“Putas” @ Suplemento Pernambuco

publicado pelo suplemento pernambuco de setembro/2016, pg. 03, seção ‘bastidores’.

 

Que sempre falo de coisas vividas, vistas ou ouvidas, todo mundo já sabe.
No “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” repito o processo: uma coisa do passado é revivida, por um acaso, no presente.
(Acho que não é acaso. Acho que da barafunda em que vivo, escolho o que me serve.)
Há tempo, um cara me contou aventuras dele com putas.
A maioria da boate Kilt, em S.P.
Passaram-se muitos anos e me mudei pra S.P.
Meu primeiro apê paulista ficava perto da antiga Kilt.
Agora, olha a loucura:
Cheguei em 2007, a Kilt não existia mais.
Um buracão de entulho no fim da Augusta.
O tal cara andava na rua olhando pro alto, nunca pro chão.
Costumo andar olhando pro chão.
Então me vi olhando meus passos pela Augusta.
E “revia” também, ao meu lado, os passos do meu amigo.
Sendo que os passos dele nunca tinham sido de fato vistos, já que ele olhava pro alto.
Isso numa rua Augusta que não era mais aquela.
Em direção a uma Kilt que não existia mais.
Então eu refazia passos inexistentes em uma rua inexistente em direção a uma boate inexistente onde se passaram histórias que eu só conhecia em parte.
Agora, o momento presente da escrita do livro:
Outro amigo também me contou histórias de putas.
Esse meu outro amigo é amigo recente e paulista. E gay.
E me contou histórias que ouvia de seus colegas de trabalho.
Ele ouviu essas histórias com o mesmo espanto com que ouvi as minhas.
Me fez reviver meu espanto.
Ou seja, o que foi revivido está longe de ser concreto.
É um espanto, uma impossibilidade de resposta.
Um vazio, uma incompletude, uma incompreensão.
As histórias, aliás, todas elas, nunca me foram trazidas por inteiro.
Nem pelo primeiro amigo, nem pelo segundo.
Pedaços, lembranças e relatos sem começo ou fim.
Que fui colando e completando, “vendo” as cenas que nunca estiveram lá.
Se inventei? Nada, nadinha.
Pelo menos, não mais do que invento qualquer lembrança minha.
Porque uso lembranças do tipo imagem.
Impactantes, traumáticas.
Eu, escutando as histórias do meu primeiro amigo, não entendia nada.
Nada fazia sentido: eu lá, as histórias em si, e ele.
Então, na hora mesmo em que registrei aquilo na cabeça, “arranjei” um pouco as coisas.
Aí, a cada vez que “lembrava”, arranjava mais um pouco.
E de forma diferente a cada vez, porque a invocação de uma lembrança serve sempre pra responder a uma mesma pergunta:
O que foi isso que de fato aconteceu?
E o “isso” se transforma sempre que aquele que o invoca se transforma.
Aí chegou a hora de escrever a respeito daquele “isso”.
Que não era mais aquele, nem eu.
Mudei muito desde aqueles fins de tarde de um antiquíssimo verão carioca.
Na época, me preocupava a minha (in)capacidade de atrair parceiros sexuais.
Eu tinha acabado de perder um companheiro.
Quando comecei a escrever, me preocupava a (in)capacidade masculina de enxergar mulheres.
Mudou tudo, portanto.
Outra pessoa a escrever o que são verdades factuais faria outro livro.
Acho que no meu caso a coisa ainda fica mais complicada.
Porque, como falei, uso lembranças-imagens.
São as mais incompletas (só estou olhando pra um lado, nunca pra tudo).
Mas também as mais polissêmicas (motivo de eu escolhê-las, aliás).
Há outros tipos de lembranças, digamos, mais suaves. Mas menos polissêmicas.
Por exemplo, o caderninho.
Você resolve passar um mês no Cariri.
Acha que isso será uma experiência importante.
Toma nota de tudo.
E escreve um livro chamado Minhas barbas no Cariri.
Só que:
Você mediou a experiência com um caderninho.
Então o mais provável é que não tenha havido experiência importante alguma.
O caderninho impediu.
O caderninho também impediu o esquecimento.
Quer dizer, não houve hierarquização emocional aí.
Ficou tudo a mesma coisa.
Ou então, outra possibilidade:
Você resolve escrever sobre um fato histórico, ou pelo menos coletivo.
Bem, prepare-se para aceitar o componente pesadamente ideológico dessa “memória”.
Aí não é mais lembrança, sempre pessoal, é memória, é construída.
Mais uma possibilidade, a lembrança-indicial:
A madeleine proustiana é um índice psíquico.
O casarão onde você morou em criança é objetivo.
Ambos requerem pesquisa.
O que mesmo aconteceu?
E toca a procurar documentos, testemunhas.
Bem, nada disso me serve.
Não gosto de histórias completas, com sentido claro que pode me estar sendo imposto.
Então o “Putas” é assim mesmo:
Um palimpsesto de coisas que não se apagam.
Mas que também nunca aparecem de todo.
O texto tem uma cadência.
Enquanto escrevia, essa cadência me pareceu meio encantatória.
Um desses ritmos melódicos em que às vezes embarcamos.
E que fazem com que saibamos o que fomos.
Essas lembranças que não o são, se tornam o que talvez não o fossem.
E viramos aquilo que elas nos ensinam sobre nós mesmos.
São nossas, sim.
Somos assim, sim. Ou fomos.
Ficamos nesse encantamento dias a fio.
Revivendo nosso passado ou nosso desejo de passado.
Ou vivendo, pela primeira vez, o que poderia ter sido. Ou foi.
Não foi? Pode ser que não.
E no entanto, foi. Ou passou a ser.
João e a moça no sofá (eu) eram reais, e são mais reais agora.