Coisas que os homens não entendem – críticas

ELVIRA VIGNA: COISAS QUE OS HOMENS NÃO ENTENDEM (Brasil, Companhia das Letras, 2002, 160p.; Suécia, ed. Tranan, 2005, 220p) – uma seleção de críticas publicadas na imprensa, entrevistas, palestras e monografias acadêmicas sobre o livro

 

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Beatriz Resende – Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 16/03/02

Há escritoras e escritoras – Questão da identidade feminina nas obras de Elvira Vigna e Simone Ostrowski

Se já foi politicamente importante criar um Dia Internacional da Mulher, marcado por protestos, atos de solidariedade e de luta pelos direitos humanos, entre nós, as sem véus, a data provoca hoje uma atitude um tanto dúbia. Por um lado, cumplicidade através de sorrisos e e-mails, mas, por outro, certa impaciência. As que lidam com a data através do humor são, em geral, as mais bem-sucedidas, ainda que raras. Se aproveitamos para reiterar as campanhas contra a opressão que chega a ameaçar a vida de ”irmãs” submetidas ao autoritarismo de regimes políticos e/ou religiosos, sentimos também algum incômodo, como se saíssemos à rua com uma roupa fora de moda.
Parece-me que este pouco à vontade surge, principalmente, diante da generalização totalizante com que o termo mulher vai sendo absorvido por campanhas publicitárias ou qualquer outra forma de expressão dirigida ao grande público que pretenda atingir a minoria que, por aqui, é numericamente maioria.
Aí temos desde ”desejos de mulher”, ”bolsa de mulher”, ”coisa de mulher” até ”candidata de mulher”. E percebemos o quanto tais generalizações podem ser perigosas em vez de unificadoras.
Ética e sobrevivência – Apresentando Critical passions, Mary Louise Pratt e Kathleen Newman, editoras deste último livro de Jean Franco, apontam, no trabalho da ensaísta, dois conceitos fundamentais: ética e sobrevivência. Ética proposta não como uma forma fraca de moralidade, mas como estrutura de pensamento e valores ligada à prática e ”capaz de exercer uma força epistemológica contra a extrema instrumentalidade dos regimes”. Sobrevivência não como o estado mínimo, mas como categoria analítica e existencial surgida de confrontos entre autoritarismo e sistema de gênero. Através da chamada ”análise de gênero” do autoritarismo, sobrevivência adquire sentido, para Jean Franco, como categoria existencial, analítica e ética. Segundo a dupla de editoras, torna-se então necessário redefinir sobrevivência em termos positivos: sobrevivência versus desintegração social, versus etnocídio, versus vitimização, morte, passividade.
Pensando nesta oposição entre sobrevivência/ética e vitimização/passividade e tentando o humor, eu poderia afirmar que, mais diferente de uma mulher do que outra mulher, somente um homem.
É assim com consumidoras, com amantes, com eleitoras ou candidatas e com escritoras. Foi assim que me senti diante de dois romances escritos por mulheres: Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, e A arte secreta do desejo, de Simone Ostrowski.
Os dois romances têm como personagem principal uma mulher. No romance de Elvira Vigna esta personagem é a narradora, sujeito portanto. Em Simone Ostrowski não, há o tradicional narrador onisciente, sabe tudo. As duas mulheres se deslocam espacialmente e, nessa viagem, buscam mais que uma mudança de lugar, buscam uma compreensão de sua identidade. Provavelmente por haver estes pontos iniciais em comum, as duas obras revelam-se tão profundamente diferentes.
Diferenças – A principal diferença diz respeito justamente à questão da identidade . Elvira Vigna cria um romance em que se percebe que a identidade contemporânea é plural, contraditória por vezes, e que o sujeito – da vida, do romance, da experiência cultural – pode assumir identidades diferentes em momentos diferentes. Já a personagem de Simone Ostrowski quer convencer o leitor de que existem indivíduos (neste caso uma jovem mulher) dotados de razão e sensibilidade reunidas num núcleo contínuo e imutável, detentores de critérios de valores universais.
Coisas que os homens não entendem é um livro arrojado, com uma técnica de condução da narrativa tão elaborada quanto pouco arrogante. A escrita que não teme o fragmentário também não se apóia, em momento algum, nos ”efeitos especiais” que andaram perturbando a ficção contemporânea. A mesma coloquialidade que aproxima o leitor da história contada traz para a narrativa o repertório de referências da autora desde o título, saído de poema de Camões – ”coisas do mar, coisas que os homens não entendem” – mas que se faz familiar ao ser ressemantizado de forma a evocar a oposição homem/mulher.
Nita, a narradora personagem, sai de Nova Iorque, onde mora com a namorada Eva, garçonete de um Brooklyn empobrecido e de mau gosto, e volta ao Brasil, em viagem que deve ser rápida, sob desculpa de trabalho, mas na verdade em busca de algum tipo de acerto de contas. No Rio, divide o pouco tempo de que dispõe entre o sujo apartamento de temporada emprestado e as ruas de Santa Teresa. Essa Santa Teresa, minuciosamente descrita, é a Santa Teresa decadente, de uma classe média rebaixada aos limites mínimos, vizinha do narcotráfico. Mas Nita é artista gráfica, seu olhar, sua sensibilidade vão revelando sem mediadores as seduções dos becos e das pessoas.
O acerto de contas que marca esta volta passa pela morte de Lio, o marido da Lia, assassinado ao abrir a porta do apartamento em Santa Teresa. Lio é o ex-traficante que decidira ”ano que vem vou ficar pobre” para poder se casar com a Lia, na verdade Suélia. Mas a violência está na história como está no nosso cotidiano carioca, brasileiro. Receber um bala no peito é questão de acaso.
Plano B – A viagem de Nita, mochileira, viajando com três blusas boas e uns cacarecos, é uma espécie de ”plano B” para a própria vida, na busca de uma independência que a arrasta por hotéis baratos, televisões sem som, bares e caminhadas sem muito destino pelas ruas do centro do Rio tanto como pelas de Nova Iorque. ”Eu sempre acho que minha vida eu mesma invento, eu sempre acho que eu ainda não cheguei”. Se o pretexto é descolar ”alguma picaretagem com a festa dos 500 anos”, mostrando bem que ”uma coisa eu aprendi nesse tempo em que passei entre os gringos e foi não discutir com dinheiro, se você quer, você pega, se não quer não enche o saco” , o sentido da volta vai sendo descoberto na própria viagem. Não deixou Nova Iorque por causa da ”mulher cor-de-rosa e rebolativa” e nem vai ficar por causa do amor de Nando: ”não foi esse o motivo de nada, imagine, um homem, tão pouco”. Porque não procura termina achando. Porque afirma que ”só conseguimos enxergar o que já vimos”, o encontro é um reencontro. Reencontros com Nando e com Nita, ela mesma.
A arte secreta do desejo lembra, várias vezes, Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes. Mas lembra pelo contraste. Enquanto Roland Barthes, reconstruindo o discurso que afirma ser ”de uma extrema solidão”, se utiliza de um repertório de citações e referências literárias e filosóficas para criar uma composição absolutamente original, num trânsito entre a tradição e inovação antecipadores das criações pós-modernas, o romance de Simone Ostrowski não passa de uma exibição gratuita (será gratuita mesmo?) de erudição. Ou melhor, de conhecimentos que parecem sair dos Gênios da pintura e outras obras de divulgação.
Pretensão – Obras mais autênticas e sinceras que o exercício de pedantismo deste romance dedicado a São Judas Tadeu em que o leitor é submetido a breves lições como: ”Segundo Platão, aquilo que não se tem, aquilo que não se é, eis os objetos do desejo e do amor.” Ou, mais adiante: ”Vamos ver suas origens. Vindo do grego metamorphosis, assinalava a transformação de um ser em um outro, tão habitual na mitologia.” Pois é assim mesmo que fala a personagem principal, Kandinsky, historiadora da arte e conservadora de um grande museu, que deixa a Itália, vem para o Brasil e se envolve com o blasé Goya, mistura de marchand com playboy e o encanta em momentos tão espantosos como este: ”Por exemplo, existe um ponto na teologia, explicou Kandisnsky, bastante interessante. É o que se chama de apofaticismo.” Mas, na verdade, o que quer é vingar a mamãezinha, seduzida e abandonada, com dois filhos para criar num palacete renascentista qualquer.
Pensando bem, se o leitor é submetido a tão maçantes lições e louvações à alta cultura – ”Eu não gosto de inconsistências, só a obra autêntica me interessa” – a culpa é toda dele. Afinal, Antonio Olinto avisara, no prefácio, que se trata de ”romance de um misticismo intenso, mas também, lírico”.
Chegamos à conclusão de que Paulo Coelho não é para qualquer um. Mais uma página e faço a defesa veemente da candidatura do mago à ABL.
Para piorar a situação, ao publicar este manual de citações para encontros românticos, a simpática editora Revan parece ter despedido o revisor e a linguagem da autora, em sua opção pelo registro erudito, ignora as mais básicas regras de colocação de pronomes ou regência verbal.
Acabando com quem merece a atenção do leitor, faço uma ressalva a Coisas que os homens não entendem. Pessoalmente, preferiria que o romance terminasse com a radicalidade com que se inicia, mas isso não chega a ser um problema. Talvez, neste ”Brasil de bunda solta e ritmado, o Brasil da música americana”, não dê ainda para contar a história dos índios de Campo Grande, ”índios prostitutos, de michê, à noite, na praça” nem o romance da artista brasileira com a garçonete americana. Talvez ainda seja necessário afirmar muita igualdade para se indagar sobre as diferenças. Afinal, como diz a narradora em determinado momento: ”A guerra não acabou, É só uma trégua. Assinado Primo Levi.’

Carlos Graieb – Revista Veja, seção Veja Recomenda, 20/02/02

Há vezes em que um título é apenas um título. Em outras ocasiões, ele é uma boa chave de interpretação. Coisas que os homens não entendempertence ao segundo caso. Ele ajuda o leitor a perceber que o que está em jogo no quarto romance da carioca Elvira Vigna é a questão da identidade feminina. E o lembrete é importante porque essa questão de identidade, ainda que central, aparece de maneira encoberta no texto.
Ostensivamente, Coisas que os homens não entendem gira em torno de uma morte. Ao voltar para casa uma tarde, Aureliano é atingido por um tiro e morre estirado na escada. O disparo será creditado a um assaltante. Mas o fato é que ele foi feito por uma das pessoas que estavam na casa: a mulher e o filho de Aureliano, seu pai e uma amiga da família – Nita, que é também a narradora. De volta ao Brasil depois de uma temporada nos Estados Unidos, as circunstâncias desse assassinato são um assunto que persegue Nita, e que ela tenta abordar de várias perspectivas.
A verdade, porém é que a morte de Aureliano é apenas um elemento do enredo. Aquilo que realmente importa é a caracterização de Nita. Bissexual, desprovida de quaisquer laços familiares, profissionais ou afetivos firmes, estrangeira em Nova York e desenraizada no Brasil, ela é uma mulher de meia-idade que não se encaixa em nenhum dos papéis que mulheres de meia-idade costumam ocupar – na sociedade e na literatura. Impaciente com as convenções, exasperada com as “coisas que os homens não entendem”, é o enigma de como construir sua liberdade o que realmente interessa a ela. E é esse “enigma” que Elvira Vigna de fato tenta explorar em seu livro. Fragmentário, opaco, às vezes até mesmo cansativo, Coisas que os homens não entendem não é um livro de leitura envolvente. Nita, porém, é seu trunfo: um dos personagens femininos mais inusitados da ficção brasileira recente.

Patrícia Rocha – Zero Hora, segundo caderno, 20/03/02

Coisas que os homens não entendem, romance de Elvira Vigna, não é uma versão brasileira de best-sellers à moda Bridget Jones nem um desabafo feminista.
É a história de um crime e de uma dor contados por uma mulher de meia-idade, Nita, embora em nada se pareça com uma trama de suspense. O mistério revelado em uma mala com três blusas boas, muitas lembranças e uma conversa são as coisas do passado de Nita que os homens de sua vida não entendiam. Nem ela.
No início do livro, tudo o que o leitor consegue descobrir sobre essa mulher intrigante é que a fotógrafa brasileira havia encontrado refúgio e o ombro de outra mulher em Nova York. E que finalmente era hora de viajar ou voltar ao Brasil. Ela não saberia qual o verbo certo a usar, porque temia chegadas e decisões definitivas. Mas Nita infim chega ao Rio de Janeiro e se aproxima de seu destino e de suas lembranças, o tradicional bairro de Santa Tereza. Lá, havia morrido Aureliano, o Lia, no momento em que chegou a seu apartamento, onde o aguardavam a mulher, o pai, o filho e a amiga da família, Nita.
O tiro disparado em Aureliano vai sendo reconstituido aos poucos, pelas lembranças e ironias da personagem. É quando o leitor descobre que ela teve parte na morte de Lia, um criminoso regenerado, filho de Barbosa e irmão de Nando. E que Barbosa era um antigo caso de Nita, que nunca pôde ser chamado de amor, e Nando, o único homem que sempre esteve ao lado da protagonista e provavelmente quem mais a compreendia.
Nesse emaranhado, Nita descobre a si mesma, e finalmente revela o que há por trás de seu olhar mórbido e seco ao descrever pessoas e lugares e ao assistir televisão sem som. Mas a fotógrafa tem somente três blusas na mala, e com tão pouca roupa e tão poucas certeza, nenhuma chegada pode ser para sempre.
No romance, a jornalista carioca Elvira Vigna desarma o leitor a cada capítulo com uma trama original e envolvente. O leitor se envolve nas memórias e contradições de Nita, por vezes se impacienta com seu tom mordaz, e é incitado a acompanhá-la até o fim das 160 páginas. O crime se desvenda muito antes disso, mas o grande desafio do livro não é descobrir o assassino e sim entender Nita. E seus homens.
Elvira formou-se em literatura pela Universidade de Nancy, na França, e tornou-se mestre em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela assina uma coluna mensal no jornal O estado de São Paulo e lançou três títulos anteriores – O assassinato de Bebê Martê, Às seis em ponto e O jogo dos limites (juvenil).

 

Carlos Herculano Lopes – Estado de Minas, caderno Pensar, 23/03/02

O centro narrativo de Coisas que os homens não entendem, novo romance de Elvira Vigna, carioca que nasceu em 1947, passa pela personagem Nita, uma fotógrafa que vive em Nova York, onde divide um apartamento e a intimidade com uma modelo. Só que, de um dia para o outro, Nita resolve voltar ao Rio de Janeiro, com a desculpa de que faria uma viagem rápida, de tabalho, para assim despistar a amiga. Mas o que ela quer mesmo – e à medida que vamos nos aprofundando na leitura, isto também vai se tornando claro – é fazer uma espécie de acerto de contas com o passado.
Este volta com força quando Nita, já no Rio, vagando pelo bairro de Santa Teresa, com seus velhos casarões e ruas íngremes, tenta entender o assassinato de Aureliano, o Lia, um ex-traficante que um dia, nandando contra a maré, resolveu que queria ser pobre. Como a morte de Lia, que também é casado com a Lia, cujo nome de fato é Suélia, está no epicentro do romance, Elvira Vigna vai levando o leitor, aos poucos, a não só ir se embrenhando na obra, como também a querer saber o mais rápido possível o desfecho do romance. Por trás de tudo está Nando, irmão do morto, que não tem interesse em ver o crime esclarecido, “pois será melhor para todos”. Ele não se importa, inclusive, em dar grana a alguns policiais, para que as investigações não andem.
O livro de Elvira Vigna, que se formou em literatura pela Universidade de Nancy, e é autora, entre outros, de O assasinato de Bebê Martê e Às seis em ponto, no entanto, não tem nada a ver com os promances policiais clássicos, com aquele tradicional e esperado princípio, meio e fim. Não é este, também, o objetivo da autora, cujo interesse principal é levar o leitor até o último instante a participar com ela da trama, que seduz e intriga ao mesmo tempo. E mais: a descobrir as normas de um jogo cujas peças, nem sempre convencionais, podem ou não se encaixar.

 

Ligia Cademartori – Correio Braziliense, caderno Pensar, 31/03/02

Um livro de Elvira Vigna é para se ler devagar, sem risco de perder nada. A linguagem, no primeiro momento, parece simples e informal. Mas logo se percebe que no texto não há nada fora de lugar. A autora escreve como se macerasse cada palavra, para conhecê-la no íntimo, antes de liberá-la no fluxo do narrado. Nenhuma a mais nem a menos. É preciso conhecer e trabalhar muito a língua para escrever assim. Simplicidade? Não, estilo. Apurado, meticuloso, sutil. Mas nunca pedante.
Pouca gente do ramo consegue isso. Comprove na leitura de Coisas que os Homens não Entendem. Nada da tal escrita espontânea, de quem acredita demais no próprio talento e considera acabado o que ainda está em processo. Ou de seu contrário, os pretensos experimentalismos, não raro apenas contorções formais que pretendem efeitos que não alcançam. Tampouco se trata daquela escrita asséptica de quem morre de medo de emocionar e esquece por que, afinal, se abre um livro de ficção.
No romance de Elvira Vigna, a precisão da linguagem e o equilíbrio artesanal da forma encaminham a descoberta e o exame dos meandros de gentes e coisas, prestam-se à investigação de fatos e sentimentos contraditórios.
Há uma morte, uma saída repentina do país e um retorno em busca de algo que Nita, a protagonista, vai descobrir, passo a passo e com esforço, em parceria com o leitor. A maneira como morreu um homem, no pequeno apartamento do bairro Santa Teresa, é lembrança recorrente mas fragmentada. Precisa ser esclarecida. E, com ela, a identidade da narradora e dos que a cercavam na época, em teia de cumplicidades silenciosas.
O tempo na narrativa é tratado de modo impreciso, frontal e recusa à linearidade e à confiança no que guardou a memória. Narra-se no subjuntivo, o modo da incerteza. Um dos recursos desse processo é a repetição de frases que já foram ditas. Algo permanece na consciência e, no entanto, não é claro. Escapa. Resiste. E volta a desafiar. Mas a cada vez que retorna a ele, Nita consegue remover uma camada fina do enigma. Precisa continuar a fazê-lo para que o mistério se desfaça: ”Percebi que esse contar para ver se entendia o que ele próprio contava era um pouco o que eu fazia, sem parar, me contando, sem parar, a mesma história.”
Ela volta de uma sombria Nova York, onde trabalha como fotógrafa, para se pôr diante de um edifício decadente de Santa Teresa. Nele se espreme, em cômodos estreitos, uma classe média empobrecida, vizinha do narcotráfico. E, então, é como se uma lente invadisse o apartamento de subsolo, onde a morte ocorreu, para esquadrinhar minuciosamente aquilo que se entrega fácil à vista e também minúcias em que ninguém repara, pois não despertam interesse. No destaque de pormenores, uma arte de olhar, exercício de entender. A percepção e a explicação dos detalhes é parte do fazer literário dessa escritora para quem uma toalha de xadrez vermelha e branca não é só uma toalha de xadrez vermelha e branca. É um simulacro: o que as pessoas que a usam julgam que significa e foi a razão da escolha.
Nada é estável nem inequívoco nesse mundo romanesco: ”A única coisa real sendo sempre a coisa inventada, eu sei disso.”
Não se entenda pelo título, extraído de verso de Camões, que a perspectiva da narração exclui o mundo masculino. O terreno não é o das dicotomias. Nem incorre a autora nos desconcertantes estereótipos de relação amorosa presentes, hoje, em boa parte da literatura dita feminina. Lugar-comum e gosto folhetinesco nela não têm vez. A protagonista não é figura fácil. Na contramão da tendência conservadora de muitas autoras recentes, Coisas que os Homens não Entendem vem afirmar a pluralidade do feminino e seu transbordamento.

 

André Luis Mansur – O Globo, caderno Prosa & Verso, 04/05/02

Tudo começa numa Nova York onde as pessoas mal se falam e continua num bairro perdido no passado, a Santa Teresa boêmia de sempre, dos casarões antigos e das ruas de paralelepípedos. Num dos casarões houve um crime, contado de várias formas pela protagonista, que está sempre em busca de “um começo, um ponto de partida” e nunca sabe se suas viagens são de ida ou de volta.
Antes que se pense que este é um livro dirigido apenas às mulheres, como poderia sugerir o título, é preciso admitir que muitas das observações da fotógrafa Nita, que conta a história de um modo todo pessoal, sem obedecer aos cerimoniosos “começo, meio e fim”, serão entendidas de uma forma toda particular pelo público feminino. Mas o livro não discrimina ninguém.
Os detalhes são acrescentados aos poucos e dão a impressão de que tudo o que foi dito pode mudar completamente de sentido entre um parágrafo e outro. Parágrafos, aliás, muitas vezes separados por pequenas lamentações, observações críticas ou frases de impacto.
Com uma prosa leve e atraente, Elvira Vigna desvenda o sóbrio irritante das declarações de quem não tem o que falar na hora da morte (“para morrer basta estar vivo, dessa vida nada se leva, mais vale a nossa saúde…”) e descreve um domingo ensolarado e entediante, véspera de um exame de próstata às sete da manhã, como o pior dos infernos.
Um elemento estranho na narrativa é a extensa descrição do que aconteceu durante o noticiário de TV, visto de um apartamento de temporada numa noite solitária. Além da linguagem nada literária da decupagem de um programa de TV, o tom excessivamente irônico destoa do restante do texto, que muitas vezes é de uma informalidade típica das mesas de bar que retrata: “E que a verdade é que o fulano tinha tido um terrível piriri por causa de uma rabada na casa do sicrano, aonde ele fora sem avisar a mulher, porque ele estava de saco cheio da mulher”.
Na memória de Nita, que iniciou a carreira no antigo Correio da Manhã, o crime de Santa Teresa funciona como referência para uma vida resgatada nos aparelhos de TV sempre sem som, nos apartamentos vazios e nas dificuldades quase intransponíveis de relacionamento entre as pessoas. Uma busca constante por afeto, por entendimento, que tanto pode se dar no calçadão da orla, em Santa Teresa, no Acre ou na fria Nova York.
Os momentos felizes não duram muito e parecem cercados de uma tragédia iminente. O ritmo é dinâmico como as reviravoltas na vida da protagonista, que muitas vezes parece resumir seu cotidiano como se estivesse escrevendo um irônico diário feito às pressas: “Chegou de manhã bem cedo, fomos para o hotel, trepamos e depois saímos. Andamos, falamos bobagens, comemos porcaria”. A própria descrição do sexo deixa de lado qualquer tipo de lirismo e parece justificar o título do livro: “eu notando pela primeira vez a existência de centímetros quadrados de mim que antes me eram insuspeitados e que, para minha surpresa, pareciam ser importantíssimos para ele”.

 


 

 

palestra realizada na embaixada do Brasil em Lisboa em 17/01/2012;
a mesma palestra, em outra versão, já havia sido apresentada no evento Viagem Literária, organizado pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, entre os dias 17 e 20 de outubro de 2011, nas cidades de Bastos, Getulina, Pelápolis, Pacaembu e Tupi Paulista
;
a palestra de Lisboa foi publicada pela revista Navegações, da PUC-RS, volume 5, # 2 (jul-dez. 2012), pp. 228-233
.

Não estou vendendo nada.
Não tenho desculpa mercadológica para estar aqui hoje. Não tenho livros editados em Portugal nem sequer estou lançando obra nova no Brasil. Vim porque pedi. Pedi à professora Vânia Chaves, da Universidade de Lisboa, a oportunidade de discutir com vocês um aspecto do meu “Coisas que os homens não entendem” que não foi visto nas várias análises que o livro mereceu da academia e crítica brasileiras. Nele, me aproprio de versos de “Os Lusíadas”. Por apropriar quero dizer que os tomo e os ponho, como são, sem aspas ou quaisquer indicações da famosa autoria, em meio às minhas frases comuns. Quem conhece a obra camoniana irá logo identificar o ritmo, a quebrada na sexta sílaba, o vocabulário. Quem não, pensará que o talento é só meu.
Faço isso não porque tenha especial deferência por nacionalismos e tradições ou por estar a me empenhar em recuperações de valores há muito desaparecidos. Não. Acho mesmo que tal atitude, em mim ou outrem, seria descabida e mesmo reacionária. Também não pretendia, ao escrever o livro dessa forma, inseri-lo a fórceps em uma linhagem nobre dentro de algo chamado literatura lusófona, até porque me sinto no mínimo hesitante com a classificação usual que põe no mesmo saco o que é escrito no Brasil, em Portugal e em ex-colônias africanas. O que me move é o assunto. A viagem. E mais precisamente, a volta da viagem.
E isso porque viagens têm a ver com minha vida desde sempre. Jornalista, e depois como escritora, viajo sempre e muito. E, mais do que isso, viagens são um tipo de metáfora para o que faço: escrever. Digo, escrever como escrevo. Pois primeiro vivo, depois conto. Sempre.
Também consigo construir um eixo diacrônico em que viagens e, principalmente, voltas de viagens, se inserem à perfeição na formação, sempre em andamento e às cambulhadas, das condições sociais em que produzo meus textos. Quero dizer: o Brasil é feito e refeito de gentes que vêm e vão. Faço aqui a ressalva necessária de que eixos diacrônicos estão lá para servir-nos. Se precisamos de um determinado, sempre será possível puxá-lo, e ao seu contrário também. Mas, Brasil a partir das gentes que se movem, eis uma diacronia que me parece das mais visíveis.
Poderia, é claro, ter escolhido outro patrono. Afinal, o tema é comum na literatura universal. E aí entram gostos pessoais. Ulisses, por exemplo, seria uma alternativa. Mas Ulisses me parece que viaja para amansar-se. Amarra-se, resiste ao perigo (aqui, como na maioria das vezes, apenas um sinônimo para “novo”). E volta. Na verdade vai só para voltar. Seu destino final é Ítaca, que é também seu ponto de partida, para sempre perdido. O contrário de Camões. Que vai, como um louco, a enfrentar ira de deuses e monstros, em mais de oito mil versos entusiasmados e entusiasmantes. E volta à contragosto, volta porque não tem outro jeito, em apenas catorze.
São eles:

“Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.”
(Canto X, 143/144)

Não são catorze versos retumbantes. Pelo contrário. Mais para mornos. Nada de muito, ou mesmo pouco, heroico acontece. Aliás, nada acontece. Além disso, tais versos murchos sequer fecham a obra. Depois deles, Camões ainda leva boas estrofes a se queixar da vida em um dos trechos mais célebres da sua obra, aquele que começa com o “Não mais, Musa, não mais”.
Sou escritora e sei bem que aquilo que nos é difícil o escrevemos depressa. Quando a frase sai arrancada, ela também é curta. A dificuldade de Os Lusíadas é a volta. A dificuldade de Camões não é viver aventuras. É, na volta, falar delas a quem não as viveu.
É por isso que escolhi esta estrofe para titular meu livro:

“Contar-te longamente as perigosas
Coisas do mar, que os homens não entendem:
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.”
(Canto V, 16)

Noites tenebrosas e bramidos de trovões que o mundo fendem, não digo que os tiremos de letra. Mas nem se comparam à dificuldade de, tendo vivido algo de muito novo, fazer com que outros (e nesse “outros” estão, inclusive, nós mesmos ou, pelo menos, partes de nós), acreditem, aceitem e integrem o novo vivido.
“Coisas que os homens não entendem” relata minha experiência com viagens. Com uma delas, especificamente. Minha estada por dois anos em Nova York. No livro, uma fotógrafa de jornal popular, uma mulher não muito culta, sai do Brasil achando que, com sorte, não mais volta. Razões profissionais a fazem voltar. No início do romance, ela conversa, em Nova York, com uma jovem modelo que se tornará depois sua amante (Nita, a fotógrafa que narra a história, é bissexual). Na cena, ela fala da vela redonda que, no tempo de Camões e das grandes viagens portuguesas, aumenta a possibilidade de os navios regressarem ao seu porto de partida. Essa vela, capaz de trabalhar mesmo com ventos contrários, impede que naus fiquem presas em calmarias de alto mar ou sejam impelidas a costas hostis, não planejadas. Chama-se vela redonda, mas na verdade é uma vela quadrada.
Cito o trecho:

“Mas agora, porque preciso começar, tento lembrar mais uma vez da cara de Eva dizendo hã, hã e o que me vem não sei mais se é o que era a cara dela ou se sou eu, montando uma cara, restauração de pintura renascentista porque isto eu sei: ela era gorda e rosa, renascentista. E no entanto, do Brooklyn. Eu disse a ela que  adorava o século XVI, ela respondeu hã, hã.
Eu tenho vontade de rir quando lembro o hã, hã e o olhar em branco. Século XVI? Eu estava falando em algarismos romanos para uma americana do Brooklyn. Eu, para variar, estava de sacanagem.
Na época eu fazia uma pesquisa nas bibliotecas americanas já pensando em aproveitá-la, depois, para alguma picaretagem da festa dos 500 Anos, quem não teve alguma picaretagem com os 500 Anos? Bem, eu tive. Naquele primeiro dia com Eva falei muito, estava mesmo gostando de chamá-la de burra sem usar a palavra burra mas seus sinônimos: astrolábios, monções e genoveses: mais hãs, hãs. Quando cansei dei uma mordida, não nela, ainda não nela, mas no sanduiche com cebola.
E aí eu disse, ih, cebola, fingindo que não sabia que tinha cebola no sanduíche que eu comia todos os dias, igual todos os dias. Ela diz que também não gosta de cebola e eu continuo meu jogo: eu gosto.
Eu gosto, disse. E completei:
‘O problema é o hálito’,  e dei uma baforada na sua cara.
Ela ri desarvorada.  Eu gosto, gostava, quando ela ficava desarvorada, olhando em torno, não foi tudo sacanagem, teve coisas de que eu gostei.
E continuei, naquele primeiro dia, implacável como sempre sou e fui:
‘A vela redonda.’
Ela me dá outro olhar em branco e eu explico, dulcíssima, que a vela redonda na verdade era quadrada, coisa de português, como será que se diz coisa de português em inglês.
Ela pergunta o que eu vou fazer de noite.
Eu ia beber, e porque tanto fazia, termino o nosso joguinho: se ela quer ir. Quer. Então vá se arrumar. E ela levanta, fechando pudica o roupão branco.”
(p. 8-9)

Separei este trecho por causa da expressão “coisa de português”. Caçoar de portugueses é, como eu e vocês sabemos, um traço bem mais geral da cultura brasileira, bem mais do que uma frase a ser lida em um perfilzinho de personagem de livro, que, aliás, faz igual em sua própria estrutura narrativa. Meu livro também não respeita, à primeira vista, o português Camões, já que lhe nega autoria de alguns de seus versos. Caçoamos de portugueses, que são um dos nossos principais fluxos de formação cultural. Caçoamos não só de portugueses. Não temos respeito por herói algum, elemento fundante, mito de origem. Por nada. Para o bem e para o mal. Posso dar um exemplo sem portugueses à vista, embora igualmente formador. Mário de Andrade. Encantado pela modernidade que lhe vinha da Europa, foi um dos principais nomes da Semana de Arte Moderna. Certo? Mais ou menos. Isso foi em uma primeira fase. Em uma segunda, preocupado com o impacto que tais novidades causariam em práticas culturais do Brasil profundo, dedicou-se a recolher e pesquisar tais práticas, em um esforço ao qual até hoje agradecemos. Sem ele, danças e poesias populares não teriam sido recolhidas da maneira como o foram. Nessa segunda fase, portanto já com aguda sensação de que haveria algo de “brasileiro”, de arcaico, coletivo, a ser preservado e contraposto à estética do modernismo importado, Mário de Andrade também escreveu o que muitos consideram nosso único mito fundante, o romance Macunaíma. Mas, macunaimamente, Mário de Andrade não inventou Macunaíma. Ele o roubou de outrem. Trata-se de personagem mítico de uma tribo de Roraima. Aliás, o acento tônico correto da palavra Macunaíma é a prova do crime. O nome deveria ser lido como em Roraima, com ênfase no “ã”. Não no “i”.
No livro Macunaíma, o herói de Mário de Andrade perde uma pedra mágica, o muiraquitã, por se negar a cumprir um destino já traçado. A deusa Vei tinha lhe dito para escolher uma das suas três filhas, com a condição de que se casasse e à moça escolhida fosse fiel. Macunaíma engana a deusa, transa com as três, não casa com moça alguma. E perde o muiraquitã, uma espécie de presente de núpcias antecipado da ex-futura sogra. Aí se inicia sua viagem, uma viagem para recuperar a pedra e a sorte, para buscar o novo, sair de situações pré-estabelecidas. Macunaíma vai para São Paulo. Anda de ônibus, se mete em confusões no mercado de arte, transa com mais uma meia dúzia, foge de quem o quer prender.
E aí volta para seu porto de partida, a Amazônia. Tanto quanto em Camões, essa volta não é gloriosa.
Mário de Andrade mata seu herói-não heroico. Em dia de muito calor, ele se atira em um lago que sabe estar infestado por piranhas. E é comido pelas piranhas. “Piranhas”, em 1928 (data da publicação do livro) tanto quanto hoje, é palavra dúbia. Pode se referir a peixes ou putas, à escolha.
Mais um exemplo. Machado de Assis. Nosso autor maior é outro a repetir o mesmo padrão de recusa a construções heroicas. Ele caçoa de seus personagens da primeira à última página em tudo que escreveu. Dou um exemplo, o Pestana de “Um homem célebre” que, por desejar ser célebre, fazer algo grandioso, não é de jeito algum aplaudido ou louvado, modelo a ser seguido. Rimos dele:

“Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem método.”
(p. 497)

Camões não tinha pouco apreço por seus personagens, muito pelo contrário. Mas tinha pouco apreço pelo resultado possível daquilo que ali estava sendo escrito. Ele, tanto quanto Mário de Andrade, não achou que inserir o novo no arcaico – ou vice-versa – fosse algo que estivesse de fato a seu alcance. Já para Machado, a questão nem se coloca, já que o novo não é lá muito novo e é, com certeza, risível. A técnica que impede o estabelecimento da espetacularização da narrativa, no entanto, é a mesma para os três.
Machado, tanto quanto Camões, introduz excursos que quebram, fragilizam e questionam a narrativa principal. Nele, não se trata de se queixar, como em Camões, de uma adivinhada (mal adivinhada, por sinal, pois passam-se 500 anos e cá estamos a falar dele) falta de apoio de futuros leitores, até porque Machado foi popular já em vida. Mas ele interrompe seus contos e romances para lembrar que o leitor é exatamente isso, leitor. E que, portanto, tudo aquilo é invenção ficcional de quem, como o Brás Cubas, “não tem nada a perder”.
Já Mário de Andrade muda a cada momento de registro narrativo. São cinco. 1) A do mito – com personagens-deuses; 2) a romanesca – com personagens humanos, mas que detêm poderes especiais, mágicos; 3) a chamada “imitativa elevada”, típica das epopeias, incluída aí a camoniana, em que há grandes homens, que se não são deuses nem têm poderes mágicos, representam monumentos de moral e coragem; 4) a “imitativa baixa”, que é uma crônica realista, cotidiana, de personagens comuns; e, finalmente, 5) a irônica, com o autor mostrando seu personagem em situações ridículas, decadentes e malsucedidas. Ao mudar de registro como quem muda de cenário, Mário de Andrade se apresenta ele mesmo como autor daquilo que faz. Digo, põe a presença física dele, como autor, no seu texto. E não permite, tanto quanto Camões e Machado, a imersão do leitor na história. É a mesma desconstrução heroica de que eu falava no início, na medida que nenhuma tragédia ou grande momento dramático resiste à entrada do seu autor em cena a apontar que aquilo é um grande momento dramático, e ficcionalizado.
Nesse não se levar muito a sério ou não se sobrevalorizar, não se achar o máximo, é onde eu entro. Eu e muitos de meus companheiros, escritores e criadores de hoje. Antes de sair do Brasil para esta minha viagem, recebi um livrinho de uma moça que não conheço pessoalmente. Ela me manda seus livros há algum tempo. Este último a chegar, eu o trouxe comigo. Quis mostrar a vocês o que me pareceu um bom exemplo de excurso camoniano em livro atual. Deixei o exemplar para a biblioteca da universidade. A autora se chama Luci Collin e ela conta uma história. O livro é o “Com que se pode jogar”. E lá pelo meio tem o seguinte parágrafo:

“Me vejo andando um passo rápido que eu nem precisava me vejo tomando decisões e dizendo frases frases ridículas e comendo e bebendo pães e águas que nem gosto e declamando parágrafos frios parágrafos fictícios parágrafos inteiros que parece eu sempre soube de cor. E fazendo movimentos tristes com o corpo e pensando em multidões marchando dançando correndo fugindo e eu querendo ser.”
(p. 36)

Ao incluir em uma suposta autoria minha alguns versos de Camões, não o estou, na verdade, desrespeitando. À la brasileira, o incluo desta maneira porque não tenho melhor forma de mostrar o que tanto me surpreende em sua leitura, e me surpreende a cada vez que pego Os Lusíadas para folhear, como fiz no preparo desta palestra. O que me surpreende é sua absurda atualidade. Camões é, ou poderia ser lido, como um autor contemporâneo. Ouso dizer que o próprio Camões, a justo título o nome maior das letras lusitanas, ele próprio me permite agir assim. Ao não se ver herói de seu próprio texto (e poderia falar aqui de seus múltiplos e encavalados narradores, o que também denota uma autoria “compartilhada”, includente, não autoritária, mas isso fica para uma próxima palestra), Camões tem o que a arte – qualquer uma – apresenta hoje de melhor: a não fronteira entre autor-leitor, ficção-não ficção, literatura-testemunho do vivido. Ao contrário de um modernismo de que Mário de Andrade desconfiou, e Machado caçoou, e que hoje se mostra, com suas certezas e empáfia, tão a nu, a contemporaneidade, aí incluída a camoniana, traz o que já sabíamos ao lê-lo: somos frágeis, muitos, e não temos certeza de nada. E, em lidando com a produção de bens simbólicos – que é o que nos interessa aqui hoje – alguns dos processos pré-modernos, preservados às custas, é verdade, de muita pobreza e religiosidade, caem à perfeição para espelhar tais condições e pô-las, vivas, em uma nova discussão através da estética.
Por exemplo, o Brasil.
Cito o pesquisador de música popular brasileira Henry Burnett, em seu livro “”Nietzsche, Adorno” que, por sua vez, cita Mário de Andrade:

“No final de 2004, um grupo chamado A Barca empreendeu uma viagem nos moldes daquelas organizadas por Mário de Andrade, desta feita em busca de material musical recente pelo interior do Brasil. Entre o que a Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade coletou em 1938 e o que os pesquisadores do grupo A Barca registraram entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005 pouca coisa se modificou na sonoridade e na dimensão terral dessas manifestações musicais. Podemos especular sobre essa estranha preservação. Um tipo de autoconsciência das comunidades, que sabem a essa altura que suas festas são consumidas nos centros econômicos do país como um produto exótico; o já mencionado subdesenvolvimento ou, por fim, uma força de permanência ligada ao vínculo dessa música com a religiosidade popular, sempre intacta no interior do Brasil; ou nenhuma das anteriores.”
(p.178-179)

“Coisas que os homens não entendem” não é meu único livro em que faço referências diretas a obras canônicas. É o único, contudo, em que emprego diretamente fragmentos da obra famosa. Em “A um passo”, uso a mesma estrutura que Shakespeare usou na sua peça “A tempestade”, ao inserir uma cobertura ficcional abrangente encobrindo a ficção propriamente dita. Em “A tempestade”, o personagem Próspero é quem se revela o criador da trama narrada, estando ele na própria trama. Faço o mesmo em “A um passo”. Mas, para minha defesa, cito Próspero nominalmente no final. Em “Às seis em ponto”, a referência é mais velada, indireta. Uso a dicotomia, que sempre muito me espanta, entre a vida e a obra de Velásquez e introduzo dicotomia igual, embora em registro de farsa, na minha trama. Como se sabe, Velásquez se apresentava como cidadão exemplar, amigo do rei, seguidor fiel da Igreja, com ambições modestas e nenhum traço de rebeldia. Até começar a pintar. Aí vemos a caricatura do poder nos vários retratos que fez do Conde de Olivares, sempre com a cabeça ridiculamente pequena para um corpo disforme de tão grande. Vemos, pela primeira vez na história da pintura ocidental, a classe operária merecer o tratamento nobre da tinta a óleo no quadro “As fiandeiras”. E temos um verdadeiro tratado revolucionário no quadro “As meninas”, com o vira-lata em primeiro plano, as empregadas domésticas em segundo e, no espelho do fundo, o reflexo do rei e da rainha no papel de admiradores do quadro. Ou seja, uma inversão espantosa. Serviçais e animais domésticos merecedores de uma representação em material nobre, e a nobreza máxima no papel de povo anônimo. Mas, na vida cotidiana, Velásquez era a cordura em pessoa. Shakespeare e Velásquez são, portanto, outros criadores canônicos de quem me aproprio porque os vejo como contemporâneos. Em mais de um aspecto. E aqui entro em uma consideração da política da arte. Tanto quanto Camões, nenhum dos dois desejava, na sua vida cotidiana, nada além do aplauso, da remuneração financeira. Velásquez pediu a Felipe IV que lhe pagasse por mês em vez de por obra, para garantir um dinheirinho certo, constante. Shakespeare não hesitava por um segundo em incluir trocadilhos os mais grosseiros, frases de duplo sentido escatológico, lado a lado com sua sofisticada poesia, em troca de risadas de sua plateia inculta. Nenhum deles queria derrubar o poder.
O artista de hoje também não é revolucionário em sua vida cotidiana e, mais frequentemente do que eu gostaria, também não em sua literatura. Quer sucesso e a inserção social em um dos poucos segmentos que ainda garantem uma certa durabilidade em termos de reconhecimento. É em geral oriundo da classe média, vive nos grandes centros urbanos, branco, heterossexual, universitário, homem. Conhece e pratica a seu favor as leis de mercado.
Acabo de ganhar o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras por outro livro meu, o “Nada a dizer”. Vou falar um pouco sobre esse livro e sobre esse prêmio.
“Nada a dizer” também fala de uma viagem, embora curtíssima. A narradora do livro sai do quarto de dormir e vai para o quarto de hóspede. Trata-se de uma traição. Um casal de meia-idade, juntos há muito tempo. O homem tem um rápido caso, se arrepende, mas o desastre está feito. A viagem narrada pode ser curta, mas é dolorosíssima. Aqui também o narrador, aliás a narradora, se mete em meio à trama para dizer que não vai conseguir contar a história a que se propôs: um possível assassinato. Toma a palavra como quem de fato inventa e não apenas vive o inventado.
Cito o trecho com que termino o livro:

“No quarto de hóspedes não engrosso a voz que não emito. Vejo, irônica, muito de longe, esse alguém que arredondaria ficções a serem feitas, como já as fiz tantas. Alguém com lógica, acuidade, racionalidades.
Alguém que dissesse claramente quem matou, como matou, quando. Que mentisse. Que não dissesse, não claramente pelo menos, que quem mata sempre sou eu.
(Aqui, nesse caso específico, poderia dizer, essa voz, que inclusive eu estive várias vezes na clínica da família de N. Pois, por gentileza dela, peguei, logo quando nos conhecemos, um trabalhinho de redação para o site que eles mantêm no ar. Eu poderia ter voltado. Conhecia os corredores.)
Eu, que mato mesmo quando a morte é descrita como natural, acidental. E mato porque quem conta sempre mata aquilo que originou o conto.
Aqui, então, nessas últimas linhas do meu relato, entraria essa voz a levar, a mim e a todos em volta – os seres reais e os imaginários – até um fim perfeitamente tranquilizador. A voz – que não mais tenho – das soluções dos problemas. Dos problemas reais. E dos inventados – para que fiquem mais fáceis, os reais.
Não vai acontecer. Não é mais possível.
Não tenho a menor ideia de como Antônio Carlos morreu. Deixo esse crime assim mesmo, pela metade.
Sem histórias pela primeira vez na vida, estou bem assim.”
(p. 161)

Revolucionário? Não. Mas vejam bem. Qualquer criador, apenas pelo fato de existir, traz, hoje, uma presença desestabilizadora para o sistema ao qual ele deseja tanto pertencer. Somos excedentes. Somos muitos. Ninguém precisa de nós. A economia não nos absorve. Escrevemos sem parar, pintamos, armamos instalações, performances, fazemos objetos esquisitos que ninguém entende. É na nossa existência que está nossa declaração política. Se, além disso, não pertencermos às camadas mais próximas do poder – seja na sociedade ou no campo literário ou artístico em que atuamos profissionalmente e que, sempre, espelha a sociedade que lhe deu origem – então nosso grau de resistência política aumenta em muito. Eu, por exemplo, não pertenço a tais camadas. Sou mulher em um campo profissional dominado por homens. Venho de um país sem importância cultural, escrevo em uma língua que, embora disseminada por todos os continentes, têm falantes que pouco leem. E, na minha biografia, apresento, não sem um certo orgulho, uma origem em regiões e classes sociais distantes do poder. Ganhei esse prêmio, acho, muito por causa disso. Ana Maria Machado, que foi eleita presidente da Academia logo depois da concessão do meu prêmio, tem uma política includente de segmentos tradicionalmente alijados. Ela própria é consequência e causa desta tensão. Basta lembrar que até pouco tempo mulheres eram proibidas de entrar na Academia.
“Nada a dizer” talvez seja editado aqui em Portugal pela Quetzal, ainda não sei ao certo.
Ganhei um prêmio raramente atribuído a mulheres. Edito meus livros, no Brasil, por uma editora que me suporta nos dois sentidos que a palavra suporte pode ter: é uma editora que me dá apoio e que me aguenta. Pois pouco vendo. Em termos puramente mercadológicos, eu não deveria ser publicada por ela. Trata-se de uma grande editora, talvez a maior do meu país, acaba de se associar a um grupo poderoso internacional. Não está lá para brincadeiras. E no entanto eu pouco vendo. E eu pouco vendo há muitos livros. E ela continua a me editar, e me editará, mais uma vez, assim que eu voltar. No meu caso, a Companhia das Letras, tanto quanto o prêmio da Academia, são brechas que, sim, existem. Eu estar aqui hoje falando com vocês é outra. Como diz um professor meu de história da arte, o Renato Brolezzi, antes de suas longuíssimas e sempre maravilhosas aulas sobre Renascença, Barroco: estamos aqui para perder tempo, nada do que falaremos hoje serve para absolutamente nada.
Só que não há nada mais revolucionário do que agredir os conceitos de eficácia, rapidez e produtividade que nos submerge a todos no caos que hoje vemos.
Bem, vim aqui para explicar por que me apropriei de Camões. É por isso. Porque ele é absolutamente atual. Faz parte da minha vida, hoje. Digo hoje mesmo, dia 17 de janeiro de 2012. Amanhã saio de Lisboa e volto para o Brasil. Essa volta não poderia ser mais camoniana. Ao lá chegar terei de enfrentar a inserção de um novo. Trata-se de um novo texto, que entrará em preparação para edição. Sim, este novo livro fala mais uma vez de uma viagem. Desta vez uma viagem já acabada há muito. A viagem de migrantes europeus chegados ao Brasil devido à Segunda Guerra. Estão mortos quando o livro começa. É da vida de seus descendentes que se trata. E o narrador, mais uma vez uma mulher, ao se deparar com o luto e a morte que foram trazidos por esta viagem antiga, inventa uma nova, ficcional. Inventa uma história de amor para quem provavelmente não a viveu. O livro vai se chamar “O que deu para fazer em matéria de história de amor” e já há velhos-do-Restelo a me dizer ao pé do ouvido que eu não deveria enfunar essa vela, que eu só vou me arrepender. Mas lá vou eu, a convencê-los e a mim mesma de que não.
Vou terminar citando um português, o Lobo Antunes, e fazendo um comentário mais para o técnico. Espaço e tempo são dois conceitos que volta e meia trocam de lugar. Na arte religiosa da Idade Média, havia uma eternidade ao fundo e uma contingência em primeiro plano e era essa dupla temporalidade que produzia significado, mais do que o fato de serem dois espaços em separado. No século XX, ao contrário, tudo virou impactos imagéticos dos quais não se exigia ligação temporal para a formação de sentido. Acho que, no século XXI, estamos vivendo outra dessas trocas. Culpa da internet, da física quântica ou de ambas. Mas experimentamos uma vaga sensação de onipresença (a onisciência talvez demore mais um pouco). Isso equivale a dizer que o espaço parou de produzir sentido e que passamos a procurar, esse sentido, a partir de noções temporais, temporalidades. Descrições espaciais se tornaram, na literatura, descrições de temporalidades, às vezes concomitantes, como no romance “As naus”, do autor a que me refiro. Lá, uma Lixboa, grafada com um atemporal “x” no lugar do “s” atual, existe ao mesmo tempo hoje e nos tempos das caravelas de Camões. É muito bom, verdadeiro, é como de fato a percebemos. Ou pelo menos, como eu a percebi, hoje de manhã, a andar por suas ruelas tortas.

Referências bibliográficas:

BURNETT, Henry (2011) Nietzsche, Adorno. São Paulo:Unifesp
COLLIN, Luci. (2011) Com que se pode jogar. Curitiba: Kafka.
LOBO ANTUNES, António. (1988) As naus. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. (1994) Um homem célebre. In: Obra completa, volume II. Rio de janeiro: Nova Aguilar.
VIGNA, Elvira. (2002) Coisas que os homens não entendem. São Paulo: Companhia das Letras.
VIGNA, Elvira. (2010) Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras.

 


Trabalhos acadêmicos

 

 

MIRANDA, Adelaide. “Desterritorialização, refabulação e a cidade literária em movimento em Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna”. In: Nau literária, crítica e teoria de literaturas. Porto Alegre: UFRGS, volume 8, # 1, 1-19p.
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MIRANDA, Adelaide. “A amnésia no campo minado: o papel do esquecimento na literatura brasileira de autoria feminina”. UnB, Instituto de Letras, programa de pós-graduação em literatura, abril 2011.
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DA MATA, Anderson Luís Nunes. “As fraturas no projeto de uma literatura nacional: representação na narrativa brasileira contemporânea”. UnB, Instituto de Letras, programa de pós-graduação em literatura, maio de 2010, orientação Regina Dalcastagnè.