Deixei ele lá e vim – críticas

ELVIRA VIGNA: DEIXEI ELE LÁ E VIM (Companhia das Letras, 2006, 152p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

 

 

 

 

Lucas Peto (graduando em psicologia na Unesp-Assis), por email, 02/10/2012

terminei de ler o ‘deixei ele lá e vim’, é, levei uns meses por conta de coisas da faculdade.
enfim, em alguns partes eu me senti meio bêbado, talvez tenha sido por conta da próprio ambiente que cercea as
personagens somado à sua estética de capítulos curtos e sentenças curtas misturadas a parágrafos mais longos, meio proust e graciliano ramos! foi minha impressão.
o que mais me pegou foram os momentos de ‘vou’! sabe?! vou, sem saber para onde, mas vou! mesmo que depois, por conta de barreiras e lareiras e pesares e bares, ela não vá, o momento do ‘VOU’ me pegou!
é que, enquanto lia o seu, reli o ‘a situação da classe trabalhadora na inglaterra’ do engels e ‘berlim, 1945: a queda’ do beevor e essas duas obras, uma pelo seu posicionamento crítico, e outra pelo período narrado, me impeliram a perceber as cidades, seu fluxos, suas discrepâncias, as desigualdades, as mazelas, enfim … as linhas que compõem as cidades, de uma outra forma. e, por isso, é que o movimento do ‘vou’ me pegou. o ‘vou’ do ônibus, o ‘vou’ dos pedestres, o ‘vou’de todo mundo, sabe?!
em uma passagem, o engels diz: ‘para que as duas correntes da multidão que caminham em direções opostas não impeçam seu movimento mútuo – e ninguém pensa em conceder ao outro sequer um olhar’. uma das músicas da minha banda favorita diz: ‘pessoas em todas as direções sem trocar nenhuma palavra, sem tempo para trocá-las’. entende? esse moinho diário brutal do capitalismo que esmaga todo mundo.
não expliquei nada, eu sei, mas, enfim, o que me pegou foi o ‘vou’! eu fico me perguntando, às vezes, quando tô na rua ou no ônibus, e tal, eu me pergunto: ‘para onde vai essa formiguinha? será que ela também só quer ir?’
obrigado pelo livro, pela dedicatória, e me perdoe pela demora!
abraços!

 

 

 

Luiz Paulo Faccioli – jornal Rascunho, seção de críticas e resenhas, edição de fevereiro/2006

Copying Beethoven de Agnieszka Holland, no Brasil rebatizado de O segredo de Beethoven e em cartaz nos cinemas, traz uma história fictícia que retrata os últimos anos da vida do compositor. Anna Holtz, brilhante e imodesta aluna do conservatório de música, é contratada para passar a limpo (ou “copiar”, como indica o título original) a partitura da Nona Sinfonia à medida que o mestre vai concluindo a orquestração em páginas garatujadas e indecifráveis a copistas menos treinados. Estamos a quatro dias da estréia de sua obra mais célebre, quando um Beethoven iracundo e quase totalmente surdo sobrevive de uma glória passada e desacreditado pela elite vienense. Numa cena emblemática, o genioso compositor recebe de Anna as primeiras transcrições e descobre uma ligeira “correção” que ela ousou fazer em sua música. O trecho em questão aparecia todo ele escrito em Si maior, mas a copista decidiu alterar um dos compassos para Si menor, dando-se ainda ao desplante de explicar à fera boquiaberta com tamanha audácia que a intenção dele era ter feito isso mesmo, mas se confundiu na hora de fazê-lo! Indiferente à tempestade que se aproxima, Anna vai ao piano, toca o trecho como o encontrou e diz que daquela maneira comporia Rossini ou Boccherini. Toca de novo, agora modulando para Si menor o compasso da discórdia, e là voilà: uma quebra na seqüência natural de forma a criar uma expectativa e conseqüente tensão, retornando em seguida ao porto seguro da tonalidade original. Segundo Anna, essa seria a autêntica e genial solução beethoveniana. (É possível que toda Viena tenha ouvido a explosão, mas a passagem com a fantasiosa intervenção atribuída à aprendiz consta de fato do último movimento da Coral.)
Eis aí o conceito que se quer resgatar aqui: a previsibilidade, no enfoque da criação artística. Imagine-se uma escala em que, num de seus extremos, esteja o que o cérebro humano interpreta como natural e previsível segundo um ordenamento-padrão e, no extremo oposto, o paroxismo de nada vir na forma ou lugar esperados. Os diferentes graus dessa escala são pontuados de acordo com o quanto há de ruptura em relação a uma ordem preconcebida ou lógica. Nos dois extremos a tensão é nula; para que ela exista é necessário, não apenas o imprevisto, mas também que o cérebro possa reconhecer o padrão atrás da ruptura. Aplicando-se a sabedoria popular a este caso, é mais uma vez a dose que diferencia o remédio do veneno, sendo que a arte quer distância de ambos. Obviamente, há que se considerar também a evolução: o que um dia foi o inesperado, o tempo se encarregará de tornar previsível – e o caso do Si menor constitui um exemplo perfeito.
Há um outro aspecto interessante relacionado à mesma idéia: a tendência do leitor/espectador é acreditar sempre e sem restrições em tudo o que o narrador conta. De resto, o “confiar desconfiando” pode até servir como um objetivo a ser perseguido pelo ser humano, mas não é essa a atitude mental natural. No contexto da ficção, um narrador não confiável é por si só um elemento dos mais imprevisíveis. E, justamente por esta razão, um desafio constante à perícia do autor.
Em seu mais recente romance, Deixei ele lá e vim, Elvira Vigna constrói uma narrativa que foge do previsível valendo-se de um narrador não confiável. Como se pôde ver até aqui, é uma aposta alta. Primeira conseqüência: trata-se de um livro difícil de ser resumido sem que se corra o risco de antecipar num descuido aquilo que competiria ao leitor ir descobrindo paulatinamente. Restrinjamo-nos, pois, ao mínimo necessário.
Quem narra a história em primeira pessoa é Shirley Marlone. Desempregada, ela mora num cômodo alugado na favela do morro do Vidigal carioca e está decidida a mudar-se para São Paulo. Na véspera de viajar, vai à procura da amiga e vizinha Meire, que trabalha no restaurante de um hotel cinco estrelas à beira da praia, levando consigo uma grande e inusitada soma em dinheiro. Poucos são os hóspedes e estranhas as criaturas que gravitam em torno deles numa suposta baixa temporada. Shirley decide jantar no restaurante enquanto espera que acabe o expediente da amiga, quando então se junta a elas uma terceira personagem, Dô, e as três resolvem passar a noite no hotel, instaladas sob um caramanchão de frente para o mar. Bebem vinho, fumam maconha, jogam conversa fora, dormitam. Na manhã seguinte, Shirley descobre ter havido uma morte e chega ao cúmulo de não ter certeza se foi ela ou não a responsável. Segue-se a investigação do caso, cujo desfecho está longe de ser conclusivo. A partir desse tempo presente, várias passagens da vida da protagonista-narradora são contadas em flashback, trazendo à tona situações que só reforçam as muitas incertezas da história. Aliás, incerteza e imprecisão são recursos que pautam toda a narrativa e continuam instigando após o ponto final.
Com uma nítida queda pela ficção policial, consenso formado a partir de seus quatro títulos anteriores voltados ao público adulto, Vigna acompanharia a tendência atual de subversão do modelo clássico. Mas o que existe de policial na trama de Deixei ele lá e vim limita-se à morte misteriosa e a alguma ação para elucidá-la. O grande movimento é de uma ordem diversa da esperada: o leitor logo vai se dar conta de que importa menos descobrir a identidade do assassino do que desvendar quem é de fato a narradora – este, sim, o verdadeiro enigma. Parte do mistério se resolve, ainda que de maneira cifrada, na última página, e por um detalhe que bem poderia explicar a personalidade errática de Shirley. Fica-se tentado a voltar ao início e refazer a leitura depois de resolvida a charada, pois de um golpe a história ganha um novo sentido. O pulo-do-gato traz, sem dúvida, um charme adicional à trama. Ele chega a ser insinuado em alguns momentos antes do final, quando a percepção do leitor está habilmente desviada para outro ponto e não consegue flagrá-lo. Ainda que cenário, personagens ou mesmo a linguagem não coincidam, há aspectos que chegam a evocar o espanhol Manuel Vázquez Montalbán do belo e provocante Quarteto.

Vacilo inicial
Vigna demonstra segurança e técnica suficientes para sustentar uma narrativa que apresenta, pela própria concepção, um alto grau de complexidade. Isso não evita que o livro abra de maneira algo confusa, custando alguns capítulos para afinar e dizer enfim ao que veio. Não se trata obviamente de uma questão secundária, uma vez que ela tem o poder de afastar na arrancada um leitor menos paciente. Mas o vacilo inicial acaba diluído e entra na conta da atmosfera de incerteza à qual a autora se propõe. Vencido o obstáculo, a mão é firme, própria de quem sabe aonde e como quer chegar.
Chama a atenção a naturalidade com que Elvira Vigna compõe seu elenco com tipos quase todos tirados da escória social, estendendo-lhes um olhar sem preconceito ou compaixão. Ela não fica alardeando aos quatro ventos de onde eles vêm ou quem eles são, muito menos lastimando a sorte que não tiveram na vida, e o leitor acaba por esquecer esses detalhes. Aliás, a autora quer que a desvalia de seus personagens fique exatamente nisso: um mero detalhe da história.
O discurso é seco, construído com frases curtas, muitas vezes sincopadas, onde os adjetivos raramente são bem-vindos. Antes de sugerir a crueza própria de quem pretende atingir o leitor no estômago, a economia resulta num texto limpo e direto que dispensa filigranas e artimanhas estilísticas. Há uma evidente preocupação com a eufonia dentro de uma estética contemporânea e muito bem adequada ao universo retratado. O pragmatismo da linguagem não exclui a possibilidade de surgirem belas metáforas, como a que aparece no trecho em destaque.
A capa de Deixei ele lá e vim, assinada por Kiko Farkas sobre foto de Mônica Vendramini, traz uma imagem suburbana que diz muito do enredo: uma janela aberta para o interior de uma peça onde se vê uma cortina, um eletrodoméstico, um quadro, uma cadeira, uma figura humana. Na perspectiva da fotografia, nenhum desses elementos aparece por inteiro: meia janela, um pedaço da cortina, outro de um provável freezer horizontal, a quarta parte do encosto da cadeira, a cabeça e um dos ombros de um ser indefinido e de costas. Pode ser tanto um boteco de periferia como uma cozinha improvisada. Ou, o mais provável, uma casa de único cômodo. Do solitário personagem não se distingue idade ou cor; presume-se que seja uma menina pela pequenez e pelo que parece ser um decote feminino. Tudo combina nesse ambiente do qual se vê apenas uma parte e quase que por uma fresta. Haverá um detalhe escondido – um Si menor – que a seu tempo mostrará não ser o quadro tão óbvio como se pensou à primeira vista.

 

 

Sérgio Rodrigues – NoMínimo, seção Todo Prosa, 28/12/2006

Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna, outro bom livro de 2006, dialoga com a tradição do romance de modo inteiramente diferente: idiossincrático e sacana. Mais madura que Galera, a autora está claramente interessada em demolir – e não em erguer – o barraco ficcional. Exige participação tão ativa do leitor, trabalha com tantas elipses, pistas falsas e puxadas de tapete, que em mãos menos habilidosas sua prosa correria o risco de se tornar ilegível. O mais bacana é isto: não se torna nunca. Pelo contrário, para resistir à escrita de Elvira só mesmo sendo um crítico brasileiro médio, desses que ignoraram a pequena jóia que, já a partir do título, é Deixei ele lá e vim. (O Todoprosa também frangou o livro, cerca de três meses atrás, mas tem o álibi da falta de tempo; terminei de lê-lo há duas semanas, e espero que sua inclusão nesta lista seja redenção suficiente.)

 

 

 

Elias Fajardo – 0 O Globo, caderno Prosa e Verso, 23/12/06

Não se trata de um típico romance policial. Tem um crime, é claro, mas o mais importante não é descobrir quem matou, e sim a verdadeira identidade da protagonista.
Um enredo desse tipo poderia facilmente desandar, tornando-se incompreensível e sem sentido. Mas não é o caso do livro de Elvira Vigna: ela tem mão firme, escreve bem e consegue prender a atenção do início ao fim, mesmo sem usar a forma clássica da narrativa policial. Ao longo do texto, vai espalhando pistas, como nesta frase: “Não tem como saber que tramo mortes a três por dois e que são sempre a minha, mesmo quando não sei disso”. Mas as pistas podem ser falsas e cabe ao leitor imaginar o resto, montar ele próprio o quebra-cabeça.
Não existe também um detetive esperto, e nem é necessário.
À autora interessam sobretudo os mecanismos obscuros, o fio tênue que separa a verdade da mentira. O que foi mesmo que aconteceu? Quem está mentindo, afinal? Seria a protagonista uma prostituta de certo nível cultural, ou é uma roteirista escrevendo na primeira pessoa como se fosse uma prostituta? A ambigüidade pode ser boa conselheira desde que acompanhada da verosimilhança. Ou seja, o personagem pode ter um comportamento esquisito ou se expressar de maneira não usual, desde que tenha tal carga de verdade que possa convencer o leitor.
Assim sendo, os verdadeiros heróis desse livro são os deserdados e desprotegidos: uma lésbica nordestina que trabalha num grande hotel, as prostitutas que freqüentam as rebarbas desse hotel, os homens que transam com elas, os seguranças, o menino que recita dados históricos sobre o morro do Vidigal, na Zona Sul do Rio. São seres extremamente fragilizados pela marginalidade e, ao mesmo tempo, fortalecidos por ela. O que lhes dá força para subir o morro a pé quando não têm dinheiro para pagar a Kombi é o mesmo sentimento vital que os faz amar, praguejar, se drogar, se divertir e até, eventualmente, ser solidários no meio da barra pesada da batalha pela sobrevivência. Um olhar compassivo sobre tais seres não significa idealizá-los, mas, sim, tentar se aproximar daquilo que eles realmente são.
Chama a atenção o fato de que uma escritora de classe média consiga descrever este universo como se estivesse sendo visto de dentro.
Não existem jargões sociológicos ou antropológicos sobre os personagens: apenas suas aflições, angústias e pequenas alegrias.
E se trata de literatura feminina, no sentido de refletir uma sensibilidade capaz de enxergar o lirismo no meio da degradação, do vômito e da miséria. 

 

 

Eric Novello – Aguarrás, 03/11/06

O universo literário está cheio de interpretações. Os escritores mastigam o mundo ao seu redor e cospem os resultados no livro. Elvira Vigna é uma escritora peculiar nesse sentido, pois consegue pincelar o fato por trás da interpretação, dando às suas histórias um caráter de realidade raramente visto em outras obras. Mais do que estatura e corte de cabelo, as personagens têm vida, passado, presente e futuro para povoar o livro, sendo tão (ou mais) orgânicos quanto eu e você.
Seu estilo, para quem curte rótulos, é o policial sem polícia. O mistério não nasce da pista largada no chão, da saliva na guimba do cigarro ou do mágico teste de DNA. A densidade narrativa surge do interior dos personagens, do eu incontido que anseia marcar seu território mas decide manter para si (e para o leitor) os próprios mistérios. O policial aqui é o da motivação do crime. O instinto primordial substitui o circo detetivesco já desgastado nos livros e seriados.
“Segue com sua bunda em direção ao caminho das pedras. Chamo por ela. Pára no meio de um cinza quase opaco. Corro até ela. Dou mais um abraço. Ela ri, também me abraça. Depois, o que lembro é de voltar e pensar que tenho que fazer algum plano. É bom fazer planos. Nunca funcionam, mais distrai”.
Quando escreveu O assassinato de Bebê Martê, Elvira criou um dos grandes personagens da literatura brasileira. Riquíssimo, Bebê Martê evocava uma aura de sedução e perversidade inerente a todo ser humano que se encara diante do espelho. Em Às seis em ponto, Elvira armou em torno de As meninas de Velásquez a mítica que desnudava pouco a pouco a delicada relação e os segredos de uma família. Coisas que os homens não entendem deu de presente para o leitor um recorte de Santa Teresa, onde Nita, personagem principal, influenciava em sutilezas as vidas que se tocavam com a sua. A um passo, uma obra vanguardista, surpreendeu pela história de vingança que tangencia A Tempestade de Shakespeare e pela estrutura que cuidadosamente trabalha os espaços narrativos, num estilo de dar inveja a Abbas Kiarostami.
Chega então às livrarias Deixei ele lá e vim, seu quinto trabalho policial. Agora a narradora é Shirley Marlone, alguém sem um lugar pré-determinado no mundo. Com o pé fora do quartinho no Vidigal e a idéia fixa de ir para São Paulo – o lugar onde as coisas acontecem, Shirley tenta fugir não mais do passado, mas do presente. Alguém que margeia classificações sociais e sexuais (ela é um travesti), que se confunde da base ao topo da pirâmide, Shirley é do tipo que anda sem querer chegar ou partir. O seu lugar é a viagem, é o caminho, esse meio do percurso que nos atrai. A fuga de si mesmo, na verdade, é a revolta por não entender como tudo parece tão arrumadinho, como as pessoas podem adequar-se às situações (não importa quais), como o loiro do cabelo combina tão bem com o brilho do sol, como os sorrisos podem ser milimetricamente encaixados nos rostos daqueles que se dizem felizes. A fuga de si mesmo é metalingüística da narrativa cíclica de Elvira Vigna, pois põe a personagem numa busca da própria identidade.
Quando decide ir embora e sai do Vidigal, Shirley passa em um hotel na praia para se despedir da amiga Meire. Da favela para a Zona Sul, acompanhamos Shirley em um dia de indecisão, e nos envolvemos com seu jeito agradável de ver o mundo. É inevitável se identificar com a atmosfera do livro, o deslocamento de Shirley pelas páginas. Quem nunca se sentiu fora do lugar ou achou a vida alheia perfeita demais? Quem nunca se sentiu melancólico e depois extraiu humor da melancolia?
Quem lê toda a obra percebe um detalhe curioso. O Assassinato de Bebê Martê e Às Seis em Ponto são livros claustrofóbicos, daqueles em que o carro, o apartamento transbordam sentimentos, lembranças, aquele lodo familiar depositado anos e anos pelo tempo, feito de folhas mortas, fotos queimadas na tentativa de apagar o que não se pode. Coisas que os homens não entendem coloca a personagem dividida entre dois pontos. É Nova Iorque, é Santa Teresa e uma vida nesse meio. Me lembro das caminhadas pela rua e de um pedaço em que a personagem assiste TV sem som, lá pro final, e a sensação de claustrofobia estava de volta, um momento rápido, minutos antes da conclusão.
Em Deixei Ele Lá e Vim não há mais claustrofobia, não há dois pontos para se perder entre, os cenários são abertos, há uma praia, um deque num hotel, e uma personagem buscando seu espaço, alguém que adoraria estar perdida entre dois pontos, de ter dois pontos, um de bom tamanho, que se sentiria feliz na claustrofobia. Sem ter onde pisar, só com a areia – que nunca é firme – servindo de apoio, um chão e quatro paredes que desabam sobre si podem parecer reconfortantes. É uma ilusão claro, mas uma ilusão desejada quando se luta tentando encontrar
A força de Elvira Vigna está no drible do óbvio. As personagens do livro estão ao nosso lado na rua, no bar, no escritório. A parede imaginária que separa o leitor do território policial é rompida. Ele se identifica com os cenários, encaixa nas situações fragmentos de memória, sons e cheiros do cotidiano. Discretamente, enquanto narra, surge o ciúme, a traição, o bolo de dinheiro. E o melhor é que no meio disso vem o tiro, o assassinato que sacode bases, faz tremer as pernas do viajante e as mãos do leitor.
“Meire está ali, de pé na minha frente. Sua cara é a única coisa que muda num mundo em que nada muda há muito tempo. Então acompanho cada músculo, é o que há para olhar. Ela tenta, com a bochecha que incha e desincha, a velha brincadeira sobre o aventalzinho. Porque é ridículo, o aventalzinho de babadinho. Mas tanto eu como ela já sabemos disso, e então ela pára. Depois olha para os meus peitos chatos. Ridículos, os peitinhos”.

 

 

 


 

palestra, junto com o psicanalista lacaniano Romildo do Rêgo Barros, na livraria Argumento de Copacabana em 25/10/06, como parte dos “Diálogos” que antecedem o encontro anual da Escola Brasileira de Psicanálise.

 

Boa noite. Vou começar falando o que – ao meu ver – une obras criativas, seja em literatura ou em artes visuais. E que é também uma tentativa de me apresentar como alguém viável: faço as duas coisas desde sempre.
Bem, é uma quebra.
Na minha experiência de como surgem meus livros, e que é também o que encontro quando analiso obras de arte de outras pessoas, há uma quebra lógica, uma saída de estrutura, de linguagem – e uma recuperação dela. O livros e as artes visuais são essa recuperação.
Mas começa com algo que não se encaixa no seu entendimento de algo banal. Você não entende, fica fascinado e com medo e cria então um contexto para compartilhar esse não-entendimento. Você pode fazer isso de dois modos, um tentando dar uma explicação para a quebra e no outro tentando repetir, fazer com que o outro também vivencie ou chegue perto dela. O primeiro caminho é o dos romances caudalosos do século XIX e da arte referenciada, figurativa. O segundo é o da arte contemporânea e o da literatura sem enredo de começo, meio e fim, urbana, atual.
Não funciona bem e não funciona bem porque não pode mesmo funcionar. Se a quebra está fora da linguagem, fora do tempo e espaço, ela não é dizível. Você pode no máximo dizer das circunstâncias em que ela ocorreu, não dela. Quando eu digo que é um outro espaço e tempo quero dizer que nada que aconteceu antes a provoca e ela não determina nada do que ocorrerá depois. E se você repetir as mesmas circunstâncias outra vez não é certo que ela se repita.
Não estou falando aqui de nenhum ET que aparece e desaparece.
Não. Para o que é, uma assustadora possibilidade de uma vida não-humana, não inserida em uma linguagem, é até bem comum.  O que acontece é que nem todo mundo, uma vez se deparando com essa falta total de sentido – porque não me refiro a um sentido que falhou mas à ausência dele – nem todo mundo, eu dizia, sai dali para fazer um quadro, um livro. Você pode simplesmente rir. Volto ao riso daqui a pouco.
Primeiro o amor, tema desse Diálogo.
Bem, temos então a quebra e a recuperação da quebra. A recuperação da quebra, com a obsessão e a construção que a envolvem,  pode ser comparada a uma atitude amorosa. Você envolve a quebra, o objeto da sua obsessão, nas melhores roupas, ou a despe de tudo que é inútil mas de qualquer modo dedica a ela todos os carinhos. Não pode viver sem.
É comum levar essas metáforas um passo além e incluir o gozo sexual na categoria de quebras de sentido. E, de fato, aqui também você estará fora do espaço e do tempo, fora das estruturas lógicas que te fazem humano. Há mesmo a expressão ‘entrega’ e em geral se acredita que essa entrega é a entrega ao outro, o que não é verdade, pois se o ato sexual está sendo bem sucedido o outro estará tão entregue quanto você. É a entrega, pois, a isso, ao não-estruturado. Chama-se mesmo de ‘fazer amor’ ao ato sexual em uma não mais metáfora mas metonímia. O amor é o que está perto, o que, aqui também, é uma recuperação de uma quebra.
Só que não gosto da comparação.
Não acho que seja a mesma coisa do que eu vejo como o que provoca uma obra criativa. O gozo é o resultado de umas tantas coisas – gestos, atos, afetos – que, sim, podem ser repetidas para a obtenção de resultado similar, embora, claro, acidentes e percalços aconteçam. É menos do que a quebra lógica de que eu falava, há menos gozo e menos perigo na cama.
Outra comparação comum é com o sonho e eu também não gosto. O sonho já vem estruturado em linguagem. A quebra está além, escapa dele.
Porque há um aspecto terrível nisso que vale ressaltar. A quebra, que é a que você vai se dedicar obsessivamente por longos períodos, que é o que você ama e odeia, é coisa perigosíssima para a tua sobrevivência. A quebra, sendo a quebra de uma lógica, de uma linguagem, faz com que você não seja mais você, já que você só é você com linguagem e lógica. É de fato uma espécie de morte, a pior delas, a que não é sequer imaginável – no sentido etimológico mesmo – porque justamente nela não pode haver palavras nem imagens. Só as que você, obsessiva e rapidamente, põe.  Um adendo a essa história de não-humano, de fora de linguagem: a quebra como constitutiva do que a ela se opõe, seu uso pela linguagem à qual escapa.
O processo de recuperação de uma quebra só termina quando cessa a obsessão com ela. É isso o “ficar pronto” em uma obra de arte. E esse é o momento em que você está apto a se deparar com alguma outra nova quebra que gerará uma outra obsessão. É um processo que não tem objetivo algum além dele mesmo. Você faz porque é isso o que resta a fazer. Se vão comprar, se vão elogiar o objeto – e em arte contemporânea nem sempre se trata de um objeto – é já uma camada posta em cima, uma necessidade que se agrega àquela, inicial.
As pessoas falam muito em linguagem artística. Eu acho que essa palavra induz a um engano. Linguagem sempre supõe comunicação, pontos em rede. E não é assim que a coisa vai. No caso da quebra, o que acontece é uma tradução e a partir daí, dessa tradução, sim, há uma possibilidade de compartilhamento. Não é linguagem porque a pessoa – fruidor ou leitor – não fala de volta no mesmo nível em relação ao referente, que não é açambarcável. O que a pessoa vislumbra, e que já é muito, é a possibilidade de quebras. O intercâmbio, ali, entre quem vê/lê e quem fez, é que existe algo que não é posto em linguagem. A pessoa, frente à obra criativa, se depara com, vislumbra, a ocorrência de uma quebra. E o entendimento de que a rede que nos faz humano não cobre tudo, já dá para mudar uma vida, é uma pedrada. A noção de que aquela quebra, ali inferida, pode se assemelhar com uma quebra já vivida por você é uma sensação orgásmica. Mas a pessoa não troca quebras com o criador da obra. Ela não é passada para o outro por o que seria uma linguagem artística, algo que você poderia compartilhar. O que você compartilha é o depois. É a tradução da quebra em uma linguagem. A quebra está além, escapa. E – mais uma vez – ela ocorre, inclusive, em um outro tipo de tempo, em um outro calendário ou relógio. Nada do que estava antes teve influência direta na ocorrência, nada do que veio depois apresenta resquícios dela. E não tem duração.

O riso
Há uma comparação que pode ser feita, e que é com o riso. Você ri como reação a também uma quebra da lógica, da linguagem. Ao mesmo tempo que você, ao rir, você declara perceber e aceitar a presença de um outro que, como você, está inserido em uma mesma cultura, lógica, linguagem. Você, ao rir, está dizendo que percebeu que aquele outro, o que te fez rir, de algum modo suportou a existência de algo fora da cultura, lógica, linguagem a que vocês dois pertencem. Mas, mesmo nessa diferença absoluta, pelo motivo de você também perceber a quebra, você – que não a vivenciou em primeira mão – você se torna parecido com aquele que, por um tempo não mensurável, se viu fora da rede que te define e o define.
Essa proximidade enorme frente a uma distância enorme é o que busca o autor da obra criativa – literária ou visual. O que a gente quer é rir junto.

Aos exemplos. O leite derramado:
Vou ler um parágrafo da pag. 62 do meu último livro, o “Deixei ele lá e vim”:
“Uma menina que ela conheceu diz que todos os dias, quando põe o leite do filho para ferver, pensa que no dia em que ela for se suicidar, em vez de apagar o fogo quando o leite levantar fervura, deixará derramar e aí então ela se joga da janela. Isso porque se ela não se jogar terá de limpar tudo – fogão, panela e chão – e a limpeza a ser feita é o impulso adicional, e definitivo, para que se jogue.”
Quem fala isso é Shirley Marlone que, junto com Meire e Dô, passará uma noite na praia. O livro é a história dessa noite.
Agora, como o parágrafo entrou no livro:
Década de 70, eu grávida, precisando de uma faxineira, nenhuma servia. Até que veio essa, tudo bem, mas sempre chegava atrasada, inventando as desculpas mais dramáticas. A última foi que o leite que ela fervia todos os dias para o filho tinha derramado e ela precisou ir até a padaria, comprar outro, ferver outra vez, e por isso, chegara tarde e que, pelo mesmo motivo, ia sair cedo: precisava limpar tudo aquilo antes de o marido chegar, e ela fazer o jantar.
Eu disse que se eu fosse ela eu aproveitava a oportunidade e me suicidava de vez, que era melhor eu me atirar pela janela do que voltar para uma casa onde eu tinha de limpar o leite de um fogão antes de fazer um jantar para um marido. Eu ia achar melhor me atirar pela janela.
Nunca mais esqueci o episódio. Nunca soube por que não esquecia.
Depois de muito tempo, fui júri de um concurso literário e entre os textos concorrentes havia um que descrevia o leite derramado como adjutório de suicídio – o que me mostrou duas coisas. A primeira é que leite derramado no fogão era uma experiência traumática mais comum do que eu imaginava. E depois, que a frase continuava viva na minha cabeça. Depois de mais um tempo, esccrevi esse livro e a frase entrou nele. E no entanto não existe mais, esse tipo de leite que você precisa ferver. Mas a vivência da quebra lógica é tão forte que mesmo com esse erro, a frase ficou. E tem um outro erro, as personagens da minha história são faveladas. Mas ao repetir exatamente o que eu havia dito há mais de 30 anos, eu escrevi “pular pela janela”. Ao se atirar por uma janela de favela, a pessoa no máximo, rala o joelho. É tudo grudado.

 


 

Trabalhos acadêmicos

 

CAMPOS, Cynthia Funchal; ZOLIN, Lucia Osana.  “O narrador não confiável como estrátegia para a desconstrução de gênero em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. Universidade Federal de Sergipe: Revista Forum, Ano VIII, v. 15, n. 15, 119-136 pgs.
CAMPOS, Cynthia Funchal. “Identidade de gênero em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. Monografia em literatura do Instituto de letras da UnB, 2o semestre 2014.
Este texto está disponível online

 

AZEVEDO, Maria da Glória de Castro. “A personagem travesti em três romances brasileiros”. In: A mulher na escrita e no pensamento, ensaios de literatura e percepção, UFG, 2013, 181-195.

 

DALCASTAGNÉ, Regina. “Literatura brasileira contemporânea, um território contestado”. Rio de Janeiro: UERJ, 2012, 208p.

 

NEVES, Lígia de Amorim. “Gêneros não inteligíveis em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. In: Segunda Jornada Internacional de Estudos do Discurso, UEM – Universidade Estadual de Maringá / PLE – Programa de Pós-graduação em Letras, Maringá, março de 2012,  pp. 01-14.
Este texto está disponível online.

 

LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. “Corpos, gêneros e identidades nos romances de Elvira Vigna”. In: ZOLIN, Lúcia Osana; GOMES, Carlos Magno. Deslocamentos da escritora brasileira. Maringá (Paraná): ed. da universidade estadual de Maringá, 2011. pp. 217- 229.
LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. “O gênero em construção nos romances de cinco escritoras brasileiras contemporâneas”. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo, ed. Horizonte, 2010. pp. 65-96.

 

MIRANDA, Adelaide Calhman de. “Gêneros indefinidos, corpos inadequados em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”. In: DALCASTAGNÈ, Regina; LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos. Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo, ed. Horizonte, 2010. 114-123.