Elvira Vigna – Kafkianas, editora Todavia, 2018
– prêmio Biblioteca Nacional 2019, categoria contos
Você olha e vê o que não está lá. Porque uma coisa, qualquer coisa, te remete a outra coisa, que não é exatamente aquela que está ali na sua frente.
As palavras, por exemplo. Você lê “porta”, e não as letras p-o-r-t-a. O que te vem à cabeça é o objeto, que você conhece há tanto tempo, e alguém lá atrás te disse que tem esse nome. Desde então, existe um acordo tácito entre você e todas as pessoas que falam a mesma língua que você: toda vez que alguém escrever as letras p-o-r-t-a ou pronunciar o som a elas associado, você pensará no objeto.
Existem, claro, outras formas que as coisas têm de se remeter às outras. O mel que te lembra da cor dos olhos de fulano. O cheiro da comida saindo do forno significa que é hora de comer. Guarda essa palavra: significa.
Mas isso tudo é mais velho do que o mundo. Todos os anúncios que você vê foram feitos por pessoas que sabem disso, mas tem mais. Porque uma das qualidades que nos assegura a sobrevivência como espécie é a de entender como funciona o mundo a nossa volta. Outra qualidade, que talvez seja a mesma que virá a nos destruir, é que nós modificamos o mundo a nossa volta, nos apropriamos dos processos que ocorrem espontaneamente na natureza, como se colocássemos neles a nossa vontade. Criamos novos processos, e tomamos posse de processos criados por outros, numa sucessão infinita.
“Significação” é a forma pela qual as coisas representam outras: o cheiro de comida que diz que é hora do almoço, a palavra que quer dizer uma outra coisa, etc. Tudo aquilo que a gente já falou. E todo processo de significação pressupõe uma interpretação. Então, não basta estar escrito “por favor, não pise na grama”, você precisa entender o que isso significa. Fazemos isso o dia inteiro, todos os dias. Quer dizer, interpretamos coisas.
Se você concordar comigo, nossa interpretação das coisas talvez não seja a única, mas certamente é uma forma importantíssima de nos relacionar com a realidade. E por realidade eu quero dizer “aquilo que está lá”. Tem uma cadeira na sua frente, que nunca estará na sua cabeça: o que estará é a sua interpretação de que é cadeira. Com cadeira é fácil, mas tente fazer esse experimento com um utensílio obscuro de cozinha e você vai vendo que o buraco é mais embaixo. Em outras palavras, focinho de porco não é tomada.
Se você continuar concordando comigo, se alguém conseguisse manipular a sua interpretação das coisas, essa pessoa controlaria muito de você, talvez uma parte importante da sua vida. Imagine que alguém te fizesse acreditar que tudo o que você vê na verdade é desimportante, e o que importa mesmo é uma promessa de coisas que nunca vêm. Ou que tudo o que é bom é ruim, e na verdade o que é ruim é que é bom de verdade.
Você percebe que eu disse “conseguisse”, e eu disse isso porque, de fato, tentam fazer isso o tempo todo.
Te vendem coisas, produtos, marcas, não por aquilo que as coisas são, mas pelo que te fazem acreditar que aquilo fará por você: te tornará atraente, interessante, inteligente. Você será uma pessoa que se socializará melhor com as outras. Te vendem um objeto, mas você compra aceitação, sucesso, afeto.
E isso pode ou não ser um jogo de enganação, depende do quanto você é de fato enganado. E ser enganado tem a ver com muito mais do que comprar o que te vendem ou ouvir o que te digam: tem a ver com acreditar. Tem a ver, de novo, com o que você acha das coisas.
Saindo do domínio das coisas que a gente compra e vende, vamos falar da arte. Claro que arte também se compra e se vende. Não é sagrado. E justamente por não ser, além de comprar e vender, você desfruta da arte. A palavra para isso é fruir. Você, que frui da arte, é o fruidor.
Desde ir ao cinema ver um filme até ir a uma exposição, as coisas funcionam de forma parecida: você aceita um convite, de alguém que te pede pra acreditar em alguma coisa. Só que é um acreditar só por um tempinho, porque você sabe que aquilo tem hora pra acabar, e é bom que seja assim. De certa forma, aquilo tudo vai existir na sua cabeça, por um tempo, e só enquanto você permitir. Talvez você saia diferente dessa experiência, talvez não (e isso também é bom).
Então, da mesma forma, o livro aqui é um convite. E também fala de coisas que não estão lá, e eu não estou mais falando das palavras que significam coisas. Estou falando das histórias, que contam outras histórias, ou então não contam história nenhuma. Os limites entre essas coisas são sempre borrados: que diabos é uma não-história? As imagens também contam histórias? Quando você lê uma história em quadrinhos, a história que você entendeu na sua cabeça é aquela que as imagens contaram ou a que as palavras contaram? Será que existe uma terceira coisa: que não é nem a história das imagens nem a das palavras, mas surge ali, quando você coloca uma perto da outra? E que não surge porque elas se somam, mas porque elas de fato geram uma outra coisa?
Sei lá. Se vocês descobrirem, me respondam, por favor.