Revista Escuta

A literatura labiríntica de Elvira Vigna

Fernando Perlatto*

 

A discreta repercussão da morte recente da escritora Elvira Vigna nos jornais impressos e televisivos de maior circulação do país diz muito sobre o lugar ainda periférico da literatura brasileira entre nós. Não se trata, é claro, de exclusividade da literatura esta posição marginal. A situação degradada da cultura pensada de modo mais amplo, manifesta, por exemplo, no tratamento rebaixado dado pelo atual desgoverno ao Ministério da Cultura, que já teve até o presente momento quatro ministros, evidencia o buraco em que o país se afunda; a cada dia que passa, tem-se a impressão de que se torna mais difícil encontrar alguma saída.

No caso da literatura, em particular, essa situação parece se agravar como decorrência do número abissal de analfabetos e analfabetos funcionais existentes no país, e pela ausência, em todos os níveis, de políticas públicas mais efetivas de incentivo à leitura. É claro que há fios soltos de esperança em meio ao caos – a exemplo dos vários festivais literários que ocorrem pelo país, com destaque para sua abertura para novas vozes, sobretudo de minorias, a exemplo do que ocorreu com a Feira Literária de Paraty (FLIP) deste ano, ou de iniciativas como o Primeiro Encontro Nacional Mulherio das Letras, a criação da revista de resenhas Quatro Cinco Um e a organização dos vários círculos de leitura que vêm se multiplicando, em especial pelas periferias do país e das cidades –, mas, no geral, o cenário é desolador. A tímida reverberação do falecimento de Elvira Vigna é mais um sintoma dessa situação.

Não se trata de dizer que Vigna não tenha sido reconhecida em vida. Pelo contrário. Para além do respeito conquistado junto à crítica especializada, corroborado em resenhas várias e em trabalhos acadêmicos produzidos sobre sua obra, a escritora carioca foi finalista e laureada em alguns dos principais prêmios literários do país. Às seis em ponto (1988) recebeu o prêmio Cidade de Belo Horizonte de Melhor Romance; Nada a dizer (2010) foi o vitorioso da categoria ficção da Academia Brasileira de Letras, além de ter sido finalista do Prêmio Portugal Telecom; O que deu para fazer em matéria de história de amor (2012) foi finalista do Prêmio São Paulo e do Prêmio Jabuti; Por escrito (2014) ficou em segundo lugar no Prêmio Oceanos e foi finalista do Prêmio Rio; e Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016) venceu o prêmio Melhor Romance APCA. Foi também premiada por seus trabalhos como escritora e ilustradora de livros infantis, com obras como Problemas com o cachorro? (1982) e Viviam como gato e cachorro (2005), laureados, respectivamente, com os prêmios de Melhor Obra Infantil da Associação Paulista de Críticas de Arte e de Melhor Ilustração da Associação Paulista dos Críticos de Arte.

A menção a estas premiações que ampliaram, ao menos dentro do campo literário, o reconhecimento de Elvira Vigna pode dar a impressão de que a sua literatura era de trânsito fácil. Nada mais equivocado. O que se depreende da leitura de seus livros é, pelo contrário, a densidade de sua prosa, que, ao que parece, nunca foi produzida, ou, pelo menos, nunca se curvou a padrões estabelecidos, a modelos consolidados e a exigências externas. Tanto por suas declarações públicas, quanto pelas características de sua personalidade, conforme descrito por pessoas próximas com quem ela conviveu, e, sobretudo, pela leitura dos seus livros, é possível depreender que a literatura de Vigna nunca esteve aberta a concessões e a aplausos fáceis: sua prosa era atravessada por uma carga de notável complexidade.

Talvez, uma das marcas principais da literatura de Vigna seja a sua constante instabilidade. Instabilidade aqui, por óbvio, não se refere a uma suposta inconstância no que concerne à qualidade do conjunto de suas obras. O termo instabilidade diz respeito, antes, à percepção segundo a qual as narrativas dos romances de Vigna estão sempre em processo de mudança, de alteração, de agitação: não há ponto fixo, solidez, firmeza. É um fazer-se permanente. Quando o leitor pensa que compreendeu alguma coisa do enredo, logo se vê lançado em outra direção; assim que constata a personalidade de algum personagem, em seguida já se encontra em meio a problematizações daquela constatação que fizera minutos atrás. Tudo muda de modo muito veloz, se altera rapidamente.

A frase da narradora de O que deu para fazer em matéria de amor, romance publicado pela autora em 2012, poderia perfeitamente ser mobilizada para pensar sobre a própria narrativa de Vigna: “Não gosto de pensamentos redondinhos, explicações para sombras que melhor seriam se inexplicáveis. Pensamentos assim bonitinhos que às vezes me caem no crânio qual machado. Ou flecha”.

Os enredos de seus livros dançam e carregam o leitor junto nesta valsa que vai se armando aos poucos, cuidadosamente tecida e arquitetada. Iniciada a leitura, aquele que se embrenha em suas histórias se vê em uma espécie de corda bamba, sem pontos maiores de ancoragem, ora pendendo para uma direção, ora para outra; de todo modo, o que importa é que, mesmo em meio a este não fixar-se permanente, ele se vê capturado pelo fluxo dos complexos enredos desenhados pela escritora.

Nesse sentido, é possível pensar a literatura de Vigna a partir da imagem de um labirinto. Quando se inicia a leitura de seus livros, não se tem um itinerário claro, direto, evidente. Mesmo os personagens, vão aos poucos aparecendo nas narrativas e ganhando contornos mais nítidos. Tempos e lugares se entrelaçam. O leitor tem de ir, em fluxo, buscando os caminhos, encontrando fios soltos, vestígios que permitam articular o enredo; não se vislumbra aqui, portanto, uma literatura óbvia, de rotas dadas e já traçadas. A busca aqui acaba sendo muito mais importante do que o resultado final.

É interessante perceber nesse sentido que as narradoras dos romances de Vigna não são portadoras de verdades absolutas, não estão certas de quase nada e o enredo que segue por uma determinada direção poderia perfeitamente ter se encaminhado por percursos variados. As histórias narradas, muitas delas a partir de uma perspectiva polifônica, vão se fazendo, se entrecruzando, se desviando para, em outro momento, se encontrarem novamente. Ainda que esta literatura aberta e labiríntica, sempre passível de surpresas e mudanças, possa ser pensada como uma das fragilidades de muitas de suas obras – que às vezes se perdem em meio à fragmentação de tantas possibilidades abertas, tornando-se, em certos momentos, cansativas –, ela também pode ser interpretada como sua maior potencialidade, singularizando seu fazer literário, quando posto em contraste com outras literaturas do campo.

O não fixar-se da literatura de Vigna está também associado à própria forma escolhida pela autora para contar as suas histórias. Frases soltas em alguns trechos, muito curtas em outros; uma palavra, às vezes, é suficiente; pequenos parágrafos, entremeados de outros maiores; o uso inteligente de parênteses em meio à narrativa, o capricho com os pontos e as vírgulas; finais bruscos e repentinos de frases e capítulos; a utilização calculada e precisa de repetições; enfim, uma gama variada de recursos literários, que conferem um ritmo e uma cadência muito particular aos seus romances.

Vigna pode ser encarada como uma autora realista, na medida em que, como assumido por ela em várias entrevistas, seus enredos e personagens são baseados em histórias reais, em fatos observados ou vividos, muitos deles permeados por suas próprias experiências subjetivas, convertidas em material literário. Como diz a autora de O que deu para fazer em matéria de amor, trata-se de “Ir-me contando, como se não fosse eu, como quem fala dos outros”.

A mediação das mãos criativas da autora confere a estes fatos brutos pequenos, lembranças pessoais, relatos ouvidos ou percebidos no cotidiano, a potência necessária, transformando-os, via imaginação, em artefatos literários bem cuidados. O trabalho de depuração, contudo, não confere aos objetos uma aura de pureza e candura. A matéria, ainda que trabalhada com apuro e vigor, permanece selvagem, violenta, indelicada.

Como destacado em um trecho de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, lançado em 2016, que contribui para pensar sobre a tessitura de seus romances: “Linhas retas só parecem retas quando vistas de mais perto do que deveriam. Qualquer um, de binóculos em outro universo, veria que são curvas. Que transgridem”.

Os enredos, cenários e personagens de Vigna são atravessados por uma melancolia densa e brutal. Não obstante permeada por lances de humor ácidos, irônicos, muitas vezes escorregadios, há uma espécie de tristeza que marca profundamente suas histórias, repletas de traições, dores, decepções, diálogos inconclusivos, mortes. Os lugares nos quais elas se passam, como motéis, restaurantes, escritórios, galerias, são também cenários vazados por essa carga melancólica. O sexo, presença constante em seus romances, desponta quase sempre também embebido por esta melancolia doída, que atravessa a maioria de suas personagens.

A presença em seus livros é a ausência, os vazios, os silêncios, a solidão. Mesmo quando algo aparece com clareza, é dito de modo explícito, tem-se a impressão de que outra coisa é deixada encoberta, em segredo: um não revelar-se contínuo, um enredo cheio de rastros. Como diz a narradora de Por Escrito: “É uma questão do que está na nossa frente e nem notamos, o que está ausente mas presente”.

Esse não revelar-se contínuo se relaciona com outro aspecto que ancora a literatura labiríntica de Vigna que é a questão de gênero. Mesmo aqui é possível identificar em suas personagens e nos enredos por ela construídos a presença de uma literatura com marcas fortes do feminismo, porém não aberta, não panfletária, que toca em temas sensíveis, como fica muito evidente em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, sem necessariamente precisar escancará-los. Todos esses elementos fazem parte e reforçam a própria ideia antes mencionada do não fixar-se permanente.

A recepção e o reconhecimento da potência da literatura de Vigna exigirão, por certo, um período de decantação. A densidade de sua prosa labiríntica demanda um tempo de leitura e reflexão que não corresponde ao ritmo agitado, fugidio, “pra ontem”, que engolfa a todos na vertigem tormentosa da correria do dia a dia. Reservar um tempo para inquirir e explorar o labirinto desta prosa em permanente fazer-se é uma forma de respiro em meio ao caos do cotidiano.

Fernando Perlatto é um dos editores da Revista Escuta.