Elvira Vigna: o afeto
Foto: Renato Parada
Difícil pôr em palavras o quanto Elvira Vigna foi importante para mim nesses vinte anos de convivência. Eu a conheci aos dezenove anos de idade. Tinha acabado de descobrir que o mundo arreganha os dentes quando a gente decide viver a vida que a gente quer, não a vida que querem para a gente.
Elvira me recebeu de braços abertos. De porta aberta. Era do tipo que olhava nos olhos, na horizontal, de igual para igual, nunca de cima para baixo, nunca de baixo para cima, e isso fez toda a diferença para mim. Na casa dela, eu podia ser eu mesmo e isso bastava. Cada hora de paz de espírito ali dentro, fosse conversando sobre livros, cinema, arte, jabutis – o animal e o prêmio –, gatos, orquídeas ou passarinhos, me devolvia a força necessária para encarar o resto da semana.
Todo mundo que teve a oportunidade de conhecer a Elvira sabe que ela era uma pessoa direta, de caráter exemplar. Perto dela, nada de enfeitar o pavão, calcular o ângulo do nariz, nada de joguinhos sociais, nada de comentários sob medida ou de caso pensado. Um aprendizado que levei para a vida.
Uma imagem que venho repassando na cabeça é a da Elvira deitada na rede, lendo sob a luz natural que entrava pela janela, lá no Rio de Janeiro ou aqui em São Paulo. Elvira lia muito, lia de tudo. Adorava ler novos autores, saber o que estava sendo publicado, ler originais encadernados que recebia de presente em suas palestras. Dos livros, gostava de uns, não gostava de outros. Dos autores, torcia por todos. Eu vivia pescando coisas para ler na biblioteca dela, principalmente nas prateleiras de nacionais, mas o verdadeiro tesouro era poder conversar com ela sobre esses livros.
Ou conversar com a Elvira sobre os livros dela.
Acho que essa ficha só caiu agora. Na sala com a família, comidinhas na mesa, um vinho no copo, café passando, papear sobre seus trabalhos publicados. Conhecer a gênese de uma cena do Nada a dizer, de uma personagem do Deixei ele lá e vim, de um cenário de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. Para a Elvira, a realidade era matéria bruta valiosa. Às vezes bastava um detalhe – uma conversa com um amigo, uma pessoa se levantando da mesa de um café – e ela criava histórias de uma força imensa.
Elvira Vigna tinha o coração do tamanho do seu talento, e ela é uma gigante da nossa literatura. Poder conviver com ela quando eu era apenas um moleque dando os primeiros passos como autor foi um tremendo privilégio e sempre serei grato por isso. Lembro de uma vez em que estava me sentindo perdido com pressões de mercado, escrever isso ou aquilo, o que vende e o que não vende, naquela ansiedade que às vezes engole a gente sem motivo, e a Elvira me falou: “É o afeto, são as pessoas, é isso que importa. O resto é só o resto”.
O afeto, pois.