O jogo dos limites, 2001

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – O jogo dos limites (Companhia das Letras, 2001, 128p.)
– menção ‘Altamente Recomendável’, da FNLIJ;
– participação no programa de compra de livros da prefeitura de Belo Horizonte.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a breve história de asdrúbal, o terrivel
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

infalimites

 

 

Estamos jogando um jogo agora, eu e vocês. Neste exato momento, eu quero dizer. Sentados, olhando em torno, o que vai acontecer?, o que faremos a seguir? Há sempre algo importante a ser dito, e neste caso é que somos nós os participantes e os inventores do jogo. É o mais importante, é sobre isto o resto todo: somos nós. O resto é o resto e vai-se acrescentando aos poucos. O lugar do jogo, por exemplo, é aqui. Também sobre isso temos uma tendência a não perceber as coisas. Achamos às vezes que o jogo é jogado sempre em outro lugar. Não é. É aqui. E somos nós. E o resto é o resto. Por exemplo, o inimigo: tanto faz. No caso, ele se chama Física 2, Prova Final, mas poderia ser outro. Inimigos, os há, e de montão, sempre. Este é outro ponto importante: inimigos que só parecem inimigos enquanto o verdadeiro inimigo passa despercebido ao nosso lado. Bem, então, três coisas importantes: somos nós, é aqui, e o inimigo … bem, vocês verão quem é o inimigo. Ah, uma quarta coisa importante: o jogo já começou, vocês não estavam prestando atenção.

 

O ambiente em que se passa a história

É um país em construção. Como todos os países? Não. Há países que ficaram prontos em uma época determinada do passado e que agora passam a vida preservando esse passado, consertando coisas aqui e ali e impedindo mudanças. Há outros países que ficaram prontos agora, no presente e acham que seu jeito de ser, tão recentemente adquirido, é o jeito certo, ou o único jeito, e não notam que não é assim.

E há os países do tipo do nosso, que misturam tudo isso, e que são países onde se constrói sem parar, mesmo sobre partes que já tinham ficado prontas no passado. Mas vamos aos detalhes.

Dentro deste país há um Castelo, que é o que nos interessa mais, que é onde estaremos todos até o fim que não é um fim, é um novo começo. Porque não é só o país, e o Castelo dentro do país, e as pessoas dentro do Castelo, mas também a história das pessoas dentro do Castelo deste país. É uma história que se constrói a si mesma sem ter um fim.

Como vocês vão ver, não é de todo mau, isso. Tem desvantagens, mas também tem vantagens. Mas, sim, estávamos no Castelo.

É um Castelo perenemente em construção, com partes muito velhas e outras ainda sendo feitas.

E aqui vocês podem pôr o de cada um de vocês. Porque vocês vão notar, mesmo sendo o de cada um será também o de todos. A última reforma na cozinha, a pintura, isso para falar das coisas de hoje. Mas ponham também o que havia antes desta construção.

O que tinha no terreno antes? uma outra casa?  E antes dessa outra casa? um pouco de mato? um areal? e antes disso também? Os índios.

Com um pouco de esforço vai dar mesmo para pôr, neste Castelo de que falávamos, perenemente em construção, umas cerâmicas pintadas, uns panos desenhados. Tão bonitos.

Agora vamos entrar.

Partes mais importantes do Castelo: os vários níveis de subsolo; a Biblioteca Velha, onde se dá a maior parte da ação; e a Árvore Sem Fim, no pátio, local de um evento importante do passado.

 

Vamos ver um pouco de cada uma dessas partes.

 

Os vários níveis de subsolo

Locais realmente complicados. Pensem em corredores que somem na escuridão, ventos súbitos que ninguém sabe de onde vêm, tochas acesas em cantos aparentemente vazios, ecos de risadas antigas, de gente que não pode mais estar lá. Um pouco de frio. Mas um cheiro bom, de terra úmida, de planta nascendo.

 

A Biblioteca Velha

Feita por um velho senhor chamado Borges. O senhor Borges era quase cego e então fez esta biblioteca passando a mão sobre os livros e decidindo dessa maneira – pelo jeito como sentia as páginas, as capas e as letras na sua mão – se o livro devia entrar ou não nas prateleiras. Ele já tinha lido todos os livros do mundo, antes de ficar cego. E descobria que livro era aquele apenas passando a mão pelas páginas. Às vezes se enganava. Às vezes só fingia que se enganava e decidia da entrada do livro com base em outros critérios, os critérios do acaso, da aventura, do desafio ao sentido, do jogo de dados.

 

A Árvore Sem Fim

Vocês cohecem esta Árvore. É aquela que, estando debaixo dela e olhando para cima, não dá para se ver onde termina. É aquela que já estava lá quando as cerâmicas – aquelas cerâmicas que nós pusemos no Castelo bem no começo da história – ainda estavam sendo feitas. É aquela que estará lá – ou aqui – depois que tivermos ido todos embora. Mas nós não vamos embora. Não totalmente. Sempre fica um pouco de nós onde passamos.

É este o ambiente. Um Castelo, portanto, em construção, e no seu pátio, uma Árvore Sem Fim. Dentro deste Castelo, subsolos frios, amedrontadores, mas de cheiro bom. Uma Biblioteca Velha com livros escolhidos por um velho cego.

E isto num país assim como o nosso.

 

O Mapa

(espaço para desenhar um mapa)

É melhor fazer um mapa.

E é melhor lembrar sempre que o mapa fomos nós que o fizemos. E que ele pode, portanto, estar errado. Ou, dito de outro modo, que o mapa foi inventado por nós. Nós é que inventamos nosso próprio mapa. Sempre. E que, vendo as coisas dessa outra maneira, o mapa, portanto, estará sempre certo. Façam o mapa ali. Ele é que nos guiará pelo resto da história.

 

O problema é o seguinte: não há quem conheça este lugar inteiro.

O conjunto é de três prédios. Aliás, dois, mas é que dois deles são, apesar de grudados fisicamente, tão diferentes um do outro que é como se fossem separados. Tem o galpão à esquerda. Aliás, são três mesmo, já que há o conjunto dos Invencíveis nos fundos. E por falar em fundos, há também toda a parte das Ruínas, onde só se entra justamente pelos fundos. Então, é como se fossem quatro. Isso se não contarmos, como elemento separado, o subsolo que, dizem, tem por sua vez várias camadas.

Como eu disse, ninguém conhece inteiro este lugar. Talvez por ele ter sido feito assim, em camadas.

E eu digo camadas sem que isso signifique uma em cima da outra, pode ser do lado, embaixo, atrás.

Mas obviamente houve uma construção muito velha e você a reconhece não só pela aparência – janelas de ferro e vidros escurecidos por um pó milenar, arquitetura em torreões arredondados, pórticos embutidos nas paredes grossíssimas, guaritas para armas que já foram muito temidas e que hoje são consideradas levemente ridículas.

Mas que talvez não sejam ridículas, talvez estejamos entanados. Ou talvez estejamos enganados não sobre a periculosidade das armas, mas sobre as armas em si. Talvez o que tivéssemos achado que eram armas não o eram, e o que não consideramos armas, o eram.

Dentro deste Castelo há muitos outros enganos.

 

Informação muitíssimo importante

Pode estar havendo rumores sobre outros jogos mais eletrizantes. É preciso muito cuidado. Às vezes o acesso a esses outros jogos se dá por meio de drogas. Esses outros jogos – os que parecem eletrizantes e cuja entrada são drogas – não são jogos, são o fim do jogo.

 

A ação – parte 1

 

No silêncio eles escutam apenas um zumbido constante. Como o de um ar-condicionado, mas não há ar-condicionado. O local é a Biblioteca Velha e um ou outro já olhou em torno procurando a grade característica de um duto de ar-condicionado. Não tem. Só livros. Mas o zumbido continua. Pode ser uma chuva, mas lá dentro ninguém escutaria o barulho de uma chuva. Ou cupim. Não há tempo para pensar no zumbido. O inimigo está presente, o momento é chegado. Eles aguardam nervosos uma ajuda vinda de fora. Ficou de vir. Está nos livros. Virá Uma Ajuda De Fora. E com uma arma secreta. A frase inteira é: Virá Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta. Mas está um pouco frio. Deve ter um ar-condicionado. Um ou outro torna a olhar. Não tem. O frio pode ser do próprio lugar. Ou da barriga. O inimigo se chama Física 2, Prova Final.

Essse é o nome social. Há um outro nome, que não é dito, apenas pensado: Física 2, Extermínio Total. Ou: Física 2, O Inimaginável.

Não é a primeira vez que eles se deparam com o perigo. Eu sei disso. É essa a minha vida. Mas eles ainda não notaram que… bem, não vou me adiantar. É isso que tenho de fazer, mas cada coisa a seu tempo. Eles, eu sei, estarão com os olhos esbugalhados, o coração acelerado, o suor aparecendo na testa. Apesar do frio. Eu sei disso. É sempre assim. Depois eles serão diferentes. Depois de entenderem. É para isso que eu sirvo. É para isso que eu venho.

Mas, neste momento, eles estão lá, sozinhos no silêncio.

E os víveres estão acabando.

 

Um dos enganos é com o dia de hoje. O dia de hoje começou como em geral começam os dias: devagar e lá longe. E que é também como em geral começa a compreensão das coisas: também devagar e também vindo de muito longe. Mas antes eu tenho de dizer o que é “hoje”.

Eu mesmo não sei.

Tenho de fazer esforço para não me perder nesse conceito. Eu vim do futuro. Ou será que foi do passado? O que sei,  sei a partir de séculos e séculos: sempre que parecia ser o fim-final, não era. Sempre que no campo sem nem capim uma guerra trazia seus cadáveres, no meio da fumaça alguém se mexia.

E este jogo – vocês vão ver – também não acaba. Talvez seja porque nós somos as personagens-construtoras que, montando nosso jogo, fazemos parte de um jogo maior. Isso eu não sei. E não importa muito também. Basta o nosso cotidiano: um tijolo aqui, uma nova mão de tinta, uma ponte ligando duas partes que se espantam de estar ligadas. Corredores. E a eterna impressão de estarmos no lugar errado, o que faz parte da nossa geografia… Mas eu me adianto. Isso tudo se verá depois.

Eu dizia que vinha do futuro, talvez do passado. Com certeza do futuro. Agora tenho certeza. É do futuro. E do muito futuro. Eu digo, do muito mais futuro do que do futuro do Grupo N.Ó.S. É o Grupo N.Ó.S. que está agora na biblioteca. Vou ter de falar um pouco sobre os habitantes do Castelo. Há o grupo que se chama de Grupo N.Ó.S. É uma sigla. Quer dizer alguma coisa. Não sei ou já esqueci, tanto faz. São as iniciais de um nome qualquer que eles inventam e depois acreditam no que inventaram e passam a não ter dúvida nenhuma de que eles pertencem ao N.Ó.S. Não é bem assim. Mas isso também nós veremos depois.

Há outros habitantes.

O Grupo N.Ó.S. está na Biblioteca Velha e o mundo parece acabar nas paredes formadas por prateleiras de livros que sobem até sumir em uma névoa acinzentada. Há quem jure ouvir a risada do velho senhor Borges, mas não sei.

E há outros habitantes, alguns visíveis, outros não. Alguns perigosos, outros não.

Há os Invencíveis.

Falaremos muito sobre eles. São, à primeira vista, os menos importantes. Passam por nós de cabeça baixa, alguns, poucos, esboçam um cumprimento respeitoso. São fracos, feios, parecem, à primeira vista, todos mais ou menos iguais, mais ou menos cinza. Mas são Invencíveis.

Os Invencíveis passam o jogo inteiro andando quase sem fazer barulho, de um lado para o outro, carregando vassouras, baldes, detergentes. Eles têm a função, durante o jogo inteiro, de ir atrás dos N.Ó.S. desfazendo o que eles fazem e tentando fazer com que as coisas voltem a ficar do jeito que estavam antes de os N.Ó.S. passarem. Os N.Ó.S. passam e mudam tudo, o que estava em cima de uma mesa agora está no chão, o que estava na cadeira foi posto na prateleira. Na prateleira errada. Meias sujas na geladeira. Resto de chocolate na cortina. Pois os Invencíveis vão atrás e tornam a pôr tudo do jeito que estava antes. É só o que eles fazem.

Aparentemente.

Eu digo aparentemente porque eles também se contam histórias, uns aos outros, sempre que estão sozinhos. Talvez seja por isso, por eles só fazerem isso quando estão sozinhos, entre eles, que ninguém dá muita importância nem a eles nem às histórias. É um erro. As histórias deles são … bem, veremos isso depois.

Há também o Grupo E.L.E.S.

O Grupo E.L.E.S. é o grupo que manda. Quer dizer, não manda. Mas acha que manda. Da mesma forma que os N.Ó.S. acham que são uma coisa e são outra, que os Invencíveis aparentam ser uma coisa que não são, os E.L.E.S. também acreditam em uma ilusão. O Grupo E.L.E.S. pertence à categoria dos habitantes perigosos. E.L.E.S. também é uma sigla. Eu também não tenho mais paciência, há muito tempo, de decorar siglas. Siglas, aliás, são uma invenção dos E.L.E.S. Eles adoram siglas. Durante o jogo, sempre que nos depararmos com uma sigla, devemos ficar atentos, redobrar nossos cuidados, pode ser que naquele momento alguém esteja querendo que nós acreditemos nada saber. E esse é um dos piores golpes que há.

Mas voltemos aos habitantes do nosso Castelo.

Há mais.

Há o Grupo N.Ó.S., Os Invencíveis, o Grupo E.L.E.S. e outros ainda. Mas aos poucos vamos conhecendo-os. Voltemos ao dia de hoje e ao problema que temos, nós, os desta geografia, com esta palavra, “hoje”.

Nosso “hoje” é composto de vários “hojes” diferentes.

É como se cada grupo estivesse em seu próprio “hoje”.

E isso, se fosse só isso, ainda seria fácil. Uma rápida olhada e saberíamos, diante de um dos habitantes do Castelo, em que dia, em que época, ele está. Isso não seria problema para nós. Se estamos dentro daquele mapa que fizemos no início, então sabemos como lidar com isso. Há tanto tempo que conseguimos ir em frente carregando “hojes” diferentes e simultâneos. Mas isso não é o pior.

O pior é que os componentes de um determinado grupo, ou seja, de um determinado “hoje”, podem muito bem passar para outro grupo, para outro “hoje” portanto. Acontece muito.

Exemplo mais frequente: um N.Ó.S. virar E.L.E.S.

Exemplo menos frequente: um Invencível virar E.L.E.S. Mas acontece.

Entre os N.Ó.S. e os Invencíveis, o mistério – se é que se pode chamar de mistério uma coisa que todo mundo devia saber – é outro. É do que vamos falar. Mas depois, depois. Só uma pequena pista: os N.Ó.S. são obrigados a passar boa parte de seu tempo na parte velha do Castelo, onde está a Biblioteca, justamente em uma tentativa de jamais, em nenhuma hipótese, se tornarem Invencíveis. Eles são obrigados a isso pelo Grupo P.A.I.S. Os P.A.I.S. em geral desejam que os N.Ó.S. virem E.L.E.S. e têm horror dos Invencíveis.

Mas os N.Ó.S. muitas vezes enfrentam os P.A.I.S. e se recusam a virar E.L.E.S. É esse todo o problema. Pronto, está dito. Os E.L.E.S. são aliados dos P.A.I.S. e inimigos dos Invencíveis. Os N.Ós.S. sofrem pressões de todos os lados e contam com poucas ajudas externas. Uma delas, justamente, está para chegar. Eles acreditam nisso pelo menos. E com uma Arma Secreta. É isso que eles fazem, em silêncio, suando frio, ouvindo um zumbido distante. Eles esperam.

Além desses participantes, há também o grupo que se auto-intitula Turminha Legal e que de legal não tem nada.

E o David, que é um caso à parte.

Quem primeiro chega a esta região coberta pelo nosso mapa lá do começo, quem primeiro chega às vizinhanças do Castelo, estranha muito. Não entende muita coisa, nào sabe discernir quem é quem.

É assim mesmo.

Para os estrangeiros, nós na verdade seríamos um grupo só, o dos Loucos. Não tem importância. Mesmo achando que somos loucos, eles ficam com uma certa inveja: rimos muito. Pintando, emboçando, derrubando com a marreta uma parede inteira para fazer outra parede inteira no mesmo lugar, serrando, aparafusando ou empilhando tijolos, pedras ou folhas de zinco, nós rimos. E também não tem importância por um segundo motivo: nós sabemos que não somos loucos. Somos os construtores de uma construção inacabada, para sempre inacabada, estaremos sempre construindo, colocando pontes, convivendo com nossos vários “hojes”, mas não tem importância.

É isso que eu vim dizer.

É por isso que eu estava falando como é o nosso Castelo, quais grupos estão dentro dele e como é o dia de hoje.

 

Os sete tipos de personagens

Grupo N.Ó.S. – São as personagens principais, os heróis contra os quais perigos surgem a cada instante. Eles já passaram por muitos, mas muitos ainda surgirão. A lista é grande e cada participante pode dar sua contribuição. O dia em que o carro quebrou na volta da festa no meio da rua deserta. O lance do roubo. A AIDS, as drogas e a vontade que já deu de jogar tudo para o alto e dane-se o mundo. Um perigo, isso, dos maiores, essa vontade que às vezes dá de jogar tudo para o alto e dane-se o mundo. Talvez o maior deles.

No momento da ação, os N.Ó.S. estão na Biblioteca Velha do Castelo e alguns deles pensam justamente nisso. Desta vez o inimigo é a Física 2, Prova Final. Mas podia ser qualquer outro. De inimigos a vida dos N.Ó.S. está cheia.

O Grupo N.Ó.S. tem algumas características físicas que devem ser respeitadas: vestem calças jeans e usam tênis. Meninas são um problema que eles preferem não discutir no momento. Eles têm espinhas na cara. Todos os N.Ó.S. roem as unhas das mãos e não cortam as unhas dos pés. Nenhum deles tem muita certeza sobre o futuro. Ou será o passado? Os N.Ó.S. na verdade nunca tiveram muita certeza sobre nada e agora, na Biblioteca Velha, frente a frente com a Física 2, Prova Final e esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, que não vem, agora então é que eles não têm mesmo certeza alguma além da de que uma tragédia pode estar por acontecer.

 

Turminha Legal – Vestem bermudas largas e usam chinelo de borracha. Meninas são um problema, mas eles negam. Falam muito sobre meninas, todas inexistentes. As unhas do pés e das mãos são iguais: compridas e sujas. Os cabelos, em compensação, são bem curtos. Os componentes da Turminha Legal têm muita força física. Todos eles praticam algum tipo de luta. A muita força física é uma compensação pelos poucos atributos intelectuais. Não são os principais inimigos do Grupo N.Ó.S. mas atrapalham muito as suas ações. Andam sempre juntos.

Um Turminha Legal, quando é pego sozinho, em geral tenta negar sua identidade e finge pertencer a algum outro grupo. No momento em que a ação se inicia eles estão fazendo nada, sentados na sarjeta da entrada do Castelo, como é seu hábito. Esse detalhe é importante, porque já houve casos de a Turminha Legal provocar entregadores de pizza, às vezes até roubam a pizza, ou pegam a bicicleta para dar uma volta por ali, só para aborrecer o entregador e mostrar que ele nada pode contra este grupo.

E vai haver, no decorrer da ação, uma entrega de pizza. Vamos ver. Os componentes da Turminha Legal não podem entrar na Biblioteca Velha. Se entrarem, morrem na mesma hora, fulminados por congestão cerebral. É uma das vantagens, das poucas que há, que os N.Ó.S. têm em relação a eles quando em combate.

 

Os Invencíveis – Como o nome indica, nada nem ninguém jamais conseguiu vencê-los. Sua resistência é, à primeira vista, um mistério, já que fisicamente são franzinos, não demonstram ter nenhuma força. Costumam mesmo passar despercebidos nos ambientes em que estão. E estão semre presentes, até quando ninguém espera que estejam. É só procurar bem que se vê um, nas sombras, cabeça baixa, roupas cinza ou marrom. Se pegam alguém olhando para eles, cumprimentam, respeitosos, e se afastam. Mais de um, de qualquer dos outros grupos, já se enganou sobre eles. Mais de um deu uma briga por ganha só par descobrir, depois, que havia na verdade perdido.

Durante uma ação eles agem de forma independente. Se vão ajudar ou atrapalhar, só se sabe na hora.

Quando se reúnem, contam histórias, em geral por meio de canções. Algumas dessas canções nem letra têm, só melodia, mas o som, de algum jeito, conta uma história que quem for Invencível entende. Quando alguém dos outros grupos escuta essas canções, não percebe sua importância, são letras bobas – quando as há – e ritmos repetidos. Mas alguma coisa essas canções e histórias devem ter, porque se repetem e repetem, e passam, com algumas variações, de Invencível a Invencível, há mais de mil anos. A ponto de os outros grupos acharem, nesta confusão de “hojes” em que todos vivemos, que a canção que acaba de ser feita já foi ouvida antes. Vai ver que foi.

Grande parte da ação vai depender se há ou não alguma amizade secreta entre um dos Invencíveis e alguém de outro grupo.

Aparência física: não importante.

 

Grupo E.L.E.S. – São os que ditam as regras. O problema aqui é que há regras conhecidas e regras desconhecidas, que só são descobertas em momentos críticos, quando uma defesa é muito difícil.

Por exemplo, os E.L.E.S. determinam desde coisas simples, do cotidiano, como horários, menus das refeições etc., como outras, cuja existência mal se conhece. Exemplo de regra desse último tipo: só pode se candidatar a uma determinada ação quem tiver tais e tais atributos. E aí, quando se vai ver, a lista dos atributos é a lista dos atributos dos E.L.E.S. Ou seja, eles determinam que eles é que ganham sempre. Eles se protegem de forma total, de modo que só E.L.E.S. podem ganhar grandes somas de dinheiro, só E.L.E.S. têm vantagens substanciais. É por isso que os P.A.I.S. desejam tanto que os N.Ó.S. virem E.L.E.S. Os P.A.I.S. são um grupo que põe as coisas práticas antes do resto, em geral.

Os E.L.E.S. formam um grupo muito fechado e muito perigoso. São capazes de qualquer coisa para se defender. Mas têm um ponto fraco.

Sempre se enganam em relação aos Invencíveis.

Eles repetida e sistematicamente acham que ganham. E ganham. Mas só até determinado ponto. Porque os Invencíveis são justamente invencíveis.

Isso irrita os E.L.E.S. sobremaneira.

Um detalhe curioso: um E.L.E.S., quando pego sozinho frente a frente com um dos Invencíveis, em geral morre de medo. Nessa ora, sua certeza de que ganha sempre se esvái e ele morre de medo. Mas só quando está sozinho. Senão, não. É uma cena interessante de ver, porque os E.L.E.S. são sempre gordos e os Invencíveis sempre magros. Então é o maior que morre de medo do menor.

Não sei se vai haver uma dessas cenas no decorrer de nossa ação. A ver.

Mais um detalhe: os E.L.E.S., como dissemos, são gordos, mas seu ideal de beleza é a magreza. Uma de suas muitas pequenas infelicidades do dia-a-dia.

Identificação física: usam calças jeans e tênis, mas, ao contrário dos N.Ó.S., os E.L.E.S. procuram uma diferenciação bem marcada entre homens e mulheres. As calças jeans e os tênis deles são de grife. E há grifes para homens e grifes para mulheres. Para identificar este grupo sem erro, é aconselhável o uso de lentes de aumento, já que a grife vem sempre pendurada em pequenas etiquetas. Aqui vale apontar uma pequena inocência deste grupo nada inocente. Os E.L.E.S. põem essas pequenas etiquetas que os identificam em geral do lado de fora das roupas, o que facilita as coisas para os outros. É como se eles se pintassem um alvo. Uma inocência. Mesmo os mais espertos as têm.

 

Os Perdidos –   Os Perdidos são personagens que vêm do passado longínquo ou do futuro, e estão aqui por um erro, um dos muitos erros da nossa construção.

Vêm e ficam, se negam a ir embora.

Deve ser por causa da nossa tolerância aos “hojes” diferentes e que coexistem. Eles se sentem bem, ou pelo menos, notam que não chamam assim tanta atenção quanto chamariam em alguma outra geografia.

Os Perdidos ficam vagando pelos corredores do Castelo. Há muitos. Sem chegar ao ponto de mudar essa característica de tolerância, deve-se, contudo, evitar um encontro muito direto, muito próximo, com eles. Têm um mau hálito mortal. Deve ser por causa das viagens. Longas.

Às vezes eles são trazidos por componentes dos outros grupos. Por exemplo, um componente que tenha na lembrança a imagem de alguém querido do passado. Esse alguém pode virar um Perdido. Ou um estranho que desperta a nossa curiosidade e que passamos a seguir disfarçadamente para tentar descobrir quem é e que, aos poucos, descobrimos estar, ele, a nos seguir, também com curiosidade, para descobrir quem nós somos. E nessas horas, andando furtivamente, um seguindo o outro, em círculos e círculos pelos corredores, salões e pátios do Castelo, ficamos um pouco em dúvida sobre quem é o Perdido, se o outro, se nós. Ou sobre quem lembra de quem. Assim sendo, os N.Ó.S. estão dentro da Biblioteca Velha e o zumbido, que parece ser de ar-condicionado mas não é, pode muito bem ser alguma coisa engendrada pelos Perdidos. A descobrir.

Os Perdidos não têm uniforme, mas sua aparência é a que estava na moda no século passado. Ou no próximo. Adoram a Biblioteca Velha. Há quem diga que eles não passam de lenda, que não existem de fato. Ledo engano.

 

Os Barbudinhos – São habitantes recentes do Castelo. Vivem exclusivamente nos subsolos. Nunca viram a luz do dia, aliás, nenhuma luz que não seja a das telas dos monitores. A comunicação com eles é muito complicada, pois não falam a mesma língua que os outros. Não escutam vozes, só ruídos computadorizados, e só são capazes de enxergar o que estiver em formato retangular e vier de dentro de telas. Não são maus, apenas indiferentes aos outros grupos.

Podem fazer grandes ações positivas ou podem arrasar completamente uma determinada situação, provocando desastres terríves.

No momento da ação eles têm uma grande responsabilidade. São os Barbudinhos os encarregados de trazer a Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, o que vai definir o desenrolar dos acontecimentos. Se eles conseguirem, os N.Ó.S. têm alguma chance. Se não conseguirem…

E o pior: eles também estão escutando um zumbido. E não acham que seja do ar-condicionado, dos cupins, dos Perdidos ou da chuva. Eles acham que pode ser indício de pane na rede elétrica!

Para evitar a estática, eles tiraram os tênis, já que a sola de borracha é isolante. E arregaçaram os jeans sem nenhum motivo, só de nervoso.

Eles não frequentam a Biblioteca Velha. Vão a uma outra, especializada, cujos livros têm títulos incompreensíveis para quem não pertence ao grupo. Um exemplo de título de livro: C+ + 4,5.

 

Os P.A.I.S. – Mais um grupo dos mais controvertidos a habitar o Castelo. Eles têm um domínio muito grande sobre os N.Ó.S. Sua grande arma contra os N.Ó.S. é a pressão psicológica. São extremamente perigosos quando agem em conjunto, e costumam agir em conjunto. Têm grande facilidade de comunicação entre eles. Às vezes se conhecem de longa data e estabelecem estratégias de jogo em comum. Muita atenção.

Há uma coisa a respeito deste grupo que os N.Ó.S. não sabem e não adianta dizer porque mesmo se alguém disser eles não vão acreditar. Mas é muito difícil ser deste grupo. É uma das tarefas mais difíceis do jogo.

Eles nunca entram na Biblioteca Velha. Ficam na porta, empurrando para dentro quem está do lado de fora e impedindo quem está do lado de dentro de sair. Mais uma dificuldade para o entregador de pizza, como se verá.

Frases-chaves do código deles: “Mas já acabou?! Não é possível!!! Estude mais um pouco!!!”.

Costumam falar isso em coro, sempre que há mais de um e, já vimos isso, eles costumam andar juntos, em geral aos pares.

Os P.A.I.S. estão sempre de calças jeans e tênis, embora não fiquem nem um pouco bem com essa roupa. É um dos mistérios, a indumentária deste grupo.

 

Como será o dia de hoje. Eu sei o que está se passando agora dentro da Biblioteca Velha embora sua porta esteja fechada. Os livros estão lá como sempre, em seu lento fermento interno.

Livros deixados nas prateleiras durante o tempo suficiente gerarão livros completamente novos dentro de suas capas. E isso mediante uma mágica especial que mantém a mesma aparência da capa. Tanto que, quando se vai pegá-los outra vez, nem sempre dá para notar, em um primeiro momento, que o fermento fez o efeito, que tudo estará diferente lá dentro, embora com as mesmas palavras nas mesmas páginas amarelas. É por isso que algumas pessoas lêem o mesmo livro mais de uma vez, é porque não é o mesmo livro. Há quem considere os livros um grupo, o Grupo Livros.

Foi por um livro que os N.Ó.S. ficaram sabendo sobre a Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta. Livros falam de muitas coisas. O problema é prestar atenção. Por exemplo, a porta da Biblioteca Velha ainda está fechada, mas eu sei que os livros estarão nas suas prateleiras, na disposição determinada pelo senhor Borges, sofrendo a lenta ação do fermento, sem que o Grupo N.Ó.S. sequer note isso.

Os N.Ó.S. estão lá há muito tempo, tanto que eles já perderam a conta. Mesmo dando um desconto por causa da noção sempre confusa do tempo na geografia coberta pelo mapa feito lá no começo. Mesmo assim, mesmo já sabendo que tempo é sempre algo complicado, neste caso é mais complicado ainda. Os N.Ó.S. estão lá há tanto tempo que a única maneira de registrar a passagem das horas é pela fome do Fábio.

E esse é um método difícil de medir o tempo, porque o Fábio está sempre com fome.

Estão eles lá, jogados pelas poltronas e sofás velhos, os livros se fingindo de inanimados por cima deles (fingindo que não têm o tal do fermento…), há o zumbido que ninguém mais nem escuta e o Fábio que, de vez em quando, berra pizza!, pizza!, mas ninguém lhe dá muita atenção porque ele sempre faz isso, a qualquer hora.

O Fábio é um dos N.Ó.S. mais antigos. Ele tem um Defeito Genético – para compensar o atributo de Grande Esperteza E Conhecimento Elevado Dos Cantos Menos Nobres Do Mapa.

Seu Defeito Genético é o seguinte: se ele não comer pizza a intervalos regulares, leva um dano de mais de 5 pontos e fica inconsciente.

O estado de inconsciência do Fábio é considerado algo muito chato pelos outros N.Ó.S.: ele se espalha na poltrona de couro, fala coisas sem sentido e ri sem parar, e a única palavra inteligível que sai nessas horas, no meio das frases desconexas, é pizza.

Por isso, todos do Grupo N.Ó.S. sempre tentam evitar que ele fique muito tempo inconsciente e torcem para que no rolar dos dados em cima da mesa ele consiga uma Licença Especial.

Uma Licença Especial permitiria que ele saísse para comprar a pizza, já que o pedido feito há quantas horas? serão dias? não parece ter funcionado.

Nenhum entregador de pizza apareceu.

O pedido foi de calabresa.

Eu sei disso.

É preciso dizer as coisas, mesmo quando elas não são de todo agradáveis. O participante Fábio, por exemplo. Se alguém de outro grupo entrasse agora, não iria saber disso, mas o caso é que o Fábio inconsciente, largado na poltrona de couro, não difere muito do Fábio consciente. É preciso ser um participante experiente do Grupo N.Ó.S. e ter atributo Atenção de pelo menos 10 para saber a diferença. Essa é uma vantagem que pode ser aproveitada. Alguém de outro grupo que entra, julga que aquele componente dos N.Ó.S. está fora de combate.

E não está.

Então é este o quadro.

Os livros, os N.Ó.S. por ali, jogados, só o Fábio berrando pizza, pizza, cada vez mais fraco. O zumbido, a bruma cinza a engolir o final das estantes, a claridade que parece diminuir.

E de repente, primeiro muito fraco mas depois sem deixar nenhuma dúvida, eles escutam os passos nas tábuas largas e compridas do chão do corredor. Todos ficam imóveis enquanto os passos continuam, vagarosos, mas cada vez mais próximos. Os passos param do lado de fora da porta fechada.

Só pode ser um dos Perdidos, se dizem eles sem falar, utilizando seu poder telepático, comum a todos os componentes de todos os grupos, excetuando os da Turminha Legal. Os da Turminha Legal têm um outro tipo de comunicação, que poderia ser confundida com a telepática mas que na verdade é a monossilábica. Parecida, só, mas diferente.

Mas os N.Ó.S., sem dizer uma palavra, se dizem que aqueles passos lentos que param do lado de fora da porta só podem ser uma coisa. Só pode ser um dos Perdidos.

Porque Ajuda De Fora com certeza faria um barulho muito mais determinante, forte, resoluto.

A maçaneta começa a girar.

 

A interação personagens – ambiente

Para entender o que se passa no Castelo, é preciso começar do bem básico.

Pensem num quadrado.

Num dos lados deste quadrado há duas portas, a velha e a nova – esta maior do que aquela. Apesar disso, todos os do Grupo N.Ó.S. entram sempre pela velha. Eles fazem isso como uma espécie de tomada de posição, uma maneira de dizer que entram no Castelo inteiro, no de antes e no de muito antes. E, porque o mundo é redondo, há um antes tão antes que chega a ser o depois. Mas já vimos isso, essa questão do tempo na nossa geografia.

Virados para este mesmo lado do quadrado em que há as duas portas, vemos três estágios de construção do Castelo.

À direita, uma parte muito velha; no meio uma mais ou menos; e, à esquera, uma parte do galpão novo.

Ligando estas três partes, um patiozinho estreito que tem uma importância especial: é neste lugar que vários tempos diferentes têm um ponto de contato. Neste patiozinho brincam, desde tempos imemoriais, menininhas eternas. Elas brincam de estátua. Estão sempre lá, se fingindo de estátuas. Elas não participam da ação.

Ou será que sim?

Também se vêem, neste patiozinho, aqui e ali, as janelas gradeadas e rentes ao chão do subsolo onde supostamente está a maior parte dos laboratórios secretos. Isso nunca foi averiguado. Coragem não é um atributo muito popular no Grupo N.Ó.S.  E como os outros grupos mentem, não dá para saber se averiguaram ou não.

A parte velha da construção tem uma escadinha em curva irregular, que leva à parte de cima, onde há uma porta que está sempre fechada. Sendo assim, a parte de cima da construção velha só é acessível através de uma escada larga e reta, de madeira comida pelo tempo. Esta escada é um perigo, os degraus estão sempre ameaçando se romper e assim levar os mais desavisados direto para o subsolo. Uma vez subindo para a parte de cima, o segundo andar, por assim dizer, há apenas uma comunicação conhecida que liga a parte velha com a parte nova da construção. Mas todos acham que devem existir outras.

O participante Henrique – de quem falaremos depois – já declarou uma vez conhecer uma que sai direto da sala da Deusa Mor.

Também falaremos mais da Deus Mor depois.

Agora mudemos o lado do quadrado.

No segundo lado não se entra nem sai, ele é feito de paredes cegas, a não ser por uma janela na parte de cima. É por isso que não se entra nem sai, porque utilizar esta pequena janela para entrar ou sair seria supor a possibilidade de um longo vôo por cima do muro. Esse é um ponto a ser considerado. Alguém pode querer comprar o atributo Vôo só para poder entrar ou sair desta pequena janela. Ela tem outra importância: como fica em uma parede cega, é fácil que uma comunicação criptografada com os Do Lao De Fora passe despercebida dos E.L.E.S. Raramente um E.L.E.S. se detém neste lado da construção. É só escrever a mensagem no quadro-negro que fica bem em frente da janela, que os Do Lado De Fora lêem sem problemas. Qualquer sinal de que um Perigo Iminente ou um E.L.E.S. esteja se aproximando e apaga-se tudo sem deixar vestígio.

E aí é só negar até a morte.

Este lado do Castelo tem partes construídas até mais ou menos a metade da sua extensão. O resto é o pátio, com árvores que foram as primeiras árvores do universo, ou as últimas de algum outro universo. Entre estas árvores, a Árvore Sem Fim, de onde caem, vez por outra, rochas do Espaço Sideral – que se esfarelam na mão – e filhotes de passarinho.

Pardalzinho mesmo.

No terceiro lado do quadrado está a parede de um dos prédios dos Do Lado De Fora.

Vamos falar dos Do Lado De Fora.

Todo mapa tem um limite. É um dos problemas dos mapas. Há que se estabelecer um limite, que será sempre mais ou menos falso, limites são colocados – e tirados. Limites são sempre um mais-ou-menos. Limites são sempre um limite e estabelecer limites, ter de estabelecê-los, é um problema de todos os que fazem mapas – e todos fazemos mapas, sempre de algum tipo, o bicho-homem é um bicho que faz mapas, inventados, de mentirinha, com limites traçados aqui, não, não, ali, retos, em curva, em ziguezague, do jeito que sai na hora.

Os limites dos mapas na verdade são sempre os nossos próprios limites.

Então os prédios Do Lado De Fora são os prédios que estão além dos limites do nosso mapa.

Poderiam estar dentro.

A parede deste prédio que fica Do Lado De Fora é uma parede lisa, reta, sem nenhum ponto de observação que dê para este nosso pátio. E só no finzinho deste terceiro lado ficam então os aposentos dos Invencíveis.

Eles ficam então perto do limite – o nosso limite e o do mapa.

Falta o quarto lado.

O quarto lado do quadrado é tomado pelo galpão.

Quando eu falo tomado, estou me referindo ao sentido mais comezinho, bobo, de quem só vê o horizontal.

Porque tem o vertical. Só que geralmente as pessoas não se preocupam muito com o vertical. Quem, ao se deparar com um galpão, se preocupa em olhar para cima ou, pior, para baixo, para o mais baixo, para o que está embaixo do solo, ou, quando for para cima, para lá em cima, para cima das nuvens, se houver nuvens, ou para cima do azul, porque azul sempre há, quem?

Camadas e camadas que nem são camadas porque não estão separadas, azuis e azuis e mais azul, isso para cima. E para baixo, agora sim, camadas, de subsolos, camadas e mais camadas, cada vez mais para baixo, para onde ninguém nunca foi.

Porque o Castelo tem tantas escadas, portas que não se abrem, corredores que não dão em lugar algum e abóbadas tão baixas que se você não tomar cuidado bate com a cabeça e fica lá desacordado para sempre. Porque o Castelo é assim, então, feito e refeito sem parar e feito e refeito sem nenhum motivo aparente, sempre em obras.

E porque é assim o Castelo, com essas camadas de tempo, que há então os Perdidos.

Que pode ser qualquer um de nós, eu ou vocês, alguém que, em algum momento, ficou parado no tempo. Os Perdidos são os que encontraram.

Os que encontraram alguma coisa de muito importante ou muito terrível, extremamente boa ou extremamente ruim, em algum momento do tempo. E ao encontrar essa coisa, que pode ser muitas coisas, eles se encontraram nelas e grudados nelas ficaram, então são esses os Perdidos, são os que encontraram.

E ao encontrar, encontraram também sua definição, se encontraram a si mesmos.

É terrível isso.

Mil vezes continuar perdido de si e das coisas, do que se achar e parar. E virar um Perdido.

Perdidos, portanto, são seres que pertenceram – ou pertencem, o tempo no Castelo é de fato um problema – a qualquer um dos grupos já citados e que por algum motivo terrível – e o bom também pode ser terrível – lá se perderam e se acharam, e vagam então eternamente pelas salas não ocupadas, pelos corredores sem fim.

E nesse sentido, então, os limites ficam ainda mais frágeis. Não só os do mapa, feitos assim ou assado.

Não só os verticais, nos azuis e azuis, isso para cima, e nos subsolos que não acabam, isso para baixo.

Mas também no sentido horizontal – tantos metros em cada lado do quadrado. Mesmo do ponto de vista “horizontal” – ou o que poderia ser chamado de horizontal em um planeta que é uma bola que gira em um espaço que não cabe em nenhuma geometria – mesmo do ponto de vista “horizontal”, o Castelo também não tem limites, já que podemos nos perder-achar, já que podemos ficar andando por ele para sempre. Dentro dos limites que, ingênuos, julgamos ter colocado.

 

Eu apareci por acaso. Calhou de ser eu.

Acaso é uma coisa que acontece. com certeza vocês já ouviram falar que acaso não existe, que tudo é determinado. Mentira. Existe sim. Há mesmo uma definição de inteligência que diz que é inteligente quem consegue reagir bem, e rápido, aos acasos. Inteligentes seriam os que não obedecem cegamente a uma lógica.

(Sim, há mais de uma lógica, é esse o ponto. É preciso descobri-las, são incontáveis.)

Bom, então, pelo menos do meu ponto de vista, fui por acaso.

Os do Grupo N.Ó.S. disseram que já estavam me esperando. É esse o problema deles, eles ficam esperando.

Sim, quem girou a maçaneta da Biblioteca Velha, quem fez barulho de passos nas tábuas do corredor do Castelo, fui eu. Quem todos esperavam não era eu, mas acabou sendo eu.

Sei que fui uma decepção muito grande para eles. Acho que é porque uso óculos.

E também porque sou mulher.

Fica meio estranho uma personagem chamada Hussarda, uma Guarda Prussiana, uma Coronela, uma Fua Manchua. Mas é isso aí.

Todo mundo tem de se acostumar com coisas novas de vez em quando. E quando a coisa nova é mulher fica mais difícil ainda.

Mas por causa, muito provavelmente, da decepção (sou meio gordinha também), a ação propriamente dita durou pouco.

Como os N.Ó.S., apesar de estarem esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, não tinham ainda estabelecido os específicos, eles não podiam ter muita certeza do que estava por vir.

Eu parada na porta, eles me olhando, eu percebi, eles ainda pensaram que, bem, as aparências enganam, vai ver é um disfarce. E, então, conformados, fizeram as saudações de praxe, as mãos levantadas:

— Ave.

— Ave.

Só o Fábio, inconsciente devido à ausência de pizza, estragou um pouco o cerimonial achando que a conversa se referia a alguma galinha assada. Uma pena. Estava bonito. Essas coisas são bonitas, vocês sabem.

Então nos saudamos e rapidamente eles me aceitaram assim do jeito que eu sou.

É uma das vantagens deste ponto da geografia: os tais dos acasos, os inesperados, o que sai da norma, são tantos e tão frequentes que nós, habitantes dos mapas desenhados acima, rapidamente nos adaptamos e vamos em frente.

Ou talvez seja porque somos mesmo mais inteligentes.

Só a questão da Arma Secreta ainda pega um pouco. eu devia vir trazendo uma Arma Secreta.

Pedi detalhes. Fiz uma lista. Eu tambem me adapto, e alguns dos livros que os N.Ó.S. leram eu também li. Além de alguns que eu li e que os N.Ó.S. não leram.

Mas, sim, a lista de Armas Secretas. Apresentei uma lista para que escolhessem.

Fiz a lista de Armas Secretas, mas na verdade, o Secreto não era a lista mas os meus motivos. Aparentemente, era para que escolhessem qual seria a mais adequada à situação. Mas eu queria também que eles vissem como ficava a lista, com todas aquelas armas juntas.

Eu queria que eles chegassem a uma conclusão sobre a lista.

Carros movidos a vapor de água, raios de controle de mente, submersíveis atômicos, autômatos gigantes japoneses, objetos voadores luminosos feitos de éter, ondas de calor, ondas para fazer dormir, canhão gigante, míssil radiativo, robô humanóide, animal mecânico, gases hipnóticos, drogas que transformam pessoas em lobispessoas.

Nesse ponto fiz um discurso sobre o determinismo machista da palavra lobisomem, mas ninguém achou o assunto muito interessante. Talvez eles tenham razão. Talvez, hoje – mais uma vez essa palavra estranha! – hoje esse assunto, o machismo, já não seja tão importante quanto foi há algum tempo. É que eu … eu ia dizer aqui a minha idade, mas eu não sei da minha idade.

Lembram daquelas menininhas brincando de estátua no primeiro lado do quadrado – ou retângulo – que é o Castelo? Pois é, talvez eu tenha sido uma daquelas menininhas que estão lá desde sempre. Mas isso veremos depois.

Então, continuei com minha lista.

Poção da invisibilidade, adagas, sabres e espadas, talismãs, amuletos, figas, cristais, olhos de vidro, agulhas com soporífero, bússolas que mentem, bombas de luz que cegam, tinta invisível, nitroglicerina, mandrágoras, unicórnios, basiliscos, esfinges, hidras, salamandras, máquina de transmissão de imagens e sons.

Minha lista era grande. Era esse o meu truque.

Quando terminei, todos dormiam.

Acordei um por um para dizer o que eles já sabiam, que o bom do excesso de armas é que o respeito por elas acaba.

É verdade, tanto faz morrer de hiperdetonador subatômico ou de 38 enferrujado. E matar é matar, seja com tiro ou por fome, usando revólver ou aprovando uma política econômica no Congresso.

Mas o livro dizia que ia aparecer Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Então resolvemos escolher de comum acordo uma Arma Secreta, estabelecendo que a definição de arma e a definição de secreta seriam dadas posteriormente.

Achamos que todos dormirem antes do final da lista era um sinal óbvio de que a Arma Secreta deveria ser ou onda eletromagnética hipnótica para fazer dormir ou uma agulha com soporífero extraído de uma determinada planta africana.

Uma pena que eu não tivesse nem uma coisa nem outra.

 

Lei primeira do HD da Eterna Sabedoria

Parágrafo único: Todo mundo tem de ter uma arma secreta, e quem não tem, tem de achar que tem.

 

É isso ai.

(Explicação necessária: o HD Da Eterna Sabedoria é um HD que se acessa através de uma senha criptografada que apenas alguns poucos eleitos dominam. No entanto, esse HD está ao dispor de qualquer um. Ele fica lá, nas suas profundezas, em repouso, aguardando que seu dono o acesse. Repetindo: ele está ao dispor de qualquer um. Todos têm um HD Da Eterna Sabedoria. Apenas ainda não aprenderam a acessá-lo)

 

O problema é o seguinte.

Eu acho que já disse isso, o problema é o seguinte, antes. E, pior, acho que vou dizer outra vez mais à frente.

Mas o problema – esse de agora – é o seguinte.

No Castelo moram os E.L.E.S., os P.A.I.S., os N.Ó.S., os Invencíveis, os Perdidos, a Turminha Legal e alguns Barbudinhos. Tem o David, que fica para depois.

E tem a Deusa Mor. Uma das tarefas dos N.Ó.S. é descobrir quem ela de fato é.

Além, portanto, de vencer o inimigo do momento (que no caso é, como sabemos, Física 2, Prova Final), escolher se vão se aliar aos Invencíveis ou aos E.L.E.S., driblar os Perdidos, gerenciar a convivência com os P.A.I.S., fugir da Turminha Legal, e tentar incansavelmente uma comunicação proveitosa com os Barbudinhos, os N.Ó.S. têm, como tarefa, descobrir quem é de fato a Deusa Mor.

E lidar com o David, mas isso fica para depois.

 

A Deusa Mor – Montagem de personagem

 

A Deusa Mor é velhíssima e muito pequena. Veste-se com umas roupas estranhas, como se fosse uma menina rica ou como se estivesse fantasiada de menina rica. Mas velha, muito velha. É pequena, parece frágil, mas dizem que tem uma enorme força, toda ela concentrada na voz. Uma ordem, com sua voz esganiçada, é cumprida sem discussão. Os outros simplesmente obedecem, como se fossem robôs, mesmo quem nunca a viu.

Por tudo isso e mais um pouco, a Deusa Mor pode ser:

1) Deusa Mor nos Perdidos

A Deusa Mor pode ser uma Perdida criança. Uma menina que há muitos e muitos anos viu toda a sua família morrer em um incêncio que destruiu sua fazenda. A fazenda era no lugar onde hoje tem o Castelo. E ela ficou vagando, com seu vestido de organdi e sua boneca de pano, pelo local, vendo o Castelo ser construído e destruído e construído outra vez, sempre, sem parar, e nunca pôde ir embora, reconhecendo cada vez menos, a cada década que passa, um canto do chão onde era a cozinha da fazenda, a curva da raiz onde uma vez ela achou um ovo de galinha ou de ave silvestre, reconhecendo as nuvens que de trezentos e setenta e oito em trazentos e setenta e oito anos passam outra vez, no mesmo formato, na mesma sequência, com a mesma pressa, ou falta de pressa.

Ficou assim, esta menina, Perdida.

E com o tempo ela uma vez arrumou um canto confortável para que sua boneca dormisse, sabendo que talvez ao voltar não mais encontrasse, não a boneca, mas o próprio canto, transformado talvez em um novo muro, em um apoio para uma nova janela. Mas deixou assim mesmo porque às vezes mesmo os Perdidos precisam deixar coisas atrás de si. E depois, mais tempo ainda depois, um laço que prendia seus cabelos se desfez, uma ponta da saia rasgou. Mas ela não ligou e continuou vagando, vagando.

E um dia ela se deparou com uma sala totalmente vazia e, um pouco para brincar, um pouco por estar se sentindo naquele dia mais sozinha do que de hábito, colocou uma plaquinha que tinha encontrado ao lado de umas cerâmicas e que dizia Deusa Mor em uma língua muito antiga. Para mostrar à mãe – que estava tão ausente – como ela aprendera bem suas lições de colégio, escreveu então embaixo a tradução Deusa Mor em uma língua mais recente.

E colocou na sala vazia.

E as pessoas acreditaram e até hoje ela se espanta quando alguém entra e faz uma reverência e ela percebe que ela está sendo considerada a Deusa Mor.

E então de vez em quando ela grita, na sua sala vazia, como todas as crianças gritam quando estão de mau humor. Ou assustadas.

Com o tempo ela começou a gritar para se distrair. Achava engraçado como todos obedeciam:

— Todo mundo com uniforme completo na quinta-feira!!

E todos vinham.

Mais tempo ainda se passou e ela começou a não achar mais tanta graça. Meio bobo isso de todo mundo sempre obedecer sem discussão. E aí passou a gritar por mau humor. Outra vez.

E também porque todo esse poder a deixava assustada. Mais uma vez.

2) Deusa Mor nos E.L.E.S.

Outra hipótese é que se trate de uma E.L.E.S. Há uma particularidade dos E.L.E.S. e só dos E.L.E.S. Eles sempre caem para cima. Qualquer componente de qualquer um dos outros grupos quando cai se machuca. Os E.L.E.S. não. E até mesmo nas quedas metafóricas, as quedas de poder, não são bem quedas. Nunca são. Um E.L.E.S. que comande uma área importante, quando perde o posto, ganha outro. Em geral, a frase perde o posto, inclusive, não se aplica. Ele não perde o posto. Ele assume outro. Ele é promovido para outra área. Ele se aposenta com louvor. Ele é convidado para outra atividade. Ele ganha um prêmio milionário por serviços prestados. É sempre assim.

Então a Deusa Mor pode ser uma E.L.E.S. que caiu para cima.

Por exemplo: ela começa bem jovem sua carreira profissional. Ela é muito esperta, sabe a quem se aliar, de quem manter distância. Maridos e filhos, por exemplo, nem pensar. Estragariam todos os seus planos. E ela vai subindo, gerente, diretora, e chega, o que é raríssimo acontecer com mulheres, a presidente executiva. Todos aplaudem, todos dizem o quanto ela é maravilhosa e esperta etc., e enquanto estão aplaudindo mesmo já estão pensando em como fazer para se livrar dela. Sim, porque é muito desconfortável isso de uma presidenta executiva mulher. Vocês vão lembrar. Logo que eu cheguei e abri a porta da Biblitoeca Velha. O mesmo desconforto, constrangimento. Todos gaguejando por ter de empregar palavras que nem estão no dicionário, como Hussarda, nomes que precisaram ser inventados de supetão, como Fua Manchua! Vocês lembram. Pois a história aqui é parecida, as pessoas discutindo se presidenta está certo, e isso sem parar de bater palmas.

E aí um dos subordinados dela, talvez o mais querido, o mais próximo, chegou um dia com a cara radiante de felicidade e falou baixo porque ainda não era oficial. Falou baixo que ela iria receber uma surpresa ainda naquele dia. E ela toda contente:

— É surpresa boa?

E ele:

— Ótima! um suprassumo, o ápice, a consagração maior de todas!

E ela mal podia esperar e no final do dia chegaram todos os diretores, todos os E.L.E.S. mais graúdos que estavam sob o comando dela, e disseram que ela havia sido escolhida para virar Deusa Mor!!!

E a boba gostou do nome e aceitou. E ainda enxugou uma lagriminha, comovida.

E aí foi para a sala vazia com a plaquinha debaixo do braço. Os outros fecharam a porta atrás dela. Ela ficou lá.

De vez em quando ela acaricia a plaquinha. Tinham dito que era de ouro legítimo, ouro do mais legítimo. Ela acaricia e futuca com a ponta da unha. Às vezes ela fica em dúvida se é ouro mesmo.

3) Deusa Mor nos P.A.I.S.

A Deusa Mor pode ser uma componente do Grupo P.A.I.S. infiltrada.

Há P.A.I.S. e P.A.I.S.

Há uma coisa sobre P.A.I.S. que vocês devem saber: eles são ansiosos. Há os muito ansiosos e os poucos ansiosos. E aí imaginemos o seguinte. É uma situação das mais prováveis.

Um N.Ó.S. do tipo calado. Ele chega e o P.A.I.S. pergunta:

— E aí, como foram as coisas?

E o N.Ó.S. invariavelmente responde:

— Bem.

E cala a boca. Não dá detalhes, Não elabora. Não conta nada.

E aí imaginemos que esse diálogo se dá com um P.A.I.S. do primeiro tipo, do tipo muito ansioso.

Ele fica maluco. Pergunta e pergunta e só consegue obter sins, nãos, bens, e hum-huns.

E aí esse P.A.I.S. elabora um plano. Ele, bem, no caso é uma ela, ela faz uma pesquisa e descobre que no Castelo há uma sala vazia aonde ninguém vai.

E então ela se prepara cuidadosamente. De todos os disfarces, o melhor é de criança. Jamais um N.Ó.S. vai pensar num P.A.I.S. como uma criança. Aí ela escolhe um vestidinho esquisito, de organdi, que estava guardado há muito tempo dentro de um baú, empoa a cara com um pó branco, acaba gostando da brincadeira e capricha em uns laços de fita.

Fantasia tem um problema. É que não tem fim. Uma vez entrando-se nela, tudo pode, tudo dá, e a pessoa vai inventado, achando que só mais um pouquinho e vai ficar ótimo, só mais um pouquinho, e nunca fica realmente completamente ótimo. Está sempre faltando alguma coisa.

Então esta P.A.I.S. começou a inventar e a se fantasiar e lembrou como seria bom ser Deusa. E aí achou que Deusa só, assim simplesinha, era pouco. E mandou fazer uma plaquinha que ficou linda, escrito Deusa Mor. E foi para o Castelo, de cuja porta não costumava passar, ficando, junto com os outros P.A.I.S. a empurrar quem tentava sair de volta para dentro e a entoar as palavras mágicas:

— Mas já acabou?! Não é possível!!! Estude mais um pouco!!

Foi para o Castelo e numa hora em que não tinha ninguém por perto, entrou sorrateira, segurando forte a plaquinha de Deusa Mor e dizendo para si mesma que quando aquilo acabasse – questão de dois ou três dias – , ela iria guardar para sempre a plaquinha no fundo de uma gaveta. Para poder de vez em quando olhar e se sentir uma Deusa Mor.

Eram apenas dois ou três dias, só até ela descobrir como o N.Ó.S. estava de fato se virando em relação ao Grupo Livros.

Mas depois que ela descobriu isso (ele estava se virando mais ou menos), ela achou que havia mais coisas para saber.

Aquele ponto que já vimos, é difícil parar.

Aliás, aquele outro ponto que também já vimos. É muito difícil pertencer a este grupo. É uma das tarefas mais difíceis deste nosso jogo. Acreditem. Há sempre uma margem de erro muito grande nas ações deste grupo, e suas ações, apesar de a aparência dizer o contrário, são na verdade limitadas.

É muito difícil.

4) Deusa Mor nos Invencíveis

A última hipótese é a Deusa Mor ser uma Invencível.

Não, não, não é de todo improvável e a favor desta hipótese há o fato de os Invencíveis gostarem muito dela.

Era uma vez uma menina Invencível que trabalhava todos os dias, junto com sua mãe e irmãos, descascando mandioca para fazer farinha. Ela, pequenininha, pegava a faca com força e num golpe só tirava a casca de um dos lados da mandioca, virava, tirava do outro lado, e do outro e do outro, e isso o dia inteiro, todos os dias. Ganhava alguns centavos por mandioca descascada e, assim, se esforçava para descascar o máximo possível. Às vezes a faca escapava e ela cortava o dedo.

Mas ela era muito bonita.

Todo mundo achava.

Então um dia apareceu um homem muito rico que quis ficar com ela e o pai negociou com o homem e ela foi. E depois aconteceram muitas coisas, que ela não achava nem boas nem ruins, mas que ficavam ruins porque ela tinha saudade dos pés de mandioca, um ao lado do outro, em fila, subindo o morro. E um dia ela estava assim parada pensando nos pés de mandioca que subiam o morro quando ouviu uma voz perto dela.

Era outro moço rico e eles se gostaram e foram morar juntos e ela aprendeu várias coisas, mas no começo ela ficava com vergonha porque era a única Invencível daquele ambiente. Era o que ela achava. Depois, aos poucos, foi descobrindo que várias outras pessoas também tinham sido Invencíveis, mas disfarçavam. Mas ela não.

Todos os dias ficava na janela fazendo força para não esquecer dos pés de mandioca e das canções que ouvia em criança.

Um dia o moço rico morreu.

E ela saiu daquele ambiente do mesmo modo que tinha entrado. Pela mesma porta. Andou por muitos lugares. Até que descobriu um lugar que tinha uma janela que dava para um morro onde ela, agora muito rica, mandou plantar pés de mandioca que ela proibia de arrancarem. Os pés de mandioca eram só para ela ficar olhando.

Mas as pessoas começavam a tratá-la com menos respeito, agora que ela estava sozinha. Começavam a tratá-la como a um Invencível qualquer.

Então ela mandou fazer uma plaquinha com um nome bem pomposo, o mais pomposo que pôde imaginar. E pôs na porta.

Quando um Invencível lhe pede dinheiro, ela gosta de abrir a bolsinha de moedas e mandar que ele estenda a mão. Ela gosta de despejar todas as moedas de uma vez. Ela não gosta de abrir a bolsinha, olhar as moedas uma por uma e escolher uma de valor menor para dar. Ela acha isso feio.

Ela despeja e pronto. Mais de uma vez um deles voltou, os olhos brilhando, para devolver um botão perdido, uma ficha de telefone, uma bala de hortelã, que tinham ido misturados às moedas.

Devolvem e dizem, sorrindo:

— Veio por engano. A senhora pode sentir falta.

E depois agradecem outra vez. Eles se sentem bem com isso. É como se eles também estivessem dando algo, de retorno, para ela. Ela sabe disso. Entende essa coisa de dignidade.

 

Bem, é este o problema. A Deusa Mor pode ser qualquer uma dessas personagens, pertencer a qualquer um dos grupos. Só da Turminha Legal e do Grupo Barbudinhos é que ela com certeza não é.

Quer dizer, dos Barbudinhos ainda pode ser, embora seja difícil. Não há praticamente mulheres neste grupo.

Mas pode ter acontecido de uma menininha, única mulher entre dez irmãos, ter aprendido só de olhar. Só um computador no quartinho dos fundos e os dez ali, acotovelados, brigando, agora é minha vez!, agora é minha vez! Nunca ninguém sequer pensou na possibilidade de a menininha também se sentar por um minuto que fosse em frente à tela. Ela ficava sempre bem atrás, e a única coisa que via era uma massa de ombros, camisas e cabeças, os seus dez irmãos tapando quase completamente a tela. Quase. Aqui e ali, entre uma orelha e uma gola, a menininha via às vezes um pedaço de tela, de teclado, e foi aprendendo sem ninguém notar.

Cresceu e tomou gosto por uma brincadeira. Gostava de ficar quieta, num canto, em ambientes onde Barbudinhos têm suas raras interações pessoais.

— Ih, encontrei com o Wild Wolf no ICQ! Mas ele estava away.

— Faz um tempão que não falo com ele. A última vez foi quando deu problema na minha mother.

— O que aconteceu? Perdeu a Bios de novo?

— Não, dessa vez foi a IDE.

E aí ela, sem nem tirar os olhos do seu bordadinho de ponto de cruz, diz:

— Xii .. Aí tem de trocar tudo… Se ainda fosse antigamente, quando a IDE era separada… Ah, bons tempos…

E a conversa, se é que se pode chamar aquilo de conversa, acaba, os Barbudinhos todos mudos de espanto.

Ela gosta disso. É como ela ri. Uma risada interna, que ninguém nota.

Cresceu mais um pouco e arranjou este emprego de Deusa Mor em um lugar do Castelo onde não havia nem tomada, quanto mais computador. Pois pediu para instalarem uma tomada (“é para meu secador de cabelo”) e embutiu na parede um sistema moderníssimo que ela contrabandeou com grande risco de um país Do Lado De Fora.

Ninguém vê.

Entra na sala dela e não vê. Alguns desconfiam de um espelho grande, com moldura dourada, que ela mantém em cima da mesa e para onde olha fixamente enquanto tamborila com os dedos no tampo da mesa.

Mas é só.

Ou seja, Barbudinho mesmo ela não é, mas pode ser quase. Ou pode ser também que ela não seja componente de nenhum dos grupos do Castelo, mas uma espiã Do Lado De Fora. Com, quem sabe, uma ligação secreta com o David, que seria seu contato entre os N.Ó.S. Mas averiguaremos essa hipótese depois.

Se ficarmos, por enquanto, só com os grupos do Castelo, podemos perceber, portanto, que ela pode ser de quase todos.

Só da Turminha Legal é que com certeza ela não é. Não há hipótese.

 

Principais antagonistas – a Turminha Legal

 

Dados Gerais

A Turminha Legal é o grupo principal de antagonistas, tirando-se, é claro, o Grande Inimigo com seu séquito, que, como vimos, pode variar muito mas que nesta ação é a Física 2, Prova Final.

Ou não é, mas isso será visto depois.

Como antagonistas, os Turminha Legal não se dão com absolutamente ninguém a não ser com eles mesmos e atacam todos os outros tipos de habitantes do Castelo.

Infligem grande dano.

Só não são piores porque, mesmo durante os mais importantes enfrentamentos, são capazes de largar tudo para assistir a jogos de futebol. Quando em uma situação difícil frente a frente com a Turminha Legal, qualquer componente dos outros grupos pode simplesmente tirar um apito do bolso e gritar a palavra mágica pênalti!!!

E oTurminha Legal senta imediatamente, arranja um saco de pipoca e fica assistindo.

É uma boa maneira de resolver sitações complicadas, essa.

Outro ponto positivo é que os Turminha Legal, quando não estão sentados sem fazer nada na porta do Castelo, estão jogando bola ou treinando luta. As mais frequentes são taikendô, sumô, aikidô, judô e também luta suja, com pedacos de pau e golpes baixos. E eles sempre se machucam, eles mesmos, nessas atividades, o que poupa o trabalho dos outros grupos.

É um alívio.

Qualquer um dos N.Ó.S., se tivesse por missão infligir dano a um Turminha Legal, ia se dar muito mal. Eles são fortões e têm 12 ou mais de Coragem quando estão juntos. Separadamente, não. Mas eles andam sempre juntos.

Houve, porém, um caso de Turminha Legal que teve um contato não belicoso com os N.Ó.S.

Foi o Geraldão.

Quando o Geraldão pôs aparelho nos dentes, chegou a passar uns tempos com os N.Ó.S. Mas foi expulso pouco depois, porque ninguém conseguia entender o que ele falava e não era por causa do aparelho.

Data desse episódio uma tentativa de documentar a língua dos Turminha Legal, que apresentamos a seguir.

Vocabulário Básico

Utilizar em situações de encontro inesperado com um Turminha Legal em beco escuro. Quando tudo o mais está perdido, vale a tentativa de negociar, embora as chances de sucesso sejam ínfimas.

Aí pô – ver pô aí;

brother – aumentativo de brou;

cualé – qual é;

galera – coletivo de brother;

lance – espécie de parada que de repente rola;

ó nóis – diminutivo para “olhe como nós estamos”;

qual é – expressão de desagrado;

radical – mina ou brou que mandou benzaço;

roubada – parada ruim;

tamos aí – estamos aqui se você precisar.

 

Vocabulário avançado (ainda em formação)

Maçaneta – maçã pequena. Atenção, portanto, ao tentar usar no seguinte contexto: “Ah! quer me bater?! Vamos lá na Deusa Mor, então, se é que tu é hómi. Quero ver você girar a maçaneta dela!” No exemplo acima, o Turminha Legal pode aceitar o desafio e depois de abrir a porta da Deusa Mor, girar no chão, qual pião, o lanche que está em cima da mesa dela. E ainda dizer que foi você você que sugeriu isso. Cuidado portanto.

Biscoito – relação sexual feita duas vezes. De novo, muito cuidado. Ao tentar subornar um Turminha Legal perguntando, quer um biscoito?, você pode ser muito mal interpretado.

 

Mas não foi a Deusa Mor que me trouxe aqui. Eu vim graças aos Barbudinhos. Na verdade, o fato de os N.Ó.S. estarem esperando Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta na mesma hora em que eu apareci foi uma coincidência.

É, coincidência existe. Sorte também. É minha teoria.

Gosto dos Barbudinhos. Conheço-os bem. E tem isso, quando você conhece bem alguém ou alguma coisa, você gosta. O que nos leva a pensar que quando não gostamos de alguém ou de alguma coisa, é porque não os conhecemos bem. Ou seja: tem sempre alguma parte boa no desconhecido.

É minha teoria. Mas às vezes ela não dá certo.

Bem, os Barbudinhos. Queria falar um pouco dos Barbudinhos. Gosto deles. E foi por causa deles que eu vim para o Castelo.

Uma das principais características desse grupo é que eles não se reproduzem, não têm filhotes.

Mas não se trata de uma espécie em extinção, bem longe disso.

A explicação está na barba.

São barbas com vida própria. Quando seu suporte, a pessoa que está embaixo, não se mostra mais adequado – ou por estar já muito velho, ou por infringir as leis do HD Da Eterna Sabedoria -, a barba simplesmente se desgruda e vai procurar outra cara.

Agora vou contar como tudo realmente se passou.

Eu estava cuidando da minha vida, tranquila, pensando na minha próxima viagem e avaliando as vantagens de ir, desta vez, com meu tapete voador (para descansar da vassoura) quando um dos Barbudinhos me chamou para mostrar uma tela de abertura que estava muito bonita.

Vou tentar ser bem clara aqui. Eu gosto dos Barbudinhos, mas isso não quer dizer que eu goste do que eles gostam. Pensei em dizer não. Mas achei que seria indelicado, então tirei minha gata preta do colo – o que foi desagradável para mim e para ela – e fui.

E vim.

É que a tal da tela de abertura mostrava o Castelo. Uma parte do Castelo. E eu disse o que não devia ter dito:

— Mas eu conheço esse lugar.

Nem sei se disse ou se só pensei. Todos nós somos telepatas.

Pode ser que eu tenha apenas pensado.

Mas de qualquer maneira, antes mesmo de chegar ao ponto que termina a frase, tenha ela sido dita ou só pensada, eu me vi primeiro nos subsolos, e depois nos corredores do Castelo, andando devagar, lembrando de cada tábua, e me aproximando da porta da Biblioteca Velha, onde parei. Eu já sabia. Lá dentro, os N.Ó.S. jogados pelos sofás, poltronas, o Fábio pedindo pizza, pizza, cada vez mais fraco.

Hoje em dia há Barbudinhos em tudo quanto é lugar. No Castelo, eles ficam no subsolo abaixo do subsolo do laboratório de química. E foi para lá que eu fui ao dizer a frase que não devia ter dito.

O subsolo deles é chamado de Subsolo Escuro. O de química, um nível acima, é o Subsolo Claro. Mas, mais uma vez, as palavras, como acontece tanto no Castelo, podem dizer uma coisa ou outra, aquilo ou o seu contrário. O subsolo dos Barbudinhos é chamado de Subsolo Escuro, mas na verdade é claro, iluminado por uma estranha luz fosforescente que emana das telas. As telas são com quem eles se relacionam. Mesmo quando falam entre eles, eles falam olhando cada um para sua tela. É muito estranho.

Já o laboratório de química, que é chamado de Subsolo Claro por causa de umas janelinhas, na verdade é escuríssimo, porque as janelinhas, sempre fechadas, não iluminam nada.

Estou dizendo isso porque nunca se sabe o que pode ser útil algum dia. Pode ser que algum dia um de vocês se veja em um subsolo considerado escuríssimo e, lembrando disso, perceba que mesmo lugares escuríssimos às vezes podem ficar claros se a gente descobrir onde está o interruptor.

 

Detalhes suplementares para os sete tipos de personagem

 

1 – Grupo N.Ó.S.

No Grupo N.Ó.S. há participantes fixos – especificados a seguir – e participantes extras, que podem ser acrescentados dependendo do número de pessoas presente.

a) Fábio. Ele se dá o apelido de Cavaleiro Andante.

(nota: todos os N.Ó.S. têm apelido. Chamam apelido de nickname, ou de nick. Esse é um ponto importante. Há palavras de dentro do Castelo que na verdade são De Fora. Ou é o contrário. Mas depois analisaremos melhor essa questão da linguagem De Fora e De Dentro.)

Fábio escolheu ser chamado de Cavaleiro Andante porque veio de algum  povoado pequeno, talvez da região da floresta, e gosta que saibam disso. Quando fala sua biografia, cita sua origem distante e todos os pontos por onde passou até chegar ao Castelo. Pode ser verdade, pode ser mentira. Apesar do nome, não consta que saiba andar a cavalo. Talvez jegue. No máximo jegue.

b) Henrique. Autodenominado Príncipe Dos Invencíveis.

É o herói típico, com atributos morais elevados – 15 ou mesmo 20 pontos – que compensam escassos recursos de experiência de vida. O Henrique tenta ajudar os Invencíveis até quando os Invencíveis não querem a ajuda dele.

c) Jonathas. Apelido: New Kid.

Não tem uma participação muito efetiva nas ações conjuntas dos N.Ó.S. porque se juntou ao grupo há pouco tempo. Por causa disso – porque poucos o conhecem – e também graças a atributos elevados de dissimulação, é excelente espião quando colocado junto aos outros tipos de personagem.

d) Felipe. Ou Caniço. Ou ainda: O Colosso De Rodes.

Na verdade, Caniço é seu nome secreto, só dito em situações de total privacidade. O Colosso, como prefere ser chamado, costuma ganhar todas as situações desafiando os inimigos para um poquerzinho, jogo do qual conhece todos os truques, os truques honestos e os mais ou menos. Fisicamente O Colosso é muito magro e fraco.

E agora chegou a vez finalmente de falar sobre o David.

e) David ou O Marciano. É o único a não ter determinado ele próprio o seu apelido. Marciano é um nome estabelecido por consenso.

Na verdade há a suspeita que se confirma cada vez mais de que David seja um extraterrestre.

Seus atributos intelectuais são altíssimos.

Suas características pessoais, as poucas que ele permite que se conheça, são muito estranhas: alimenta-se de salsinha, pendura suas cuecas usadas no lustre. E fica cego quando colocado no sol.

Sua pele é branco-esverdeada e meio transparente. Dedos muito compridos. Não é capaz de distinguir cores.

 

2 – Turminha Legal

Também chamados de muitos outros nomes, todos impublicáveis. Turminha Legal é como eles mesmos se chamam. Como já falamos, são os antagonistas principais, não só dos N.Ó.S. como de todos os outros grupos do Castelo.

Eles são vistos às vezes com meninas que mascam chiclete, o que é melhor do que ser visto sem menina de nenhum tipo. Isso é uma indiscutível superioridade deles em relação aos N.Ó.S.

Seu uniforme de bermudas largas e chinelo de borracha pode estar complementado com uma faixa preta de algodão. A faixa preta pode ser virtual. Você não a vê, mas sabe que ela está lá.

a) Geraldão. É pacifista. Instado a matar uma barata disse que era contra. No entanto, é muito grande, medindo um metro e meio de diâmetro. No pescoço. Às vezes acontece de tirar uma vida e não perceber. Quando comunicado do ocorrido, chora copiosamente, espalhando meleca de nariz por um raio de dois metros a seu redor. É preciso cuidado em não estar muito perto dele nessas ocasiões.

b) Marcão. Gosta de escrever poesia, o que é um problema. Ninguém pode saber disso, porque Turminha Legal que é Legal não escreve poesia. Então ele usa um pseudônimo secreto, Zuleika.

c) Tonhão. É o mais inofensivo de todos. Passa os dias estudando para um concurso de segurança de boate, mas ainda não aprendeu qual é a mão esquerda, qual a direita. É um ponto importante do concurso, porque ele não pode cumprimentar os fregueses com a mão errada.

 

3 – Os Invencíveis

Têm esse nome porque são sempre e invariavelmente vencidos, em qualquer circunstância.

Mas só na aparência. Quando você vai analisar bem, quem ganhou foram eles.

Têm 20 de Teimosia. Vivem no passado não só porque têm a missão de deixar-tudo-limpo-como-estava-antes, mas também porque nunca se esquecem, jamais, dos ensinamentos e hábitos de seus antepassados. Parece que é por isso que são invencíveis. Você pode até vencer em um tempo, mas como eles se recuperam em outro tempo, no passado, você acaba perdendo, porque eles voltam iguaizinhos ao que eram antes de serem vencidos, deu para entender? Então não é bem que vivam no passado. Pode ser no futuro.

Não têm nomes individuais. Chamados de José, atendem.

 

4 – Os E.L.E.S.

Há de vários tipos, mas vamos nos ater a um tipo específico de E.L.E.S., os de letra redonda.

São os E.L.E.S. de letra redonda os responsáveis mais imediatos pelas Provas Finais, como a de Física 2, motivo de nossa ação.

Em um ambiente como o do Castelo, onde as personagens se disfarçam e podem muito bem passar de um grupo para outro, só há uma maneira de identificar um E.L.E.S. de letra redonda: é pedir que escreva algo em um papel. Se ele, nessa hora, tirar do bolso um papel pautado, não é preciso nem esperar que escreva nada. É um E.L.E.S. legítimo.

São as únicas personagens a ter esse atributo.

Não são propriamente antagonistas, mas o melhor é manter distância.

Os nomes variam muito.

 

5 – Os Perdidos

Fazem coisas inesperadas, que podem ajudar ou prejudicar os componentes dos outros grupos. São perigosos só quando abrem a boca, porque não escovam os dentes há vários séculos e seu hálito é mortal.

Uma pequena lista de Perdidos já vistos e identificados por pessoas dignas de crédito:

a) Antenor Eugênio Ipiranga da Fonseca y Fonseca. De família tradicional, Antenor foi, contudo, esquecido propositalmente dentro do Castelo, depois que ficou claro que ele jamais conseguiria fazer qualquer coisa de útil.

É visto com mais freqüência nos fundos da cantina e perto do vestiário das meninas, dando risinhos imbecis. Os Turminha Legal gostam muito dele.

b) Aldemiranda Martins Coelho. Ficou porque gosta.

c) Os cinco turistas japoneses. Eles estiveram no Castelo muitos anos atrás para fotografas as ruínas de um dos torreões originais e ainda são vistos fotografando – com máquinas completamente obsoletas e sem filme, o que é muito deprimente – batentes carcomidos das portas, caquinhos dos vitraux originais semi-enterrados nos canteiros etc.

Se você quiser obter alguma coisa deles, uma informação importante, por exemplo, você tem de trocar por algum obejto. Vídeos de Carnaval são altamente apreciados. São Perdidos do tipo menos perigoso, porque raramente abrem a boca. A informação é sempre passada por gestos.

 

6 – Os P.A.I.S.

Seres muito estranhos, que têm uma convivência grande com os N.Ó.S. Uma característica importante: são colecionadores. Do quê, varia. Toalhinhas de mesa, por exemplo.

Como todos os outros grupos, este também não é homogêneo. Há inclusive o boato de que os N.Ó.S., algum dia no futuro, se tornarão P.A.I.S. É um boato apavorante, que pode ou não ser verdadeiro. Em todo o caso, não é uma regra que atinja a todos. O Grupo N.Ó.S. poderá ter componentes que se tornarão espiões infiltrados nos P.A.I.S. em vez de P.A.I.S. reais. N.Ó.S.-P.A.I.S. que nunca se esquecerão de quando eram N.Ó.S. simples.

 

Nota muitíssimo importante: Há toda uma informação sobre este problema de N.Ó.S. se tornarem P.A.I.S. de repente. Consultar verbete “camisinha” nos livros da Biblioteca Velha. Se não achar, este é um dos raros momentos em que é válido um dos N.Ó.S. buscar contato com alguém de outro grupo.

 

7 – Os Barbudinhos

Nunca tomam partido sobre o que quer que seja. Não se envolvem nas várias disputas entre os seres do Castelo. Não falam com ninguém nem escutam ninguém. Quando falam, é sempre entre eles. Este grupo também tem, como os Turminha Legal, um vocabulário específico.

a) Primeiro exemplo – Abri uma janela do edit, e o Windows perguntou quem deveria ficar com a Com3, se era o terminat. Qual será o problema?

nota: não tente se enturmar perguntando quem é o Windows, porque isso seria fatal.

b) Segundo exemplo – Instalei o Typestri Pixar, que funcionou bem mas desconfigurou fontes, impressora e o Corel. Instalei de novo o Corel, impressora e fontes, e passou a acusar erro de dynalink. Desinstalei o Windows, deu o dynalink outra vez e também um Win 32s error, G3230855.exe – unhandled exception detected, code 0xC000005 w32s comb. dII.80ed. E Application will be terminated.

nota: ao contrário do que possa parecer, a descrição anterior não é considerada entediante mas sim algo referente a uma incrível aventura, com lances emocionantes e grandes perigos.

A má notícia é que para se comunicar com um Barbudinho você tem de dar um jeito de entender pelo menos um pouco dos exemplos e, principalmente, dar um jeito de sua cara aparecer em uma tela de fósforo verde, de preferência com recursos de multimídia e velocidade mínima de 14.400.

 

8 – Deusa Mor

Não é um tipo de personagem. Na verdade ninguém sabe a qual dos tipos ela pertence.

O maior atributo especial conhecido da Deusa Mor é que ela sempre esfria a maçaneta da porta da sala onde está, qualquer sala. De modo que quem entra no recinto depois dela, entra de mão gelada. Ela tem outros poderes. Pode ser aliada ou inimiga, depende, mas mesmo como aliada é alguém para se temer e manter distância.

Atributos:

porte atlético – 0;

carisma – 0;

sex appeal – 0;

esgrima, boxe e briga de rua – 0, 0 e 0;

forma física – 0.

Ou seja, não é que se saiba em que atributos a Deusa Mor é boa, mas com tanto zero é porque ela compensou com coisas muito especiais e em alto grau.

É óbvio isso.

Pelo menos, é o que as pessoas acreditam.

 

Então foi uma coincidência. Fui levada de volta ao Castelo por causa de uma tela de abertura de um amigo Barbudinho e, na mesma hora, os N.Ó.S. estavam aguardando, como última esperança, Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Levada de volta porque já tinha estado lá. Já tinha tentado fazer, como todo mundo, um mapa para mim. Depois foi que desisti. Ou não. Mas atualmente meu mapa é uma coisa meio impalpável, feito das pessoas de que eu gosto, dos lugares com que me acostumei e de que gosto, das músicas que ouvi em criança e que nunca mais esqueci, das risadas que o tempo levou mas que de vez em quando, andando na rua, escuto atrás de mim e então me volto, só para me deparar com uma cara completamente estranha. Mas que detém a risada que me é querida.

Então é isso. Aprendi muito.

Mas não sei bem o que apresentar, do muito que sei e tenho, como Arma Secreta.

Na verdade meu problema é maior ainda. Não sei bem o que seja Física 2. Devia ter outro nome no meu tempo.

— Quer dizer que o inimigo é Física 2, Prova Final?

— Ééééé – responderam todos eles num coro fraco.

Fiz mais um esforço para me lembrar. Física, sim, claro. Mas 2?! Comecei a ficar preocupada. Lógica, sim, várias. Mas Física?! 2, 3, Física 35,5?! Meu deus. Acho que eu tenho de sair mais de casa, o mundo, suas partículas, devem ter mudado muito. Fiz mais algumas perguntas e pensei comigo: se não der certo, eu saio um instantinho da Biblioteca e vou perguntar diretamente à menininha que eu fui, e que continua a brincar de estátua no pátio lateral, se por acaso ela sabe.

Foi quando me lembrei da Física Quântica, aquele negócio do movimento, que há um movimento embutido, uma intenção de movimento, sempre, independente de provocação. Achei que era algo de útil e guardei na minha cabeça para uso posterior.

É bonita, essa idéia. De que qualquer matéria não é só matéria, mas movimento de matéria.

(E que por causa disso mesmo, não podemos saber, nunca, como é a matéria “realmente”: ela será sempre uma matéria em perturbação constante.)

Mas eles insistiam. Onde estava minha Arma Secreta?

Para ganhar um tempo, tentei alegrar a conversa:

— Mas e aí, o que vocês contam de novo? Quais são as últimas novidades?

 

Penúltimos Acontecimentos

– em 1492, Cristóvão Colombo chegou à América;

– em 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil;

– em 1513, Vasco Nuñez de Balboa atravessou o Panamá e chegou ao Pacífico;

– em 1531, Francisco Pizarro aniquilou o Império inca.

E continuou a aniquilar, aniquilar, até hoje, quando não mais se chama Francisco Pizarro, adotando vários outros nomes. Todos eles procurando ouro, ouro e mais ouro. E não só dos incas.

Sem nunca ver qual é o ouro.

Isso todo mundo sabe.

 

Responderam o de sempre.

Últimas novidades? Pedro Álvares Cabral. Quinhentos Anos. Quem aguenta.

Perguntei por coisas assim mais detalhadas.

Disseram que a última pintura daquela parte do Castelo tinha se dado no glorioso ano de 1889.

Falei que assim não era possível. Algo mais recente, por favor!

Depois de um esforço acrescentaram que lá por 1964 tinha acontecido uma coisa, o que era mesmo? Era importante, isso eles garantiam, mas no momento não lembravam mais o que era.

A situação estava muito difícil. Aos poucos fui percebendo a gravidade do quadro.

Cheguei a ficar tonta. A ter um momento de pânico.

O inimigo não era Física 2, Prova Final.

Esse era apenas um simulacro, um clone, uma fachada. O verdadeiro inimigo que se escondia por trás do livro fechado de Física 2 era outro. Era o Grande Desânimo.

Os N.Ó.S. tinham feito o que não deviam. Eles tinham jogado tudo para o alto e dane-se o mundo.

Eles tinham desistido.

E eu tenho, sei lá quantos anos eu tenho, mas são muitos. E se há uma coisa que eu sei desta vida é que não se pode desistir. Que é a única hora em que a gente perde.

E eles tinham desistido.

Estavam lá, jogados, sem se interessar por nada, esperando que acontecesse um milagre ou, na linguagem deles, Uma Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta.

Nem mesmo notavam mais o que acontecia. Tinham parado mais ou menos no ano de 1889.

Senti as pernas bambearem. Precisava de um ar. Lembrei das menininhas brincando de estátua.

Eu sei do que estou falando. Eu brinquei de estátua. Era assim: tínhamos de ficar em uma pose, bonita, o maior tempo possível. Imóveis.

Eu sei do perigo. Eu tive amigas que ficaram na pose, bonita, é verdade, mas imóvel, até hoje.

Falei:

— Vou até ali um instantinho. Conversar com uma menininha minha amiga.

Ninguém respondeu.

Só me olharam.

Saí suando frio.

 

A ação – parte 2

Toca o sinal.

Os corredores do Castelo são confusos. Podem se tranformar em um labirinto para quem não conhece bem, não tem o mapa certo, ou para quem não anda por lá há muito tempo, como eu.

O caminho que vai até o pátio lateral onde menininhas brincam de estátua tem uma bifurcação que leva, não mais ao pátio, mas à sala da Deus Mor. Eu devia saber, a maçaneta é fria.

Dentro da sala, uma menininha com cara de velha está sozinha sentada em uma mesa.

Todas as quatro paredes têm espelhos.

Em cada um destes espelhos em cada uma destas paredes há uma tabuleta onde se lê: P.A.I.S., Invencíveis, E.L.E.S. e Perdidos.

A menininha com cara de velha está de frente para um quinto espelho, menor, que está em cima da mesa dela, em cujo tampo ela tamborila febrilmente. Nem sequer levanta os olhos, começa a dar ordens:

— Vá escovar os dentes!

— Põe o troco aqui na mesa!

Como não há resposta, ela continua, sempre sem olhar:

— Quer falar comigo, fique de frente para um dos quatro espelhos, o que você preferir. Ande! Não tenho o dia inteiro!

Como o silêncio continua, ela finalmente levanta os olhos e diz:

— Ah, é você.

E sorri meio sem jeito.

Aqui vale um adendo. Qualquer pessoa de qualquer um dos grupos, quando está em posição de dar ordem, tem o perigo de se viciar. Ordem é uma coisa que vicia muito. A pessoa que começa tem muita dificuldade em parar.

Mas eu tenho de escolher um espelho. Se eu for para o do P.A.I.S. ela vai dizer os N.Ó.S. têm de estudar e muito para se aliar aos E.L.E.S. O espelho dos E.L.E.S. vai dizer que estudo é importante, sim, mas sem esquecer de experiência em negócios. O espelho dos Invencíveis vai me olhar de longe, sem dizer nada, porque não vai precisar me dizer nada. E o dos Perdidos, se me disser alguma coisa, eu morro.

Prefiro abrir a janela.

Lá fora há uma vista de um morro coberto de pés de mandioca. Não é isso que eu quero. Não é isso o importante. Todo mundo tem, se procurar bem no seu passado, um morro coberto de pés de mandioca.

E  aí a Deusa Mor fala:

— Não é esta janela que você quer, tente esta.

A segunda janela mostrava a Árvore Sem Fim em um dia de outono. De vez em quando caíam folhas. Embaixo da Árvore havia alguém. De repente o vulto se abaixa para pegar algo no chão. Parecia uma folha, mas viva, que corria de um lado para o outro. Debrucei-me no parapeito para ver melhor. Não sei quanto tempo fiquei debruçada nesta janela da sala da Deusa Mor. Mas eu precisava saber de quem era aquele vulto.

E descobri.

Já podia voltar à Biblioteca Velha e enfrentar o inimigo pior de todos, O Inominável. Eu já tinha um aliado.

E eu já sabia qual era a minha Arma Secreta.

 

Saí suando frio e fui andando pelas tábuas compridas do corredor, passando por Perdidos, tantos. Um velho roqueiro de mais de setenta anos, ainda com seus cabelos compridos e sua guitarra elétrica, procurando o caminho de Wookstock, onde ele fez muito sucesso. Uma velha senhora carregando nas mãos as sapatilhas de um balé que ela abandonou para casar. Um Perdido-Invencível de cócoras, no chão, procurando um bilhete de loteria, premiado, que ele perdeu e nunca conseguiu achar. Um rapaz debruçado em cima de uns vidros de química murmurando agora sim!, agora sim!.

Tantos. No fim, todos brincando de estátua sem saber. Como o grupo das menininhas. E brincar, jogar, é uma forma de descobrir as coisas. Dá certo para muita gente. Descobrem o que é importante fingindo que não é importante, que é só um jogo.

Meus passos foram e voltaram, soando nas tábuas do corredor, e se detiveram em frente à porta da Biblioteca Velha.

Lá dentro, eu sei, os N.Ó.S. estão falando sem falar, como é o jeito telepático deles.

— Há quanto tempo não escutamos um sinal?

Porque o tempo no Castelo é medido por Sinais. Que tocam, supostamente a intervalos regulares, para avisar que está na hora do almoço, ou que está na hora de fechar a Biblioteca, essas coisas. Mas que não são regulares porque quem decide é a Deus Mor. Que toca o sinal quando bem entende, porque está com vontade, ou porque não está com vontade.

Então é isso.

São esses os Sinais.

Mas se você não prestar atenção, pode escutar e, o que é pior, acreditar. Em uns sinais que, bem..

Os N.Ó.S. estão na Biblioteca Velha achando que se preocupam com os sinais, mas não é com os sinais. É com eles mesmos. Percebem, agora, quando está quase tudo perdido, que eles estão inermes, apáticos, sem notar nada do que se passa ao redor deles há muito tempo, há tanto tempo que não dá nem para saber quanto tempo é.

A maçaneta começou a girar.

Eu entrei.

Eu olho fixo para o David.

Está na hora de começar.

 

Últimos acontecimentos

Antes fiz, pela última vez, a pergunta: o que tem acontecido de novo?

a) Henrique

Henrique disse que, durante uma corrida de táxi atrás das mais belas mulheres dos cinco continentes, dos sete mares e dos dezoito filmes em cartaz, havia esquecido no banco traseiro uma pasta com o Segredo De Tremer O Mundo. Ele precisava recuperá-la porque senão os Invencíveis seriam, como sempre que há um Segredo De Tremer O Mundo, os mais prejudicados.

Por que? Porque são eles os mais prejudicados em qualquer situação. E então, para isso, o Henrique disse que contava com a ajuda de Jonathas, o único com o Feitiço Do Corpo Fechado e imune à Praga Da Coca-Cola Envenenada, o que era uma vantagem, já que o Felipe, ou Caniço, perdão, O Colosso de Rodes, tinha medo de cachorro e quando rolaram o dado para saber qual probabilidade havia de aparecer um cachorro naquela hora deu 2, ou seja, tudo bem.

b) Fábio

O Fábio disse que não comia há uma semana e que para conseguir desencavar um saco de batatinhas que acabou ficando emparedado na última reforma da Biblioteca ele precisava de uma marreta eletrônica movida a energia magnética, mas que eu não me preocupasse, porque a batatinha estava em um saco especial, de um plástico molecular orgânico desenvolvido pela NASA, capaz de aguentar milênios no espaço, porque era batatinha de astronauta, já testada inclusive na última viagem a Vênus.

E que a marreta viria com o Henrique, porque estava previsto que na sua próxima viagem de táxi ele acharia a marreta no porta-malas, quando o abrisse para retirar de lá O Colosso De Rodes, passageiro clandestino em direção ao Espaço Virtual 4.

c) Jonathas

Disse que estava dormindo e que não tinha visto nada.

d) Felipe

Tinha comprado um aparelho de musculação e passado os últimos dias tentando dar um jeito no bíceps, ou no não-bíceps.

e) David

Disse que tinha acabado de voltar de uma estada em um Universo Alternativo onde destruiu o Império Do Mal, depois de ter pisado sem querer em um círculo de pedrinhas do pátio onde na verdade havia uma Porta De Outra Dimensão. Falou isso me olhando fixo. Acrescentou que havia uma Trama Maldita. E disse algo sobre hiperqualquer coisa e raios de alguma coisa. E ainda pôs no final um transfugador molecular do tempo ou pelo menos foi isso que deu para entender. Ele estava mentindo. Estavam todos mentindo. E acrescentou:

— Daqui a pouco vai estar na hora de esclarecermos umas coisas sobre o jogo.

Tocou mais um sinal e dessa vez todos ouviram.

 

Quando eu cheguei, os N.Ó.S. estavam na Biblioteca, para onde tinham ido para se preparar para a Física 2, Prova Final, mas tinham se deparado com um inimigo maior ainda, o maior inimigo de todos, com O Problema.

Pedi que eles me contassem as últimas novidades. Tinha feito isso para ganhar um tempo, já que eu não sabia nada de Física 2, não tinha a menor idéia de qual era minha Arma Secreta e, na verdade, estava ali por engano.

E eles me contaram sobre Colombo, Pedro Álvares Cabral etc.

Insisti. Não é possível, falei, que nada tenha acontecido de mais recente um pouco.

E eles me falaram sobre Portas De Outra Dimensão, Feitiços, Pragas, Espaços Virtuais e dadinhos que rolavam e davam 2.

O quadro estava claro.

Deixei que conversassem mais um pouco enquanto eu trocava  idéias para um plano de ação, telepaticamente, com o David.

Eles começaram a discutir a conveniência ou não de implementar um Desastre Fatídico contra um componente da Turminha Legal que tinha passado o recreio conversando com a Carla.

Carla era o Romance Impossível do Henrique. E do Fábio. E do Jonathas. E o Felipe quase chorou porque nào fazia nem uma semana que ele tinha salvado a Carla de um Perigo Iminente graças aos 10 de Esgrima dele e mais sua sorte nos dados.

Eles discutiam porque tinham dúvidas a respeito do Desastre Fatídico: havia indícios fortes de que não só aquele componente específico da Turminha Legal mas praticamente toda a Turminha Legal ia repetir ano, então nem valia o esforço.

Além disso, eles também tinham muita dúvida sobre qual dos N.Ó.S. exatamente iria chegar perto do componente da Turminha Legal e provocar o Desastre Fatídico nele.

E havia outro problema.

— Acho que houve alguma coisa, porque ficamos um tempão sem ouvir o sinal. Talvez tenha faltado luz – falou Henrique. — Agora fica difícil saber que sinal é esse, proque perdemos a sequência.

E, acrescentaram todos:

— Talvez já tenha passado da hora de abrir o livro da Física 2. Talvez nem valha mais a pena mesmo, porque acho que iríamos perder mesmo. Não tem jeito.

Nem vale a pena.

E todos concordaram com a cabeça.

Precisávamos nos apressar, eu e o David.

 

Dados Essenciais sobre Física  2

O volume líquido extravasante pode medir a dilatação aparente, se considerarmos um frasco contendo líquido até a borda medindo AV-ap, por exemplo, então um líquido derramado de 3 cm3 significa uma dilatação de 1 cm3 na fórmula Avf + 1cm3.

O fato de os limites jamais serem fixos não quer dizer que não os tenhamos. Eu, por exemplo, não faço a menor idéia do que possa ser AV-ap.

Mas eu sei que o problema não é esse. Não se trata de Física 2.

O que estávamos vendo aqui era a apatia, o desânimo, o jogar-tudo-para-o-alto-e-dane-se-o-mundo.

A desistência.

E aqui me traí.

Há um grupo no Castelo que não desiste jamais.

É, eu já pertenci a ele. E nunca mais me esqueci.

Hoje, quem olha para mim vê uma pessoa comum, sem grandes atributos, nada muito característico. Mas é só a aparência. Por dentro eu cantarolo canções antigas. E fico contando histórias que já passaram.

Mas que não passaram.

É. Tenho 20 deTeimosia.

É, eu sei bem o que a apatia é capaz de fazer com um povo.

É, eu fui uma Invencível.

Mas eu tinha um aliado entre os N.Ó.S.

Alguém que era nosso aliado há muito tempo, desde o tempo em que a Árvore Sem Fim ainda era um pouco mais baixa do que hoje, em um outono distante.

 

Vestibular Simulado

Questão 1

O inimigo é:

a) alguma coisa que está fora de nós e nos ameaça.

b) Física 2, Prova Final.

c) nós mesmos.

 

O problema é o seguinte (eu não disse que ia acabar dizendo isso outra vez?): é que é difícil mesmo.

Eu sei disso.

Todo mundo faz isso. Quando a vida complica – e a vida tem essa tendência, de complicar – , a pessoa inventa outras complicações da sua cabeça. Aí, resolve essas complicações inventadas. E se esforça para ficar com a impresão de que, junto com as complicações inventadas, ela resolveu também as complicações que não eram inventadas.

Nunca dá certo.

Mas, apesar de nunca dar certo, a pessoa faz outra vez e outra vez.

E, a cada vez, quando vê que não deu certo, quando vê que, apesar dos esforços para resolver as complicações inventadas, as complicações reais continuam lá, firmes e fortes, a pessoa então fica assim parada, achando que nada vale a pena.

Vale.

É que tem de se esforçar.

É que o esforço para resolver complicações inventadas, apesar de considerável, é sempre muito menor do que o esforço para resolver complicações reais.

Afinal, se é coisa inventada, é porque podemos controlar. Quando não é inventada, esse negócio de controle já fica um pouco mais difícil.

Mas um dia a pessoa percebe.

Mesmo sem escutar nenhum sinal.

Os N.Ó.S., por exemplo.

Os problemas deles se acumulavam.

Além da Física 2, muito além.

Não eram só as meninas. Ou, melhor dizendo, a ausência de meninas.

Havia a história do coro.

Nesta época do ano, já, todos os dias, a uma determinada hora, há um coro formado pelos P.A.I.S. na porta do Castelo. Eles entoam a melodia “Vocês não vão passar”.

É uma espécie de encenação teatral. Eles se cobrem com véus escuros, fazem gestos de terror. O David, que é muito culto, já explicou aos outros N.Ó.S. a estrutura da tragédia grega e o papel de oráculo do coro, uma espécie de “voz do autor”, sendo que o autor, na tragédia grega, era apenas um porta-voz do Destino.

Coisa muito impressionante.

Não sei se ele devia ter dito tudo isso. É claro que é interessante. Mas os N.Ó.S. não estavam precisando de mais esse golpe.

Pois já havia, por exemplo, o sonho do Henrique.

O Henrique é o seguinte. Ele faz questão de parecer sempre muito à vontade em qualquer ambiente, mesmo quando está cercado por seres dos outros grupos. Mas ele tinha um sonho e esse sonho estava se repetindo com cada vez maior constância. Ele estava nu, tinha acontecido alguma coisa e essa coisa variava, mas o resultado é que ele estava nu, descalço, apenas com uma camisa não muito comprida que deixava aparecer a pontinha do, bem, vocês sabem do quê.

Ele tentava andar sem fazer barulho para não atrair a atenção dos outros nos corredores do Castelo. Ele andava e andava, tentando chegar a algum lugar que ele não sabia bem qual era, nu, puxando a camisa para baixo, sem adiantar, e o sonho sempre acabava quando em uma virada do corredor ele dava de cara com todo mundo.

Acordava suado, em pânico. Muito ruim.

Daí que suas risadas, que antes serviam para demonstrar o quão à vontade ele estava, soavam cada vez mais falsas ultimamente.

E enquanto tudo isso acontecia, havia o problema da Deusa Mor.

A Deusa Mor andava fazendo pressão para todo mundo frequentar uns cursos extras. Técnicas De Memorização, As Dez Melhores Carreiras, Os Prazeres De Uma Vida Produtiva Dentro De Uma Grande Corporação Estrangeira. E por aí.

E nós já vimos como é complicado esse negócio de dar ordem. A pessoa vicia mesmo. E ai de quem não obedece.

Com tudo isso, o tempo disponível para os N.Ó.S. ficarem na Biblioteca Velha com o Grupo Livros era cada vez menor.

E ainda quando conseguiam, ficavam jogados nos sofás e poltronas, sem ânimo para nada.

E, claro, o problema das meninas. Que não era bem um problema, quer dizer, era. Não era. Era.

Era um problema mais para as meninas do que para os N.Ó.S., eu acho. Porque é claro que todos eles queriam, evidente, mas era um querer assim meio teórico, meio vago.

Já as meninas, não. Queriam porque queriam. E aí pressionavam:

— Você vai fazer o quê, hoje à tarde?

Meu deus.

Quer dizer, tudo bem, oba, qual é o problema? Mas onde botar as mãos? Ficar roendo as unhas, que era a saída preferida de nove entre dez componentes do Grupo N.Ó.S., não se sustentaria por muito mais tempo. Botar as mãos no primeiro lugar que viesse à cabeça era confusão na certa, porque a mente, bem, deixa pra lá. Ficar segurando quilos de livros era uma idéia, mas cansava.

Enfim.

E ia chover e já devia ser tarde, nenhum deles sabia que horas eram, nenhum deles tinha aberto o livro de Física 2, ninguém tinha muita certeza se queria ser engenheiro ou dentista. E de repente isso tudo ficou muito claro e também ficou muito claro que havia alguém andando pelo corredor do lado de fora e que esse alguém não era eu, a suposta Ajuda De Fora Com Uma Arma Secreta, porque eu já estava lá dentro.

(Lá dentro e gordinha, de óculos, mulher, e sem nenhuma Arma Secreta aparente.)

O Jonathas, de nervoso, rolou os dadinhos e, bem, deu 2 outra vez. Há uma coisa que eu ainda não contei: venho de uma família de loucos. Mesmo quando um estrangeiro chega à nossa geografia e acha que todos, os N.Ó.S., os E.L.E.S., os P.A.I.S. etc. são todos iguais, e loucos, mesmo nessa hora, quando eles vêem minha família, chegam à conclusão de que há loucos mais loucos do que os outros loucos. E mesmo dentro da minha família tem os loucos muito loucos, os loucos só um pouquinho e tem o tio Luís Maurício, que não é louco. Mas é tão chato que ninguém se dá com ele.

A situação estava muito ruim.

Qualquer um teria simplesmente ido embora. Afinal, eu estava lá por acaso.

Mas não fui. Talvez por causa dessa loucura familiar.

Ou pelo meu grau 20 de Teimosia.

Olhei para o David e disse, telepaticamente:

— Vamos fazer um plano.

 

Planos disponíveis

a) Plano de Batalha, dividido em 1) Momento Zero e 2) Tarde Demais;

b) Adiamento da Batalha, para consulta ao HD da Eterna Sabedoria;

c) Fuga Com Dignidade;

d) Fuga Sem Dignidade.

 

Fiz um rápido resumo na minha cabeça: meninas nem um pouco tímidas, o sonho do Henrique, as espinhas, os P.A.I.S. no coro lá na porta, a Turminha Legal com atributos físicos muito melhores, uma Deusa Mor viciada em ordens, uma pizza que não chegava, e uma enorme confusão de armas complicadas, outras dimensões e tramas complicadíssimas. E, claro, a Física 2, cujo livro estava ali, sem ninguém abrir, todos eles jogados nos sofás e poltronas.

Que situação.

E ia chover e eu estava sem guarda-chuva. E devia estar ficando tarde, era melhor eu dar um jeito de voltar. Via Barbudinho, vassoura ou a pé mesmo. Eu gosto de andar a pé.

Mas, sim. Bem, era melhor fazer alguma coisa.

Olhei para o David.

Ele então deu início a um Plano.

Pus uma batata frita mole na boca.

Porque além daquilo que eu falei antes, eu não ia conseguir perder os três quilos que eu estava precisando perder, então o melhor mesmo era comer logo o restinho de batata frita do saco em cima da mesa.

(Até eu, às vezes, desisto.)

— Vamos lá, pessoal, página 12 do livro.

Era o David me dando a senha para o início.

Não devia ter comido a batata. Foi com a boca cheia, portanto, que comecei.

— Tenho uma coisa para contar para vocês.

E contei.

 

Eu devia ter uns dezesseis anos e naquela época dezesseis anos, ou pelo menos os meus dezesseis anos, eram assim tipo, sei lá, uns onze de agora, nem sei comparar. Estou querendo dizer que eu era mesmo muito boba. Completamente boba. Famosamente boba.

Eu estava na casa desse meu namorado, que era o primeiro namorado que eu tinha. Eu nunca tinha nem flertado com nenhum menino antes. E esse menino era um pouco mais velho do que eu, e não é nem isso. Ele era muito mais esperto, mais vivido. Não estávamos sozinhos, era uma reunião. Ele costumava dar reuniões para seus amigos e tinha muitos amigos.

Eu não tinha.

Estávamos lá e minha roupa era uma blusa estampada de verde e branco que minha mãe tinha costurado para mim e não me lembro se estava de calça comprida ou saia, mas fosse lá o que fosse eu tenho certeza de que era alguma coisa completamente fora de moda, porque eu estava sempre completamente fora de moda. As pessoas, amigas desse meu namorado, algumas já trabalhavam e tinham aquela confiança de quem já tem um trabalho. E era trabalho assim bossudo, nada de ser caixa em banco ou algo assim sem charme, não. Eram estagiários em escritórios de arquitetura, redatores em revistas completamente desconhecidas mas sempre muito interessantes, essas coisas. Eu não tinha muito o que falar e ficava a maior parte do tempo calada.

Todo mundo, meu namorado inclusive, tinha certeza de que além de feinha eu era burra e, bem, em termos de sex appeal, não dava nem para competir com ninguém ali: um zero à esquerda.

E aí alguém começou a falar de um livro de poesias orientais que estava na moda naquele momento e eu já com o pescoço duro de não me mexer, resolvi assentir com a cabeça.

— Hã, hã.

As pessoas pararam, entre irônicas e admiradas.

— Não vai dizer que você conhece esse livro? – disseram eles.

Eu já estava perdida mesmo, perdida e meia. Então disse:

— Conheço sim.

— Aaahhh…

Risinhos incrédulos passaram pela sala.

A casa desse meu namorado era, assim como ele, também muito bossuda. Tinha uma parede estofada com um trabalho de panos formando figuras. Móveis antigos, objetos de arte e, em um armário que de tão velho já não tinha porta, os livros. O armário era de jacarandá maciço e o móvel, dizia meu namorado, um colonial legítimo. E dentro, os livros.

Eu tenho essa sorte. Eu sempre me dei bem com o Grupo Livros.

Eles estavam falando de uma das poesias em particular, do tal do livro que estava na moda. Tinham recitado de cor a poesia e eu, louca, suicida, continuava dizendo que sim, claro, conhecia bem a poesia inclusive…

Não sei o que me deu. Eu nunca tinha ouvido falar daquele livro antes, muito menos da poesia.

Acho que foi um pouco essa coisa de já que você está acabada, tanto faz.

Então falei. A voz bem alta, como se eu estivesse cheia de confiança.

— Conheço bem. É das minhas preferidas. Está na página 12.

Uma das amigas do meu namorado então se levantou, linda, mexeu os cabelos também lindos e foi até a estante sem conseguir disfarçar o riso. Pegou o livro e ainda olhou para mim uma última vez e eu pensei. Que se dane, todo mundo morre um dia.

E ela abriu o livro na página 12 e eu logo vi que havia alguma coisa de errado, porque ela fixou o olho na página e mordendo o lábio superior não encontrou mais nada para dizer além disto: que na edição que ela tinha em casa a poesia em questão estava em outra página.

Eu tinha falado 12 como poderia ter falado 8 ou 183 e ela sabia disso. Só não podia provar.

Ela voltou para o lugar quase chorando de ódio. Ela já tinha namorado meu namorado antes de mim.

Logo depois disso eu e meu namorado acabamos o namoro.

E eu acho, gente, que terminar esse namoro foi meu segundo lance de sorte.

 

Eu ri.

Eu tinha acabado de usar minha Arma Secreta.

Sim. Histórias podem ser Armas Secretas.

Mas os N.Ó.S. continuavam em silêncio. A Biblioteca estava um pouco mais escura. Estava ficando realmente tarde.

E então eu concluí. Para reforçar. Para ver se dava resultado.

— Sei lá. Às vezes as coisas também dão certo, gente.

Mas ninguém estava mais prestando atenção. Os passos que tínhamos todos escutado antes de eu começar e que fingimos não estar escutando continuavam e agora pararam. Em frente à porta.

A maçaneta girou.

Era um Invencível.

Foi o David que chamou. Telepaticamente. Tenho certeza. Era a segunda parte do Plano que ia começar.

 

David e os Invencíveis

 

Em um dia de outono, a Árvore Sem Fim estava perdendo algumas folhas, que caíam lentamente no chão onde o David estava.

Lá pelas tantas caiu algo, não em ziguezague, como se fosse folha, mas reto, e ainda fez um barulhinho.

Ploft.

David foi ver e era um filhote de passarinho.

Não foi só o David quem viu. Foram todos.

Inclusive o pessoal da Turminha Legal, que saiu berrando atrás do filhotinho, com aqueles chinelões de borracha e o mau jeito característico desse grupo.

David foi atrás e, vale fazer uma anotação, apesar de, como componente do Grupo N.Ó.S., ele ter uma pontuação bem baixa em Coragem, ele chegou mesmo a dar um empurrão em um dos Turminha Legal que estava quase conseguindo pegar o filhotinho de passarinho.

Que não voava, propriamente. Apenas uns voozinhos curtos e rasantes, alternados com uns pulinhos igualmente ineficientes.

Até que todos, perseguidores e perseguido, foram dar nos alojamentos dos Invencíveis.

Havia uma porta aberta.

A porta aberta dava para um local pequeno e escuro. Um banheiro.

O passarinho achou que era um lugar seguro e entrou.

E caiu. Dentro da privada.

Todos pararam. Só se escuta o chapinhar cada vez mais aflito do filhote dentro da água da privada.

O David dá mais um empurrão em um Turminha Legal  que bloqueava a porta, mergulha a mão na privada e salva o filhote. Nessa mesma hora chega um Invencível e acende a luz.

O banheiro estava limpíssimo. O Invencível diz:

— Deixa que eu seguro o bichinho enquanto você lava a mão na pia.

Que tinha sabonete e toalha também muito limpa.

Todos os outros se afastam. Nenhum deles conseguiria fazer isso, nenhum.

O Invencível continua:

— Leva a toalha para embrulhar o bichinho até ele secar, depois você me devolve.

David e o Invencível sorriram um para o outro.

E criaram um laço, desses que ficam.

Os Invencíveis são sujos.

Os Invencíveis são feios.

Os Invencíveis não fazem nada direito.

Três frases que o David passou a combater.

Há Invencíveis sujos e há Invencíveis limpos como em qualquer outro grupo.

Há Invencíveis bonitos e feios, como em qualquer grupo.

E há os que trabalham bem e os que não.

E os Invencíveis não deviam ser um grupo separado.

E foi isso que o David aprendeu.

Que os Invencíveis, gente, não deviam ser um grupo separado.

 

Eu tinha contado a história do livro de poesias da casa do meu namorado e conseguido uns pálidos sorrisos de aprovação. Como Arma Secreta, não foi exatamente um sucesso. Aqui e ali algum sinal de recuperação, o Felipe se abanando, o Fábio voltando a murmurar alguma coisa.

Não berrar, murmurar.

Não pizza, pizza, mas migalhinha, migalhinha.

Não era ótimo, mas já era um começo.

E agora o Invencível na porta pedia licença para entrar.

Ele falou que tinha um recado. Que alguém tinha ligado para saber dos N.Ó.S. e que ele tinha dito que estavam todos estudando na Biblioteca.

Falou também que tinha decidido que hoje era dia de limpar a porta do Castelo. E que ele ia jogar água com sabão na porta do Castelo. E que não ia poder ficar ninguém na porta do Castelo.

Todo mundo continuava com cara de zumbi.

Então ele especificou.

— Falei para os P.A.I.S. que eles tinham de sair de lá por causa da faxina. Os Turminha Legal também saíram.

Ele fazia a parte dele, tirando um pouco da pressão.

O Henrique, sempre pronto a confraternizar, conseguiu se mexer. Disse:

— Ah, que bom. Obrigado, hein.

Mas o resto continuava na maior apatia.

É assim mesmo. A Grande Batalha Contra O Desânimo Sideral é complicada mesmo.

Tentei um golpe sujo:

— Bem, vou aproveitar a interrupção aqui do Invencível e vou embora.

Todo mundo respondeu está bem. E quando eu já estava virada para a porta, uma voz acrescentou:

— Obrigado.

Eu podia pegar uma vassoura velha, até mesmo a que estava ali, perto do Invencível, e ir embora cuidar da vida. Com isso ainda escapava da chuva. Mas não.

Sentei em uma cadeira. Eu já disse, louca. Ou melhor. Teimosia 20.

O silêncio era terrível.

O livro de Física 2 estava lá, aberto na página 12, mas ninguém lia. Até o David, com quem eu contava nessas horas, estava com o olhar parado olhando o nada.

Aí tentei mexer a sobrancelha para cima e para baixo, olhando para o David, como quem diz: nós é que sabemos das coisas.

Ele continuou me olhando sem me ver.

Mexi a sobrancelha outra vez.

Ocorreu-me, nessa segunda vez, que eu estava mexendo a sobrancelha porque a sobrancelha era a única coisa que dava para ser mexida. Tentei, disfarçadamente, mexer um dedo da mão. Batata. Neca.

Era ele, O Inominável.

O Terrível Inimigo contra-atacava e agora estava quase me vencendo, a mim também.

Era o Demônio De Todos Os Tempos. O Maior De Todos.

O MASSACRANTE DESÂNIMO SIDERAL.

David me olhava como os outros, mas eu percebi que ele na verdade não me olhava. Olhava através de mim. Para algum ponto obscuro às minhas costas. Eu não precisava nem me virar para saber. Ele olhava para ele mesmo saindo pela porta. Seu corpo já havia sido tomado, os outros não tardariam.

Henrique tinha um resto de sorriso educado na cara, mas já dava para ver, pelo canto dos lábios, que se tratava de gesso: ao menor ventinho o sorriso quebraria.

Jonathas nem disfarçava, estatelado no chão e dizendo eu sabia, eu sabia.

Tentei lembrar de alguma piada. Às vezes piada resolve. Não consegui.

O Felipe, já com a voz fina de desespero, lembrou:

— Não há nada que um ctrl-alt-del  não resolva.

Isso me deu um clarão de esperança. Quem sabe um dos Barbudinhos, que resolvem coisas incríveis, não tinha uma idéia?!

Mas o Invencível tirou um papelzinho do bolso.

Ele tinha estado no subsolo antes de vir à Biblioteca. Havia quatro Barbudinhos lá, cada um, como de hábito, em frente a uma tela.

Mas eles estavam todos com a cara branca, parados, olhando uma mesma frase que aparecia em todas as telas.

O Invencível tentou falar com eles, mas eles não responderam. O Invencível tomou nota do que estava escrito na tela.

Era: backup not found: (a)bort. (r)etry, (p)anic.

— Talvez algum de vocês saiba o que quer dizer isso?

Ninguém respondeu.

A  primeira etapa da Grande Batalha tinha sido eu, contando a minha história. Vitória, embora minguada, dos N.Ó.S. A segunda etapa, promovida pelo David, tinha sido a vinda do Invencível. Vitória, um pouco maior dessa vez, também dos N.Ó.S.  A terceira etapa era uma revanche do Inimigo, e essa revanche leva os Barbudinhos e até mesmo a mim, quase, para as profundezas abissais do Desânimo.

Ou seja, basicamente um empate.

E agora o quê?

Batem na porta outra vez.

Os mais afoitos acharam que todos nós já tínhamos morrido sem nem notar e que era a Deusa Mor em pessoa, para nos comunicar as regras do paraíso.

 

A ação – parte 3

 

Era o final da Grande Batalha.

Não era hora de interromper.

Os poucos que ainda podiam ser considerados vivos – não dava para saber exatamente quantos, porque para isso eles teriam de fazer uma conta, o que estava fora de cogitação -, os poucos, então, que ainda estavam vivos, se empenhavam em uma luta de Vida Ou Morte.

Ninguém tinha possibilidade, ou vontade, de abrir a porta.

Absolutamente imóveis, olhando o ar, babando uns, nariz escorrendo os outros, vendo o pó dos livros da Biblioteca cair sobre suas cabeças.

Telepaticamente, ainda faziam um esforço.

— Um, dois, um, dois, esquerda, direita, e agooora, virar! Vinte vezes deste lado, vamos lá!

Mas só o pensamento ainda se movia, e mesmo assim pouco, como se vê. O resto já havia abdicado ao Grande Inimigo, à Palermice, à Pasmaceira, à Bestificação, também chamada de A Dama Gelada pelos antigos.

Bateram outra vez.

Veio uma vozinha:

— Com licença?

— …

— Daqui que pediram uma calabresa? É que não tinha ninguém lá na porta do Castelo..

Foi como se um raio tivesse caído em cima do Fábio, que todos já davam por morto.

Levantou-se num cotovelo.

— Sim! Sim!

Não é para ninguém achar que pizza calabresa é a única maneira de definir uma Grande Batalha Contra O Desânimo Sideral. É apenas uma das maneiras.

Há outra.

É usar, por assim dizer, as armas do inimigo.

É levar ao extremo a inércia, a pasmaceira.

Pode-se ficar sentado sem fazer absolutamente nada horas a fio.

Algumas correntes de estrategistas dizem que uma televisão ligada em qualquer coisa ajuda. Depois de horas exaustivas passadas dessa maneira, em geral a dormência nas pernas ou a baba ensopando a camisa ou, outras vezes, moscas, mostram ser Aliados Fiéis. A pessoa tenta enxugar a baba, espantar a mosca, mexer o pé e, assim, escapa.

O rapaz da pizza olhou em torno e pôs a pizza em cima de uma enciclopédia contendo tudo a respeito do mundo até 1956, a data da edição.

E aí disse:

— São vinte e uma pratas e vinte e cinco centavos com o refrigerante e o brinde.

O silêncio era devastador. Mesmo o Fábio, que tinha tido uma reação tão promissora, agora parecia ter problemas para se mexer.

O rapaz coçou a orelha. Olhou para o Invencível:

— É ruim, hein!

Quem estava mais perto dele era o Felipe. O rapaz meteu a mão no bolso do Felipe. Tirou cinco notas e um chiclete. Minha bolsa estava na cadeira.

— Mais três pratas – disse ele sacudindo no ar as notas, para que ninguém pusesse em dúvida sua honestidade.

Depois olhou para mim com cara feia. Eu era a única mulher, consequentemente, a única possibilidade de ser a dona da bolsa. O olhar dele queria dizer: Mas logo a senhora, com a aparência tão fina, só com três merrecas na bolsa?!

Se eu não estivesse no meio da Batalha Que Resolveria O Destino De Todos Nós E Do Resto Da Humanidade, eu teria respondido: Saí desprevenida, pensando que ia voltar logo.

Mas ele continuava a busca. Quando acabou, tinha vinte e um reais e vinte centavos. Parecia zangado. Não entendíamos por quê. Será que ele não sabia que Tudo Daria No Mesmo e que O Fim Estava Próximo?

Ele já ia saindo quando viu uma moedinha de dez no chão.

— Obrigado, viu, gente, pela gorjeta de cinco.

E foi nessa hora que ele também foi atingido. Olhou o dinheiro na mão, ainda tentou se apoiar no batente e desmoronou no chão, perto da porta mesmo.

Ainda murmurou no meio de um riso desconexo:

—  Cinco centavos!

E caiu em um choro convulsivo. Depois ficou imóvel, nariz escorrendo, olhos parados.

O Grande Inimigo, O Desânimo Total fazia mais uma vítima.

A Batalha estava duríssima.

Não nos restava mais nada.

Fizemos um esforço mental conjunto para ver se a chuva desabava logo.

Já houve casos em que um trovão, uma pancada grossa de chuva quebraram o ritmo de Batalhas dadas por perdidas. A Humanidade teve de correr para não se molhar, tirar a água dos olhos, dizer: poxa, baita chuva! E assim, com esses gestos aparentemente banais, conseguir afastar mais uma vez sua transformação em uma Raça de Zumbis.

Transformar a Humanidade em uma Raça de Zumbis é o Objetivo Final, como todos sabemos, do Grande Inimigo, da Coisa Ruim, do Poço Sem Fim, O Desânimo Total.

Mas nem isso aconteceu.

Não sei dizer quanto tempo durou.

Sei que quando olhei para minha mão, tinha um screen saver correndo pelas unhas.

E aí tudo mudou.

Foi a voz do Invencível, vindo de muito longe, dizendo:

— Bem, me passa aí a vassoura que eu vou começar a limpeza.

Coisas a fazer. Coisas que precisam ser feitas, todos os dias, coisas bobas, mas que precisam ser feitas. Foi isso. Eu acho.

A pizza estava dura, igualzinha a um mouse pad. O refrigerante estava choco e o brinde, um sorvete, era uma espuma malcheirosa em cima da enciclopédia que assim ficou mais abrangente. Se ela antes continha tudo sobre o mundo até a data de sua edição, 1956, agora passava a contar com elementos que hoje são usados na indústria de alimentos e que eram totalmente desconhecidos em 1956.

Ainda ficamos uns tempos sentados, na mesma posição, olhando em torno.

Aos poucos, muito aos poucos, fomos nos dando conta.

Mais uma vez tínhamos afastado – ao que parecia – o Perigo Hecatombístico Da Inércia Absoluta.

Fomos nos mexendo devagar.

Não é todo dia, não, estão pensando o quê?

Tem de ser aos poucos. Se não, pode até dar distensão muscular.

Primeiro um pé, depois um pescoço. Uma espreguiçada aqui.

O marco definitivo de que havíamos vencido veio do David, o primeiro a falar alguma coisa:

— Página 12 do livro de Física 2, gente.

Todo mundo abriu.

A Grande Batalha tinha chegado ao fim.

Peguei minha bolsa, disse ciao para o rapaz da pizza que, já de pé outra vez, saía resmungando:

— Cinco centavos. Da próxima vez não venho.

Disse ciao também para os meninos. Estava começando a chover, era melhor me apressar. E, com chuva ou sem chuva, eu ainda precisava ver o que ia fazer para o jantar.

Quando passei pelo pátio, eu estava lá, menininha, me esperando. Entrei em mim. Ainda, só assim, de brincadeira, subi no muro e pulei mais uma vez, fazendo uma estátua belíssima que ninguém viu. Mas rimos, eu e eu. E saímos contentes, pulando as poças d’água.

Cantarolei uma canção antiga.

Ou será que não era antiga?

 

Há muitas coisas que podem provocar o Inimigo. Mas uma delas é jogar joguinhos onde tudo acontece, armas a laser, portais do tempo, inimigos siderais e grandes batalhas. Os joguinhos parecem ser tão, mas tão mais interessantes que o Grande Jogo, A Vida, que uma vez acabados a pessoa pode, sim, ficar estirada em um sofá, em uma poltrona, sem se mexer. Então, é este o convite.

Vamos jogar um jogo agora, todos nós. Neste exato momento, eu quero dizer. Há algo importante a ser dito. Há sempre algo importante a ser dito, e neste caso é que somos nós os participantes e os inventores do jogo.

É o mais importante, é sobre isto o resto todo: somos nós. E é agora.

Fim

 

Bibliografia

Este jogo pôde ser feito porque eu:

– li todos os jornais; li todas as revistas; li todos os livros que me caíram nas mãos, que não me caíram nas mãos mas eu fui buscar, que me interessaram, que não me interessaram, mas que eu li assim mesmo;

– sei que os limites somos nós que fazemos. Então é o seguinte: quem está fora da Biblioteca, que trate de entrar. Mas quem está dentro há muito tempo, saia, vá para a vida.

 

Última Notinha Muitíssimo Importante

Acho que aqui, antes de acabar, é o momento de voltarmos à questão dos limites e à questão da linguagem, o que é De Fora e o que é De Dentro. Os limites do mapa, feitos a lápis (é o que aconselho, temos de apagá-los tantas vezes que se forem feitos a caneta, ou a ferro e fogo, o resultado seria uma confusão), os limites, aqueles feitos a lápis, não são os principais limites.

Os principais limites são invisíveis, impalpáveis, nos enganam.

Queria falar da linguagem. É preciso prestar atenção na linguagem. Os limites da linguagem são dos mais frágeis que há. E ela pode ser o primeiro campo de batalha a dar a vitória a um outro tipo de inimigo.

Prestem atenção. O jogo já começou. Prestem sempre muita atenção.