Texto da palestra “a menina de lá e os meninos de cá”, do IV Seminário Desafios da Literatura Contemporânea da UNB, em 18/10/2013; também apresentada, resumida, em 17/09/2013 na Semana Literária do Sesc-Paraná, em mesa redonda com Vilma Arêas e Irinêo Baptista Netto; e na Viagem Literária da Secretaria de Cultura de São Paulo, de 11 a 15/11/2013, nas cidades de Anhumas, Caiabu, Pacaembu, Tupi Paulista e Presidente Venceslau.
A menina de lá e os meninos de cá
Tem duas coisas do “O que deu para fazer em matéria de história de amor’ que eu acho legal e que ninguém ainda falou. Uma delas é a história da segunda leva do Moderno no Brasil, feita por estrangeiros, e o choque que isso foi pra todo mundo. A época é a do Juscelino Kubitschek e o livro fala de um choque cultural que já vinha se anunciando antes e que teve consequências depois. A segunda coisa é mais difícil e é ela o principal assunto que me interessa aqui. E interessa nem tanto pelo “O que deu..’ , mas por uma novela gráfica que está saindo agora e que tem ocupado minha cabeça.
É a representação – na arte (assunto do “O que deu…”) ou na imagem de uma história em quadrinhos (o caso da novela gráfica) – de quem fica meio ou completamente à margem.
No “O que deu…’ a narradora é apenas tolerada pela família do amante de longa data e até por ele mesmo. E é uma mulher de meia idade, também apenas tolerada e quase que não vista pela sociedade como um todo. Mesmo dentro da galeria de arte da qual ela é sócia, a personagem não fica no ambiente de exposição, mas encolhida no escritório. Isso não é novidade nos meus livros. O narrador, em geral, está bem pouco à vontade no meio em que anda e é excluído às vezes até da trama, como no caso de “A um passo”.
Ou no “Deixei ele lá e vim” que tem um narrador ainda mais difícil, porque ele é um travesti que não se diz travesti, e que não é visto por mim, como escritora, como diferente de mim. Ele é descrito em primeira pessoa e no que ele tem de parecido comigo, e não no que ele tem de diferente. Eu me identifico com ele, com seu pouco à vontade no mundo. Eu sou ele. Então é uma voz que é legítima, ou pelo menos acho isso, pois é minha voz, ou minha também. Eu só achei que ele era travesti com o livro acabado. Ele nunca “me disse” que era. Ele não se diz que é para ele mesmo. É uma pessoa, ponto final.
Já a novela gráfica que está saindo agora é de excluídos mesmo. Excluídos sociais, econômicos. O herói é gay, preto e motoboy. A heroína é uma babá. Tem uma aventura em que eles acabam ficando com um montão de dinheiro e decidem não comprar objeto de consumo algum com ele. Vão usar para viver um pouco melhor, fazer cursos.
É juvenil. Ou pelo menos eu acho que é juvenil, embora me venham ecos que dizem que o mundo inteiro é juvenil. Mas vou pôr o livro na seção de livros infantis e juvenis do meu site porque é o que eu acho que ele é.
Foi recusado por todo mundo. Duas vezes pela Companhia das Letras – editoria infantil e juvenil e editoria de quadrinhos. Foi recusado por outras editoras para quem apresentei. Aliás, “O que deu…” também. Mas a novela gráfica ganha. Foi recusada desde sempre. Porque é uma história bem antiga minha, da época em que eu fazia histórias para esse público, o juvenil. Foi recusada desde aquela época, já na primeira versão. E agora, desde 2011, na segunda.
Ah, e é em PB, o que parece ser também um fator negativo do ponto de vista comercial. Não fiz de propósito. É que me apaixono por materiais. No caso, por um lápis 6B. Era para ser só o esboço, não descartei de início uma corzinha que fosse, aqui ou ali. Mas não consegui largar o lápis e fiz os desenhos todos nele.
Agora o livro vai afinal sair e eu já acordo de noite para me defender de acusações que no momento ainda são imaginárias, sobre como eu fiz a representação de excluídos que há nele.
Começo minha defesa pelo fato de que se trata, como sempre em meus livros, de uma história real. Não saiu em jornal algum. Soube pela boca de um menino do Complexo do Alemão, para quem eu despejava argumentos – provavelmente inúteis – de que ele devia ler livros.
O fato real:
Um casal mata seus vizinhos de favela e rouba uma sacola de dinheiro que tinha sido deixada lá pouco antes. Fogem de moto à toda e morrem, eles também, embaixo de um ônibus que passa, também à toda, pela Av. Brasil. O dinheiro some.
No meu livro, eu conto a história dos filhos desses caras, dos que roubam e dos que foram roubados, ambos portanto órfãos. Ele é Nando, motoboy. Ela é Carla. Nome completo: Carla Vitória Valentina. O livro se chama “Vitória Valentina”.
O motoboy vende para um portal de notícias da internet fotos de atropelamentos, desastres, árvores caídas, coisas que ele vai vendo pelo caminho, enquanto faz seu trabalho de motoboy. Um dia ele vê o que não devia. Uma entrega de dinheiro. Quem entrega é cidadão respeitável, quem recebe não. É um traficante da favela, cujos asseclas o motoboy reconhece. Aí vem a aventura, ele quase é morto, mas se safa e acaba ficando com o dinheiro da transação. A amiga dele, a Carla, foge, quase se dá mal porque quase casa, o que acabaria com seus sonhos, mas ela também consegue se livrar. Acaba tudo bastante bem.
O início é o fato verdadeiro. Que eu soube há muito tempo e que não me causou maiores impactos até que um dia, subindo uma favela, outra favela, parei para descansar no alto de uma das escadarias. E ouvi o silêncio. O ruído da cidade lá longe. Eu “senti” o lugar pela sonoridade dele. Me cumprimentavam sem me conhecer, as casinhas tinham televisões ligadas. E me lembrei do fato que haviam me contado. Depois, enquanto fazia o livro, subi mais vezes nessa favela para escutar esse silêncio. Foi assim que nasceu o “Vitória Valentina”, da única coisa que não está nele. Pois o livro é feito de texto e imagem e ele nasceu, na verdade, de sons ou melhor, de uma ausência de sons.
Junto com o livro, nasceu meu questionamento sobre o livro, sobre a representação dos excluídos que há nele. Os donos dos sons, ou melhor, os donos da ausência de sons.
No Sesc-Paraná, onde estive em 17 de setembro passado para uma mesa redonda, falei já um pouco sobre isso e citei o mesmo conto do Guimarães Rosa que vou citar aqui.
Não que eu goste do Guimarães Rosa, não muito. E depois que o li há muito tempo nunca mais o reli. Esse conto me chamou a atenção porque foi citado, em outro contexto muito diferente, nada a ver com excluídos, durante um evento sobre o escritor no campus da USP da Maria Antônia.
O conto é “A menina de lá” do Primeiras Estórias.
De tudo que falam sobre o conto, o que me interessa aqui é o narrador.
“A menina de lá”, do Primeiras estórias (1962), remete ao conceito de origem: são as primeiras histórias curtas do autor; são as primeiras histórias a enfocar o choque daquela segunda leva do Moderno, de que eu falava, a do Juscelino Kubitschek, aqui no contexto do urbano versus o sertão; e são as primeiras histórias no sentido de trazerem um “primeiro” significado, uma ressignificação. As histórias do Guimarães Rosa falam do uso da palavra trazida das cidades, como arma, contra os sertanejos. E da palavra deles, arcaica, e portanto, capaz de oxigenar a palavra urbana, moderna, utilitária.
O conto do Guimarães Rosa:
Como eu disse, meu interesse é no narrador. O conto é construído na terceira pessoa, com exceção de um parágrafo, bem no meio.
Nesse parágrafo, aparece na primeira linha um ‘eu’, “E Nhinhinha gostava de mim”, que some na última linha, “Nunca mais vi Nhinhinha”. Há duas maneiras de eu entender esse narrador. A primeira é que Guimarães Rosa sentiu necessidade de dar um aval, reforçar a veracidade de um personagem muito distante do universo dele e, ele assim supõe, também do leitor do seu conto. O universo do qual Nhinhinha está fora é o do moderno, da tecnologia:
“E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.”
Ela não é tanto uma excluída econômica. É uma excluída do seu tempo histórico. Não faz parte da modernidade, não se inclui na linguagem.
As palavras de Nhinhinha são desnecessárias, desvinculadas do uso, inúteis. Desvinculadas inclusive de seu referente. São elas que criam, provocam as coisas, e não o contrário. Nhinhinha é a possibilidade da reinvenção artística.
O conto está inteirinho no pretérito imperfeito do indicativo. As coisas estavam, acabavam, as pessoas falavam, brigavam etc. A linguagem de Nhinhinha é “inútil” porque ela não tem referente, ela não atende a demandas, não nomeia. E não segue regras. Seguir regras, e esse médico cientista e diplomata as seguiu a vida toda, é pertencer ao coletivo. Nhinhinha é uma excluída porque não segue as regras mais importantes que existem, que são as da linguagem. Qual linguagem? A de Guimarães Rosa e de quem ele determina que seja seu leitor.
O narrador do conto tem a função não só de emprestar seu testemunho de que, sim, aquela palavra excluída existe, mas principalmente tem a função de se apropriar dessa palavra. O narrador põe sua voz por cima da de Nhinhinha. É essa sua principal função. Domesticar, deglutir o excluído. O narrador vai contar ao mundo a existência de Nhinhinha. Vai repetir suas palavras para esse mundo, que é o do autor e o do leitor, e que é o mundo que conta. Mas vai principalmente, ao fazer isso, amansar essas palavras, para que elas se tornem aptas a adubar a linguagem utilitária do mundo tecnológico, urbano. Guimarães Rosa, mais do que representar o excluído, o explica:
“O passarinho desapareceu de cantar…” De fato, o passarinho tinha estado cantando e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera.”
A segunda razão para a existência desse narrador é tão ideológica quanto a primeira, mas menos óbvia, mais estrutural, mais “de escritor”. O narrador é um tipo, não um personagem. Da mesma forma que Pai e Mãe são títulos, que Nhinhinha é mais uma sonoridade do que um nome próprio. E que Tiantônia é palavra inventada, de uma mulher velha e sozinha, qualquer uma. Logo, quem conta a história é um Eu, igualmente genérico, sem vínculo algum com nada do que se conta, com a história. Um “Eu” sem características individuais. É uma estratégia já descrita por Hanna Arendt. Você generaliza e, assim, anestesia.
Tenho outra defesa para a representação que fiz dos excluídos na minha novela gráfica, além do fato de ter narrado fatos, o que Guimarães Rosa também fez, já que ele conta o que viu em suas viagens pelo sertão mineiro.
Essa segunda defesa que faço do meu “Vitória Valentina” é que se trata principal e primeiramente de uma obra gráfica. Fiz os desenhos todos. Primeiro. Pus balões onde eu achava que ficava bem haver um balão. E depois me virei para enfiar lá dentro o texto. E para isso eu não tenho defesa: eu precisava ser muito, mas muito melhor desenhista para dar conta de mostrar o que vi e senti.
Não ficou bom. O bom é o excluído se apropriar da linguagem, poder usá-la e, com isso, virar sujeito da própria frase, e não um predicado na frase de outrem, como é o caso no conto do Rosa e, tenho muito medo, no meu livro também. Embora -, e eu sou assim mesmo, metidinha, então, desculpem – no meu caso eu faço melhor, eu não ponho um narrador em contraponto ao excluído, como um aval ao excluído, como um aliado do leitor, ele também sendo manipulado, pois é imaginado como um incluído igual ao narrador.
Tem uma coisa engraçada que me ocorreu quando estava preparando essa apresentação e que é uma consequência, achei, dessa maneira de representar o excluído excluindo o excluído outra vez, agora no texto. Realidade tem dessas coisas. Posso ler o conto de Rosa exatamente ao contrário. Há um ambiente real, perdido no interior de Minas, que exclui rapidinho os doutores que por lá tentam examinar pessoas como se fossem borboletas na lupa. Duram, esses doutores, no máximo um parágrafo. E são excluídos.
É o nosso perigo, de nós todos, os incluídos nessa sala. De sermos nós os excluídos da realidade no momento mesmo em que a excluímos.
A menina de lá – texto integral para referência
Sua casa ficava para trás da Serra do Mim, quase no meio de um brejo de água limpa, lugar chamado o Temor-de-Deus. O Pai, pequeno sitiante, lidava com vacas e arroz; a Mãe, urucuiana, nunca tirava o terço da mão, mesmo quando matando galinhas ou passando descompostura em alguém. E ela, menininha, por nome Maria, Nhinhinha dita, nascera já muito para miúda, cabeçudota e com olhos enormes.
Não que parecesse olhar ou enxergar de propósito. Parava quieta, não queria bruxas de pano, brinquedo nenhum, sempre sentadinha onde se achasse, pouco se mexia. – “Ninguém entende muita coisa que ela fala…” – dizia o Pai, com certo espanto. Menos pela estranhez das palavras, pois só em raro ela perguntava, por exemplo: – “Ele xurugou?”- e, vai ver, quem e o quê, jamais se saberia. Mas, pelo esquisito do juízo ou enfeitado do sentido. Com riso imprevisto: – “Tatu não vê a lua…”- ela falasse. Ou referia estórias, absurdas, vagas, tudo muito curto: da abelha que se voou para uma nuvem; de uma porção de meninas e meninos sentados a uma mesa de doces, comprida, comprida, por tempo que nem se acabava; ou da precisão de se fazer lista das coisas todas que no dia por dia a gente vem perdendo. Só pura vida.
Em geral, porém, Nhinhinha, com seus nem quatro anos, não incomodava ninguém, e não se fazia notada, a não ser pela perfeita calma, imobilidade e silêncios. Nem parecia gostar ou desgostar especialmente de coisa ou pessoa nenhuma. Botavam para ela a comida, ela continuava sentada, o prato de folha no colo, comia logo a carne ou o ovo, os torresmos, o do que fosse mais gostoso e atraente, e ia consumindo depois o resto, feijão, angu, ou arroz, abóbora, com artística lentidão. De vê-la tão perpétua e imperturbada, a gente se assustava de repente. – “Nhinhinha, que é que você está fazendo?” – perguntava-se. E ela respondia, alongada, sorrida, moduladamente:- “Eu… to-u…fa-a-zendo.” Fazia vácuos. Seria mesmo seu tanto tolinha?
O mesmo dizia quando vinham chamá-la para qualquer novidade, dessas de entusiasmar adultos e crianças. Nada a intimidava. Ouvia o Pai querendo que a Mãe coasse um café forte, e comentava, se sorrindo:- “Menino pidão… Menino pidão…”Costumava também dirigir-se à Mãe desse jeito: – “Menina grande… Menina grande…”Com isso Pai e Mãe davam de zangar-se. Em vão. Nhinhinha murmurava só: – “Deixa… Deixa…” – suasibilíssima, inábil como uma flor.Não se importava com os acontecimentos. Tranquila, mas viçosa em saúde. Ninguém tinha real poder sobre ela, não se sabiam suas preferências. Como puni-la? E, bater-lhe, não ousassem; nem havia motivo. Mas, o respeito que tinha por Mãe e Pai, parecia mais uma engraçada espécie de tolerância. E Nhinhinha gostava de mim.
Conversávamos, agora. Ela apreciava o casacão da noite. – “Cheiinhas!” – olhava as estrelas, deléveis, sobre-humanas. Chamava-as de “estrelinhas pia-pia. “Repetia: – “Tudo nascendo!” – essa sua exclamação dileta, em muitas ocasiões, com o deferir de um sorriso. E o ar. Dizia que o ar estava com cheiro de lembrança. – “A gente não vê quando o vento se acaba…” Estava no quintal, vestidinha de amarelo. O que falava, às vezes era comum, a gente é que ouvia exagerado: – “Alturas de urubuir…”Não, dissera só:”… altura de urubu não ir.” O dedinho chegava quase no céu. Lembrou-se de: – “Jabuticaba de vem-me-ver…”Suspirava, depois: – “O passarinho desapareceu de cantar…” De fato, o passarinho tinha estado cantando e, no escorregar do tempo, eu pensava que não estivesse ouvindo; agora, ele se interrompera. Eu disse: -“A avezinha.” De por diante, Nhinhinha passou a chamar o sabiá de “Senhora Vizinha…” E tinha repostas mais longas:- “Eu? Tou fazendo saudade.” Outra hora, falava-se de parentes já mortos, ela riu: – “Vou visitar eles…” Ralhei, dei conselhos, disse que ela estava com a lua. Olhou-me, zombaz, seus olhos muito perspectivos: – “Ele te xurugou?” Nunca mais vi Nhinhinha.
Sei, porém, que foi por aí que ela começou a fazer milagres.
Nem Mãe nem Pai acharam logo a maravilha, repentina. Mas Tiantônia. Parece que foi de manhã. Nhinhinha, só, sentada, olhando o nada diante das pessoas: – “Eu queria o sapo vir aqui.” Se bem a ouviram, pensaram fosse um patranhar, o de seus disparates, de sempre. Tiantônia, por vezo, acenou-lhe com o dedo. Mas, aí, reto, aos pulinhos, o ser entrava na sala, para aos pés de Nhinhinha – e não o sapo de papo, mas bela rã brejeira, vinda do verduroso, a rã verdíssima. Visita dessas jamais acontecera. E ela riu: – “Está trabalhando um feitiço…” Os outros se pasmaram; silenciaram demais.
Dias depois, com o mesmo sossego: – “Eu queria uma pamonhinha de goiabada…” – sussurrou; e, nem bem meia hora, chegou uma dona, de longe, que trazia os pãezinhos da goiabada enrolada na palha. Aquilo, quem entendia? Nem os outros prodígios, que vieram se seguindo. O que ela queria, que falava, súbito acontecia. Só que queria muito pouco, e sempre as coisas levianas e descuidadosas, o que não põe nem quita. Assim, quando a Mãe adoeceu de dôres, que eram de nenhum remédio, não houve fazer com que Nhinhinha lhe falasse a cura. Sorria apenas, segredando seu – “Deixa… Deixa…” – não a podiam despersuadir. Mas veio, vagarosa, abraçou a Mãe e a beijou, quentinha. A Mãe, que a olhava com estarrecida fé, sarou-se então, num minuto. Souberam que ela tinha também outros modos.
Decidiram de guardar segredo. Não viessem ali os curiosos, gente maldosa e interesseira, com escândalos. Ou os padres, o bispo, quisessem tomar conta da menina, levá-la para sério convento. Ninguém, nem os parentes de mais perto, devia saber. Também, o Pai, Tiantônia e a Mãe, nem queriam versar conversas, sentiam um medo extraordinário da coisa. Achavam ilusão.
O que ao Pai, aos poucos, pegava a aborrecer, era que de tudo não se tirasse o sensato proveito. Veio a seca, maior, até o brejo ameaçava de se estorricar. Experimentaram pedir a Nhinhinha: que quisesse a chuva. – “Mas, não pode, ué…” – ela sacudiu a cabecinha. Instaram-na: que, se não, se acabava tudo, o leite, o arroz, a carne, os doces, frutas, o melado. – “Deixa… Deixa…” – se sorria, repousada, chegou a fechar os olhos, ao insistirem, no súbito adormecer das andorinhas.
Daí a duas manhãs, quis: queria o arco-íris. Choveu. E logo aparecia o arco-da-velha, sobressaído em verde e o vermelho – que era mais um vivo cor-de-rosa. Nhinhinha se alegrou, fora do sério, à tarde do dia, com a refrescação. Fez o que nunca se lhe vira, pular e correr por casa e quintal. – “Adivinhou passarinho verde?” – Pai e Mãe se perguntavam. Esses, os passarinhos, cantavam, deputados de um reino. Mas houve que, a certo momento, Tiantônia repreendesse a menina, muito brava, muito forte, sem usos, até a Mãe e o Pai não entenderam aquilo, não gostaram. E Nhinhinha, branda, tornou a ficar sentadinha, inalterada que nem se sonhasse, ainda mais imóvel, com seu passarinho-verde pensamento. Pai e Mãe cochichavam, contentes: que, quando ela crescesse e tomasse juízo, ia poder ajudar muito a eles, conforme à Providência decerto prazia que fosse.
E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais.
Desabado aquele feito, houve muitas diversas dôres, de todos, dos de casa: um de-repente enorme. A Mãe, o Pai e Tiantônia davam conta de que era a mesma coisa que se cada um deles tivesse morrido por metade. E mais para repassar o coração, de se ver quando a Mãe desfiava o terço, mas em vez das ave-marias podendo só gemer aquilo de – “Menina grande… Menina grande..” – com toda ferocidade. E o Pai alisava com as mãos o tamboretinho em que Nhinhinha se sentava tanto, e em que ele mesmo se sentar não podia, que com o peso de seu corpo de homem o tamboretinho se quebrava.
Agora, precisavam de mandar recado, ao arraial, para fazerem o caixão e aprontarem o enterro, com acompanhamento de virgens e anjos. Aí, Tiantônia tomou coragem, carecia de contar: que, naquele dia, do arco-íris da chuva, do passarinho, Nhinhinha tinha falado despropositado desatino, por isso com ela ralhara. O que fora: que queria um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeitos verdes brilhantes… A agouraria! Agora, era para se encomendar o caixãozinho assim, sua vontade?
O Pai, em bruscas lágrimas, esbravejou: que não! Ah, que, se consentisse nisso, era como tomar culpa, estar ajudando ainda a Nhinhinha a morrer…
A Mãe queria, ela começou a discutir com o Pai. Mas, no mais choro, se serenou – o sorriso tão bom, tão grande – suspensão num pensamento: que não era preciso encomendar, nem explicar, pois havia de sair bem assim, do jeito, cor-de-rosa com verdes funebrilhos, porque era, tinha de ser! – pelo milagre, o de sua filhinha em glória, Santa Nhinhinha.
E, para quem quiser, tem uma narração dramatizada do conto em: http://www.youtube.com/watch?v=JoFZ2_cg2ZQ