palestra ‘Literatura e experiência’, de 14/11/2014, Belo Horizonte, com João Anzanello Carrascoza, Noemi Jaffe e mediação de Maurício Meirelles
Tenho muita clareza sobre o motivo de eu fazer literatura. Pretendo, com ela, tornar minhas as histórias que fui obrigada a viver. Só tem um jeito de elas se tornarem minhas: é passarem pelos outros. Essa tentativa se dá no “mundo comum”, um termo da Hanna Arendt que designa o espaço das diferenças que me separam e me aproximam desse outro. É, portanto, um espaço da intersubjetividade, esse, onde minha literatura existe. Ou seja, para que ela se dê, é preciso que haja um outro, uma outra maneira, que não a minha, de viver a vida. Aí reconheço a minha como sendo minha.
Vou meio que na direção oposta de Descartes, o arauto da autoconsciência imune a qualquer dúvida sobre si mesmo, o arauto da primazia do conhecimento racional sobre outros tipos de conhecimentos. E faço isso justamente porque as histórias que são o motivo de eu fazer literatura não se dão a conhecer de forma lógica ou racional. Então, graças à existência desse outro, ao seu retorno sobre aquilo que escrevi, consigo um reconhecimento. É um reconhecimento sem o conhecimento.
Reconhecimento aqui não é o holofote. É o reconhecer algo na esfera comum do humano. É a possibilidade de assimilar uma vivência que, quando se apresentou a mim, não era assimilável. Sua violência ou estranheza pode tê-la posto até mesmo fora da linguagem. Ou seja, não sei falar daquilo claramente, com frases arranjadinhas, sujeito, verbo, predicado. Frase subordinadas, causas, ação, e as consequências lógicas começando por um ‘portanto’. E porque essa vivência pode estar fora da linguagem, ela é passível de ser pescada pela estética. Porque escapa à reflexão, pode ser refletida, no sentido de espelhada. Representada. E porque precisa de um outro para de fato acontecer, ela está no âmbito da ética, além do da estética. No âmbito da ética também porque para de fato acontecer, ela parte da aceitação de uma dúvida sobre si mesma como sua premissa básica. É essa a vivência que existe na raiz da minha literatura.
O processo de reconhecimento de que falo aqui – necessário para que tal vivência seja apreendida – se inicia, ainda que de forma fantasmática, no próprio ato de começar a escrever, pois quem escreve nunca é o eu inteiro, mas um eu possível. Então no começar a escrever já há o embrião desse outro necessário, que ainda é um eu. O outro aparece depois, concretamente, nos comentários, resenhas. Nas mesas redondas como essa, e nos encontros pessoais, individuais.
Acho que esse entendimento do literário que define minha literatura também está presente em outros livros que leio, em alguns de meus contemporâneos. Acho mesmo que é uma postura da literatura contemporânea, e que é diferente da postura da literatura do século XX, que supõe um outro pré-estabelecido, controlado. E narcísico. O outro da época áurea do Moderno é uma projeção de si mesmo. Basta lembrar que uma das grandes ilusões capitalistas emprestadas às artes (quaisquer artes) é o individualismo, é a não dependência. Na área econômica se trata do self-made man, empreendorismo etc. Nas artes, a autonomia na obra de arte. O mundo melhorou.
A má notícia é que essa literatura – minha e de outros colegas do contemporâneo – é árdua. Não só para nós, os escritores que a propomos, mas também para esse outro, o leitor, que é convidado a participar daquilo que ainda não está pronto, que nunca fica pronto, daquilo que não só não tem um significado a oferecer como, pelo contrário, se declara falho, necessitado de sócios para sua ressignificação contínua. Esse compartilhar, esse admitir insuficiências e necessidades, a admissão de que precisamos da alteridade para viver, isso exige esforço. Alteridade vem de alterar. E alterar, principalmente alterar a si mesmo, dá um enorme trabalho.