Mônica & Macarra, 1996

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – Mônica & Macarra (Miguilim, 1996, 44p. )

 

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o jogo dos limites – trecho
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críticas

 

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

infamacarra

Texto um da Mônica

Você é a rainha da Inglaterra.

Não esta que está aí, oh boba, mas uma rainha da Inglaterra.

Você é lindíssima, com longas pestanas e aquele olhar meio triste de quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só as rainhas da Inglaterra conseguem ter.

Não, não.

Vamos deixar este lance para depois.

Você é uma guerrilheira. Você pertence ao povo dos Macsims, que vive nas montanhas. Você é médica e irmã do chefe do grupo. A região está em guerra. Vocês, os Macsims, têm de tomar muito cuidado, porque de um lado estão os Macnões, um povo muito cruel e agressivo, e do outro lado os Macdonalds, uma civilização antiga, muito culta, que às vezes tenta abocanhar as montanhas dos Macsims, anexando-as a seu país.

Tudo começa quando o seu grupo fica sabendo que um pelotão de Macnões está com um prisioneiro – que ninguém sabe se é Macsim ou Macdonald – e estão fazendo horrores com ele.

Seu irmão organiza uma expedição de resgate para o caso do pobre prisioneiro ser um Macsim.

Não é. É um Macdonald.

Ele está quase morto pelos maus-tratos. Seu irmão, que é pessoa de nobre caráter, resolve resgatá-lo mesmo ele não sendo um Macsim. Quem cuida dele é você. Uma pomadinha – feita com folhas de uma árvore da região e que só os Macsims conhecem – aqui, uma massagenzinha ali, uma trocada de curativo acolá e pinta o maior clima. Seu irmão não percebe nada e, nobre caráter à parte, acha que de repente pode obter um bom resgate pelo prisioneiro.

(O prisioneiro tem aquele olhar meio triste, de quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só reis, rainhas e príncipes têm, mas ninguém nota isso em um primeiro instante.)

É inverno, as montanhas estão cobertas de neve e a única passagem que leva ao acampamento de vocês está fechada por causa de uma avalanche. Mesmo assim, seu irmão obriga o prisioneiro a ficar o tempo todo de algemas para não fugir. Você aproveita e tira o maior sarro. O inverno todo. Várias vezes por dia.

A comunicação entre vocês se dá pelo olhar.

Você olha fundo, o que quer dizer: está gostando, hein?

Ele volta um olhar que significa: oh, mais, mais.

Noutro dia:

(“Você passou bem à noite, gatão?”)

(“Mais ou menos, na verdade o travesseiro caiu no chão.”)

( “Oh, coitado [poor thing].”)

Ou então:

(“Dá para me passar mais batata?”)

(“More potato? Sure! Big delicious thing! [gostosão!]“)

É aconselhável que os diálogos sejam em inglês, porque eles ficam muito melhor em inglês.

Bem, o negócio é o seguinte. Trata-se, nada mais nada menos, do que o filho do rei Macdonald. O rei tinha dois filhos, ambos lindíssimos, uns morenões de olhos verdes e cabelos lisos de matar qualquer um (digo, uma), e que são a cara daquele cara que você viu de longe ontem na hora do recreio. Mas guerra é fogo. O irmão mais velho que, aliás, era o preferido do rei, morre na mesma batalha na qual o irmão mais novo foi feito prisioneiro. Inclusive, nos primeiros dias, você ouvia ele repetir muitas vezes, sussurrando no meio da febre, “Nicolas”, “Nicolas”, e você até ficou meio assim, achando esquisito, será que ele é gay? Mas resolveu passar por cima deste detalhe.

Ninguém sabe que o prisioneiro é o príncipe Macdonald porque, na operação de resgate, seu irmão, com nobre caráter e tudo, trucidou todos os Macnões. Não sobrou um para contar a história.

Bem, mas aí o inverno está acabando e vocês estão notando que há um grande movimento de tropas Macdonalds no sopé da montanha, só aguardando a passagenzinha abrir para subir para o acampamento. Nos ares, apesar do mau tempo, aviões Macdonalds estão sobrevoando com cada vez mais frequência a região Macsim.
Do outro lado da montanha, tropas Macnões também estão se concentrando e fazem gestos obscenos olhando para cima cada vez que um de vocês chega na beiradinha para jogar lixo ou fazer xixi.

Seu irmão saca que o desastre é iminente. Vocês vão ser massacrados.
Sempre sem desconfiar que o prisioneiro é o herdeiro da coroa Macdonald – saiu no jornal da TV que os dois filhos do rei tinham morrido em uma batalha e vocês, claro, acreditaram – seu irmão vê que a única solução é soltar o prisioneiro.
Estão todos jogados no chão da casinha principal esperando para qualquer segundo o início do bombardeio.

“O problema é que assim que ele sair por aquela porta começa o bombardeio”, diz seu irmão.

I will not let them.”
É a primeira vez que o prisioneiro fala português, quer dizer inglês, não, macsimês. Todos se entreolham espantados.

Trust me.”

Seu irmão dá um suspiro profundo e se arrasta até o prisioneiro para tirar as algemas enquanto murmura:

“Quanto dinheiro será que eu estou perdendo nessa!”

O prisioneiro responde:

“Muito. Mas você não vai se arrepender.”

Sem algemas, ele se dirige para a porta não sem antes passar a mão na sua perna dizendo entre dentes:

“Aha, sempre fiquei com vontade de fazer isso e não podia por causa das algemas. Gostosa! (delicious thing!)”.

O prisioneiro vai até a porta e, de frente para os aviões e helicópteros que enxameiam o ar, começa a fazer uma série de gestos.

Você pergunta para seu irmão – que tudo sabe – o que ele está fazendo com aqueles gestos.
“Ele está dizendo para os aviões se afastarem de costas, com as asas e cauda se mexendo em movimentos sincopados no ritmo do rap que está tocando na cabine do avião de comando.”

“E eles estão fazendo isso?”

“Estão.”
“Impressionante.”

Antes de ir embora, já a bordo de uma aeronave, o prisioneiro sobrevoa o acampamento e vai para o lado da montanha onde estão os Macnões, dá uma rajada de AR-15 na neve, desenhando o símbolo do Comando Roxo.
Você fica impressionadíssima.

A neve desaba, fazendo nova avalanche e interrompendo assim, mais uma vez, a subida dos Macnões, que ficam lá embaixo berrando palavrões.

Ao sobrevoar de novo o acampamento em direção à fronteira do país Macdonald, os aviões fazem um voo rasante e batem as asas em sua homenagem.
Você acena lentamente enquanto eles somem no horizonte em direção ao pôr-do-sol. Nas suas costas, a música aumenta. É seu irmão, tocando um dos temas da novela das oito em um violino elétrico.

Você acha que nunca mais vai ver o prisioneiro. Apenas uma aventura e só.

Mas, hélàs (francês também fica bom, aqui e ali), você descobre que está grávida. Você decide ter o filho apesar dos rigores da vida da montanha e de conhecer um chazinho que é tiro e queda, feito com umas folhas que só os Macsims sabem onde tem.
Mas, como você diz para você mesma: trata-se de um bonito presente do destino, algo para lembrar nos anos vindouros quando serei apenas uma mulher de subúrbio, trabalhando que nem uma louca como enfermeira de hospital público, com plantão noturno e nos finais de semana e, além disso, tendo de cuidar de uma criança nova, sozinha, sem dinheiro, num quartinho escuro. Você quase desiste, mas não desiste, porque já leu uma porção de livros iguais a este aqui e sabe que no final dá tudo certo.

Mas a emoção de ver o prisioneiro partir é muita e você não passa bem. Seu irmão, então, junto com a mulher dele e mais um fiel ajudante decidem ficar mais um tempo na montanha.

Você tem o filho lá mesmo e só desce depois, para registrá-lo.

Durante todo este tempo você nem vê televisão nem escuta rádio, de modo que quando desce para registrar o bebê você ainda não sabe que na verdade você é mãe do neto do rei Macdonald.

No cartório você lembra do “Nicolas!”, “Nicolas!”, e decide fazer uma homenagem às preferências do seu prisioneiro desconhecido e coloca o nome da criança como sendo Nicolas.

Só então fica sabendo da verdadeira identidade do pai do bebê, e fica sabendo também que o serviço secreto dos Macdonalds está à sua procura.

Você começa a fugir porque acha que nunca o pai do príncipe, o rei Macdonald, vai permitir que você, uma pobre ex-guerrilheira das montanhas, fique com um bebê real. Na verdade quem está à sua procura é o próprio príncipe que não conseguiu esquecer aqueles momentos especiais no acampamento. Você foge por: 1) trem; 2) a cavalo, pelos campos com o bebê no seu colo e seus longos cabelos jogados pelo vento; e 3) no meio da chuva que cai sobre as calçadas sujas do bairro pobre onde você mora, se esgueirando entre os carros com um guarda-chuva quebrado enquanto uma vizinha toma conta da pestinha em um edifício velho, sem elevador e caindo aos pedaços.

Você chega do trabalho mais cedo naquele dia, porque o pessoal do hospital resolveu entrar em greve outra vez.

Você, com seu treinamento rigoroso de guerrilheira, logo percebe que aquele cara encostado no carro de luxo estacionado na porta do edifício é um agente secreto. Você se vira, mas um outro cara, que estava fingindo telefonar (o treinamento afinal não foi tão bom assim, o telefone está quebrado há mais de um mês e você sabia disso), segura o seu braço.

“Excuse me, lady.”

Não dá para escapar. Os secretas escoltam você para dentro do seu próprio apartamento, onde o príncipe ex-prisioneiro já se encontra.
“Passa a bola, pô.”, está dizendo o príncipe em um telefone celular no momento mesmo em que você entra.

(Sorry, mas esta é a única frase que você escutou do cara lindaço do recreio e ela tinha de entrar em algum lugar.)

Você logo percebe que é um dos códigos que ele, em um de seus trabalhos importantes e confidenciais e que podem mudar os destinos do mundo, está usando para que ninguém saiba de nada.

Você entra.

“Por que você fugiu de mim? Meu serviço secreto me diz que não há nenhum homem na sua vida. Eles se enganaram? Você tem outro?”

” ……”

“Não me diga nada, não tenho o direito de exigir nada de você!”
” ……”

“Mas tem ou não tem?”

“Sim. Eu tenho outro!”

“Oh! que decepção. Vai me dizer que aquele seu irmão que vivia grudado em você não era seu irmão!!!”

“Não, não. Não é isso.”

“Quem é esse outro então?”

“… …”

“Não, prefiro não saber. Mas hein?”

No seu desespero, louco de ciúme, o príncipe está sacudindo você perto da janela. Lá fora está todo mundo vendo, maior mico.

Neste momento toca a campainha. É a vizinha que, sem saber de nada, vê que você já chegou do trabalho e está trazendo o bebê, de quem ela ficou tomando conta durante o dia.

“Um bebê! É isto então!”

“……”

“Não. Não me diga nada.”

“……”
“Um dia, se você se sentir à vontade, você me conta o que aconteceu.  Só não me faça mais sofrer: o filho da mãe do pai ainda é alguém existente na sua vida?
“Bem… não.”

“Então está tudo bem. Viveremos os três felizes para sempre. Deixe-me ver que cara tem aí esse… esse….”

O bebê é um morenaço de olhos verdes e cabelos lisos, que vai logo esticando os bracinhos para o príncipe e balbuciando: passa a bóia, pô…

Ele diz (ele o príncipe, o bebê, como já vimos, ainda não fala direito):
“Mas… mas é um bebê Macdonald! Você… você foi atacada por algum dos meus homens?!”
“……”

“Não, não me diga nada. Um dia, quando o trauma passar você me conta.”
“……”

“Quem foi o…”

Mas o príncipe, aos poucos, vai começando a entender. Ainda bem. Você já estava mesmo achando que ele era meio desligado.

“Mas… quantos meses tem este bebê?! Não vai me dizer que…”

“……”
“Não vai me dizer que…”

“……”
“Diz logo, poxa!!!”

“É, é seu filho!”

Depois de uma cena realmente enjoativa de lágrimas e beijos, vocês decidem rumar sem mais tardar para o palácio, mesmo porquê nesta hora o edifício onde você mora fica com um cheiro horrível, todo mundo cozinhando o angu do jantar ao mesmo tempo.

Vocês saem, embarcam na limusine preta que brilha sob a chuva, e que já estava esperando com um tapetinho vermelho estendido na porta de trás, e vão para o palácio, onde ainda terão que enfrentar a ira e a oposição do velho rei.

Mas o velho rei já anda cansado deste papel de mauzão e, depois da morte de Nicolas, não quer brigar com o único filho que lhe resta. Além do mais, ele tem uma secreta admiração por você, já tendo ouvido falar de suas habilidades como médica, da sua nobreza frente ao inimigo, de sua coragem e esperteza e, também, claro, de suas pestanas longas (não, não, aqui não entram as pestanas) e corpo escultural, que você passou estes anos todos disfarçando quase o tempo todo por baixo de uma farda de guerrilheira azul turquesa – que é uma cor que não fica nada bem em você.

E vocês então vivem felizes para todo o sempre no anexo do palácio real – já que os seus princípios de guerrilheira a impedem de morar no palácio propriamente dito. E, para não virar dondoca, o que seus princípios também não permitiriam, você trabalha em um grande projeto de saúde pública para os Macsims que, afinal, aceitaram se tornar um território agregado ao país Macdonald.

Os Macnões, por sua vez, receberam um castigo exemplar. Um vírus terrível os atacou e eles viraram todos Macsims, com excelente caráter, que nem o seu irmão.

Com o tempo, o tédio foi vencendo-os e eles morreram de prisão de ventre, por falta de exercício, e por excesso de pipoca de microondas.

O seu irmão, depois de experimentar um emprego aqui outro ali, abriu uma agência de turismo especializada em viagens para Cuba, graças a um financiamento arranjado por influência do príncipe. Costuma fazer uns discursos fora de moda para os clientes. Não está dando muito certo.

Às vezes você dá uma fugidinha do trabalho. É difícil, porque você trabalha em um escritório ao lado do escritório do príncipe, e de cinco em cinco minutos ele abre a porta e faz:

“Cutiii!!!”

Mas às vezes dá, e então você vai bater um papo com seu irmão. Vocês não falam quase nada, só ficam olhando pela janela.

De vez em quando um de vocês diz:

“Pois é.”

E suspiram fundo com os olhos nas montanhas.

Aí você volta para o trabalho.

Esse cara do recreio… Você fica na dúvida. Vai ver nem era tão bonito assim.

 

 

Texto um do Macarra

Você é dono de um harém. O seu harém fica em volta de uma piscina olímpica onde ninguém nada nada. Só a brisa encrespa um pouco a superfície de vez em quando e nestas horas as mulheres fazem ui, ui, e esfregam os braços arrepiados, com frio.

As mulheres passam o dia na beira, molhando ora um pezinho ora outro.
Elas se vestem com uns pedacinhos de gaze transparente colorida.
Cada uma tem uma cor diferente.

É impressionante a quantidade de cor que existe neste mundo. Para você tanto faz, porque você é daltônico.
Acontece de você chegar perto da piscina (e nesta hora cessam os risinhos e o tititi, em sinal de respeito) e dizer:

“Você aí.”

“Quem?”
“Você, a de rosinha.”

E aí os risinhos recomeçam, com mais força. Não tem ninguém de rosinha no grupo.

Ou então.

“Hoje é dia da de vermelho, não é? Então vem.”

“Mas eu sou a azul.”

Tirando estes contratempos absolutamente suportáveis, vocês todos (346 ao todo) vivem felizes para sempre. Dia sim, dia não – você instituiu isso esta semana – é dia daquela garota que você viu no recreio, de longe. A gaze dela é branca, que é para não dar confusão.

Só que às vezes você sai escondido do harém, disfarçado de cara da Telemar, que é para ninguém perceber que você está indo jogar uma bola com o pessoal, pô. Sabe como é operário. Se as pessoas que trabalham para você virem você saindo do harém, e logo para se encontrar com um bando de homem, vão logo espalhar que você não é de nada. E vão espalhar isso sem nem antes se dar ao trabalho de confirmar com a garota de gaze branca qual é a sua verdadeira técnica de jogo (técnica esta que, muito aqui entre nós, você ainda não determinou completamente. Inclusive porque a garota do recreio tem um nariz assim meio empinado. Você fica sem saber qual é a dela. Vai ver quem não é de nada é ela).

 

 

Texto dois da Mônica

Você está chegando de trem na casa de seu tio, que é um solteirão já velhinho muito rico e que vive em uma mansão no meio de uma fazenda enorme, com praia selvagem onde só se chega descendo por um atalho com escadinha de pedra entre flores silvestres, e onde há uma velha cabana de pesca feita de palha, mas com uma cama muito confortável, ar condicionado e televisão a cabo. Há também rios de leito de pedra, florestas antigas, cavalos, montanhas com vista a perder de vista, os mais variados animais, como veados selvagens, tucanos, coelhos selvagens, micos-leões dourados e prateados, porcos espinhos (importantes a seguir, como se verá), peixes em profusão, aves raras etc.

O trem, daqueles antigos, que apitam roucamente, chega em uma estação também antiga, com uma lanchonete com poltronas de couro, quadros de moldura dourada e janelas de vidros decorados, que sua avó diz que são bisotês. Lá dentro todos estão muito bem vestidos, com casacos, xales, luvas e chapéus, tomando coca-cola on the rocks com fatias de limão e olhando ao longe. Eles fumam de piteira. Quando o trem chega é sempre inverno e há uma bruma que cobre, alternadamente com a fumaça que sai das caldeiras do trem, todo mundo, de tempos em tempos.

Quem vem buscar você na estação é o braço direito do seu tio. O braço direito do seu tio é lindíssimo, um morenão de olhos verdes e longos cabelos lisos, que usa no braço direito – e no esquerdo também – umas pulseiras largas de couro que você acha o máximo. Tem um papo que corre que seu tio nunca se casou porque é meio gay e que o braço direito – não sei não, esse negócio de braço direito – diz sempre o seu pai, mas você sabe que é pura inveja porque seu tio, que é o irmão da sua mãe, teve muito mais sucesso financeiro do que seu pai. O fato é que o braço direito se ocupa da contablidade e da gerência dos negócios do seu tio há muito tempo, e desde que seu tio começou a ficar doente que ele é praticamente a única pessoa a entender dos negócios dele. Seu tio de fato gosta muito dele. Vive elogiando:

– Ele é um estouro!

Você é belíssima. É a primeira vez que você volta à casa do seu tio depois de muito tempo, e o braço direito ainda nem sabe como você ficou bonita depois que virou moça. Vocês são grandes amigos de infância e desde aquela época ele é secretamente apaixonado por você, mas você nunca notou. Além de belíssima, você também é muito inteligente (está se formando em medicina) e é noiva de um cara que é rico, bonito, inteligente, da alta sociedade, educadíssimo, que trata você com o maior respeito e que tem um belo futuro pela frente no escritório de advocacia do pai, onde já ocupa uma mesa em sala de canto com vista para o mar – em suma: perfeito. E além de tudo, conde, visconde, lorde, uma coisa assim. É o chato do Henriquinho, filho da amiga de sua mãe, aquele que ela vive dizendo: mas minha filha, convida o Henriquinho para ir junto, ele é um rapaz tão bom!

Você está indo à casa do seu tio por três motivos: 1) ele está muito doente e quer ver você, sua única herdeira, antes de morrer porque ele tem um segredo que só pode contar pessoalmente; 2) você está mesmo procurando um bom lugar para fazer estágio e quer que seu tio dê uma ajudinha antes de morrer, já que ele é o diretor do maior hospital da região e tem muito poder; 3) você quer dar um tempo com o Henriquinho, que tinha convidado você e mais um pessoal para uns dias na casa dele de Búzios onde sobra mosquito.

Você vem no trem anterior ao combinado e senta na lanchonete para ficar vendo o movimento. Bem antes da chegada do trem no qual você tinha combinado vir, você vê o braço direito, o rosto pálido, ansioso, que se senta em um dos velhos bancos de madeira, as mãos nos bolsos do sobretudo – que está na capa do último número da revista de moda masculina inglesa que seu jornaleiro recebe todo mês. Quando o seu trem chega, ele se levanta em um átimo (quando o trem chega é sempre inverno e é sempre antigamente, inclusive no vocabulário) olhando cada janela que passa cada vez mais devagar, cada pessoa que desce na estação. Aos poucos a estação vai ficando deserta, não tem mais ninguém para descer, ele continua olhando, procurando, aos poucos abaixa os olhos: você não veio. Neste ponto você dá pequenas pancadinhas no vidro bisotê, chamando sua atenção e sujando o vidro, o que sua avó detesta. Instantaneamente, o rosto dele se abre em um sorriso esplendoroso e ele coloca a mão do outro lado do vidro onde está a sua, tentando um contato impossível – e sujando o vidro mais ainda. Desce a tal da bruma. Quando a bruma sai ele está a seu lado, dentro da lanchonete.

Bem, o resto é o de sempre. Como vai. Eu vou bem, e você. Que frio, hein. Mas puxa, como você está linda. Bem, você também não está de todo mau.

“Mas meu tio, como está o meu titio querido?”

“Só está esperando você chegar para morrer, vamos logo.”

Isso tudo, ele segurando apenas uma de suas mãos. Até que nota o anel de noivado.
“E o seu noivo, como está?”

A voz é triste, os olhos tornam a ficar marejados de lágrimas. Você retira a mão.
“Vai bem.”

Ele apanha suas malas e leva você até o carro. Vocês quase não se falam até chegar na mansão, você relembrando cada parte do caminho.

No quarto onde está o seu tio, ele com a voz quase sumida pela doença pede para você se aproximar. O que ele tem para dizer é o seguinte: o braço direito nunca foi gay na vida, muito pelo contrário, é apaixonado por você desde sempre e que topou fazer papel de gay para encobrir o verdadeiro amante dele (dele seu tio), amante este que é um alto dignatário do Congresso Nacional que mora ali pertinho e que você conhece desde menina pela alcunha de tio Bibi, que é casado, cheio de filhos e que você já imaginou, minha filha, o escândalo?

– Sou muito grato ao fulano (falta inventar um nome para o braço direito) por tudo o que ele me fez, minha filha. Se ele me deve a vida, como você verá a seguir, eu também devo muito a ele, a quem sempre quis como a um filho. E é justamente sobre isso que quero falar com você: estou pretendendo deixar para ele uma pequena parte de minha propriedade. Como você é minha única herdeira legítima, eu preciso de sua aquiescência para que você não conteste judicialmente meu testamento.

Além de linda, rica, inteligente e noiva, você tem também um coração de ouro e diz:
“Ora, titio, é claro que sim, mas que besteira, não precisava nem perguntar. Logo aquele pedaço de lá que vale muito menos e do qual eu não faço mesmo a menor questão.”

Seu tio pede para você abrir uma gaveta secreta da escrivaninha dele, cuja chave ele guarda em um barbantinho pendurado no pescoço, e pegar lá dentro uma caixa de charuto. Você pega.

“Aqui dentro está toda a história do fulano (precisamos arrumar um nome. Poderia ser Right Arm, os amigos chamando-o de Rai Tarm).

Depois disso, o seu tio morre.

Raios, o estágio!

Paciência.

No velório, você e o braço direito passam o tempo todo encostadinhos um no outro, olho no olho, discretas alisadas no braço (qualquer um deles). Você chora:
“Minhas melhores lembranças da infância!”

O braço direito também chora:

“Tudo que sou devo a ele!”

As pessoas dão os pêsames, passam. Uma delas é o tio Bibi. Ele está aos prantos pedindo pelo-amor-de-deus para mexer sozinho na escrivaninha do seu tio, porque lá tem papéis pessoais que ele precisa recuperar. Você, é claro, deixa. Ele sai agradecido e diz que qualquer coisa que você precise, estágio etc., pode contar com ele.

No período de inventário, que é longo, você passa os dias sentada no computador com o braço direito lhe passando, pouco a pouco, toda a situação dos negócios do seu tio. O braço (ahn, fica Rai), você nota, além de honestíssimo, é da maior competência. Você comunica a ele que, por herança, aquela parte de lá da propriedade é dele. Ele dá de ombros, agradece e suspira. E pergunta o que você pretende fazer na vida. Se você for casar com o Henriquinho e vir morar ali, ele prefere abrir mão da herança e sumir no mundo, porque não aguentaria a tortura de ver você com o Henriquinho manhã, tarde e noite (talvez ele também não aguente a tortura de ver o Henriquinho, mesmo sem você, mas isso é só uma suposição).

Ele não fala o que sente de forma clara, ele hesita em contar o quanto é apaixonado por você. Ele só diz:

“Bem… talvez eu nem fique com a propriedade…”, e suspira.

Todos os dias vocês descem e em uma mesa na cozinha tomam um café com bolo que uma empregada perfeita – que limpa tudo, faz as compras, cozinha maravilhosamente bem e que ninguém nunca vê – prepara todos os dias antes de ir embora.
Você já está meio cansada destes olhares avassaladores e mais nada, e resolve arrancar do braço direito a confissão de quanto ele ama você. Então, durante um destes cafés, você faz ele morrer de ciúme de 1) um filho do tio Bibi que vive lhe chamando para ir a festas; 2) do Henriquinho, que vive telefonando perguntando se pode ir aí visitar você; 3) e de mais uma meia dúzia que você inventa na hora.
Não adianta. Ele quase chora de sofrimento, mas não fala nada.
Então você tira a fita vermelha que você usa na cintura para prender sua camisolinha que, sem a fita, abre inteira e enquanto o queixo dele cai você amarra as mãos deles com a fita.

Ele diz:

“O que você está fazendo?”

“Amarrando as suas mãos, não está vendo?”

“Para que?”

“Para torturar você.”

“Mais ainda do que já tortura?”

”Até você confessar.”

”Alguma coisa que você ainda não saiba?”

“Não, mas eu quero ouvir.”

“Eu amo você desesperadamente. Mas como dizer para você trocar um conde rico e bonito e chamado Henriquinho por um reles braço direito, Rai, com fama de gay?”
“Então é verdade mesmo?”

“Sim! Sim! Não! Não!”

Você se levanta confusa da mesa e vai correndo se trancar no quarto, onde você sonha a noite inteira com aquele braço direito fazendo coisas incríveis.

No dia seguinte, você toma uma resolução e diz:

“Quando quiseres serei eu a tua braça esquerda (Lef Tarm).”

Não ficou muito bom. Depois você vai ter de melhorar isso.

Adendos possíveis, se você estiver com tempo:

1) Cena da volta do velório:

Você diz que para espantar a tristeza nada melhor do que dançar um pouquinho. Ele põe uma música lenta. Vocês se aproximam. Você coloca uma mão na nuca dele e fica mexendo com seus cabelos. Com a outra mão, você afasta um pouco a camisa dele e toca diretamente a pele do seu peito. Você sente o coração dele batendo muito forte. Ele coloca a mão dele por cima da sua. Mas a emoção de estar assim perto de você é muito grande. O cheiro dos seus cabelos o inebria e ele, trêmulo, não consegue dar um passo. Quando a música acaba, ele fala simplesmente:
“Desculpe.”

2) Cena da chuva na floresta:

É uma noite escura e está a maior tempestade. Faz tempo que você não ia pelo caminho da praia e você se perde. Você está com um vestidinho de algodãozinho muito leve (agora já é verão) que fica completamente transparente quando molhado. No meio dos trovões, você – que está com o pé preso embaixo de uma pedra que rolou, morta de medo de algum leão ou hipopótamo que abundam por lá, ouve o braço direito chamar por você, desesperado.

Ele encontra você e diz:

“Oh, meu Deus, graças a Deus. Are you all right, Lef?”

Ele a leva no colo até a cabana da praia onde não há nenhum mosquito, deita você na cama, liga o ar condicionado e você desmaia. Quando acorda, no dia seguinte, ele está do seu lado, olhando para você apaixonadamente. Você está com a camisola especial de renda. Ele continua com a roupa molhada mas diz:

“Não tem importância. O importante é você estar bem.”

No meio da camisa você percebe uma mancha de sangue. Ele se feriu. Você diz:

“É preciso cuidar disso.”

E como você é médica, você faz um curativo com perfeição, enquanto ele fecha os olhos e treme ao sentir sua mão na sua pele. Você o beija apaixonadamente. Vocês ficam na cabana da praia uma semana, alternando cenas realmente quentes no friozinho do ar condicionado com sessões de filmes ótimos dos canais de filme da televisão a cabo.

3) O lance do porco-espinho:

Um dia vocês estão passeando pela floresta e ele grita:

“Cuidado!”

Ao mesmo tempo se joga na sua frente, encobrindo o seu corpo com o corpo dele e quase esmagando você contra um tronco de árvore. Você nada vê, além de uma expressão de dor em seu rosto. É que você, inadvertidamente, ia pisando em um porco espinho que, para se defender, se posicionou para soltar os espinhos. Ele viu e protegeu você, recebendo ele, nas costas, todos os espinhos. Você faz com que ele se deite de bruços no chão (ou na mesma cama da cabana da praia, de repente é melhor) e você rasga sua camisa e vai tirando um por um os espinhos enquanto passa a mão suavemente pela sua pele. Ele está com os olhos fechados. E quando você pergunta se dói muito, ele responde:
“Só dói quando você não me toca.”

4) Conteúdo da caixa:

Dentro da caixa que seu tio lhe deu estão documentos do braço direito que mostram o quão infeliz foi sua vida até que seu tio o salvou. Lá dentro também está uma espécie de diário que ele fazia quando criança e que ele nem sabe que ainda existe, e onde ele fala de você sem parar e de como ele gosta de você.

5) O fim:

Vocês vivem felizes para sempre. No começo as pessoas ainda estranham por causa da fama de gay dele. Mas aos poucos, como você é muito rica e boa, e como todo mundo gosta dele, que é de fato um ótimo sujeito, ninguém mais fala nada e vocês vão tendo filhos e mais filhos, todos lindos, todos chamados Bô Tarm (Both Arms, no resgistro de nascimento). Você é convidada para dirigir o hospital. Ele fica cuidando dos negócios da família. Tio Bibi não consegue se reeleger no Congresso e resolve então se assumir. Abre uma sauna para se ocupar na aposentadoria. Henriquinho entra para o Rotary e dá uma festa, você não vai. Sua mãe vai e diz que a festa foi linda, com uísque escocês a rodo, todo mundo lá. Você pergunta se aquela piranhazinha da sua colega foi. Foi. E dançou o tempo todo com o Henriquinho.

Aí sua mãe pergunta como vão as cabras da fazenda.

Você não responde, porque está distraída olhando a vista a perder de vista.
Um mosquito morde seu pé. As crianças estão berrando lá embaixo. Você pensa – só assim – que se fosse preciso sair pela janela por uma corda, sem ninguém ver, não ia ser difícil. A mansão é baixa.

Você pensa em um nome para o braço direito. No recreio, outro dia, você ouviu alguém berrar “Macarra!” para aquele cara moreno que finge que joga bola enquanto fica olhando para você. Mas não pode ser Macarra, que lembra macarrão. Tem de ser um nome melhorzinho. Afinal, é um braço direito.

 

 

Texto dois do Macarra

Você é dono de um segundo harém. Este harém aqui fica em um enorme gramado inglês, cobrindo colinas suaves a perder de vista. As moças andam com umas camisolinhas de renda curtinhas e, quando bate o vento, levanta tudo. As camisolas têm também umas alcinhas que arrebentam com a maior facilidade. Você faz um concurso por dia para escolher que moça vai ficar com você naquela noite. É assim: você fala “já!” e elas saem correndo aos gritinhos. Você dá um tempo para que elas fiquem com uma certa vantagem e sai atrás. Quem correr menos e você agarrar, é aquela. Mas elas só fingem correr e praticamente se jogam na sua frente.

“Ih, desculpe, tropecei, hi, hi.”

Tem uma então, a da perna grossa (lembra muito aquela menina do recreio, inclusive) que corre muito mal, talvez justamente por causa das pernocas grossas. Em geral você agarra ela. Tem dias também em que você não agarra ninguém. Quem finge que tropeça é você, e aí você volta, se tranca no seu quarto para ver sossegado um vídeo de espionagem.

Aliás, às vezes não precisa nem fingir. Depois do último jogo em que você tropeçou de verdade e teve que engessar o tornozelo, você não pega mesmo ninguém nem querendo, manco deste jeito. Haja vídeo.

Não dá para você perguntar o nome da menina do recreio para ninguém, porque se perguntar para homem vai ser uma encarnação só, e das meninas que ficam no mesmo grupinho dela você não conhece ninguém. Mas na correntinha que ela traz no pescoço tem a letra M. Madonna, Ma Belle, Mmmmmmmore. Na verdade tanto faz, você não vê muita oportunidade de precisar usar o nome dela no harém, de qualquer maneira.
‘Psiquiu’ já serve para os seus propósitos.

 

 

Texto três da Mônica

Você é a rainha da Inglaterra. O que aconteceu foi que seu pai é um tremendo de um mau caráter e ainda por cima viciado em jogo, e ele simplesmente vendeu você para um cara que você nunca tinha visto antes e que, por acaso, era o rei da Inglaterra.
Você topou a tramoia, apesar de estar ofendidíssima de estar sendo tratada como uma mercadoria – por causa do dever filial e também porque o rei, como você veio a descobrir no primeiro encontro -, não é tão mau assim: moreno, com uns olhos lindos, embora manco. E, de qualquer maneira, no contrato nupcial você deixou acertado de que não haveria contato sexual entre vocês. Seria um casamento puramente de aparência: seu pai ganharia uma  bolada para sair de sua última enrascada, e o rei ganhava uma esposa a jato porque, segundo uma lei real, se ele não estiver casado ao completar 23 anos, o trono passa para seu irmão mais novo.

No momento não há nenhuma princesa disponível no mercado, segundo ele.

Você mora na ala da esquerda e ele mora na ala da direita do palácio. Vocês quase nunca se veem e, quando isso acontece, ele sempre sai apressado dizendo:

“Desculpe, minha presença deve incomodá-la.”
Não incomoda. Mesmo porque você, além de muito bonita, inteligente, talentosa, alegre e agradável, também tem um coração de ouro e não é de guardar rancor de ninguém. Você acha o fim o rei ter achado que ia comprar você como um pacote no supermercado, mas nem por isso você fica com raiva dele sem parar. Só de vez em quando.

Tudo o que você pede a ele, ele dá. Você pediu para vir com o seu cachorrinho, e ele deixou (não que você quisesse aquele sujinho babento, mas sua mãe negou-se terminantemente a tomar conta dele durante o ano em que você ia passar casada no palácio – o contrato é só de um ano). Depois você pediu uma escrivaninha com telefone, fax e computador – para continuar a fazer seus trabalhos de pesquisa médica, e ele deu. E você pediu para continuar se relacionando com seus antigos amigos.
“Alguém em especial?”

“Sim, o Henriquinho.”

“Compreendo. Um…um…?”

“Não, bem, sim, mais ou menos, foi, hoje não mais.”

Apesar da sua aparência total e necessariamente britânica de total indiferença, é óbvio que o rei morre de ciúme cada vez que chega carta do Henriquinho para você. Você gosta de provocar ciúmes e fazê-lo sofrer. Você diz que assim está se vingando do casamento forçado. Então, mesmo que você não tenha nada para dizer, você manda recortes de revistas, pedacinhos de capim, e como o Henriquinho é um chato, ele sempre encontra vários comentários a fazer de resposta. Você também – só de implicância – dá uns gritinhos falsos de horror toda vez que topa com o rei e sua perna manca pelos corredores. Ele só falta chorar.

Um dia o Henriquinho escreve que vai passar por perto, se ele pode fazer uma visita. Você pergunta ao rei se o Henriquinho pode fazer uma visita e o rei, com os olhos rasos de água, responde:

“Sure, Milady.”

Você não estava esperando outra resposta, já que o rei é uma pessoa finíssima e não ia armar um barraco no palácio por tão pouco.

Thanks, Lord Mac Arrag (que é como o rei é chamado na intimidade).”

No dia esperado, ele inventa uma coisa para fazer na esquina e sai para deixar você receber sua visita sossegada.

O rei chega de volta tarde e, dos jardins, vê que há um carro estranho estacionado perto da porta e logo percebe que, apesar da hora, o Henriquinho ainda está lá. O rei entra assim mesmo. A sala está toda escura e ele vê luz por baixo da porta do quarto que ele separou para você. A porta está fechada. O rei só percebe a luz da soleira e escuta risadinhas. Ele, trêmulo, vai subindo a escada. Neste exato momento, o Henriquinho está saindo do quarto, ajeitando a camisa. Os dois se encontram na escada.
“Ah, você deve ser ooo…ooo…”, diz o Henriquinho, que nunca foi bom para nomes. De nervoso ele começa a rir, o que só piora as coisas. O rei, que já estava tremendo de ciúme, acha que o Henriquinho está curtindo com a cara dele e dá-lhe um tremendo murro na cara. O cachorro, nervoso com o barulho, começa a morder você, que é a reação normal dele quando fica nervoso, o que é frequente. O cachorro está mordendo você e o Henriquinho está passando por você, via aérea, antes de aterrissar ao lado da cama e em cima do cachorro, graças a deus.

Na cama, olhando tudo sem entender nada, estão você e uma esposa grávida de 10 meses, do Henriquinho, aquela tua amiga piranhazinha que resolveu mudar de vida.
É justamente por isso que o Henriquinho passou perto do palácio: estava a caminho do hospital que fica por ali, para o parto.

Agora quem entra no quarto é o rei que para, aturdido, ao ver a grávida. Aos poucos ele percebe a situação e se apoia na escrivaninha: a emoção que ele está sentindo, mais o esforço de dar um soco no Henriquinho, é muita coisa para sua frágil saúde. Com a voz quase sumida de vergonha ele diz:

Sorry, eu…I…”

O Henriquinho, em vez de ficar calado, começa:

“Como eu ia dizendo antes de receber essas suas reais boas-vindas, você deve ser o rei Mac Arragh, o marido frio e insensível da Mônica, neste casamento de conveniência no qual não há lugar nenhum para emoções, afeto e muito menos para ciúme, certo?”
O rei baixa a cabeça, morto de vergonha e você também começa a ficar constrangida. Que diabos! Está certo que o soco foi forte, mas o rei já pediu desculpas, poxa.

Mas o Henriquinho continua tripudiando e o rei está cada vez mais envergonhado.
Você fala:

“Para, Henriquinho.”

Ele se levanta. O rei fala mais uma vez desculpe e sai mais mancando do que nunca. Henriquinho ainda berra:

“Vou mandar a conta do meu dentista, viu, é o mais caro que tem na cidade”, e cospe um dente. É nesta hora que você percebe que o cachorro morreu esmagado, porque ele não come o dente.

Você acompanha Henriquinho e a mulher dele até a porta. Eles ficam de passar no palácio outra vez, na volta, já com o bebê.

Você entra e vai encontrar o rei no fundo da cozinha, deprimido, tomando café frio de uma garrafa térmica (mas garrafa térmica real, toda em ouro). Você senta do lado dele, os dois ficam em silêncio, os olhos baixos. No fim você diz:

“Seu pé ficou ainda mais machucado, não?”

E sem esperar resposta, você se ajoelha ao lado dele para fazer uma massagem enquanto ele olha para você apaixonadamente. Depois de alguns instantes, você diz:
“Diga com sinceridade o porquê de você dar aquele soco no Henriquinho. Foi para manter a farsa do nosso casamento? Quer dizer, foi para ele espalhar por aí o quanto nós somos unidos e assim acabar com estes rumores de que nosso casamento é uma armação para você não perder a coroa? Ou foi mesmo por ciúme?”
O rei diz baixinho:

“Ciúme.”

Ele diz que ficou cego de ciúme, que o casamento de vocês – pelo menos no que se refere a ele – nunca foi uma farsa, que seu pai o enganou dizendo que você não só topava se casar com ele como estava até mesmo afim, e que ele só notou que era mentira na porta da igreja, mas que aí já era tarde, com os convidados todos lá, e os docinhos já comprados e tudo. Disse que ele ama você desde menino e que a história com seu pai foi a maneira que ele viu de se aproximar de você. Ele diz que conhece você há muito tempo, desde rapazola, quando costumava sair incógnito do palácio, fantasiado de havaiana para ninguém perceber, para pescar lambari no riacho que corre ao lado da casa do s seus pais.

Você tenta se lembrar de alguma havaiana pescando lambari, mas não consegue. No entanto, ele deve estar dizendo a verdade, porque passa a descrever você e os vestidinhos que você usava quando adolescente. Disse que nunca ousou se aproximar de você porque você é linda e ele, como todos sabem, é um manco.

Você beija os dedos do pé machucado dele e ele se atira no chão para abraçar você. Vocês passam a ser muito felizes, para sempre.

O único problema é que não há muita coisa para fazer no palácio. Você passa então a criar jegues, o que é um escândalo. Desde os tempos imemoriais que a família real cria cavalos, mas você insistiu e o rei, que nunca lhe nega nada, concordou. Vocês criam então jegues. Você se encanta com aquele olhar -de-quem-conhece-o-mundo-e-não-gosta-muito-dele que só os verdadeiros jegues conseguem ter.

 

 

 

Texto três do Macarra

Você é dono de vários haréns, pelo menos três, e não aguenta mais. Aí você decide tirar umas feriazinhas e vai para Londres, inventando que tem uns negócios a tratar a respeito de um novo lote de umas escravas brancas (que nem fazem muito o seu tipo, você prefere as nem tão brancas).

Você está andando na rua, com medo de ser atropelado por aqueles carros que vivem na contramão, quando para uma limusine preta com vidros fumê do seu lado. De dentro salta um cara fortão que empurra você para dentro, fecha a porta, e fica na calçada olhando você se afastar dentro da limusine. Quando seus olhos se acostumam com a penumbra, você vê que dentro da limusine está a rainha da Inglaterra. Você a reconhece na mesma hora não por causa da coroinha de pedras e ouro que ela tem na cabeça, nem por causa da pronúncia britânica quando ela diz “hã, delicious thing”, antes de começar a tirar a sua camisa. Você a reconhece por causa da correntinha que ela traz no pescoço com a letra M (de Majesty, como qualquer ignorante sabe).

Bem, ela tira toda a sua roupa menos a gravata.

(Você sempre anda de gravata quando está em Londres.)

E aí, nheco.

Quando acaba, ela começa a vestir você outra vez, inteirinho, e quando você está todo vestido, só aí ela tira a sua gravata e faz um rolinho com ela, antes de enfiá-la por dentro da liga preta que segura as meias de nylon, também escuras, que encobrem umas coxinhas roliças que são uma delícia. Aí ela aperta um botão que você nem tinha reparado. O carro diminui a marcha, ela abre a porta, você sai. Vocês nunca mais se veem.

A não ser na festinha que vai ter sábado, para a qual você acha que ela vai ser convidada. Pelo menos foi o que garantiu um amigo seu, que conhece a melhor amiga dela.
Parece que o nome dela é Mônica. Não é um nome lá muito especial.

 

 

Texto quatro da Mônica

Você foi atacada por um tarado mascarado quando era menina, e depois disso nunca mais conseguiu chegar muito perto de homem nenhum sem morrer de medo.

Você está visitando um primo seu, de quem você nem gosta muito. Você está indo lá por insistência da sua família, que disse que você tem de se distrair para se recuperar do trauma. Na verdade, esse seu primo é muito rico e, como parece que está muito doente, a sua família tem grandes esperanças de que você vire herdeira dele – já que ele só tem um meio-irmão mais novo como parente direto, e ele detesta esse meio-irmão mais novo e muito provavelmente não vai querer deixar nada para ele. Foi o que a sua mãe falou, de um fôlego só, enquanto colocava a mala já pronta na sua mão.

O seu terapeuta de bioenergética não recomenda a viagem, porque foi perto da casa deste seu primo, justamente, que se deu o incidente com o tarado e ele acha que a viagem pode trazer mais bloqueios de energia.

O meio-irmão mais novo do seu primo se chama Macarra e mora em uma casa ao lado da casa do seu primo. Você gosta muito dele, e já teve mesmo uma destas paixonites de criança por ele. Você sempre achou que ele também gostava de você, mas ele era muito tímido, vivia pelos cantos e nunca lhe disse nada a respeito. Hoje você continua sem saber: ele age de maneira estranha porque, ao mesmo tempo que olha para você apaixonadamente, costuma recusar todos os seus convites para passear, ir ao cinema etc. Para você assim está bom, já que se ele quisesse uma aproximação maior quem fugiria correndo seria você, por causa do trauma. Mesmo nesta situação, vocês se veem com frequência, já que, embora o seu primo tenha sido contra, você está indo todas as tardes à biblioteca onde o Macarra trabalha, para ler e bater papo. O papo vai de 1) um machucado que ele fez no tornozelo enquanto jogava bola, mas que agora já sarou, até 2) o ataque do tarado. Mas nestes momentos ele sempre baixa os olhos, às vezes chora sem que você saiba o motivo.

Seu primo  – o que você não gosta – acaba propondo que vocês se casem e deixa bem claro que, por causa da doença dele, não haverá contato físico entre vocês. Só uma maneira do pessoal não ficar falando mal de você, hospedada tanto tempo na casa de um cara solteirão etc. A sua família faz pressão por causa da futura herança e você aceita. Macarra só falta morrer de ciúme quando, em uma das raras visitas ao irmão, percebe que vocês se casaram. Você diz que é um casamento de mentirinha e fala da doença de seu marido. Ele diz que não sabia que o irmão está doente e parece surpreso.

Você continua indo à biblioteca, apesar da cara feia do seu primo-marido.

Um dia está chovendo muito e você e o Macarra estão sozinhos na biblioteca, que já está fechada. No meio de um trovão você se assusta e corre para os braços dele, esquecendo-se completamente do trauma. Ele abraça você com força e soluça desesperado. Aí você lembra do trauma e o empurra para longe. Ele cai ajoelhado, chorando, e faz uma grande revelação.

Ele diz que foi ele que atacou você. Que a turminha da rua e mais o meio-irmão viviam caçoando que ele era apaixonado por você e não tinha coragem de te contar. Um dia eles disseram que você estaria esperando por ele em uma aleia escura do bosque, que era só ir até lá que você estava afinzona de ficar com ele. Ele diz que eles deviam ter colocado alguma coisa na bebida dele, porque ele não lembra mais de nada, só de acordar do seu lado, de você com os olhos vendados e ele com uma máscara na mão. Aí ele percebeu o que tinha ocorrido e fugiu, sem saber o que fazer. O meio-irmão, que sempre o detestou, desta vez foi legal e disse que ia livrar a cara dele, escondendo as evidências. O meio-irmão jurou que não contaria isso para ninguém.

Ele diz ainda que por várias vezes quis falar com você sobre isso, mas nunca teve coragem de se ver privado até mesmo das migalhas da sua atenção, já que seu amor verdadeiro ele sabia que jamais mereceria. Mesmo porque, agora você é cunhada dele e, por causa desta dívida que ele tem com o irmão, ele jamais poderia paquerar você numa boa. Você se afasta horrorizada de saber que a pessoa que você tanto gosta é a responsável pelo seu trauma. Ele implora para que você o perdoe e que não vá embora, mas você, desatinada, vai.

No meio da chuva, você completamente louca acaba dormindo em uma caverninha que fica perto do local onde você foi atacada. Neste local, pela primeira vez, você sonha com o incidente e no sonho se lembra que o cara que lhe atacou tinha uma marca no peito, a qual você viu só de relance, por uma fresta da venda que você tinha nos olhos. Quando você acorda na manhã seguinte, ainda tonta com tudo, vai cambaleando para sua casa, onde seu primo-marido está esperando por você. Ele está com cara de tarado, mas você não nota.

Ele está uma onça por você ter dormido fora de casa, diz que a história da doença era mentira e que está muito afim de você. Você fica desesperada e tenta fugir, mas ele a agarra. Você, que apesar da aparência frágil, sempre fez sua aeróbica, pega o monitor do seu computador e joga em cima dele. Você o machuca e ele tira a camisa para ver onde está sangrando e diz:

“Olha só o que você me fez, sua… sua…”

Você quase desmaia de pavor, mas junta as últimas forças para sair, mais uma vez, correndo pela chuva, sem olhar para trás. Não vê que seu primo-marido, sem camisa, exibe uma marca no peito, igual a do tarado que lhe atacou.

Trovões, trovões. Relâmpagos. Orquestra sinfônica. O fim do mundo.

Sem ter para onde ir, você pega um avião que passava por ali e volta para a casa dos seus pais, onde se nega a dar qualquer explicação. Lá você não consegue esquecer o Macarra. E conclui que mesmo que seja ele o seu atacante, mesmo que ao tirar um dia a sua camisa você descubra a horrível marca no peito dele, você gosta dele, o perdoa (afinal, ele estava dopado) e o quer. Você telefona para a casa dele. Quem atende diz que ele está muito mal no hospital, que quando ele voltou da biblioteca naquela noite teve um estresse de origem emocional desconhecida e que, depois de vários dias de delírio só chamando pelo seu nome, entrou em coma. Você volta correndo e vai ao hospital onde, sob orientação médica para evitar novo choque, o que poderia ser fatal, você vai falando com ele baixinho. Ao escutar o som da sua voz, Macarra melhora instantaneamente. Abre os olhos, vê você e torna a fechá-los com força, achando que é delírio. Mas você chega perto dele e o acaricia, e então ele acredita e torna a abrir os olhos. Você desabotoa sua camisa e passa a mão pelo seu peito onde não há nenhuma marca.

Você conta a ele sobre a marca do peito do tarado, que você havia completamente esquecido e que graças ao sonho tornou a aflorar na sua consciência. Diz que ele não é o culpado de nada e que sofreu estes anos todos inutilmente. Você diz também que quando resolveu voltar ao hospital não tinha certeza de que ele não era o culpado, mas tinha decidido ficar com ele mesmo se fosse. Que você o havia perdoado. Ele chora. Você chora. Uma enfermeira que está passando também chora. Vocês choram mais um pouco e dizem o quanto estão felizes, e aí choram outra vez e ficam cada vez mais felizes.

Para sempre.

Quando ele sai da cama do hospital vocês vão para a cama. É a primeira vez que isto acontece para vocês dois. Vocês percebem que na verdade o ataque do tarado não foi para valer. O mistério aumenta.

Enquanto isso, a ferida provocada pelo monitor do computador na cabeça do seu primo-marido infecciona. Ele está quase morrendo e conta que se arrepende muito de todas as maldades que cometeu na vida, sem especificar nenhuma. Ninguém acredita, excetuando os seus pais, que murmuram comovidos:

“Ele é tão rico, coitado…”

Ele acaba que morre. Quando estão vestindo o cadáver para o enterro, você, a viúva, e o Macarra, o único parente vivo, estão ao lado dele e veem, os dois ao mesmo tempo, a marca no peito do defunto. É um choque. Mas, na verdade, vocês já desconfiavam de alguma coisa, porque seu primo-marido sempre tinha detestado o irmão, desde que este nasceu, porque, ao nascer, ele matou a mãe deles dois de parto. Detestava também porque ele é lindo, moreno de olhos verdes, joga bem futebol, é simpático, tem um sorriso lindo, bem, só.

O que aconteceu foi o seguinte: depois de ter tomado um copo no qual a turminha tinha colocado uma droga muito forte, o Macarra desmaiou. Enquanto isso, você, que sempre tomava o atalho do bosque com seu chapeuzinho vermelho no caminho da casa da vovó, era seguida sem saber pelo seu primo mau. Numa curva do caminho, ‘catapum’ em cima de você, que não teve tempo nem de gritar. Quando já estava começando a lhe atacar para valer, seu primo escutou os passos de um caçador e se mandou, deixando você lá, desmaiada. Enquanto isso, a turminha, crente que a maldade já havia sido feita, estava vindo arrastando o Macarra, também desmaiado, e deixaram ele do seu lado para que, quando você acordasse, pusesse a culpa nele. Só que ele acordou antes e, desesperado, fugiu.

Você, para desgosto dos seus pais, resolve abrir mão da sua herança de viúva, porque não quer nada que tenha pertencido àquele monstro. Você e o Macarra vão morar em um quartinho em cima da biblioteca, onde a luz é insuficiente e você acaba míope, embora muito culta. De vez em quando vocês abrem um romance, desses bem tristes, e choram juntos, o que deixa vocês muito felizes. Ele sai, vez por outra, para bater uma bolinha com os amigos. Você nem isso. Você anda meio enjoada desse negócio de histórias de ficção, livro, essas coisas. Você se lembra do monitor. Um joguinho de computador de repente ia bem, uma pena ter quebrado. Você lembra também às vezes do seu terapeuta de bioenergética, cheio de dedos. Talvez você volte a procurá-lo um dia.

 

 

Texto quatro do Macarra

Você é dono de harém, mas você tem uma doença secreta que sempre que você toca em uma mulher ela fica parada, com um sorriso idiota na cara, os olhos semicerrados e em pose de fotografia de mulher pelada, obviamente esperando que você faça alguma coisa.

Como você não sabe o que fazer, ela acaba ficando para sempre de papel, o que é um papelão para você. Constrangedor. O seu armário já está cheio delas. Então, por causa disso, você nunca toca em mulher nenhuma.

Ninguém sabe disso, é claro. Já que todas as mulheres que viraram papel justamente viraram papel e não puderam contar o seu segredo para ninguém. Com o passar do tempo, o seu harém de papel vai aumentando. Já nem cabe na bolsa do fundo do armário e você não sabe mais o que fazer.

Um dia, você abre o seu armário e encontra uma fotografia de mulher pelada que não estava lá antes. É da Mônica, com suas pernas grossas e a correntinha no pescoço. Como ela já está em papel, não tem importância você tocar nela. Mas, subitamente, acontece a doença ao contrário, ela vira gente, e diz:

“Bem, como eu estou virando gente agora, eu também não tenho a menor ideia do que é para fazer, de modo que vamos tentando juntos. Que bom que seu tornozelo já sarou, assim as coisas ficam mais fáceis, não?”
Mas, mesmo com o tornozelo bom, nem sempre dá certo e aí é a maior choradeira. Mas depois vocês fazem as pazes e recomeça tudo de novo.

Para sempre.

O que é muito tempo, às vezes você acha.

 

 

O Texto definitivo da Mônica e do Macarra

Bem, vocês vão se encontrar na festa, os dois já sabem disso. Vocês ficam pensando em como vai ser:

“Oi, eu sou a rainha da Inglaterra.”

“Oi, eu sou dono de harém.”

Não vai dar certo.

Sem palácio, AR-15 ou gaze colorida, aqui começa a história de Mônica e Macarra.

Vocês vão se encontrar um dia. Pode ser em uma festa ou num encontrão na escada do colégio. Vocês não vão falar:

“Oi, eu sou dono de harém.”

“Oi, eu sou a rainha da Inglaterra.”

Vocês, sem palácio, AR-15 ou gaze, vão começar uma história. Vai ser a melhor delas e vai durar para sempre, mesmo que acabe antes.