Tentativas sobre o conto: as estatuetas de Degas

Texto da apresentação “Tentativas sobre o conto, as dançarinas de Degas”, no Festival Nacional do Conto de Jaraguá do Sul em 09/08/2012. (texto posteriormente publicado como artigo pelo jornal O Globo, Caderno Prosa e Verso, em 11/08/2012)

 

Tentativas sobre o conto: as estatuetas de Degas

Degas fazia suas estatuetas de bailarinas para que servissem de modelo. Nunca admitiu expô-las. Ele não gostava de gente, e de mulher ainda menos. Então fazia as estatuetas para que “posassem” para ele.
Essa imagem, desse cara fazendo, bolota por bolota de barro, e depois olhando, estatuetas de quase-meninas nuas, isso dentro de um ateliê silencioso e escuro – porque ele trabalhava em uma quase escuridão – é o que chamo de conto. Uma imagem. E uma imagem que, de algum modo, apresenta algo não compreensível ou que, pelo menos, não atende a um padrão já testado de pensamento.
Essas imagens contêm uma quebra de estrutura, o que quer dizer que, de algum modo, apontam para limites da linguagem – que é a estrutura-mor. Então, explicá-las é, além de inútil, contraproducente. Quanto mais palavras forem gastas, pior fica, mais longe estaremos desta experiência – que é a de um impasse, uma inadequação (a nossa), frente a uma construção, essa que fazemos com o nome de mundo.
Contos são, portanto, sim, curtos, mesmo se longos. Porque neles não cabem explicações. E são também, sempre, uma lição de humildade autoral. Nada podemos, como autores, frente a eles. São nosso limite, nosso inimigo, nosso silêncio.
Há mais um dado sobre Degas que cabe aqui na discussão. Ele não pintava mãos. Suas mãos são garranchos toscos, sem acabamento. Isso quando existem, porque costumava escondê-las.
Carol Armstrong, uma artista e crítica de arte americana, diz:
“As mãos de Degas são quase mal acabadas. Elas, com toda a certeza, são muito menos bem realizadas do que o restante da sua pessoa apresentável e, em nenhum momento, tão precisas e particulares como a atenção dispensada pelo pintor a seu próprio olhar e a seus traços faciais.”
Carol Armstrong é uma feminista de carteirinha e imputa essa particularidade de Degas à sua misoginia. Ele teria dificuldade de se ver como um artista que “fazia” principalmente mulheres. (Além de cavalos, é certo, o que é mais palatável para o personagem em questão.)
Há outra razão possível. Degas via a mesma quebra de estrutura que eu vejo ao vê-lo. Seu olhar para as pequenas estatuetas, para sua atividade mesmo de artista, é o da impotência, da não participação. Ele vê uma quebra. Assim sendo, seus olhos, os rostos de suas figuras, são perfeitos. Ele, sim, vê. Mas nada pode fazer a respeito. Suas mãos, portanto, quase inexistem.
Degas nasceu em 1834 e morreu em 1917. Em 1890, fez uma série de autorretratos fotográficos, novidade da época.  Mais do que nas pinturas, esculturas ou gravuras, nesses autorretratos (que irá repetir depois, já bem velho e quase cego), é possível perceber sua posição impossível, que é a de um contista. Degas foi um contista. Nessas fotos fica clara a impossibilidade de se mostrar algo que exclui radicalmente a própria existência daquele que mostra. E que no entanto tem de estar lá, por justamente ser quem mostra. Degas tentou muito escapar desse confronto com a impossibilidade. Por exemplo, na foto que ele faz de  Renoir e Mallarmé (foto), ele aparece  no espelho que está por trás dos retratados. É o mesmo efeito do quadro As meninas, do Velásquez. Ele aparece no espelho. Mas é como se não aparecesse, pois o reflexo de luz o consome, fica pouco mais que um contorno impreciso. Outro exemplo: Degas aparece de terno, gravata em muitos de seus autorretratos, em fotos ou pintura. No entanto, ele está no ateliê, trabalhando. A roupa é de quem posa, de quem finge estar em outro lugar. E sim, as mãos fechadas, atrás das costas ou, curiosamente, apontando para fora do enquadramento. Mais um exemplo: o olhar que não olha a câmera na foto que faz com Zoé Closier. Ou seja, há alguém aqui olhando quem foge de “lá”. Quem na verdade não está lá ou, pelo menos, não deseja estar lá,  porque o estar lá é falso. Falso porque o conto, a imagem-conto, exclui não só a presença de um sujeito dotado de significado dentro do seu conteúdo como até mesmo qualquer interpretação sobre essa ausência, esse limite. Quebras de linguagem não permitem autoria.
O biógrafo de Degas, Paul-André Lemoisne (1875-1964), diz:
“Seu gênio era tão complexo, tão cheio de reticências, tão voluntariamente apagado por trás da sobriedade de meios que aqueles que o abordam só conseguem delineá-lo parcialmente.”
Ou Valéry, em seu ensaio “Degas danse dessin”:
“Trata-se, portanto, de tornar inteligível a estrutura de certos objetos que não parecem possuir estrutura determinável. (…) O olho precisa encontrar o caminho pelos próprios movimentos do lápis sobre o papel, assim como um cego deve acumular, pelo toque, os elementos de contato com uma forma, e adquirir ponto por ponto o conhecimento e a unidade de um sólido não regular. As bailarinas de Degas dançam, mas não falam.”
Tenho também uma citação de  Ricardo Piglia. Ele diz que o autor de um conto deve estabelecer duas histórias que correm simultâneas e que são o contrário uma da outra. E comenta uma anotação de Tchekhov para um conto que nunca foi feito. A anotação de Tchekhov, citada por Piglia, é a seguinte: “um homem ganha um milhão de rublos no jogo, volta para casa e se suicida.”
E tenho uma citação de uma citação de Ricardo Piglia. É de  Carlos Schroeder no seu livro “As certezas e as palavras”, no conto “O papagaio de Piglia”:
“Não pensem que troquei Joana por outra mulher, não, longe disso, troquei Joana pela solidão, pelo remorso (até agora me pergunto por que rompi).”
Ricardo Piglia, Carlos Schroeder e Tchekhov criam as situações de quebra de lógica com que Degas se depara, naturalmente, sem precisar inventar.
Eu também.
Meus contos, que também nunca são escritos, são experiências vividas. Momentos em que fiquei frente a frente com uma quebra de estrutura, com o impronunciável, o não passível de ser entendido.
E no entanto eu tento.
Não escrevo contos. Escrevo romances. Mas, na origem de cada um, há uma imagem dessas. Que não consigo esquecer, que volta e volta. Algo nelas é a parede, o silêncio, é a minha impossibilidade não só como escritora, como pessoa. É sobre isso que escrevo.
Vou dar um exemplo antigo, “O assassinato de Bebê Martê”, de 1997. Há outros. Todos meus livros nascem de um conto jamais escrito. Há uma imagem, uma cena, como se fosse a cena de um filme, que me deixou parada, em silêncio, sem entender. Escrevo sabendo que, ao tentar entender, explicar, tudo fica ainda mais fechado, mudo.
A imagem inicial desse meu livro me foi contada por um namorado da minha filha, o Ângelo. A cena que escrevi, infelizmente muito aquém da imagem, é a seguinte:
“O pratinho está em cima de toalhinha de renda engomada, o copinho amarelado da cachaça, Dino soergue a cabeça com dificuldade, a mão enorme catando um torresmo e derrubando outros, porco. Mete tudo na boca, vira o copo, o olho brilha, o torresmo passa pelo pescoço, perfeitamente visível na pele enrugada que se estica, ele limpa a boca com a manga do pijama, se apoia melhor no cotovelo, olha para cada um de nós, já agora com sua expressão habitual, irônica, e diz também com sua voz habitual, forte, me hanno salvato, carissimi.
— Me hanno salvato, figli miei. Me hanno salvato. – e ri com uma saúde assassina.”
Isso foi o que escrevi. O que Ângelo contou é parecido. A diferença fica por conta da presença dele, Ângelo, do jeito como contou. Porque tinha uma quebra não só no que contava, mas nele ali, contando. Porque ele contou e riu. Mas riu olhando para ver se eu ria, para ver se, vendo o meu riso, ele entenderia o dele, Ângelo, que, por sua vez, repetia, ou tentava repetir, também sem conseguir, o riso do avô. E é esse não entendimento de quem conta, e de mim que reconto o que me contam, que está o conto impossível de ser escrito, até porque justamente nada tem a ver com palavras. É uma imagem. É um Degas.
Mas tentamos. Não fazemos outras coisa além de tentar. Nunca dá certo. E tentamos outra vez, com outra quebra, e mais outra. Mas são todas iguais, as quebras. O assunto dos contos é sempre o mesmo. É a quebra. E ela não é dizível.