apresentação na Feira de Gotemburgo, 23-27/09/2015
Vou falar de três livros meus. Dois editados pela Tranan. O terceiro foi o último a ser publicado, em 2014, e tenho esperança de que também venha a ser editado na Suécia.
O primeiro se passa no bairro de Santa Tereza no Rio de Janeiro. É um bairro muito antigo, tradicional, com casas muito antigas, grandes, e que com o tempo ficou cercado de favelas. Então, ele tem uma passagem de tempo inscrita na própria arquitetura.
Esse é o “Coisas que os homens não entendem”.
O segundo se passa em um resort de verão de brasileiros ricos, em Guarujá. Só que a ação acontece depois que o verão termina. Então, o lugar deixa aparente sua máscara, sua camada de enfeites baratos para que fique bonito e agradável para quem vai lá por poucos dias, e não para conhecê-lo bem.
Esse segundo livro é “O que deu para fazer em matéria de história de amor.”
Cenários são importantes nos meus livros.
Costumo ir para os lugares onde se passa a ação que vai ser descrita. Escrevo no próprio lugar que estará representado no livro. Nunca situei a ação de um livro meu em um lugar que eu não conhecesse bem.
Tem a ver com a maneira com que escrevo.
Eu sigo, ao escrever, aquilo mesmo que está sendo escrito.
Assim, em “Coisas que os homens não entendem”, trata-se de enfrentar uma passagem de tempo. Da mesma maneira que o bairro de Santa Tereza também precisa enfrentar sua passagem violenta de tempo.
No livro, a narradora volta ao bairro, que já foi o seu, e que não é mais aquele que ela deixou. Ela também está diferente. Ela não tem como se apoiar em nada estável ou estático. Nem mesmo dentro dela mesma, já que provavelmente cometeu um crime, ainda que nem mesmo ela possa dizer se queria ou não de fato matar quem matou. Ela está perenamente en trânsito.
Em “O que deu para fazer em matéria de história de amor” a narradora faz um jogo com ela mesma. Se ela conseguir tirar a máscara bem-educada que caracterizou a relação de um casal já morto, ela conseguirá saber, igualmente, da relação atual dela com o amante. O casal morto é o pai e a mãe do amante.
O livro não é conclusivo. Mesmo tirando uma máscara, há outra, e outra. E a hipótese de uma história de amor convive com a hipótese de uma história de ódio e assassinato.
Aqui, um trecho desse livro:
À medida que os anos passam, Rose, que nunca conseguiu grandes noites de amor com Arno, meio que esquece o assunto. Sexo deixa de ser uma coisa importante na vida dela. Depois do amante Ernie, não há mais ninguém – se é que Ernie de fato é um amante de cama, e não apenas de sonhos. Os dias vão se seguindo, batatas vão sendo cozidas. Haverá trocas de comentários sobre uma ou outra qualidade de batata. A de casca roxa, não muito boa. A que empapa no cozimento. A que tem caroços duros na polpa. E eles estabelecem uma tarde por semana para irem ao melhor lugar de se comprar batatas. Como aliás estabelecem outros rituais. Todos os velhos casais os têm.
Nas noites de terças-feiras, riem juntos de algum programa humorístico da televisão.
E secretamente se dizem, cada um para si mesmo: afinal, se conhecem tão bem um ao outro que, sim, se gostam, claro que sim. E confirmam isto no o que foi? o que foi? de alguma apneia noturna. Ou quando um retorno à casa se dá depois da hora normal.
O desfalque de dinheiro é o que define Ernie, não sua atuação na cama. Nos anos seguintes a seu sumiço, e para todo o sempre, Ernie será o filho da puta que se aproveita da bondade deles para roubar dinheiro deles. E o pronome possessivo, tanto quanto o dinheiro ou ausência de, os une.
E é isso.
Uma história de amor, com um fecho de ouro à altura do palco monogâmico de um balé de cisnes brancos. Um morre, o outro morre em seguida, incapaz de conceber a vida sem seu par de todo o sempre. É uma história. Apesar de os cisnes serem, eu vi, garças. E o palco, um valão cheio de lixo.
E agora um pouco do meu último livro.
O cenário dele são aeroportos, hotéis, o assento de trás de carros com motorista. O nome do livro é “Por escrito”.
Aqui, uma mulher que viaja sem parar tem a impressão de nunca sair do lugar, de sempre estar esperando por algo – um voo, a hora de ir para um evento profissional, uma decisão pessoal dela mesma. E essa espera, acha ela, parece se dar sempre na mesma cadeira de plástico pré-moldado, iguais em qualquer lugar.
Ela de fato está presa. Há uma culpa da qual ela não consegue se livrar.
Nos três livros que citei aqui, e em todos meus outros livros, além do cenário que espelha o que se passa nele, há também uma transitoriedade dos personagens e das suas ações. Nada me parece muito definitivo. Não há um passado sólido e mitificado a definir pessoas. Nem um futuro claro para ninguém.
Um trecho do “Por escrito”:
Costumo estabelecer uma comunicação, eu e minha bunda, nessas ocasiões. Ela me dizendo, você vai ter de se mexer. Eu a esmagando com meu silêncio de superioridade. Embora saiba muito bem que ela vai ganhar, que vou ter de me mexer. A bunda sempre consegue, e agora também, cooptar o conluio do meu estômago. Não é fome. Ele também com uma consistência de madeira a me puxar, insidioso, um pouco para a frente. Nessas horas, em geral ponho os cotovelos sobre as coxas.
É uma concessão insuficiente e sei disso. Bunda e estômago continuam sempre a querer mais. Querem que eu vá mais para a frente, para a frente, até cair para fora do mundo ou do que estiver mais próximo e representar o mundo: a cadeira. Ou para dentro. Porque tem uma hora em que me levanto. E venho, caso esteja longe. O táxi, a casa, a chave na porta, você com a cara boa, o cachorro contente.
Isso sempre, em aeroportos ou cafés. Em saguões de hotéis desconhecidos onde entro, eu e minha cara séria, ninguém nunca impede, e sento no sofá da recepção. Fico lá como quem espera por alguém, um hóspede. Às vezes aproveito um banheiro, às vezes tomo um café quando há café de graça na recepção. E de repente me levanto, saio, sumo na rua.