A um passo – críticas

ELVIRA VIGNA: A UM PASSO (Lamparina, 2004, 188p.) – uma seleção de críticas e entrevistas sobre o livro.
– projeto Mais Leitura, 2014.

 

 

Maria Esther Maciel, orelha da edição de 2004, editora Lamparina

Uma obra pode ser medida, como já mostrou Paul Valéry, pela soma ou pelo rigor de suas recusas. E a palavra “recusa”, aqui, não designa apenas o ato de “não aceitar” ou de “rejeitar” alguma coisa, mas também o de “não se subjugar”, de “não fazer concessões”.
Em um tempo em que o exercício do óbvio, a repetição de fórmulas e a sujeição às conveniências do mercado tornaram-se dispositivos por excelência de boa parte da narrativa contemporânea, A um passo, de Elvira Vigna, destaca-se como um dos raros livros de hoje a fazer da recusa nos vários sentidos e rigores da palavra uma de suas linhas de força. Mesmo ao privilegiar como matéria-prima o prosaico e o banal, enfocando o aqui-agora do mundo e da realidade brasileira, a violência do cotidiano e a hipocrisia das relações sociais, o romance mina (recusa), através dos “ácidos, gumes e ângulos agudos” da linguagem, toda a previsibilidade que subjaz a essa mesma matéria. Sem deixar de contar uma histõria (no caso, uma história de vingança), recusa-se às facilidades da lógica linear e da referencialidade, optando por um enfoque elíptico e fragmentário das coisas; e sem se furtar ao coloquialismo não se presta à mera reprodução espontânea do falar diário, mas deste ousa extrair, pelo trabalho da escrita, uma sintaxe inusitada, uma dicção babélica, uma articulação de viés experimental. A um passo recusa-se, ainda, ao que comumente se espera de um romance: ele pode ser lido tanto como uma narrativa sequencial, composta de capítulos curtos e concentrados, quanto como um conjunto de contos avulsos que se articulam num jogo entre o sucessivo e o simultâneo, onde cada peça se basta e se encadeia às demais, abrindo várias entradas e saídas no texto. Para não mencionar o poema do final que, a título de posfácio, faz uma espécie de “desleitura” do próprio livro.
Tendo já publicado vários outros romances, todos marcados por um estilo perculiar (a autora é uma dentre os poucos que conseguem criar uma linguagem própria, inconfundível, dentro da literatura contemporânea), Elvira Vigna radicaliza, em A um passo, a sua leitura corrosiva da vida urbana brasileira dos dias de hoje, vida tempestuosa onde quase todos são exilados, estrangeiros dentro de seu próprio território.
Não por acaso, um dos personagens do livro se chama Próspero, em uma oblíqua (e irônica) alusão ao protagonista de A tempestade, de Shakespeare, só que agora visto como uma espécie de “náufrago urbano”, que vive seu drama ao mesmo tempo em que o transforma em uma ficção que, por sua vez, se nega como tal.
Assim, na soma e no rigor de suas recusas, o livro de Vigna pode ser considerado um salto, um ir mais longe da escrita, que também desafia o leitor a dar o seu próprio passo, ou salto, para o século XXI.

 

 

 

 

Mayra Corrêa e Castro no blog As melhores partes dos livros que li, agosto de 2012

O texto da orelha do livro diz:

A um passo recusa-se, ainda, ao que comumente se espera de um romance: ele pode ser lido tanto como uma narrativa sequencial, composta de capítulos curtos e concentrados, quanto como um conjunto de contos avulsos que se articulam num jogo entre o sucessivo e o simultâneo, onde cada peça se basta e se encadeia às demais, abrindo várias entradas e saídas no texto.”

Foi optando pela segunda maneira que li A Um Passo, romance publicado em 2004 pela carioca Elvira Vigna (1947), que também possui outros sete livros adultos e já foi autora de livros infantis, além de ensaios e traduções.
Para testar a teoria da autora da orelha, Maria Esther Maciel – que o livro poderia ser lido como contos – , abri primeiramente o 5º capítulo. Então li de 5 em 5 capítulos, até o 85. Voltei ao capítulo 2 e passei a ler de 2 e 2, pulando, evidentemente, os capítulos com dezenas cheias (10, 20, etc) por já os ter lido anteriormente. A experiência foi bizarra, mas os temas de Elvira e sua escrita também o são – estávamos empatadas.
Nessa altura, eu mais ou menos entendi o enredo da trama: tinha um assassinato, dois amantes estavam envolvidos, havia um casal gay, um caso de pedofilia. Quando eu deveria ter lido o capítulo 88, não li: não queria saber o final do livro. Por isso, voltei ao capítulo 1 e li todos os que faltavam: 1, 3, 7, 9, 11 e assim por diante, até chegar ao 88 e, depois dele, ao posfácio. Ah, finalmente as coisas fizeram mais sentido: tratava-se da história de vingança que uma menina do interior perpretava contra o antigo professor que abusava dela. Os demais envolvidos no crime (tinha havido crime?), eram apenas outras peças num tabuleiro de xadrez, funcionais, mas não responsáveis pelo xeque-mate. Este, o xeque-mate, só pude entender mesmo quando, lidas todas as páginas, reli aqueles capítulos múltiplos de 5, para terminar a leitura com uma certeza: Elvira não dá certezas e pra gostar do que se lê, tem que se gostar do estilo e dos temas, sempre aflitivos.
Mas acho que Maria Esther errou: mesmo na “dicção babélica” de Elvira, mesmo na ordem elíptica do romance, deve-se começar por uma das pontas – talvez a autora conte com este nosso hábito – o da linearidade – para dar conta da vida e das vidas que ela cria.
Abaixo transcrevo as melhores partes:

Enfado

“Não é só a bebida, o pó, o fumo, a vida inteira e mais uma porra de dia seguinte que sempre vem. Trata-se de fenômeno mais geral que atinge mesmo os sóbrios, os babacas, os que nunca pensam na vida, a humanidade inteira cada vez menos disponível para complicações.” (p. 16-17)

Morte/Vida

“Um fim. Fins são bons. Fim só acontece em ficção, nada na realidade tem fim, portanto um fim, quando acontece, significa que tudo que veio antes era ficção e é bom pensar a própria vida como uma bela e compreensível ficção.” (p. 28)

Abaixo da linha do Equador

“A sombra de um telhado oferece uma linha inclinada na paisagem. Outras inclinações, hesitantes, ficam por conta de postes que deviam ser cartesianos mas não o são, pois Descartes nos trópicos entorta. A culpa nem é de eventuais desastres de carro nas bases enferrujadas, mas da própria colocação deles, os noventa graus habituais sendo calculados no olho, um torto, o outro fechado, a ponta da língua de fora.” (p. 33)

– “pois Descartes nos trópicos entorta” é uma boa frase, não é? E não é que imaginamos mesmo o peão medindo a inclinação do poste fazendo a careta contra o sol que lhe bate nos olhos?

Interiorano

“Porque nestas cidadezinhas tudo é marrom, o marrom do solo subindo pelas pernas, pele das pessoas, pelas paredes das casas e tomando alento nos cantos das sarjetas, e os cachorros vadios e magros também são marrom, os pés dos meninos e os meninos e os calçõezinhos rasgados dos meninos, é tudo marrom.” (p. 34)

– Em Curitiba é o cinza que se tinta, mas não que nem São Paulo, pelo concreto. O cinza vem de lá, do céu que deveria ser azul no verão.

Complicações

“ ‘O que é?’
‘Não, nada, estou procurando uma coisa que eu perdi e que eu sei que não está aqui.’
Uma dessas coisas que se inventa para depois poder ter com o quê afligir na vida.” (p. 85)

– Lembra que as pessoas não têm disposição pra complicações? Pelo contrário! Viva a sarna pra se coçar, gente!

Urbe

“Ia ser domingo, o que se faz em um domingo. Haverá o barulho de um conserto ali na esquina, mesmo domingo, pois é fase de verbas. Quando as verbas acabam, interrompem, e por longos meses ficam os buracos transformados em lagos malcheirosos, e seus operários se sentam agachados na porta dos tabiques de madeira especialmente construídos para eles, não mais operários mas vizinhos, absorvidos pelo bairro. Mas agora não. Daqui a pouco haverá um silvo, a sirene avisando do começo da obra, e operários, ainda sob a luz bruxuleante dos lampiões feitos com querosene e latas vazias, passarão de lá para cá, com pressa, sem se falarem. E eles levarão, na cabeça e caindo por sobre seus ombros nus, sacos de estopa para proteção, como um capuz. E andarão para lá e para cá, um pouco curvados, sem se falarem, monges medievais a construir, não a unicidade espiritual do universo mas a perenidade universal das ações que se repetem. Como dízimas periódicas, obras de rua ou madrugadas.” (p. 94)

– Quando Elvira dá pra descrever o normal, é ótima.

A cidade da infância

“E percebe que é para isso que voltou, para ter certeza de que partiu.” (p. 117)

Calor

“(…) a chave caindo no meio de outros pontos brilhantes presos no asfalto, outras chaves, moedinhas que perdem valor a cada ano, tampas de garrafa, tudo semi-afundado no asfalto porque nos dias quentes não são só as coisas de metal que afundam, é tudo, o pé das pessoas, a vontade delas, em uma areia movediça, um pântano que inclui até o ar.” (p. 128)

– Apesar de vivermos num país sem invernos, o que ocorre que os efeitos do calor quase nunca são explorados nas tramas? Acho que precisa ser um escritor escrevendo fora do ar-condicionado para fazê-lo, como fazia Balzac, só que em temperatura inversa, em sua água-furtada.

 

 

 

 

 

entrevista ao site literário Paralelos, março/2005; repórter: Ronize Aline

1. Em seu recente livro, A um passo, em determinado momento você diz que o personagem vai fazendo correções na realidade, correções necessárias. Em outro momento você escreve que “histórias são chatas, se repetem como em um espelho, a única surpresa sendo a distribuição de papéis, quem fará o quê desta vez”. Que realidade é essa que aparece em seus livros e que precisa de correções? Estão todos, no fundo, tratando da mesma história humana e tornando-se únicos pela diversidade de
personagens que você insere neles?

A única maneira de a realidade produzir sentido é com as “correções” feitas pela ficção.
A ficção nossa, de todos, de todos os dias.
Isso é um lugar-comum.
Não é isso o importante no A um passo.
O processo de criação aqui é o de “correções” de momentos reais.
(Como em todos os livros de ficção.)
E mais a desfeitura das “correções”.
O que, acho, só começa a acontecer na literatura de agora.
Assim:
Eu tinha um arsenal de coisas vividas/ouvidas/vistas muito fortes, impossíveis de serem de fato compreendidas.
Todo mundo tem isso – uma cena que foi vista e jamais esquecida, ou o modo como alguém ria, ou o som de um tiro.
Adensei a carga emocional delas e fiz pequenos desvios, deslocamentos.
Entrariam assim em alguma história viável e passariam a ser, enfim, compreendidas.
(O que escritores fazem, todos, desde sempre.)
Aí entra o que eu acho só começa a existir agora.
Uma insatisfação com historinhas.
As coisas reais, vividas, duras, ficam apertadas, hoje, em historinhas.
Ao mesmo tempo, só elas sozinhas – reais, vividas e duras – não são literatura.
O A um passo é um conjunto de coisas reais, vividas e duras.
Mas é este conjunto depois que a história onde elas estavam foi esquecida ou dada por não ter jamais existido.
Então o conjunto contém a narrativa, embora ela esteja como se em off.
O A um passo não é exatamente, então, uma narrativa.
É mais o banco de dados emocional que resta depois que uma narrativa acaba.
Ou o banco de dados que existe sempre antes de uma narrativa começar.
Então, eu fiz uma história.
Depois cortei.
E fui cortando.
E estabeleci uma linha de chegada.
Se passasse e continuasse a dizer “não” para a história que havia feito, não teria mais literatura.
Teria uma performance.
Eu, num palco, cortando a última palavra de um texto.

2. Algumas resenhas sobre A um passo destacam a sordidez dos personagens nos seus relacionamentos. Você diria que há uma consciência dessa sordidez ou são apenas pessoas tentando sobreviver alheias a qualquer juízo de valor?
Não há preocupação no texto em relação à moralidade.
Não é este o assunto.
O assunto do A um passo é a própria ficção.
Como ela é feita.
Como pode ser feita.
Ou como foi feita, no próprio texto apresentado.
A frase fundante do A um passo é a penúltima, a que fecha o livro:
“Ela me olha e nos olhamos por um tempo, nos reconhecendo como ambos a um passo, eternamente a um passo, da realidade.”
O “ela” aqui é um próximo personagem.
De um eventual próximo texto ficcional.
E quem fala a frase sou eu.
(Ou – para os mais conservadores – o narrador, Próspero.)
Próspero é também o autor das pequenas histórias que integram a grande história do livro.
Foram por ele inventadas, adivinhadas ou manipuladas.
Sim, adoro A tempestade, de Shakespeare.
Quando disse que a desfeitura da ficção era coisa de agora, incluí algumas coisas do século XVI neste “agora”.
Shakespeare, por exemplo.
E seu monólogo de Próspero, pedindo palmas e avisando para as pessoas irem embora, que a peça tinha acabado.
Aliás, a dúvida de Próspero (o meu Próspero, não o de Shakespeare), se escreve outro texto, pinta um quadro ou arranja um emprego, era a minha dúvida.
No momento em que escrevia aquilo.
Ainda é.
Faço crítica de arte para o Jornal do Brasil.
Ajudo a Tereza na Lamparina.
E preciso retomar meu próximo texto.
Sempre me surpreendeu este destaque na “sordidez” dos meus livros.
Gosto muitíssimo das pessoas que moram neles.
Especialmente as do A um passo.
Por exemplo, neste exato momento.
Acabo de ver Nina – ou foi Tânia – passar pela minha parede branca.
Nos encaramos por um momento antes que ela sumisse.
E vou dizer: fiquei com os olhos molhados de saudade e fiz um movimento com a cabeça.
Tentei chamá-la.
Ridículo.
E eis o único juízo de valor possível.
A ficção (a que eu fiz para mim mesma, de que era possível uma personagem passar pela minha parede) é sempre ridícula quando acaba.
(Atenção, quando a ficção acaba, não quando o texto acaba.)
O A um passo teve essa característica.
Tem.
Nunca pude largá-lo.
Levei muito tempo tirando do texto toda gentileza, toda boa-educação.
Uma guerra contra adjetivos, conjunções, preposições.
Toda a cola, o grude, todo o mingau.
Nada de “es”, “maises” e “porques”.
Nu.
E presente como nunca.
Então não posso julgá-lo nem às pessoas que nele moram.
Não acabou.
E como tem a proposta de um eterno refazer, acho que esta ficção não vai acabar nunca.

3. Outra questão que vem sendo apontada diz respeito às identidades mútliplas de seus personagens, consideradas típicas da sociedade contemporânea. Essa é uma discussão que tem sido explorada pelos meios acadêmicos. A transposição dessa problemática da área ensaística para a área ficcional foi intencional de sua parte?
Não há nada que não seja intencional em A um passo.
Este texto é um projeto literário.
Não só na estrutura, em cenas que são farrapos, vestígios (ou fontes, inícios) de uma história.
Mas nas estruturas menores que estão dentro da estrutura maior.
E que são, estas pequenas estruturas, as histórias individuais das pessoas presentes.
Essas pequenas histórias também são estruturadas em farrapos (ou inícios) da “verdade” ficcional, do que teria “verdadeiramente acontecido” na vida de cada um deles.
As histórias pequenas seguem a mesma estrutura da história grande.
Como na história grande, as pequenas também podem variar dependendo de quem as conta.
De quem as escuta.
Ou do programa de televisão que acaba de passar.
Tânia conta a história de Nina que conta a história de Gringo que tem sua história e todas as outras contadas por Próspero, que só existe enquanto existem as histórias que conta.
E qualquer um deles poderia ser qualquer outro.
Poderíamos.
Prósperos que somos todos.
É, na sociedade contemporânea, com suas tempestades sempre virtuais, mesmo quando reais.
O A um passo traz várias possibilidades de final.
Ou nenhuma.
Quem ficou com os dólares que podem ter jamais existido?
Nina.
Tânia.
Gringo.
Ou foi Próspero.
Fui eu.
Que posso ser qualquer um deles.

4. Você é também artista plástica, tendo em seu portfólio ilustrações e capas de livros. Como vê as duas artes – a escrita e a ilustração – no ato de contar uma história?

Literatura não precisa de imagens.
Mas pode tê-las.
Será então uma criação intersemiótica.
Ou multimídia, para usar uma palavra menos arestosa.
Nada contra.
Pelo contrário.
Tudo a ver com uma nova riqueza.
A do convívio do lógico com o analógico.
Da linha reta com o círculo.
E de uma abrangência includente bem feminina que se impõe.
Qualquer outra possibilidade, sou contra.
A imagem como tradução do texto.
A imagem como resumo do texto.
A imagem como comentário do texto.
A imagem em vez do texto.
Detesto.
Acho uma diminuição da possibilidade polissêmica do texto.
E da nossa.
É lugar-comum dizer que vivemos em uma época do apogeu da imagem.
Não acho.
Acho que nossa época matou a imagem.
Fez isso ao elegê-la como a linguagem preferencial da comunicação social.
Nesta função, a imagem precisou se tornar cada vez mais eficiente.
Ter menos possibilidades de erro.
Precisou ficar mais rasa, mais rápida.
Ser entendida da mesma forma por mais gente.
Não propõe um diálogo. Segue normas.
De perfeição.
É autoritária. E burra.
O que nos salvará a todos é a arte contemporânea.
Opaca, complexa, dúbia.
Efêmera. Imperfeita.
E inteligentíssima.
Sempre com um texto escondido.
Às vezes com um texto às claras.

5. O seu texto não segue uma narrativa linear o que, apesar de não ser algo completamente novo, tem chamado muita atenção na literatura contemporânea. Na sua opinião, essa ênfase atual na não-linearidade do texto ficcional pode ser um reflexo dos novos suportes multimídias como, por exemplo, a internet?

No começo da entrevista disse que o A um passo não é uma narrativa.
É o banco de dados que restou de uma narrativa ou que propiciará uma narrativa. O A um passo traz, além disso, uma disposição das cenas em hipertexto.
Há desvios e focos secundários de atenção a partir de frases ou palavras da cena anterior.
Não acho que a não-linearidade da literatura atual seja um reflexo da tecnologia ora dominante.
A tecnologia é sempre filha de uma cultura ou ideologia e a ela presta serviço.
A internet e a literatura não-linear são ambas fruto de uma mesma situação histórica.
A situação é de quebra de paradigmas de uma ordem que ficou para trás.
Sem outra que se imponha.
(Não dá mesmo para estabelecer muita coisa depois da física quântica.)
Não vejo relação de causa e efeito entre a internet e a literatura fragmentada.
Mas vejo uma influência mútua.
Um realimentar contínuo do lugar-nenhum.
Uma tensão contínua entre identidades grupais não-geográficas.
Culturas em colcha de retalhos. Tribos compondo um todo único.
Um viver para sempre na fronteira.
“É porque somos ambos homens de fronteira, tinha dito um dia gringo a P., ou foi outra besteira parecida.”

6. Você tem um site no qual expõe seus trabalhos. De que forma você acha que a internet pode contribuir para uma maior divulgação e valorização do livro impresso?

Acho a internet um reduto de resistência do texto.
Canal de comunicação em linguagem escrita.
E também fábrica de novos dialetos.
(O que mantém viva a língua.)
Mais do que tudo, a tela repete a situação psicológica da página.
Ler é uma ação individual, solitária e alienante do seu em torno.
É seu maior problema e sua maior qualidade.
É o contrário do que se dá na tela anterior, a da televisão, que permite o “ver junto”.
Ninguém lê junto.
Ninguém senta junto no computador.
Ninguém pensa junto.
Compartilha-se.
É diferente.
E muito, muito melhor.
O mundo melhorou.
A tecnologia atual é melhor do que a anterior.
Por exemplo, a questão da imposição cultural.
Não há muita defesa contra sitcoms.
Mas enquanto se falar “eu deletei”, quem tem de se defender é o inglês.

7. A editora Lamparina, de cujo conselho editorial você faz parte, completa um ano neste mês de fevereiro. Como você situa a atuação da editora ao longo desse período?
Acho que acertou quase sempre.
Acho que age com coragem.
E acho que pensa a longo prazo.
Três raridades.
Mais uma:
Não tem certeza de nada.
O que facilita o se mover.

8. Percebe-se, nos lançamentos da Lamparina, um cuidado na produção dos livros. Há, por exemplo, ao final de cada um, uma citação da obra de um autor brasileiro na qual encontra-se a palavra lamparina, acompanhada de uma definição dicionarizada da palavra. Esse tipo de preocupação só é possível e é própria de editoras menores e, portanto, com menos títulos em catálogo?

Não.
A Cosac é sensacional.
A Companhia das Letras também.
A Iluminuras e muitas outras.
O editor brasileiro é um sujeito que faz livros porque gosta.
Vejo ele bem próximo do escritor.
Às vezes é escritor.
Jornalista, ex-gráfico.
Ou ligado à academia, um estudioso.
Respeitoso.
Acho que o problema de uma mercantilização descuidada vem com as grandes corporações internacionalizadas.
Despejam qualquer lixo em qualquer lugar.
E tem o livreiro, que é despreparado para o que faz.
E que emprega mão-de-obra mais despreparada ainda.

9. Dentro de um mercado no qual se destacam algumas poucas gigantes editoriais que têm, ultimamente, abocanhado editoras menores, como você definiria o papel dessas pequenas editoras que resistem e das que, como a Lamparina, têm ousado se lançar no mercado há pouco tempo?

Devemos isso ao Fernando Henrique, que permitiu a entrada das gigantes.

10. Quais são seus próximos projetos? E você pode comentar algo sobre o que a Lamparina reserva para 2005?

Não.

 

 

 

 

 

Luiz Horácio – Jornal Rascunho, maio/2005
(republicado em versão reduzida pelo Jornal do Brasil em 24/06/05, sob o título “Forma e conteúdo em Elvira Vigna”)

É bastante comum em nossa literatura acontecer de o enfoque sociológico sufocar o enfoque estético quando o ideal seria que este complementasse aquele.
No romance A Um Passo, ed. Lamparina, o leitor pode comprovar uma exceção à regra. Elvira Vigna, também artista plástica, se preocupa com a forma ao mesmo tempo que subverte a previsibilidade da lógica corriqueira, cujo manual diz que a forma destrói o conteúdo. Longe de ser panfletária, livre do apelo sentimental mesmo com a covardia, a carência afetiva e a solidão em primeiro plano, a leitura permite a conclusão que o social não é prerrogativa do coletivo e tampouco a arte se faça questão particular. Personagens que são refúgios de contradições, solitários, buscam platéias para encenar sua cena dramática de emoção contida embora sabedores que seus sofrimentos não podem ser compartilhados. Tentativa de ajuste, sempre impossível, de contas com o passado. Calma. Vingança não é a palavra mais adeqüada, ela sugere agressividade enquanto neste A Um Passo o objetivo é se defender. A agressividade fica circunscrita aos movimentos internos dos personagens. O resultado é uma tensão concisa e nada previsível.
Em seu romance anterior, Coisas Que os Homens Não Entendem, Elvira Vigna nos apresentou Nita, a fotógrafa narradora, enigmática e carismática, (vivia com Eva em Nova York – homossexualismo?). No romance em questão, a protagonista é Nina (ou seria Tânia?), um reservatório de insatisfações e angústias, sem o menor carisma, uma protagonista banal cuja consciência pouco vigorosa apaga a fronteira que separa o bem do mal. O homossexualismo fica por conta de P. e Gringo. Entre Nita e Nina, algo mais denso e grave que a quase coincidência de seus nomes, crimes como referências para a interminável viagem rumo aos afetos impossíveis. Retornos às cidades de origem, contas à ajustar. Os dois livros são fartos em personagens nada ingênuos, mas que também não alcançam o status de malandros, o combate à opressão masculina, assassinatos perpetrados por algozes improváveis, a história que começa morna para logo depois engrenar até alcançar um final digno das melhores histórias policiais. Coincidências ou receitas? Tanto faz. Tais características não desmerecem em nada a trama urdida pela autora. Apenas comprova o talento exigido para, em tais circunstâncias, produzir uma literatura com força de reflexão onde a estruturação narrativa e a gerência da linguagem legitimam a clarividência com que a autora invade os mundos de Coisas Que…. e A Um Passo. Elvira mantém o foco nas dificuldades (ou seria impossibilidade?) do relacionamento entre as pessoas, apimentando com doses nada módicas de hipocrisia, violência e banalidades, sem esquecer a frieza nas observações relativas ao sexo. Se em Coisas Que os Homens Não Entendem os momentos felizes são escassos, agora somos levados a testemunhar a ausência desses instantes.
A Um Passo exige a cumplicidade incondicional do leitor, tamanha a quantidade de sutilezas escondidas em suas 186 páginas, e caso a excessiva simplificação na orelha do livro incitar o leitor a ingressar numa provável história de vingança, não desista, não é só isso, não é bem assim. É muito mais. É a delicadeza e a sofisticação da escritora e artista plástica a serviço da rusticidade e secura dos personagens urbanos que conduzem o leitor a um cenário minimalista e árido.
É a possibilidade de conviver com um narrador que vai conduzindo os personagens, feito um diretor de cinema orientando os atores.
“Ele está mudo na cama e você vai beber água mesmo sem sede porque nestas horas você também prefere ficar sozinha e o apartamento é pequeno e, além do banheiro apertado e mal-cheiroso, o único outro lugar em que você não precisa ficar vendo a cara dele é a cozinha. Então você vai para a cozinha e bebe água no copo que ele mantém na pia e nunca lava. E depois, com nojo, você limpa a boca com as costas da mão.”
É a tensão permanente, da lembrança da última aula de Nina com o Gringo ao suspense que ronda a cidadezinha que será inundada, conseqüência de uma repres. De Nina quase violentada pelo pai à vida dos becos, dos buracos. Da agressão de Nina ao professor, da sua prisão e o custo da fuga, do bairro do centro, do marrom do chão da cidade pequena.
É o tempo psicológico, trabalhado com precisão pela inventiva romancista. O modo aparentemente anárquico de organizar os fios da tela, a correta e nada simples combinação das cores, o enredo não linear, onde os medos, a falta de esperança e a ausência de peculiaridades dos envolvidos fazem de A Um Passo muito mais que uma história de vingança, uma garantia de prosa leve, sedutora e irônica. Segredos, mistérios e misérias compõem a amarga calamidade do romance, peça emblemática da desintegração dos valores, existências em permanente conflito, terreno no qual ninguém pretende se arriscar a conhecer com detalhes a vida de quem quer que seja. A protagonista não é Nina, não é o Gringo, tampouco P., muito menos Gordo, o mistério gira em torno da solidão, nunca alegre, como um tango; e o sentimento predominante é o de incerteza. Esse tipo de narrativa, via de regra conduz o autor a tropeçar nas redundâncias. Não é o caso de Elvira que, mesmo preocupada com a forma artística, não priva o leitor dos efeitos das idéias e das emoções. No caso, as aparências enganam. Para melhor. Mas não aguarde o aparecimento triunfal do herói no desfecho da trama, desde o início a autora nos deu pistas da tragédia e o gênero não comporta a expectativa de um caráter elevado.
A Um Passo é um livro estranho. Na trama não se vislumbra o menor sentimento de culpa, muito menos de amor, carinho, amizade, o mais superficial exame do passado tenebroso dos personagens permite intuir um futuro sem muitas possibilidades, a prática humana é trágica. A esperança é o cachorro do cego.
Um livro estranho e fundamental. Talvez tenha me agradado tanto pelo simples fato de a única pessoa que talvez eu conheça bem também seja das mais estranhas. Então, o que dizer de um cara, um jornalista que gasta seus dias estudando e escrevendo sobre literatura, que ao pendurar no varal as roupas da filha nunca deixa de imaginá-la morta?

 

Furio Lonza – O Estado de Minas, caderno Pensar, 22/01/05

Há livros que já nascem rebeldes. Não se encaixam, fogem das estruturas bem comportadas, detonam as regras estipuladas pela época, não são propriamente escritos, eles brotam. São ervas daninhas, têm parte com o Demo, são engendrados nas encruzilhadas. Por mais que o autor queira domar seus personagens e sua narrativa, nada há para se fazer, é tudo inútil, eles crescem para os lados, multiplicam suas ramificações como um câncer, são um amontoado de células que rompem com os limites do bom senso e da biologia literária.
Essa mercadoria, muito rara nos tempos que correm, acaba de ganhar uma contribuição de peso: A Um Passo, de Elvira Vigna. Incansável em suas experiências, a autora ousa mais uma vez e comete outro pecadilho (no bom sentido). Elvira escreve como se pintasse uma tela abstrata. O ideal é curtir o texto como uma pintura, as camadas vão se sucedendo, cada qual borrando a anterior. Temos que prestar bem atenção nas palavras, nas ênfases, nas frases, nas metáforas, nas parábolas, nas sutilezas, na fluidez do texto. Pois, se bobear, o leitor corre o risco de entender alguma coisa. Não é esse o caminho. O texto dá a falsa idéia de que alguma coisa concreta está realmente acontecendo e que, se a gente prestar bem atenção, vamos encontrar seqüências de ação. Mas causa e efeito se anulam. A Física não é um bom parâmetro e definitivamente não determina a correlação de fatos. Presente e passado ensandecem os neurônios durante toda a narrativa. Começo, meio & fim, nem pensar. A autora não gosta disso. Não abre mão de nada, se lambuza. Quando algo se solidifica, como um ensandecido demiurgo franco atirador, o narrador liqüefaz tudo de novo.
Falar mal, falar bem, criticar excessos? Nessas alturas do campeonato, isso pouco importa. O que conta é a ousadia de ir contra a corrente, romper com o bom mocismo desta literatura do século 19 que campeia pelas livrarias. Que cada um garimpe aqui & ali o que bem entende por ficção. Que cada qual sonde dentro de si uma maneira nova de enfrentar este romance e a própria realidade. Se for bem sucedido, terá compensações. Se não, paciência.
De qualquer forma, uma advertência: não é um livro fácil. Quem pretende comprar o livro da moda ou do verão, que fique com os John Grishan ou os Harry Potter da vida. A Um Passo é coisa de gente grande, madura, que pensa, tem inteligência suficiente para saber que entretenimento se encontra na novela das sete. Mas, gozado, Elvira emprega um vertiginoso modelo de romance policial em sua trama, não propriamente para saber quem matou quem, mas sim deixando em todo o curso pistas (algumas falsas) que nos (des) norteiam até a loucura, à exaustão.
Lá pelas idas décadas de 60, numa festa altamente literária, perguntaram por curiosidade ao editor José Olympio como estava andando o trabalho de Guimarães Rosa, que já fazia um bom tempo que não publicava nada. A comunidade andava receosa. Afinal, o escriba mineiro já tinha editado o Sagarana, Primeiras Estórias, Grande Sertão e Corpo de Baile e o silêncio constrangia. Antes de responder, José Olympio fez um suspense. Depois, tomou fôlego, arqueou a sobrancelha esquerda ironicamente e disse: “O novo livro do Guimarães já está pronto. Mas vai demorar ainda um bom tempo: agora, ele tem que inverter as frases”.
Lá pelo meio do romance de Elvira, temos a nítida impressão de que a autora fez algo parecido: primeiro, escreveu o livro, depois, embaralhou os capítulos de propósito. Em seguida, nos parece que o narrador saiu de um livro do Samuel Beckett, tomou 35 LSDs e encarnou num personagem do Robbe-Grillet que, por sua vez, começou a dar voz a uma Hilda Hilst freneticamente possessa pelos demônios de Kafka.
Ou seja: é para poucos, assim como o Catatau, de Leminski, Avalovara, de Osman Lins, ou mesmo os primeiros livros do João Gilberto Noll, hoje todos considerados clássicos, mas que têm uma inerente dificuldade de leitura e fruição, como qualquer obra prima. Guardadas as devidas, Elvira Vigna não veio para explicar nada, ela curte um enigma, tem que ser decifrada aos poucos, metodicamente, é uma bárbara no meio de tantos filhotes do Bukowski, que parecem indomáveis a princípio, mas que, na verdade, são bastante conservadores em relação ao estilo.
Nesta selva selvagem de Elvira, não há nenhum Virgílio a nos guiar. Pelo contrário, cuidado com as placas: é bem provável que, quando está escrito, Berlim a 40 Quilômetros, a estrada nos leve direto para Nova Iguaçu. É nesse simulacro de Baixada que encontramos Nina, Gringo, tia Conchita, P. e Evelyn se debatendo com suas próprias identidades. Nos calabouços, nos subterrâneos da trama, uma terrível vingança está sendo engendrada. Há um cofre com muita grana. Tem suspense, tem um espelho, tem informantes, pistas de pouso iluminadas por tochas com querosene, delegacias fétidas, tem um clima noir.
Mas que ninguém se engane: isso não é explicitado nunca. O que temos é um patchwork demencial, onde Elvira vai colando rebotalhos, cenas curtas, roteiros cinematográficos, mal entendidos & perplexidades em geral.

Nem que seja para dizer “Não entendi, mas gostei”, leiam este livro, é uma pedra no sapato para quem já se aposentou da literatura de experimentação. Ela ainda existe e vai muito bem, obrigado.