Estadão (entrevista)

Elvira Vigna publica décimo romance e continua sua série de exploração formal dos relacionamentos
‘Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas’ é o novo livro da escritora carioca
Entrevista com
Elvira Vigna

Guilherme Sobota, O Estado de S. Paulo
30 de julho de 2016 | 05h00

 

Divulgação

O primeiro parágrafo do novo livro de Elvira Vigna, de 69 anos, oferece um resumo involuntário do próprio romance: “Mas nessa hora que faço”, escreve, “vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo”. Como Se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas (Companhia das Letras) é o décimo romance da escritora carioca, e ninguém vai achar estranho quando um crítico disser que é o melhor deles.

A estrutura formal da narração é um aspecto que a autora explora com um vigor particular na literatura brasileira contemporânea. Aqui, quem conta é uma designer que relembra uma série de conversas com João, um editor que virou seu amigo, e cujo assunto principal era o relacionamento dele com garotas de programa: mas dizer que o assunto principal deste livro é a prostituição seria reduzi-lo. Com uma série de repetições ritmadas entre frases, parágrafos e segmentos, ele se espalha e recompõe a história do casamento de João e a própria trajetória da narradora.

Os livros de Elvira não são explicitamente políticos, mas, entre essas camadas que se formam com a habilidade da escritora em narrar, existe, implícita, uma maneira muito única de ler as relações interpessoais, necessariamente políticas. Não muito fã de entrevistas, Elvira concordou em responder a algumas questões por e-mail.

Você disse que não queria fazer uma teorização para o trabalho das garotas de programa. Como foi fazer o livro com o assunto sem escorregar no risco?

Meu romance não é sobre garotas de programa. É, como todos os outros, sobre relações interpessoais. Mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens. E transexuais, para nos lembrarmos que o mundo não é binário e que fica melhor não o sendo. As mulheres do livro são vistas da mesma maneira, façam ou não programas sexuais. O perigo de teorização nunca foi meu. Jamais faria teorização sobre o trabalho de garotas de programa em um romance. O risco era que os leitores, esses meus coautores, o fizessem.

Porque é tão diferente para o João sentir empatia pelas mulheres (seja sua mulher, sejam as outras garotas com quem ele se relaciona) e pelos homens?

Acho (e me arrisco aqui, por não ter formação em antropologia ou sociologia) que “João” é exemplo de um fenômeno mais geral. E que abrange mais do que as relações de gêneros. Uma onda conservadora muito violenta. Uma vingança contra as tímidas conquistas libertárias que anunciavam um Contemporâneo. Acho que vale uma comparação com a Renascença europeia: várias tentativas até, enfim, conseguir estabelecer seus novos paradigmas. “João” é um homem do Moderno, não consegue estabelecer relações igualitárias com mulheres. É o que mais tem.

Seu narrador é sempre alguém que se coloca claramente, contando a história de outra pessoa, e aí meio que misturando, lembrando, destacando reminiscências, etc… são sempre muitas camadas. O que você está buscando com essas camadas? 

A realidade descrita será sempre, primeiro, a realidade do processo de escrita. Aí, tem a realidade que está sendo descrita. E que caminha junto com o processo de descrevê-la. O/a narrador/a está sempre, de fato, ele/ela próprio/a, escrevendo algo ou contando algo para alguém. Até mesmo nos meus infantis, com que comecei minha atividade de escritora: O livro A Breve História de Asdrúbal foi seguido de A Verdadeira História de Asdrúbal. O segundo contava o que seria a história “verdadeira”, “oficial” do primeiro, mas era tudo mentira. Bem, pode soar familiar hoje, mas era uma referência ao golpe, o militar, o de 1964.

O fato de você ter apagado o primeiro manuscrito transforma o próprio livro numa espécie de palimpsesto (pergaminho cujo texto foi apagado para dar lugar a outro). O que havia no primeiro rascunho que a desagradou?

O primeiro original tinha uma linguagem grave, um tom dramático. Achei que podia induzir uma leitura/coautoria moralista, teorizante. Não quis correr o risco da teorização a posteriori de que você falava na primeira pergunta.

Você fala de um “fake feminismo” em mais de um momento nesse livro, como na comparação entre os termos minissaia e long-neck. Cito: “(a long-neck) inclina seu longo pescoço para além do espaço previamente demarcado do feminino. Porque o espaço continua sendo previamente demarcado”. O que é esse fake feminismo? Tem alguma coisa a ver com as redes sociais?

É uma estratégia usual. Você pega uma reivindicação legítima mas difícil de atender; dá algo parecido e menor; e anuncia o atendimento que, não, não houve. Na questão em pauta, são frases do tipo: “Mas, veja só, este evento literário é dedicado à mulher!”. Acho a internet tudo de bom. Acho redes sociais um instrumento ótimo de equalização e denúncia. A espetacularização do “eu” e a falsa aparência de sucessos irreais – inclusive na luta de gêneros – são aspectos dos mais nefastos do nosso capitalismo tardio. Não uma consequência de redes sociais.

No filme A Grande Beleza, do Paolo Sorrentino, um personagem, depois de ser chamado de misógino, diz: “Não sou misógino, sou misantropo, porque até no ódio há que se ter ambição”. Isso faz algum sentido para você?

A frase é ótima e vou adotá-la. Mas acho dois fenômenos bem diferentes. Acho que a misoginia atual, tão prevalente, é uma reação à perda de poder do estar-no-mundo-masculino. E, veja bem, esse estar-no-mundo inclui indivíduos com ou sem o apêndice sexual masculino; é uma ideologia. Acho mesmo que a misoginia de fundo religioso recebe uma espécie de tolerância de setores – que se dizem liberais e mesmo de esquerda – por uma questão de identificação. É a mesma raiva pela perda de um poder – aliás, fantasmático, imaginado, ideológico – de religiosos e laicos que então se unem, uns na ação, outros na inação. Já a misantropia, olha só, consigo entender mais facilmente! Estou brincando. Uma espécie animal que constrói cidades para viver em grupo não pode ser de todo má.

Seus livros não são estritamente políticos, mas existe uma dose grande de relações políticas entre aquelas camadas que mencionei. O que você está pensando sobre a situação política do Brasil esses dias?

Agora você me pegou. Acho que a única, ou pelo menos a mais importante, função do Estado é a de incluir quem foi jogado para fora. E aí tenho consciência de uma contradição no meu pensamento. Pois que dentro é esse, não?, que desejo para quem está fora? O dentro geográfico do Estado-Nação? O dentro de uma mesma cultura (quando sei que elas são sempre uma construção a partir de um passado feito e refeito)? E qual das culturas ditas brasileiras eu escolheria? O dentro da abrangência de um mesmo código civil (feito necessariamente por uma elite que, no nosso caso, é bem pouco elucidada)? Complicado. Mas, ainda assim, sim, sou por um Estado Includente. O que significa laico e antimercado (que é quem exclui). O que significa lealdades (alianças) com excluídos e não com quem exclui.

São Paulo passou a ser sua cidade definitiva, é isso mesmo? Rio, nunca mais?

De definitivo, não tenho nada. O Rio me dói. Sou muito velha. Vou falar de coisas que você não conheceu. Um Rio de músicos, criadores, pensadores, em cada esquina, em cada bar. De Vila Isabel a Ipanema, os subúrbios, andar pelas ruas era uma aula sobre vanguardas. Agora, é uma cidade de culto ao corpo. Esportes, com sorte, cafajestes, no mais das vezes. Quem sabe muda outra vez.

 

COMO SE ESTIVÉSSEMOS EM PALIMPSESTO DE PUTAS

Autora: Elvira Vigna

Editora: Companhia das Letras (216 págs., R$ 44,90)

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