ELVIRA VIGNA: IMAGENS – críticas, entrevistas, apresentações.
apresentação do ‘Cinco sentidos e outros’ (Roseana Murray, Abacatte, 2014, 39p.) no catálogo da Feira de Bolognha/2015:
The lovely verses describe our five senses and other ones we are not able to define. In contact with the inner self, through the senses, the reader under a spell will find the other, to feel, see and hear the sound of longing, of time, of life, of love and so on. On top all, to take us to our most human part, the poems are magnified by the colors and the absence of them, in cartoons, in patches of elaborate illustration’s composition, in a elaborate composition of signs that transcend the sense of sight.
Projeto Duas Casas, apresentação na São Paulo Review em 01/09/2014
Esse projeto de ilustração é de um poema longo chamado Duas casas, da Roseana Murray. Sua publicação, pela editora Lê, está prevista para o ano que vem.
A história, muito simples e dirigida a adolescentes, fala de duas crianças. Elas precisam dividir seus dias entre duas casas, após a separação dos pais. Ora estão em uma, outra noutra, nenhuma das duas, em princípio, satisfatória. Justamente por não conter a outra.
Fui encarregada das ilustrações para o poema.
O poema é de leitura simples, mas é rico, como em geral são os textos de Roseana.
Me interessou o caminho de ligação entre as duas casas.
Tem uma teoria, abordada por Agamben em seu livrinho O que é o contemporâneo?, que diz que o escuro não é o escuro.
Ele baseia isso em várias instâncias, incluindo uma biológica: as células cones e bastonetes de dentro do olho, na presença da luz, implementam uma destruição de pigmentos. Essa destruição gera uma energia que vai para o cérebro e é lida como “visão”. A ausência desse processo é a ausência de uma destruição. Ou seja, duas negativas resultando em um positivo. Ou seja (pela segunda vez), há uma possibilidade de se entender uma outra “visão”, ativa, ou já lá anteriormente, que se relaciona com o escuro da mesma forma que a primeira se relaciona com a luz. Ou seja (pela terceira vez): o escuro não é exatamente uma ausência de algo, é algo. Esse trecho do Agamben faz parte de sua teoria da potência do não. O “não” sendo uma ação tão efetiva quanto aquela que de fato se realiza.
Lembrei disso para fazer o projeto.
Pois, está claro, o poema da Roseana “acaba bem”, no sentido que as crianças aprendem a ver as duas casas ao mesmo tempo, aprendem a perceber que há um “pigmento” do escuro a ligar as duas casas:
“(…) quando estão numa casa, / também estão na outra”)
Nas imagens que então fiz, o preto não é apenas o fundo das figuras coloridas. Ele de fato existe. Inclusive, se imiscui nas cores. Isso porque usei tinta a óleo. Essa tinta, grossa, existente, nunca é passiva. Ela nunca esconde o processo de se deitar no papel. Assim, em cada cor, há um preto que antes estava por trás e que, com a pincelada feita sobre ele, se apresenta como ativo, como fazendo parte daquela luz, daquela cor. O preto sobrevive à pincelada, é parte dela.
Além disso – que é algo que diz respeito ao processo, à feitura -, o conteúdo expresso das pinturas também dirá a mesma coisa: o preto nessas figuras não é um vazio, é efetivamente o caminho que liga as duas casas.
É o preto, é sua aceitação como possibilidade, que permite a existência das casas.
Vitória Valentina
(por César Brandão, no blog cultural Motirô, 18/12/2013)
Sujas garatujas aos anjos
Vitória Valentina, de Elvira Vigna, lançado em novembro de 2013 pela Lamparina Editora é o novo livro dessa escritora e ilustradora; que ganhou o Jabuti 2013 pelas ilustrações de Primeira Palavra de Tito Freitas.
Vitória Valentina é mais desenho que texto, ótimos desenhos que transitam entre o esboço e a precisão da linha a formarem as imagens. Talvez sujas garatujas aos anjos, puros e impuros personagens que compõem a história. Seria quase “graphic novel”, se Elvira Vigna não optasse pelo experimental, pela liberdade de riscar e rabiscar, e de transcender limites do território das ilustrações.
Viciado em imagens, viajei nos desenhos, vendo no texto, não a escrita a traduzir idéias; mas desenhos também. Afinal, cada letra é um desenho, que se convencionou em “signo”, e que enfileirados ou acoplados, constroem tentativa de tradução da palavra, transformam-se em “significados” de imagens, talvez, de pensamentos complexos, exatos ou incorretos.
E desenho não precisa de texto, existe solitário, independente… e provoca leituras diversas e opostas, entre comunhão e contradição.
E os desenhos em Vitória Valentina estão em harmonia ao cotidiano contemporâneo e urbano: moto a subir morro de favela em confronto a porcos na rua, gambiarras nos barrocos e postes de luz da favela em contraste aos imponentes prédios ao longe cheios de torres no topo, vacas do Cow Parede, pessoas no sinal de pedestres… Lindo desenho de bar, em perspectiva tridimensional, com placa na calçada, mesas com foco do alto, e o balconista ao fundo, em frete às prateleiras…
Desenhos também em sintonia com a forma de organizar os quadros, ou os blocos, dentro das páginas, e que apresentam diagramação ou design bastante inovador, e em diálogo com tanta forma diferente e experimental que surgiu para “instalação” de imagens em qualquer espaço após o digital, a internet, os sites…
Isso sem falar no desenho que ao invés de ilustrar o caótico trânsito na cidade, torna-se o próprio engarrafamento. E a última página é genial: apenas o desenho e o… silêncio.
Vitória Valentina não é pura literatura no sentido estrito dessa linguagem. Vitória Valentina é, antes de tudo, artes visuais.
Embora haja caligrafia, identidade, unidade autoral nos desenhos de Vitória Valentina, Elvira Vigna não se filia a estilos, escolas, manias e maneiras que quase sempre se repetem na edificação de imagens. Se a mão direita se viciou a seguir os mesmos caminhos, parece que ela usa a esquerda para buscar alternativas de novas trilhas, onde tudo é desconhecido no caminhar, e aventuras perigosas estão camufladas no espaço a ser explorado, entre rasuras e rascunhos.
“Para mim Vitória Valentina é basicamente os desenhos”, declaração em e.mail de Elvira Vigna. E concordo plenamente com ela neste texto que aqui publico.
Pensar com Heráclito
(por Janaína de Souza Roberto, no blog literário Nina e suas letras, 06/08/2013)
O que é a arte? Pra mim, a melhor definição, a grosso modo, (se é que a arte pode ser definida) é: “A arte consiste em libertar a vida que o homem aprisiona”, do pensador francês Gilles Deleuze. Qual é a vida que andamos aprisionando por aí? Pois bem, acredito que “Pensar em Heráclito”, ajudou a libertar alguns que estavam presos em mim…
Um livro pra quem gosta de arte. É um livro “pequenininho”, como a própria ilustradora disse, mas, em minha opinião, de grande valor artístico. A obra é composta por pinturas de Elvira Vigna que, por sua vez, “conversam” com diversas citações de Heráclito que fazem uma combinação belíssima. Para Heráclito “tudo o que existe está em permanente mudança ou transformação”. Talvez seja esse sentimento de mutação que se instaurou em mim durante a leitura do livro.
Ao apreciar o livro, deu-me uma vontade imensa de ver de perto os quadros e tocar as paisagens belamente representadas. Que coisa maluca um livro é capaz de fazer com a gente, não? Pinturas que te transportam para lugares encantadores, limpos, belos e puros. Pinturas que te dão vontade de pegar um pincel e pintar (mesmo você nunca tendo levado jeito pra coisa). Acho que a arte é para os loucos, os normais não entenderão.
Em “Primeiras Palavras”, Tino Freitas trata da violência urbana com poesia
(por Bia Reis, Estado de São Paulo, 23/09/2012)
Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas adorava entrar em um sebo que ficava no cruzamento de uma rua movimentada no centro da cidade. Gostava de olhar as enormes estantes de ferro que formavam um labirinto e guardavam os livros usados que faziam sua imaginação correr solta. Ela tinha 7 anos e não sabia ler, mas contava até 20. Era o número de dedos que havia em suas mãos e pés; a quantidade de passos que dava do semáforo até o sebo. Nunca havia ido à escola, porém, a necessidade lhe obrigara a aprender. Contava os trocados que recebia no cruzamento daquela rua movimentada.
A dura vida da menina que não sabia ler, mas desejou ganhar o livro da bruxa atrapalhada quando completou 8 anos, é também a realidade com a qual o escritor Tino Freitas se depara. Voluntário do projeto Roedores de Livros, em Ceilândia, periferia de Brasília, Freitas viveu o sofrimento de crianças cujos pais estão presos, foram mortos ou simplesmente desapareceram.
Amiga de um gato siamês que morava na livraria, a garota resolve, no seu aniversário, se dar o livro de presente – afinal, ninguém mais lhe daria nada. E arma um plano para consegui-lo. A partir dai, Freitas mistura desejo com violência urbana.
Primeira Palavra, recém-lançado pela editora Abacatte, vai na contramão dos outros livros do escritor. Nos anteriores, Freitas tinha no humor o ingrediente principal. Em Primeira Palavra, utiliza a dor e o sofrimento, com muita delicadeza e poesia.
“Muita gente acha que as crianças não devem ler histórias tristes, mas precisamos dar a elas a oportunidade de se emocionar. É importante entender o sofrimento do outro, mesmo que seja por motivos diferentes, e é esse sentimento que faz com que a criança estabeleça uma conexão com a personagem”, diz Freitas.
A escritora Ligia Cadermatori, doutora em Teoria Literária, destaca a coragem de Freitas para tratar de um tema tão pouco explorado na literatura infantojuvenil: a morte. “A morte só aparece de maneira estereotipada – são os avós que morrem – ou em narrativas folclóricas. Em geral, escritores e editoras estão preocupados em fazer livros para entrar em programas governamentais, ganhar prêmios, agradar professores, a família. A criança fica em último plano.” Freitas, diz Ligia, consegue inovar e surpreender.
Jornalista e músico, Freitas começou a escrever para crianças depois que entrou para o Roedores de Livros. “Fiquei com vontade de fazer minhas próprias histórias”, conta. Nas grandes cidades, entre a classe média, diz, ir à livraria se tornou um passeio em família, mas não é o que ocorre no Brasil profundo. Com o Roedores, Freitas faz um trabalho de incentivo à leitura com leitores com pouco acesso aos livros. Foi onde se descobriu contador de histórias e de onde retirou a estratégia de repetição, própria da literatura oral, que utiliza em Primeira Palavra.
Além de inovar no tema, o livro também apresenta um tipo de ilustração utilizada com pouca frequência em obras destinadas a crianças: a pintura a óleo. Ilustrar Primeira Palavra, conta a escritora e desenhista Elvira Vigna, foi desafiador. “É um texto difícil e, quando o li pela primeira vez, o que se destacou foi a violência urbana. Na segunda leitura, percebi que o livro também fala de como a educação pode transformar uma criança de rua.”
Elvira buscou na memória referências de sebos, com seus livros velhos e pouca luz, e se debruçou em uma “pintura violenta”, em uma clara referência à história. “Usei tinta a óleo com cores primárias, intensas, e pinceladas grossas sobre papel linho – ele não é suave, tem texturas.” Imperfeito, como a vida de uma criança que aos 7 anos não teve a chance de aprender a ler.
Prefácio de “Língua Nua”, de Oswaldo Martins
(por Júlio Diniz, professor de literatura e diretor do Departamento de Letras da PUC-Rio)
A noção de parceria, em particular no campo das artes, tem sofrido constantes modificações. Realizar um projeto que envolve distintas mãos não se resume a uma soma de esforços e busca de complemento. Mais do que isso, a necessária comunhão entre linguagens e estruturas distintas se afirma na suplementaridade de suas diversidades e objetivos.
Há uma tradição de diálogo já firmada entre o livro e as artes plásticas, em especial o desenho e a pintura. São inúmeros os exemplos de clássicos da literatura ocidental ilustrados por artistas consagrados. Mas poderíamos ainda afirmar que traços, figuras e formas apenas ilustram e adornam a obra, a escritura, o corpo textual?
Se tomarmos como exemplo uma das edições de Les fleurs du mal de Baudelaire, primorosamente rasurado pelo delicado traço de Matisse, veremos que há muito não se aplica a esse constructo de artistas conceitos como ilustração e adorno. Matisse relê Baudelaire e reescreve em níveis distintos e suplementares as suas/dele flores do mal.
A constatação exposta acima aplica-se com propriedade ao livro Língua nua, uma bem urdida trama de conceitos, textualidade e imagens poéticas concebida e construída por dois artistas contemporâneos. A parceria entre o poeta Oswaldo Martins e a desenhista Elvira Vigna reafirma a vocação desta obra para a dialogia, a pluralidade e o apagamento de fronteiras rígidas entre diferentes estéticas.
O livro é dividido em dois grandes movimentos, em duas partes, que são, e podem não ser, independentes do todo. Como numa peça musical, o tema que atravessa a obra é o erotismo, suas variações, improvisos e repetições. Poemas e desenhos estão colocados lado a lado em harmônica dissonância, seja pelo viés do gênero, seja pela distribuição espacial dos versos.
O primeiro movimento do livro centra-se no que poderíamos denominar “série feminina”. São vinte e cinco poemas e desenhos que, sob o signo hegemônico da economia verbal e da potência de uma poética do menos, desnudam o desejo, o corpo e a linguagem do prazer e da dor, sendo a mulher a personagem da cena e da obscena. O erotismo transforma-se num exercício minimalista na afiada linguagem do poeta e da artista plástica.
A “série masculina” constitui a outra metade deste livro. A verticalidade dos poemas da primeira série é praticamente substituída pela horizontalidade quase-prosa dos vinte e cinco textos e desenhos desta parte. Oswaldo imprime aos seus escritos um ritmo acelerado, sem nenhuma pausa prevista nem pontuação indicada, marcando pela respiração acelerada o lugar do gozo da nua língua de sua poética.
O resultado final é produto de uma refinada artesania de palavras e imagens. Os traços dos desenhos de Elvira adentram e se confundem no corpo dos poemas de Oswaldo, provocando distintas leituras sobre o lugar do erotismo no espaço dos afetos. Uma parceria em tom maior, sem dúvida.
Celia Abicalil Belmiro. Entre modos de ver e modos de ler, o dizer. In: Educação em Revista, vol. 28 #4. Belo Horizonte: UFMG, dezembro 2012
(…)
Do ponto de vista pragmático, a tarefa de ilustração em O que o coração mandar, texto de Ayêska Paulafreitas e ilustração de Elvira Vigna, pode fornecer um trabalho exemplar. Tanto na concepção quanto na técnica, Vigna tem em mente a importância do leitor. Ele é seu norte e, por isso, todo o tempo o leitor está presente no seu trabalho. As ilustrações partem de fotos suas de casarios de Jequié, BA, que são redesenhadas com um trabalho de cor. O desenho é uma tomada de posse, não mimetiza a narrativa, pois se tratam de dois tipos de comunicação distintos e servem a finalidades diferentes. A propósito de situações escolares, Elvira Vigna3afirma que o educador deve estar atento a esse fato, para melhor situar seus objetivos, sem perder de vista a importância da palavra. Como escritora que é, observa também que ler imagem não é necessariamente ler conteúdo da narrativa e que os professores têm se detido nesse aspecto da leitura da imagem. A artista apresenta três níveis de atividade do ilustrador: num primeiro nível, ele reproduz o que está escrito; num outro nível, o objeto reproduzido tem um olhar do ilustrador; e, num terceiro nível, mais profundo, o ilustrador cria um clima, não precisa retratar o objeto propriamente. Sua crença é a de que, se o trabalho do artista consegue estabelecer com o interlocutor um valor de afeto, ele estará realizando um trabalho literário valioso. E se as crianças se relacionam afetivamente com o objeto, tudo valeu a pena.
A história que Vigna ilustra é a de uma personagem que está voltando à cidadezinha de Jequié, BA; sua figura é retratada com um lápis preto em volta, destacando-se do cenário. Na verdade, ele ainda está entrando na cidade e, por isso, essa sua forma de participação na história. A artista não apresenta uma imagem acabada, tanto no formato quanto nos conteúdos semânticos. O que ela propõe é a falha, a imperfeição, pois só aí, no seu dizer, é que ela invocará a presença do leitor para construir sentidos possíveis. “Tem que haver um ‘entre’. A rua acaba, não sei onde, o que tem atrás, não sei, a figura não se completa, está solta no espaço, na capa a terra escorrega, está solta […]”. A essa situação Bakhtin (2000, p. 43) chama excedente de visão e que permitirá construir seu conceito de exotopia, uma posição exterior que condiciona o excedente de visão.
Esse excedente constante da minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro é condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante preciso, num conjunto de dadas circunstâncias – todos os outros se situam fora de mim. (BAKHTIN, 2000, p. 43).
Essa constante solicitação da presença do outro é o que Elvira Vigna deixa para o leitor e permite melhor compreender o trabalho de quem não concebe a ilustração como imagens fechadas. A convocação à atividade estética de acabamento de sua obra é o que propõe a ilustradora e o leitor terá espaço para ratificar o projeto bakhtiniano de produção de sentidos.
(…)
A fada que tinha ideias
(por Célia Regina Delácio Fernandes, na monografia Imagens de leitura na literatura infanto-juvenil brasileira, da Universidade Estadual de Londrina)
“De modo geral, as conotações associadas à leitura são quase sempre positivas. Mas, é possível encontrar representações críticas da leitura. Em A fada que tinha idéias, por exemplo, há uma idéia negativa da leitura escolarizada que pode ser percebida já na ilustração de Elvira Vigna para a primeira capa dessa obra (ALMEIDA, 1971), publicada pela editora Bonde, que destaca a figura de uma menina que não está lendo em oposição as outras que estão sob o olhar da Rainha. Há, portanto, uma contestação do discurso pedagógico vigente no mundo das fadas tanto na narrativa textual quanto visual.”