinho, principalmente se for sem querer, ouviram?”
Os professores resolveram que o melhor era eu ficar calada e as crianças fazerem perguntas.
Acabou cedo.
O motorista tinha sumido. Fiquei esperando sentada no murinho do lado de fora ele reaparecer.
Tinha ido visitar uma “pessoa”.
Essas viagens pro interior são com você e o motorista dias e dias na estrada, se hospedando no mesmo hotel, olhando a mesma reta de asfalto sem fim na sua frente. O melhor é conversar, mas não sou muito boa de conversa mole, o futebol, a política. Pacaembu não era a primeira parada, longe disso. No começo ele tentou uns papos, depois desistiu. Música eu também não gostava. Então apareceu o apito. Algo apitava no relógio dele em intervalos regulares.
“O que é isso?”
“É pra eu não dormir no volante.”
Não perguntei se ele usava aquilo sempre. Achei que sabia a resposta.
Não. Só quando dirijo pra escritora chata.
Depois de Pacaembu e da minha espera por ele, eu sentada no murinho, as coisas melhoraram. Acabou contando do casamento falido, da “pessoa”. Não usou mais o apito no resto da viagem. Dei meu exemplar do Nada a dizer na despedida. Plateia de um. Não me importo. Em geral me comovo com minhas plateias, sejam elas do tamanho que for. Olho quem está na minha frente e descubro, quase sempre, uns malucos alucinados iguais a mim. Gente que, em caminhos muito retos, precisa de apito pra não desistir de vez.
04 – Caiabu – 15/11/2013
(publicado em fevereiro/2016 pela revista pessoa)
O problema do prêmio é a cara. Se você ganha tem de fazer cara de surpresa porque você não estava esperando.
“Imagina…”
E se não ganha, tem de fazer cara de condescendência irônica, humpf, enquanto bate palma pra quem ganha. Então já faz tempo que institui o alter do golden retriever. Ele fica lá, com os cabelos louros perfeitamente penteados, pose educadíssima, imóvel e acima de qualquer provocação, sendo que o abaulado na pele da bochecha quer dizer que, sim, embaixo tem dente, de modo que é melhor não.
Funciona.
Mas é minha única opção e sempre fico com medo que as pessoas saquem. Até que conheci o Mimoso.
Na hora eu devia estar recebendo um Jabuti, mas compromisso é compromisso, sou séria pra cacete, então eu estava em Caiabu que vem a ser.
O seguinte: umas casas, um pé de algo que me pareceu pitanga, mas muito maior, mais gostoso e que, de pitanga, só teve mesmo o vermelho que manchou minhas duas mãos e, temo, a boca (não tinha espelho disponível em Caiabu) durante toda a palestra que se seguiu ao pé de pitanga. Tinha também uma igreja e um lugar pra chamar de nosso. Meu e do Mimoso. No pastinho atrás da igreja.
Sou magra, ou tento, e o Mimoso deve ter algumas toneladas. O chifre, disso não vou falar porque não interessa aqui pro assunto tratado. Mas ele também ganhava prêmio, embora em rodeio, o que talvez seja mais fácil, gritos, assobios, música, ninguém prestando muito atenção pra cara que o boi faz se ganha ou não ganha.
Mas achei que eu tinha o que aprender ali.
Um olhar doce atrás de cílios longos, um leve abanar de orelhas sedosas. Achei que valia tentar no próximo. Um movimento suave com a boca de quem pode estar comendo capim ou recitando em voz baixa o tudo vale a pena do Fernando Pessoa.
Uma coisa já melhorei desde essa época e foi o vestido cinza.
Nesse Jabuti que não o foi – ou melhor, que eu não fui – porque estava em Caiabu, eu tinha um vestido cinza já há dois anos pendurado no armário, no cabide escrito “prêmio”.
Era pra ser um vestido desses que imitam ama inglesa do século XVIII, com rendinha nos punhos e no pescoço, botõezinhos que imitam pérola, tudo muito bonitinho. Mas achei que rendinha era demais e não tinha o modelo com botãozinho. Então ficou só um vestido cinza mesmo que comprei num ano em que achei que não havia como não ganhar o prêmio e, adivinha, não ganhei. O prêmio, não. Os prêmios. Porque uma coisa tem de ser dita. É claro que sou eu que mereço todos os prêmios e os outros só ganham porque:
– o júri ficou com pena, o infeliz está à beira da morte (não exclua assassinato);
– o júri foi comprado por interesses econômicos dos grandes grupos editoriais que são os que de fato comandam as finanças e a política do mundo inteiro;
– o júri é de analfabetos funcionais (função = me dar prêmio).
Mas então eu estava em Caiabu e até pensei que, por honra do Jabuti ausente, devia ir com o vestido cinza na bagagem, mas só ando de mochila e com os livros não coube.
Depois joguei o vestido fora sem nunca usar.
E fiz bem. Em Caiabu, além do Mimoso, tinha um cara que veio da roça, enxada na mão infância inteira. Foi chamado pelo antigo bibliotecário pra ajudar fazendo umas estantes, varrendo o chão, levando livro de cá para lá.
Sabia escrever o nome, e ler, vamos dizer que não sabia, de tão mal que lia.
Aí o bibliotecário que chamou o cara morreu e a cidadezinha ficou só com ele que continuava indo pra tirar o pó, consertar as cadeiras.
Aos poucos foi lendo os livros. Nem eram muitos. Sentava lá, nada pra fazer, e ia lendo os livros.
Se tornou o bibliotecário. E esse cara era tudo o que eu queria. Era ele que eu queria que pegasse um livro meu e lesse e gostasse.
E aí eu não ia precisar de vestido nenhum pra receber esse prêmio.
Tempos depois teve outro prêmio em meio a comentários de que minha narradora era dura e fria. Achei que se tratava de comparação com um feminino idealizado e retrógrado e fui à cerimônia toda de rosinha – saia, blusa e coletinho – só de sacanagem.
Minha ideia era fazer o serviço completo. Mimoso de cabo a rabo, maquiagem ressaltando os cílios e tal.
Aí, ganhando ou perdendo, eu poderia escolher entre:
– A Meiguinha, e olha só eu comendo capim;
– A Artística, e eu murmuraria, enlevada, que tudo vale a pena.
Mas acabei que não. Naquela noite fui mais um golden retriever, desta vez rosinha. Ficou mais pro médio. Perdi prum cara de terno bem cortado.
03 – Gotemburgo, 26/09/2015 (segunda parte)
(publicado em janeiro/2016 pela revista pessoa)
Então mando mais um email, agora num tom já francamente de pânico. Porque querem que eu vá pra Suécia via Papua-Nova Guiné.
Peguei os números no email pra vocês acreditarem.
1.1LEHMANN/ELVIRA MRS
1 KL 792 22SEP GRU-MAS 1915-1150 23SEP
2 KL 1159 23SEP MAS-GOT 1620-1750
3 KL 1152 29SEP GOT-MAS 0620- 0750
4 KL 791 29SEP MAS-GRU 1015 1715
Foi isso que recebi logo de prima e foi isso que, sim, é minha culpa, é sempre minha culpa, digo que está OK.
Porque perguntam se estou de acordo e digo sim.
Depois fui ver no google. MAS é acrônimo do aeroporto de Papua-Nova Guiné.
Aí pensei. Dinheiro público, né, não discuto, é o que for melhor, é o que der.
Uma coisa assim já entranhada de quem lida com cultura. Ênfase no verbo lidar. Porque é o que a gente faz, a gente lida. Pega com a mão, as duas mãos, pra não cair. Pega com um cuidado meio hesitante, não sabe muito bem onde botar, o que fazer, com medo de machucar, rasgar, inutilizar pra sempre e ouvir:
“Desse jeito que ficou, né minha senhora, não vai dar, cultura tem de ter casca brilhante, perfeita, senão ninguém quer. Agora vê só esse amassadinho. Isso é provocado por dúvida. Então eu pergunto pra senhora: a senhora já viu alguém querer dúvida?”
A gente sempre pedindo desculpa, falando por favor, obrigada e sempre tão acostumada a ser tratada tão mal e sempre tão contente por qualquer migalha.
Então Papua, qual o problema.
Porque pensei.
Estão me mandando pra Suécia via Papua-Nova Guiné porque 1) tem um avião com um carregamento de batata que vai pra lá e sobrou um lugarzinho; 2) há um acordo dentro do espírito preferencial pelos pobres em que, sempre que dá, aviões que vão do Brasil pra Suécia param lá pra movimentar o aeroporto e a venda de sanduíches de carne de jacaré; 3) porque não gostam mesmo dos meus livros e querem ver se desisto.
E até então, tudo bem. Porque sou do tipo que topa. Até que vi que precisava de visto e que visto, porque não tem representação legal papuense aqui, nem brasileira lá, o visto, então, se arranjava no aeroporto. O que me soou na linha de dólar na cueca (ambos in absentia). Ou: leva isso na bagagem que fica tudo certo, mas não pode abrir. E até mesmo, mas aí já sou eu delirando: rituais exóticos de acasalamento com chefes tribais na sala dos fundos do aeroporto.
Em tempo: o acrônimo do aeroporto papuense é MAS e o de Amsterdam é AMS. E é aí que entra a estagiária do Itamaraty. Acho que ela levou a culpa. Mulher é muito boa de levar a culpa. Mulher estagiária então, nem se fala. Ou seja, eu aqui, acho que a culpa é do Clinton, mas a gente não estava falando disso. Então, a estagiária do Itamaraty. Acho que a culpa é do computador. Digitou-se a ele mesmo erroneamente. Foi isso. O que ela, nem eu, notamos é que não podia ser Papua, não tinha como ser Papua. E eu quase fui pra Papua.
Minha filha, que gosta de mim e me entende, dava a maior força.
“Vai, mãe, quando é que você vai ter a oportunidade de conhecer Papua. Não fala nada pra ninguém e embarca, sua boba.”
Quer dizer, acho que ela gosta de mim.
O que me impediu foi o visto. Não fosse o visto, eu ia. E estava lá até hoje porque ninguém sente muita falta de escritor, como é mesmo o nome daquele que sumiu que fez aquele livro que não vou lembrar o nome?
Vocês já devem ter notado que essa segunda parte de “Gotembrugo, 26/09/2015” na verdade devia vir antes da primeira, já que se trata da viagem de ida. Mas qualquer um que tenha lido livro meu sabe que curto uma marcha ré. E vou continuar pra trás, mais ainda, porque, vocês acreditam?, comecei muito bem, eu. Aos dezessete anos, meu namorado queria que eu fosse modelo. Ou pelo menos que botasse um batonzinho pra fingir que era. Uma maneira de ele enfrentar, perante os amigos dele, nossa diferença de altura.
“Ah, ela é modelo.” E o sorriso de superioridade de quem come modelo.
Expliquei que preferia ressaltar outra altura, a da pilha de meus futuros originais, mas ah, ela é escritora, não surtia o mesmo efeito e ele acabou indo embora.
Pois nessa viagem de ida a Gotemburgo que quase foi via Papua, sentei ao lado de uma modelo. Uma moça lindíssima de dezesseis anos, da Ford. Não falava língua alguma além do português. E mesmo essa, mal. Se espantou quando apontei o Canal da Mancha e falei do túnel por baixo da água. Tinha largado a escola no quarto ano. Vivia num apartamento de oito moças, quatro beliches, dois em cada quarto. As roupas em malas pelo chão. Era o segundo apartamento dela. No primeiro, houve problema com as outras, um pouco mais velhas.
“Rolou inveja, sabe, elas têm inveja das mais novas.”
Às vezes passava uns dias na casa da mãe, no interior de Santa Catarina, mas gostava cada vez menos de ir.
“As pessoas lá têm inveja, sabe, da minha vida.”
Agora, dinheiro, ela, sim, ganhava. E coisas de graça. Academia, restaurantes finos, roupas, perfumes, jóias. Era só tirar umas fotos e pôr no instagram em troca.
E sabem o que fiz com a pobrezinha? Aconselhei que aproveitasse a experiência de vida e escrevesse um diário que fosse base de um livro futuro. Quer dizer, tentei fazer com que ela virasse escritora. E parasse de ganhar dinheiro, claro. E acabasse na Papua.
02 – Gotemburgo, 26/09/2015 (primeira parte)
(publicado em dezembro/2015 pela revista pessoa)
Há dois tipos. Os que falam da infância em Botucatu na casa da tia Conchita – pobrinha, é verdade, mas legal porque deu a eles a consciência social tão importante na literatura que fazem. E há os que falam sobre a especificidade da semiótica em campos de intersubjetividade. Os primeiros têm mais público. Eu sou dos segundos.
E não queria ser de nenhum. Porque, afinal, se escrevo é pra não falar.
Hoje não tem jeito. Você tem de falar e falar bem. Há mesmo coaching pra isso, dez sessões e uma é de graça. Por exemplo, você deve começar sempre com piada. Numa plateia tinha um judeu, um árabe e o Lacan. E terminar com citações inspiradoras. Vinicius e Nietszche estão meio por baixo. Guimarães Rosa emplaca bem.
Não que eu tenha feito o cursinho. Ouvi dizer, só.
Aliás, eu, na minha vida, bem que tentei não falar nem escrever. Com uns sete anos, ainda me esforçava pras pessoas entenderem, pela minha simples cara, o que eu pensava delas e do mundo. Acho que não deu certo. Ou as pessoas fingiram que não deu certo.
Então, o caso é que estou na Suécia com o papelzinho na mão que é, na verdade, bem mais do que um papelzinho. São cinco páginas em corpo doze e eu uso espaço simples.
Do meu lado, o editor já falou da Clarice Lispector, também publicada por ele. Falou da Clarice enquanto olhava pra mim. Está certo, iceberg, rosenberg, tudo a mesma coisa.
É minha vez.
Preparei o papelzinho sobre um livro que ia ser lançado mas não ficou pronto. Fiz uma análise da construção estrutural clássica em três atos e a razão de haver um epílogo que retoma as referências metalinguísticas do incipit. Coisa fina. Mas tudo que consigo pensar naquela hora é que não gosto da Clarice Lispector. Nem de editores. E até mesmo daquela plateia, ali na minha frente, até onde eu conseguia ver.
Uma pausa pros óculos.
Escritoras mulheres de súbitos e avassaladores sucessos mundiais: é essencial que fiquem bem na foto. Se tiverem feito um livro, melhor ainda. Não fico bem de óculos. Também não fico bem sem óculos. Tento não pensar nisso, mas em palestras só ponho óculos na hora mesmo de ler o papelzinho. Então eu estava sem óculos, mas dava pra ver. Os diplomatas do Itamaraty, órgão responsável pelo convite preu ir até lá. Eram três e inchavam o peito pra ocupar mais do que três cadeiras. A mocinha do estande. Duas velhinhas que não sabiam se era palestra ou show de stripper e não que fizesse diferença. Mais umas sombras que determino serem pessoas.
Umas oito, calculei.
Eu tinha quinze minutos.
E disseram: sueco não tem essa. Quinze minutos e acendem uma luz na tua cara, desligam o microfone.
Então eu tinha quinze minutos pra falar de um livro que não estava pronto, pra um público, vamos chamar de público, sueco, ao lado de um editor que usou o tempo dele tecendo loas à Clarice Lispector, quem ele achava, com toda a razão, ter mais chance de vender livro do que eu, mesmo se eu tivesse livro.
E foi aí que baixou uma dessas inspirações de momento, dessas coisas que não se sabe de onde vêm.
Lembrei que mato gente.
Um, com sorte dois, em cada livro. Quinze minutos sobre minhas motivações de matar gente, sendo que me ative às literárias.
Uma pausa pro sotaque.
A palestra é em inglês e falo inglês com sotaque alemão, mas não é bem isso, é raiva. Sou da década de 1970, o imperialismo ianque e tal.
Batem palma. Com vigor. E saem correndo. Eu também. Pelos corredores e mais corredores da feira, cheios de livros em sueco, nenhum sentido. A falta de sentido, fico repetindo, é porque está tudo em sueco.
No estande brasileiro, a mocinha diz que gostou. Não acredito sequer que tenha entendido. Mas ela ri dentinhos pontiagudos e percebo que, sim, gostou.
Sento no banco alto que chamo de lar e é aí que Gotemburgo de fato começa.
Eles vêm e desde longe, nas aleias lotadas da feira, abrem os braços, um rebolado e o miudinho no pé, sem música mas perfeito, o riso na cara.
“Eeeehhhh.”
Eu no meu banquinho também começo a rebolar e abraço quem vem, os olhos molhados de encontrar a Donizete, nossa, a Donizete, que ainda não conheço mas que está há oito anos em Gotemburgo e a quem, portanto, não vejo há oito anos.
Se ela gosta de lá.
“Vixe.”
E revira os olhos. O marido ao lado parece maravilhado com tudo, e a filha deles, trancinhas afro, já vai entrando e pegando os livros como se estivesse em casa.
E é tão bom encontrar a Donizete que adorei Gotemburgo.
Já o livro não saiu até hoje, dizem que em janeiro.
01 – São Francisco Xavier, 05/04/2014
(publicado em novembro/2015 pela revista pessoa)
Digo que quero um bife.
“E pode trazer a cerveja antes, por favor.”
Só falta chamar a polícia.
O estabelecimento não serve bife. Muito menos cerveja.
Serve entrecôte.
E em vez de cerveja, diz um nome impronunciável. É de cerveja. Mas alemã.
Fico lá, assassinando a entrecôte, com dúvidas se seria o entrecôte. E vendo meu problema diminuir a cada golpaço da faca, como aliás acontece com problemas assim, filosóficos. Eles diminuem quando esfaqueados.
Diminui também o problema filosófico do garçom que acho nem era o garçom, mas o próprio dono.
Porque eu não era uma pessoa adequada para a/o entrecôte.
Depois fui descobrir por quê.
Depois de muito tempo.
Porque sou assim, burra mesmo.
Foi juntando dois com dois.
Porque fui catar meu bife num dos restaurantes conveniados mais para fora do centrinho, lotado.
Adendo: restaurante conveniado. Restaurantes que aceitavam o tíquete que, nós, os donos da festa (até então eu me fincava no papel de dona da festa) ganhamos ao chegar. O tíquete pagava qualquer refeição, excluída a bebida.
E era isso o que eu pensava camelando de volta na ladeira em direção ao centrinho onde eu devia apresentar meu papel de dona da festa.
Segundo Adendo: papel de dona da festa. Confraternizar com os fãs enlouquecidos que gritariam, meu livro na mão, querendo autógrafo, querendo, querendo, não tenho a menor ideia do que quereriam esses fãs que estariam na praça, onde eu deveria, magnânima, sentar para oferecer um pouco da minha genialidade para todos aqueles – e seriam muitos! – que não a tem.
Pensava eu, então, subindo a ladeira. Nos fãs. E no tíquete. Porque se a refeição era paga com o tíquete, pro dono do restaurante tanto fazia bife ou entrecôte. A diferença de preço inclusa na diferença de idioma estaria de qualquer modo coberta. Correto? Tíquete é tíquete.
Foi só depois de muito tempo que juntei.
Nos restaurantes lotados que davam para a praça do centrinho havia um grupo. Eu não tinha nada pra fazer. Resolvi esperar os fãs enlouquecidos que iam descer dos céus em uma nuvem púrpura entre raios de sol, e que obliterariam, os fãs, tenho certeza, a vaca que pastava bem no cocuruto da montanha ao lado e que era a única coisa que eu conseguia olhar.
Resolvi esperar sentada na sarjeta.
Dito assim, parece ruim. Mas não é. Nem era sarjeta, vai. Está bem, era sarjeta. Mas com tanta gente passando ninguém nem ia notar que era sarjeta. Aí fiquei. Olhando a vaca.
E escutando o grupo, que estava bem atrás de mim, na varanda do restaurante mais disputado.
Só o som, primeiro.
E eles diziam que ia ter uma festa logo mais. E alguém do grupo disse que precisava passar na pousada antes porque precisava melhorar o visual. Dar um trato. Ficar com look de artista. Porque sem look de artista não ia rolar nada.
Aí me virei.
O cara tinha um chapéu bossudo, paletó de linho bege. Se tirasse o chapéu e o paletó ia ficar igualzinho a uma pessoa dessas que você nem vê. Assim, como eu. A moça que queria passar na pousada estava com um vestido africano.
Eles já tinham look de artista.
Não tenho a ideia de como ficaram na festa na qual, claro, não fui. Mais look de artista ainda. Mas não sei como se aumenta um look de artista.
E nem me toquei. Foi só depois.
Eles eram entrecôte. Eu era bife.
É por isso que não faço sucesso e nem fiz, naquele dia. Porque não noto quando é para ser entrecôte.
Era para eu ter sido entrecôte. Preciso ser entrecôte. Meu deus, tenho de aprender urgentemente a ser entrecôte.
Quanto a ser dona da festa, às vezes não tem jeito. Não tem outro papel pra fazer. Você sabe que é apenas um laranja, mas é jogado lá, te empurram pra frente e você precisa, não tem outro jeito, a não ser virar ponto turístico em resort.