Pessoas perdidas, em trânsito ou de passagem

Texto da apresentação “Pessoas perdidas, em trânsito ou de passagem”, de 19/09/2014, na Primeira Festa do Livro do Vale do São Francisco, Petrolina – Pernambuco.
Este texto começou a ser esboçado no Festival da Mantiqueira, em 05/04/2014.
E uma adaptação dele foi utilizada na “Viagem literária” de 20-22 de outubro de 2014, nas cidades de Araraquara, Cruz das Posses, Mococa, Vargem Grande do Sul e Águas de Lindoia.

(posteriormente publicado no suplemento Pernambuco de 11/2014 e no site Cesária.)

 

Pessoas perdidas, em trânsito ou de passagem

Tem um ‘achismo’ meu, de quem lê sem parar.
Acho que a literatura anda falhando na sua função. Acho que é porque o mercado, consolidado em termos inclusive mundiais, está impondo suas leis.
É como se precisasse de uma nova vanguarda.
Que, caso houvera, teria de ser o contrário da primeira, teria de ser não-formalista.
Digo isso porque defino literatura – ou qualquer arte – como passagem transformadora de experiências. A literatura como um pensamento não lógico (estético, justamente) e sempre incompleto, precisando da outra pessoa para seguir em frente. Estética, etimologicamente falando, é o contrário de anestesia. Ou seja, essa minha definição de literatura é contrária à anestesia proposta pelo mercado. A literatura, ou outra arte, é o que acorda, o que move,  o que tira do lugar. Se não for isso ela será qualquer outra coisa na esfera do agradável, ou seja, algo que confirma o lugar em que se está.
Então, essa estética transformadora, que eu acho que anda meio sumida, vem sempre junto de uma experiência. Experiência é a asimilação de uma vivência. Experiência, por causa dessa assimilação, é individualizada, embora possa ser obtida de forma intersubjetiva. Vivência pode ser coletiva. Mas experiência é pessoal. Então, se acho que literatura é uma forma de transmitir – ou melhor falando, significar – experiências, literatura é um falar de pessoa para outra pessoa. Ela não fica bem em grupo. Não prevê grupos, rótulos, categorizações, formatações.
Agora, como eu vejo a situação no contemporâneo: a internet fez o escrito ressurgir depois de séculos de predomínio da imagem. A indústria, grosseira, pôs sua mão pesada em cima do novo lucro.
Mas indústria não vende para pessoas. Só para grupos. Rotula esses grupos, formata sua abordagem para esses grupos rotulados e o que ela não consegue enquadrar, mata.
E aqui vou fazer uma comparação ousada, entre o formalismo e o mercantilismo. Do ponto de vista do mercado, o formalismo com suas fórmulas elitistas de manipulação de uma linguagem vazia e o consumismo com suas fórmulas mainstream de manipulação de impactos igualmente vazios são iguais. Assim, se se trata de uma pesquisa formal, a indústria, sim, vende. Se se trata de uma cópia por escrito do pior dos filmes de ação, a indústria também vende. Duzentos de um, duzentos mil de outro, mas vende. O que não der para rotular, justamente por ser pessoal e único, não vende.
Um adendo: pessoal e único não quer dizer autoral, porque uma literatura de transmissão transformadora de experiências não é feita e entregue. Ela é no máximo proposta. E a autoria, em aberto, inclui o leitor, e segue e segue.
Uma complicação, portanto, falar de direito autoral nos dias que correm.
E isso é mais uma coisa de que a indústria tem horror: a dificuldade de cobrar.
Então, como eu dizia, achei que uma vanguarda seria bem-vinda. Depois vi que dizer isso era parecido com essas adaptações para criança de livros grandes demais. Uma redução meio abobalhada naquilo que chamam de  “linguagem comum” do que foi feito em linguagem incomum.
Não precisa de vanguarda. Ou antivanguarda. A própria maneira da arte (e literatura) existir no contemporâneo já derrotaria a grossura do marketing editorial globalizado.
Sim, sou de um otimismo patológico. Do meu lado está a internet e a possibilidade de circular ideias sem o marketing. Ou seja. Posso estar com a razão.
Mas então eu dizia: formalismo e mainstream mercadológico usam ambos suas fórmulas, eruditas ou de mercado, e falham ao tentar chegar perto da pessoa que está do outro lado. E chegar perto, chegar dentro, modificar, é para o que a arte serve.
Tem mais um problema naquele meu desejo fracassado de vanguarda. O termo ‘vanguarda’ traz um campo conceitual bem conhecido. Nele, imperam ideias hoje consideradas meio estranhas, como a da autonomia da arte: a arte se bastando a si mesma, sem depender do seu entorno. Isto é o contrário do pensamento prevalente hoje. É similar à ideia, também da época moderna, de que o indivíduo se basta a si mesmo, quando hoje sabemos que a própria noção de subjetividade depende da instalação de um outro.
Pegando carona no arroz-de-festa em que a física quântica se transformou, uma definição de que gosto da arte diz ser ela uma energia que pode ou não irradiar de uma matéria, obscurecendo suas características iniciais e apontando para uma possibilidade de libertação da realidade que lhe deu origem. Então, nesse vocabulário, a literatura não seria representativa, mimética, platônica. Mas quântica.
Aliás, o primeiro ponto falho da minha ideia de vanguarda está no próprio termo “linguagem comum” que usei lá em cima. Ao contrário de Baudelaire e Mallarmé, não acho que tal coisa exista. Portanto, não existindo, não posso pretender me diferenciar dela. Não há linguagem que não seja comum. O que há é o que se poderia chamar, no pessimismo, de erosão sígnica, erosão da dimensão simbólica. No otimismo, de abertura sígnica, possibilidade de ressignificação contínua. Sempre houve e sempre haverá, e em qualquer uso. Não posso mais me apoiar em dicotomias ou mesmo em definições rígidas, ainda que múltiplas, e não há mais base para defender o conceito de pureza em campo algum.
Um pouco para trás no tempo e eu ainda poderia falar de literatura de massa e alta literatura. A literatura de massa seria a escrita cuja finalidade se fecha em si mesma: seria um lazer. Alta literatura seria a escrita que vira energia transformadora: arte. Ainda posso dizer isso. Mesmo trocando os termos: massa virou mainstream, alta literatura deve ser chamada de literatura com intencionalidade artística. Ainda posso. Mas o que vai determinar o estabelecimento de uma ou outra é bem pouco: é, justamente, uma intencionalidade. Não tem nada pronto.
Digo uma ou outra literatura com grande constrangimento. Não são duas, não são rotuláveis, e não são sequer estáveis. Certamente não dicotômicas (uma ou outra). Uma leitura pode pôr um texto como pertencente a um lado, outra leitura pode pôr o mesmo texto  no outro.
Outro ponto falho da minha vanguarda natimorta está implícito na mudança do termo “de massa” para “mainstream”.
Mainstream não tem bordas nem estabilidade. Se é main, é porque tem outros streams. E se é stream, é porque está em movimento e em margens não estabelecidas.
O último (espero) ponto falho do meu pensamento sobre vanguarda é uma decorrência dos outros já citados: é o não-controle. Não posso sequer definir um termo (literatura) cuja definição inclui a característica da não-definição. Além disso, hoje não dá para falar nem de criador único, no singular, nem de coisa criada, no sentido de algo acabado. Há no máximo uma proposta, a tal da intencionalidade a que me referi. As condições de espaço e tempo do que está sendo proposto, o caminho do processo, e o observador/leitor por acaso presente determinarão, tanto quanto a materialidade da obra, o percurso dela. Tudo junto vai permitir, ou não, a eclosão de um novo sentido. Pois a possibilidade do novo sentido não está no “aquilo”, mas no evento. O “aquilo” pode continuar sendo matéria escrita ou visual ou sonora ou o que seja – ou passar a ser uma energia que vai mudar tudo que estiver por perto, e que é a arte.
Uma nova vanguarda é, cheguei eu então à conclusão, ideia redundante e redutora. O que mudou ou está na beira de mudar é uma compreensão determinística do mundo. Temos hoje, quando temos, um sentido que pomos e repomos, sem parar, ficcionalmente, em cima de todas as coisas que, elas, não detêm significado algum. Polissemia não é algo que se determine ou controle (é só lembrar do uso do Bombril como antena de rádio em Volkswagens: ninguém previu isso na indústria). Linguagem não é uma expressão unitária regida por forças abstratas como racionalidade e pragmatismo, e cuja platitude os escritores precisam combater para tirar dela alguma energia criadora. Linguagem é instrumento feito e refeito no momento mesmo em que é usado, e por qualquer um dos presentes – escritor ou leitor.
Se a literatura mainstream contém um hiperbólico, uma intensidade de ações que se completam e fecham, e que trazem, embutida, uma significação também fechada e acabada; e se o formal também apresenta pressupostos já estabelecidos, a vanguarda que não vai haver, teria, para chamar de seu, o território do incompleto, da fragilidade, da mudança de rumo sem razão, daquilo que não sabe o que é, sendo. Seus personagens seriam as pessoas perdidas, em trânsito ou de passagem que habitam um mundo real.
Então há uma diferença, sim. Não de elementos constitutivos do texto ou de caminhos pré-determinados pelo autor desse texto, mas a diferença pequenininha da intencionalidade. Intencionalidade é consciência de necessidade, de dor, de falta, é abertura para um devir. Ou seja, diz-se, por intencionalidade, que aquilo não tem um fim em si mesmo, satisfação à vista ou fechamento. É abertura à alteridade.
É uma diferença, então. E nem tão pequena, pensando bem. Mesmo se, para que “funcione”, dependa da hora, do lugar e do observador/leitor/coautor. Ou seja, mesmo não sendo controlável. Há outra diferença pequenininha, e vai ver nem tão pequena: a da liberdade em relação às leis do capital.
Não se trata de não consumir. Até porque se a pessoa está viva, consome. Pois somos um só com o entorno e com ele estabelecemos trocas. Mas se trata de não mentir. Em vez de falar e prometer o gozo, o fim esperado em uma satisfação total, fala-se da dor e do incerto.
E, por isso mesmo, fala-se de muito perto.
Só é preciso ter cuidado com a vaidade. Arte é uma energia instauradora ou não é arte. Não se trata de dialética, da erupção do novo contra oposição do velho; da invenção contra a convenção. É um outro entendimento, um outro posicionamento no espaço-tempo, esse do contemporâneo. Que, aliás, existe faz tempo. Vou dar um exemplo. E um exemplo tão bom e tão comum que serve até mesmo para dizer que esse ou aquele autor contemporâneo é de fato contemporâneo. Sim, Machado de Assis, aquele que gagueja por escrito – na engraçadíssima definição do Silvio Romero.

“É a fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem eloquente. É plástico e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada.”

E não é só ele que gagueja. Digo, não é só sua linguagem de escritor. Seus personagens também hesitam, vão e voltam no tempo e entre a autoconsciência e o autoengano. Fazem, na nossa frente, um enorme esforço para fingir que são gente boa apesar das barbaridades passadas. Você, lendo esse tipo de livro, tem a chance de retornar para você mesmo, a pessoa que está naquele exato momento lendo um livro. Afinal, o melhor drama está sempre no espectador e não no palco. (E antes que me julguem melhor do que sou, essa frase não é minha, mas do Machado.)
Meus livros seguem essa vertente.

Bibliografia:
PASSOS, José Luiz. Machado de assis: o romance com pessoas. São Paulo, Nankin editorial/Edusp, 2007, 296p.