Suplemento Pernambuco

HÁ 30 ANOS, ELVIRA VIGNA ESTREAVA NA ESCRITA
Schneider Carpeggiani

 

Incontáveis as vezes em que me peguei assistindo pelo YouTube o book trailer de Por escrito (2014), de Elvira Vigna (1947-2017). Atravessada por imagens do filme O deserto vermelho, de Antonioni, a voz da autora desenvolve não apenas os porquês do romance ali em questão, como ergue uma espécie de poética da sua produção. Ao final, arremata dizendo que seus personagens são pessoas “em lugares que não são os delas, de passagem, por acaso ou simplesmente perdidas.” Pessoas que se constróem com as sobras da sua própria destruição, do seu isolamento.

Elvira Vigna deixou uma das obras mais potentes da literatura brasileira contemporânea, ao equiparar a sensação de despertencimento, de entradas sem voltas por histórias erradas, com a linguagem precisa para contá-las. Nada sobra em Elvira. Tudo é exato para descrever a estupidez tediosa de se estar aqui e agora. Em seus livros, não há uma hierarquização entre narrador e personagem. Ambos não sabem o que vai acontecer, por isso hesitam, parecem bobos. Contam e vivem porque têm de fazê-lo.

A cena inicial de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (2016) é isso: a linguagem está lá pelo fato de todo o resto também estar. Narrador e personagens se colocam diante do espelho numa mímica inútil:

“Está escuro e tenho frio nas pernas. No entanto, é verão. Outra vez. Deve ser psicológico. Perna psicológica.
Faço hora, o que pode ser dito de muitos outros momentos da minha vida.
Mas nessa hora que faço, vou contar uma história que não sei bem como é. Não vivi, não vi. Mal ouvi. Mas acho que foi assim mesmo.
(E posso dizer a mesma coisa de outras histórias, dessas que às vezes conto.)
Lola e João.
Acaba de acabar.
Então é isso. Verão outra vez, Rio de Janeiro outra vez, e vou começar”.

É que não se vive; se fazem horas.

Seus personagens e seu narrador habitam num mundo instável de ação sem dono. Um mundo parecido ao que encontramos nos filmes de Sofia Coppola, cineasta da sua preferência (Lembro de Elvira comentando, durante uma palestra, do prazer de ter convivido por duas horas com “aquelas pessoas horríveis” do filme de The bling ring, de Coppola e também do seu fascínio pelas piscinas decadentes e pelo verão amuado, sem tesão e cor, da Los Angeles de Somewhere, da mesma diretora).

Em tempos de discussão sobre os sentidos da democracia e sobre o que restou da Nova República, a estreia de Elvira na literatura adulta, o romance Sete anos e um dia (1988), completa  30 anos da sua publicação. Lançado pela José Olympio, o livro encontra-se esgotado. Até bem pouco, esteve disponível para download no site da autora, atualmente em manutenção. Sete anos e um dia assinala a temporalidade do Brasil entre os anos 1970 e 1980, de quando o país viveu seu precário processo de redemocratização. Uma democracia que recomeçou porque tinha de recomeçar. E pronto.

Numa procura pela internet, há quase nada disponível sobre Sete anos e um dia. A maioria dos artigos se debruça sobre a Elvira já amadurecida de Por escrito e Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, suas obras-primas finais. Mas vale destacar a importância de lermos em comparativo os grandes trabalhos de um artista com aqueles seus esboços iniciais, suas obras “menores”, já meio que esquecidas e tratadas como simples rascunhos do que viria a seguir. Nesse processo, é possível detectar o esforço e o caminho que um autor lançou mão para se superar e consertar eventuais falhas.

Num depoimento em estilo de autorretrato, Elvira é concisa sobre Sete anos e um dia. Trata o romance como uma espécie de rito de passagem: “Meus primeiros livros foram dirigidos a crianças e jovens. Depois, parei de escrever livros, ficando só com jornalismo. Quando voltei aos livros, escrevia para adultos e não mais para crianças. Sete anos e um dia, meu primeiro romance, é de 1988 e fala sobre um grupo de amigos durante os sete anos da abertura política brasileira”, escreveu. Mas entre a estreia e o próximo romance, O assassinato de Bebê Martê (1997), foram quase 10 anos.

Sete anos e um dia foi escrito em 1984, quando a escritora e a família decidiram morar por um período nos Estados Unidos, mas só publicado no final da década. Segundo o viúvo de Elvira, Roberto Lehmann, num depoimento colhido pelo escritor Eric Novello: “Como de hábito nos livros adultos da Elvira, é um romance inspirado em pessoas reais, eventos reais, histórias vividas ou ouvidas. No caso, pessoas com quem Elvira conviveu pouco antes da mudança. Me parece que um processo embrionário disso ainda. O tema da ditadura estava muito presente na época. A Elvira trabalhava em 3 empregos para poder se manter, e o livro mostra certa irritação dela com revolucionários filhinhos de papai. Essa galera que enchia a boca para repetir slogans, mas vivia de boinha sem trabalhar”.

Roberto não soube muito o que dizer em relação ao longo silêncio que veio após a estreia, já que com O assassinato de Bebê Martê ela passou a publicar uma nova obra numa média de a cada dois anos. Ele apontou que Elvira só se dedicava a um livro depois que tirava o anterior da cabeça. O mesmo ocorria com as suas ilustrações. Precisava encerrar o assunto definitivamente.

“Lembro dela falar que conversou com uma editora ou outra antes de mandar O assassinato de Bebê Martê para a Companhia das Letras (editora na qual permaneceu até o fim), já que ela tinha alguns contatos. Mas que não tinha rolado. Fora que na época a Elvira estava procurando trabalho em outras áreas, trabalhou n’O Globo, abriu a empresa de tradução, trabalhou para a IBM… Parece então que foi uma conjuntura de demora a conseguir editar e cabeça ocupada com os multiempregos”, apontou Novello.

“Sobre o livro, lembro dela me falar muito da questão do nome, de que tinha sido um período estranho no país, com uma sensação de que ninguém sabia o que poderia acontecer,  e que essa atmosfera não saía da cabeça dela. Que ela então começou isso de buscar inspiração em situações reais, coisas vividas e ouvidas, para construir as histórias, algo que ela usou até sua última publicação”, continuou.

 

TRIÂNGULO NÃO AMOROSO

Sete anos e um dia revive aquele Brasil de uma redemocratização que se fez crer como natural, sem conflitos, a partir de um triângulo, que poderia ser chamado de amoroso, mas não é bem o caso. É que as partes da estrutura apenas dividiam o mesmo lugar, os mesmos farelos da História e não necessariamente os sentimentos. Estão aqui Caloca (apelido infantilóide a recobrir o nome Carlos Alberto), que, após o fim do casamento com Bete, começa a se envolver com a ex-namorada do amigo Pedro, Catarina.

Caloca tem um fascínio pela estética pomposa do Brasil Colônia e não sente qualquer embate entre isso e suas afinidades com a esquerda – Elvira nos mostra já naquele momento que nem todas as esquerdas eram iguais, que nem todos anistiados eram iguais. Caloca quer assim, e com dívidas rolando, construir a casa colonial dos seus sonhos. Pedro só pensa na possibilidade de viver em Paris. Catarina, bem, Catarina está ali, entre os dois. Cada um vive e se vinga da História como pode. No pano de fundo, o Brasil faz o mesmo: quer se esquecer das últimas décadas entrando nos anos 1980 de novas promessas de modernidade, de novos desafios e blá-blá-blá.

O primeiro parágrafo demonstra o quanto Elvira, já na estreia, estava ciente da obra fraturada pela precariedade do presente que precisaria um dia escrever:

“Caloca começou a subir o barranco coberto de restos de capim queimado, garrafas quebradas, seringas de injeção, camisinhas de vênus, estopas, pneus, tijolos partidos, como quem sobe os degraus do paraíso, tirulá, alegremente, pois atrás dele, dentro o carro, um volkswagen velho e sujo, estava Bete, e era um prazer deixar volkswagen e Bete para trás.

Adeus”.

Em Sete anos e um dia é assim: todos vão deixando para trás e adeus. Não acontece muito no livro, já que nada de tão grave parecia ocorrer no Brasil a correr debaixo dos pés. Por exemplo: o primeiro presidente civil após a ditadura morre. As pessoas choram e é isso. Existe já aí a tensão policialesca, de que um terror se infiltra por debaixo da narrativa, que Elvira desenvolveria nos assassinatos inúteis, que lançavam pelo avesso os clichês típicos dos romances de detetive, dos seus livros posteriores. Aqui ainda não se mata nem muito se vive. É como apontamos lá atrás: os anos e seus dias a se fazer horas.

Há cenas memoráveis que apontam os pequenos preconceitos da classe média brasileira. Preconceitos que se sustentavam quase como superstições. É o caso da lembrança de Pedro, da visita que sua família recebe, durante sua infância, de um tio “quase veado” (quase porque sexualmente ativo com os outros veados – “ele come os veados dele lá”, segundo o pai de Pedro). O “quase veado” chega para a visita acompanhado de uma gaiola com um canário premiado. E numa casa com um gato que até então só comia sardinha crua num prato rachado num canto da cozinha. Até então.

A sequência que segue ao assassinato do canário pelo gato é exemplar do poder narrativo de Elvira:

“O tio quase veado se levantou, mudo, deixando o cigarro cair chão. Pedro também se levantou, e nesta hora vinha chegando a mãe de Pedro com o café. Ficaram todos parados, o gato no centro, até que o tio não bicha saiu, mudo, sem se despedir, e o cigarro ficou lá no chão encerado, queimando sem pressa, e a mãe ficou segurando o café, também quente, e, por uns instantes, ficaram essas duas fumaças se mexendo lentas, na sala. Pedro, que já havia ouvido um dia a mãe dizer que fora o diabo a se apossar do espírito do cunhado, achou que as duas fumaças eram o que restara da presença do Belzebu.”

Ainda não há planos de reeditar Sete anos e um dia. A Companhia das Letras relança em maio uma nova edição, com posfácio inédito, do romance A um passo, de 2004. Mas, nesse ano em que lembramos também os 30 anos da última Constituição, a reedição dessa estreia de Elvira talvez nos ajudasse a entender o porquê de termos chegado até aqui. Até aqui assim: entre sustos e reciclagens de preconceitos, num eterno protelar. Fazendo hora com a História, da qual vamos nos afastando, indo, indo… E pronto.

 

* Schneider Carpeggiani é doutor em Teoria Literária (UFPE) e editor do Pernambuco