LUGARES, TALVEZ UM FIM PARA CONTAR
Dessas coisas que não se notam, remendos nas cidades. Incorporados até o próximo remendo. Sempre. Sentei. Precisava. Mas na ponta. Inobtrusiva, quis. Invisível, me esforcei. Todos os poucos bancos e cadeiras com cara de já ter dono, individualizados, marcados, este o meu, aquele o seu. E a ameaça implícita: qualquer infração será punida com ódio eterno, retaliações. Mas o estande à minha frente estava vazio, então sentei. E pensei: não vazio, ainda vazio. Dessas coisas que se pensam para que fique mais fácil o olhar em torno. Porque havia muitos estandes vazios. E era bom pensar que daqui a pouco se encheriam, cores, ruídos. O meu tinha a bancada de alumínio entortado, com os cantos duros batidos para que ficassem menos perigosos. Não ficavam. Era encostar e se arranhar. Sentei com cuidado também por isso. E agora relaxava devagar. E eu poderia ficar lá, sem me mexer, a manhã inteira, a vida toda. Daria para ficar até acabar. Eu, o mundo ou a feira, o que viesse primeiro. E, em qualquer das hipóteses, eu voltaria, na próxima quarta-feira, fantasma, com a saca de roupas e a outra saca, com cabides. E aquele banco passaria a ser o meu. Definitivamente — o que é uma palavra estranha em se tratando da eternidade. Mas sim, eu saberia então, nessa eternidade, o nome das outras sombras, como chamá-las, as sombras que se moviam, mal se moviam, na frente de meu olho que, este, não se movia. Sally. Fanny. Suely. Evelyn. Iguais, gordas, a sobrancelha levantada a indicar a duração de qualquer sorriso ou papo: curtos. Conheço bem. Algumas talvez de fato conheça, acho, desconfio, reconheço ou invento. Vagas lembranças ou vontades de afeto, ambas as hipóteses vagamente constrangedoras. Talvez já tenha visto aquela, me animo/apavoro. Não, apenas se parece com uma personagem, minha ou de algum seriado, nunca sei. E transpiro inteira, que existissem, que me vissem, que viesse até mim, ah, você não é aquela menina da Molly? E chamassem as outras, venham, lembram?, a menina da Molly. E é sempre complicado sair da segurança do que se inventa, ainda que sob o rótulo de lembranças, para entrar no campo das palavras que compõem os dias: olá, muito prazer, pois é.
Com o intuito de me acalmar, passo a examinar, cenho franzido em análise profunda, as roupas penduradas. As roupas, sim, sim, estas subitamente maravilhosas porque ainda mortas (e não já mortas), ainda sem ninguém dentro.
E pensei:
“De repente compro.”
Seria mesmo bom. Só para não ser assim: entrar, resolver e sair. E em cinco minutos, eis-me na rua, de frente para as horas que faltam até o sol, sonso, fingir que desiste de vez, para que eu, ao fingir que acredito, conseguir dormir.
Malhas, jérseis.
Logo na entrada, na beira da rua, ficam os novatos ou os que devem ser assim chamados, de novatos, e por cujos estandes, estes todos cheios de fregueses, passei direto ao chegar, sem nem olhar. Novatos há vários anos, para sempre novatos. Em vez das malhas e dos jérseis, vendem cocadas, quindins, bolinhos de bacalhau, acarajés.
A entrada para o pátio é estreita, vestígio da época em que era preciso haver segurança e controle, carteirinhas de sócio e identificações. É nesta entrada estreita que se amontoam, então, as comidas, olhadas com ar de superioridade pelos veteranos. Coisa dos locais, devem dizer. Os veterenos não comem. E os poucos que comem mastigam com os dentes da frente, a cara franzida de desdém, ainda que gostem. Mas meu olho registra, lento: uma das mulheres se aproxima, não bem em minha direção, mas quase. Vem visitar o estande à minha esquerda. Sally ou Fanny ou Rose ou Lilian anda devagar e come um pacote de salgadinhos, é o meio da manhã, hora do salgadinho. Puxa o banco vago, o banco “de cliente” da dona do estande à minha esquerda. Elas conversam, a voz baixa, os olhos em torno e, não, não em minha direção.
Os estandes de roupa fazem um corredor ladeando o caminho de quem entra em direção à piscina e aos armários do vestiário, no pátio de trás. As aulas de hidroginástica de cinquenta em cinquenta minutos fornecem a eventual, reticente e a cada dia mais rarefeita clientela dos estampados tamanho GG em malha e jérsei. A hidroginástica é a principal e quase única atividade do clube.
Adivinho que o desprezo que emana das duas mulheres a meu lado é, em que pese qualquer possível merecimento de minha parte, também um automatismo. Nada a ver com a presença dos salgadinhos já quase no fim, ou da minha, lá sentada sem ter direito a isso. Talvez uma técnica de venda, algo já incorporado por todas elas. Não dão atenção às possíveis freguesas que, enroladas em seus roupões de banho, interrompem o passo hesitante, às vezes com a bengala deixada por alguns minutos nas mesmas quinas em que agora tenho as costelas. Param, os roupões, quando param, e cumprimentam a vendedora que é alguém que elas também encontram em ocasiões sociais, de quem podem ser inclusive vizinhas de prédio. Esfregam então os dedos nessa ou naquela blusa pendurada. E a vendedora age com desprezo. Desprezo quer dizer que quem despreza é superior ao desprezado. Desprezo quer dizer que a blusa ali esfregada é valiosa. Eis a técnica de venda. De qualquer venda, ainda que não haja produto pendurado ou sequer à vista, ainda que o que se venda seja só uma aparência. Porque vendem sempre, e não só ali, e não só blusas.
Há muitos mundos à parte, se você se dá o tempo de percebê-los.
Não sei quanto tempo. Os sons da feira de roupas já quase sumiam quando fiz um esforço. Me levantei. Ao me levantar, uma das mulheres que conversavam se virou afinal para mim e me estendeu um cartão meio desbeiçado. “Comida natural”. Havia um enfeitinho, acho que uma folha de alface, e um endereço. Se eu almoçasse lá, teria uma vida saudável, emagreceria seis quilos em um mês, e ganharia dez por cento de desconto. Não que ela agora me olhasse ao me dar o cartão. Não exatamente. Mas olhava na minha direção geral. A outra, com quem conversava até há pouco, sobrancelha ainda mais levantada do que o lápis já a deixava, olhava em direção contrária, uma quase impaciência. Achei que aqui também eu podia adivinhar o motivo. A feira de roupas era um lugar que existia. Tinha uma concretude real que não deveria ser questionada. Não que seu comércio valesse à pena em termos de dinheiro. Mas existia e, por existir, continuava. A dona do cartãozinho infringia as regras ao tentar uma diversificação em seus empreendimentos. Agradeci. Guardei o cartãozinho. E poderia ter saído e esquecido todo o resto. Sair, ir embora, subir em um ônibus que passasse com a porta aberta.
Mas entrei.
“Vim para resolver o problema do armário da Molly.”
A mocinha me olhou alguns segundos mais do que o necessário, desejei que fosse porque não havia escutado. Afinal saiu do mutismo e me perguntou se eu era quem havia telefonado. E foi pegar o pacote que se encolhia, envergonhado, logo ali, na parte de baixo do fim do balcão.
Agradeci, ela titubeou um “meus pêsames”. Sorri o sorriso recém-aprendido e que não se importava de ser convencional. Ou melhor, era bom justamente por ser convencional.
O pacote era um saco plástico desses de supermercado com as alças amarradas em um nó. Achei bom. Eu talvez nem conseguisse abrir, assim. Mas abri. Uma toalha amassada e cheirando a umidade, um pente, óculos e uma bolsa velha, de couro, que decidi que permaneceria fechada para todo o sempre. Mas abri. Um cheiro que reconheci, um perfume velho, esmaecido, muito velho, acho que desde além das minhas fraldas sujas, este cheiro já existia, igual, perto de mim, desde quase sempre. Dentro da bolsa de couro que estava dentro do saco do supermercado, havia uma carteira. Eu devia abrir também a carteira, ver se havia documentos, dinheiro foi para isso que vim a esta cidade que jurei nunca mais visitar. Mas a carteira eu não abri. E acho que este foi meu único gesto de amor.
Saí.
Andei um pouco. Passei reto pela primeira lixeira, dessas cor laranja, da prefeitura. A segunda estava alguns passos mais para minha direita e minhas pernas simplesmente seguiram, se recusando à flexibilidade necessária. Na terceira lixeira, joguei fora o saco com bolsa, carteira e o resto tudo.
Sarjetas e degraus de lojas têm a vantagem de todas as margens: nelas, a água que passa sempre parece mais mansa e mais morna, em um convite. Depois de andar por muito tempo, sentei. Era um degrau de loja. Esta cidade tem isso de bom: a de ser uma faixa, ela própria uma espécie de margem entre as montanhas e o mar. Parei onde parei porque, naquele lugar da faixa estreita em que eu me encontrava, saía, justo naquele ponto, outra faixa, subterrânea, antiga, e muito mais larga, em que cabia tudo o que eu havia vivido naquele lugar, e era muito. Na altura de meus olhos, as calças jeans e os tênis dos que andavam tentavam me manter no mundo da primeira faixa, a real. Iam com determinação, embora voltassem com igual determinação.
Conseguiram. Eles e mais um vazio no estômago que ainda não dava para saber se era fome ou se, ao comer, vomitaria o que comesse e mais muita, muita coisa.
Eu continuava sem saber as horas. Precisava lavar as mãos para me livrar do cheiro de um perfume que eu não tinha certeza se estava mesmo lá. E precisava me levantar do degrau da loja e arranjar um ar condicionado que me tirasse, com sua irrealidade, desse mundo. Uma forma amena, socialmente aceitável, de sair do mundo. A outra possibilidade era levantar já berrando, socando, empurrando, derrubando no chão e xingando até cansar, até que me levassem, e tanto fazia para onde.
Elvira Vigna é autora de Nada a dizer e Deixei ele lá e vim. Esse texto faz parte do “esqueletão” de um livro que ela começa a montar este ano. “Talvez ele entre ou não”, adiantou.