Elvira viva
Três anos depois da morte de Elvira Vigna, uma análise da potência contida na obra contundente e corrosiva de uma das maiores escritoras brasileiras
Rogério Faria Tavares
Especial para o EM
Falecida em julho de 2017, antes de completar 70 anos, Elvira Vigna foi uma criadora de múltiplos talentos, como prova a sua atuação como jornalista, artista plástica, ilustradora e crítica de arte. Nascida no Rio de Janeiro e autora de vários livros dirigidos às crianças, também escreveu para jovens, legando a esse público histórias como Mônica e Macarra (Miguilim, 1996) e Vitória Valentina (Lamparina, 2013). Contista, ganhou postumamente o prêmio da Biblioteca Nacional por Kafkianas (Todavia, 2018). Sua incursão no romance foi, no entanto, por muito tempo, o eixo principal de sua produção literária, resultando em 10 narrativas, a primeira lançada em 1987 e a última publicada em 2016.
De evidente dicção feminista, suas personagens vocalizaram a agenda das grandes questões que mobilizaram as mulheres a partir dos anos 1980. Para alguns especialistas, em seus textos, ‘o subalterno fala’. Catarina, de Sete anos e um dia, pautou temas como a união estável, o aborto e a igualdade de gênero, além de discutir as relações do mundo do trabalho e até o poder das autoridades médicas. Destemidas, Lúcia, de O assassinato de Bebê Martê, e Maria Teresa, de Às seis em ponto, não hesitaram em insurgir-se contra os aspectos opressores representados pela figura do pai. Valderez, de Por escrito, encarou o machismo predominante no mundo corporativo, e Lola, de Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, triunfou em campo profissional tradicionalmente dominado pelos homens. A estes, Elvira raramente dá voz. Em Nada a dizer, ganhador do prêmio de melhor romance concedido pela Academia Brasileira de Letras em 2011, a narradora conta a história do adultério cometido pelo marido a partir do que lhe é por ele relatado. Paulo, porém, só se expressa por meio do que a esposa diz. Ela é a dona da história.
Foi, entretanto, a partir de Deixei ele lá e vim, de 2006, que Elvira Vigna claramente expandiu sua reflexão sobre as manifestações identitárias, passando a focalizar a crescente diversidade de possibilidades típica do mundo contemporâneo, no qual as visões binárias perdem cada vez mais espaço. Um dos textos mais estudados da autora, por muitos considerado um marco, o romance é narrado por Shirley Marlone, provavelmente uma mulher trans. Os conflitos por ela vividos são reveladores de sua complexidade, sobretudo ao lidar com seu corpo e sua imagem. A travesti Mamãeoutrinha, do mesmo livro, também expôs, de modo corajoso, outra faceta do mesmo assunto, sem aceitar qualquer posição desfavorável ou marginal por conta de suas escolhas. O casal formado por Meire e Teresa é mais uma representação da variedade de vínculos afetivos capazes de unir os seres humanos, o que reaparece em obras posteriores, como O que deu para fazer em matéria de história de amor, quando a narradora vive, em alguma medida, uma relação triangular com os personagens Roger e Santiago.
Deslocamento nos espaços
Se o modo como as pessoas se ligam umas às outras interessa claramente ao projeto literário de Elvira Vigna, a forma como elas se deslocam pelo espaço igualmente ocupa grande parte de sua atenção. Nada afeitas à fixidez, suas personagens vagam pelas ruas das grandes cidades do país e do exterior muitas vezes sem destino e sem objetivo, sem pouso definido, como Nita, de Coisas que os homens não entendem, que vive entre os Estados Unidos e o Brasil, sempre em hotéis ou apartamentos emprestados, ou Cuíca, de Como se estivéssemos…, que passa a morar dentro de seu carro depois de se separar da mulher. Os ditos ‘lugares de passagem’, como rodoviárias e aeroportos, ou os ‘não lugares’, como os shopping centers, dominam com frequência as cenas imaginadas pela autora, que talvez veja na errância uma das atitudes mais esperadas de quem vive em um mundo que não faz o menor sentido.
Céticos, os tipos desenhados por Elvira não se cansam de se referir às coisas como desimportantes e aos dias como uma soma de experiências banais e absolutamente desprovidas de significação, o que se reflete, com força, no modo como agem os seus narradores, que não dão qualquer crédito especial à chamada ‘realidade’, pródigos em mentir, omitir e inferir. Vagos, lacunares, repetitivos, eles, não raro, sabem pouco ou quase nada sobre o enredo que devem apresentar. “O narrador não é uma pessoa”, dizia a autora em entrevistas. “É um lugar. Um lugar a partir do qual se desenvolve a trama.”
Num momento em que a inteligência e a sofisticação estão sob ataque, a leitura da obra de Elvira Vigna é um verdadeiro ato de resistência. Inquieta, ousada, contundente, corrosiva, sua obra tem atraído cada vez mais a atenção dos estudiosos, mas precisa ampliar sua circulação. Decisivos para a compreensão de linhas fundamentais da literatura brasileira contemporânea, seus romances ainda conseguem oferecer aos leitores uma experiência extremamente agradável, excitando a imaginação e chegando até a fazer rir (e rir muito) com o seu humor cáustico e perspicaz.
* Rogério Faria Tavares é jornalista e presidente da Academia Mineira de Letras
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