ELVIRA VIGNA: O ASSASSINATO DE BEBÊ MARTÊ (Companhia das Letras, 1997, 128p.) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro
Bernardo Ajzenberg – Folha de São Paulo, Folha Ilustrada, 22/02/97
O assassinato de bebê Martê sobrevive pela ambiguidade. Por mais atento que seja, o leitor ficará em dúvida quanto a um ou outro detalhe do enredo criado por Elvira Vigna numa narrativa curta, montada sobre sugestões – e esse é o maior mérito da autora.
Abstraindo sua ordem cronógica, uma mulher de meia-idade (a narradora) intercala eventos relacionados a duas festas, uma no presente da narração e outra no passado. Em torno de cada uma ocorre pelo menos um assassinato. Vigna lança iscas, atiça a curiosidade, constrói hipóteses ambíguas, mas os detalhes de tais mortes ficam por conta da imaginação do leitor.
A entrelaçar os eventos está a personagem Lúcia, também cinquentona e amiga da narradora. Ela participa das duas festas, de suas consequências e se envolve diretamente nos crimes, inclusive como vítima.
Sua existência, em contraponto com a própria narradora, permite a Elvira Vigna explorar tematicamente as vicissitudes femininas da meia-idade, as transformações impostas pelo tempo e pelo espaço cambiante, ao longo de quatro décadas, ao corpo e à alma, por assim dizer, de uma mulher no mínimo ambiciosa.
A capacidade de retratar o universo mental de mulheres que, embora emotivamente atadas a homens que nem sempre amam, fazem questão de coordenar seus destinos, eis, então, o segundo pilar da obra.
Além dele, registre-se a capacidade da autora de expor sem máscaras a sordidez – nada ambígua – que muitas vezes alimenta as relações entre as pessoas, mesmo em momentos os mais delicados, mesmo entre amigos ou familiares.
Dois aspectos, porém, limitam o encanto potencialmente enorme do livro.
Em primeiro lugar, abusa-se do flashback, transformado em recurso de aplicação quase gratuita. Tem-se a impressão, muitas vezes, de que, após escrever de modo linear o que tinha em mente, a autora picotou o texto e, com a ajuda do computador, redistribuiu pedaços aleatoriamente. Não se faz sentir uma lógica narrativa própria que imponha tal ou qual ordem ou rememoração.
Da mesma maneira, falta em O assassinato de Bebê Martê uma sintaxe identificável, uma combinação de palavras e de ritmos nas frases que permita considerar o tom coloquial usado pela autora como sendo fruto não de algo espontâneo e bruto, mas sim de um estilo conscientemente burilado. A coloquialidade, assim, viceja sem molho, empobrecida.
Tal fragilidade leva, em suma, a que sutilezas da narrativa não encontrem eco no automatismo da linguagem. E esse descompasso, entre forma e conteúdo, acaba por fazer de O assassinato.., um livro que cai bem mas fica devendo algo ao leitor.
De imediato, o título do terceiro romance de Elvira Vigna cria no leitor a expectativa de uma história policial. Assassinatos são associados a investigação, mistério, suspense. Mas a escolha das palavras faz soar uma nota de estranheza que não passará desapercebida ao leitor atento: por que o assassinato de Bebê Martê, se o natural seria “do” Bebê Martê? Essa ausência do artigo é o primeiro sinal de que o jogo de ocultação e desvendamento da verdade não se limitará ao crime mencionado.
A técnica da narrativa policial tem sido bastante empregada em romances contemporâneos. Numa época em que a leitura se torna uma atividade cada vez mais rara, o suspense pode ser um recurso precioso para seduzir leitores. A investigação mantém vivo o interesse pelo texto e dá margem à exploração de dimensões temáticas independentes da situação policial. É este o artifício de Umberto Eco em “O nome da rosa”: criar o mistério a partir de elementos que se interligam em outras redes de significação, como a História. Ao invés de reduzir-se a um relato sobre detetives às voltas com um serial killer, o romance adquire a complexidade de uma perscrutação de zonas variadas da experiência humana.
O assassinato como uma alternativa à banalidade
No caso de O assasinato de Bebê Martê, é sobretudo a esfera das relações interpessoais que está implicada no crime. O trabalho do leitor-detetive consiste em desvendar as analogias que se estabelecem entre duas histórias intercaladas: um assassinato ocorrido há anos e o presente da narradora. Em ambos os planos, a tensão entre ocultamento e revelação sobressai no jogo das aparências sociais. Os sentimentos sórdidos, os desejos mesquinhos que estão ocultos sob as convenções de comportamento são desamascarados pelo tom ácido da narrativa.
É bem verdade que esse tom acaba ficando monocórdio, e o excesso de acidez corrói os matizes das motivações das personagens. Nenhuma atitude escapa à crítica implícita na ironia com que as cenas são descritas, tudo é posto sob suspeita. Mas não deixa de ser instigante a identificação das máscaras. Com uma linguagem que incorpora bem o trânsito das percepções sensoriais e flui num ritmo quase oral, a narrativa é capaz de revelar, através de um gesto banal como o “Bom diiiia!” da secretária, o tom de farsa e o automatismo de pessoas que temem o autêntico contato como uma possibilidade de contágio.
A generalização das expressões filtradas pelos disfarces sociais confere ao sujeito o anonimato, condição da impunidade. Na era moderna, a valorização da individualidade acentua a função desfiguradora dessas máscaras, na medida em que a singularidade, produzida em escala industrial, multiplica o isolamento, tornando todos incógnitos uns aos outros. O homem moderno, como o personagem da novela de Edgar Allan Poe, é o homem das multidões: um criminoso em potencial, protegido pelo muro movente da massa e o escudo de uma indivualidade insondável. Na narrativa de Poe, o fascínio do mistério provém da possibilidade de se encontrar o incomum, algo que se destaque da normalidade repetitiva. É isso que fascina a narradora anônima do romance de Elvira Vigna. Ela se deixa envolver cada vez mais com a história do assassinato porque esta lhe parece uma alternativa à banalidade e à falta de perspectiva de seu cotidiano: “Eu devia ter matado meu pai, Lúcia matou. Daria uma história ótima para minha vida.”
Ëm movimentos circulares de repetição e alteração da cena do crime, que tornam discutíveis a hipótese de assassinato, a narradora pouco a pouco se apropria da história de Lúcia, e o presente de uma vai ao encontro do passado da outra. É pena que, no momento em que os planos se fundem efetivamente, haja um esvaziamento na tensão da narrativa. A linguagem perde a vivacidade e a fluência iniciais, e os conflitos se dissolvem com a dispersão provocada pelo excesso de novas referências na trama. Ainda assim o desfecho do romance é inusitado. A idéia de que um assassinato daria “uma história ótima” para uma vida anônima se desmente na medida em que o crime deixa de ser situação insólita para aparecer como conseqüência natural da farsa cotidiana. Estamos nos assassinando a toda hora na covardia, no egoísmo, na sordidez de nossas relações – é o que parece constatar a narradora com uma tranqüilidade cínica.
Existem escritores que realizam seus romances buscando o que pode-se determinar de uma atmosfera. Não raro, deparo-me com autores com um tipo de narrativa que não vem a ser minha predileção. Sou honesto em confessar, por não poder me separar de certas preferências. O escritor opta por uma maneira narrativa e se gostamos ou não são outras histórias.
Como um leitor atento, tenho de descobrir, além de minhas preferências, se um determinado escritor realizou, na direção escolhida, um texto que realmente salta como um valor literário.
Para citar exemplos, faço uma comparação. E busco na literatura norte-americana três autores que leio com prazer. John Steinbeck, Hemingway e Willian Faulkner. Os dois primeiros realizam a literatura que normalmente leio com mais gosto. Mas nem por isso deixo de considerar Faulkner como absolutamente genial, um dos maiores expoentes da literatura. Ao me lembrar de Absalão, Absalão! consigo vislumbrar profundezas poéticas. Um crítico saudou o livro como a realização mais intensa de Faulkner, já que a estrutura ficcional da narrativa existe como se não houvesse outra forma de realizá-la.
Encontro em uma crítica de Jean-Paul Sartre, a respeito de Faulkner, a afirmação de que “uma técnica romanesca leva-nos sempre à metafísica do romancista.”
Como o nosso velho e conhecido dicionário registra que metafísica também é o adjetivo a significar sutileza e/ou transcendência do disccorrer, fica bem posta aí a afirmação para me remeter ao O assassinato de Bebê Martê, romance de Elvira Vigna, publicado pela Cia. das Letras. Pois a escritora, nascida no Rio de Janeiro, tem aquele estilo feito por atmosferas. Ela conta uma história, e é seguindo um fluxo, um discorrer, que se é a sua técnica preferida, não o é a que me agrada enquanto leitor. Tenho de deixar isso muito bem registrado. Na mesma direção, por exemplo, é ao romance Estorvo, de Chico Buarque de Holanda. Creio que foi um best-seller porque nós, os seus fãs de sua poesia e música, compramos o livro, pois não há tantos leitores assim que escolhem esse tipo de literatura para as suas preferências. Como não lia Estorvo para uma resenha, não passei da metade do livro.
Trabalhos acadêmicos:
LEAL, Virginia. Diálogos (im)possível entre Editora Malagueta e Elvira Vigna. Paris: Sorbonne IV. Révue Iberical #2, 2012, p.111.
este texto está disponível online.
GUIMARÃES, A. M. A. . Reflexo da persistência. Correio Braziliense, Brasília, 28 maio 1998.