A conversa que nunca tive com Elvira Vigna

SAAD, Vera. A conversa que nunca tive com Elvira Vigna. In: Vício velho, n. 23, Nov. 2021. Disponível em: <https://viciovelho.com/2021/11/03/a-conversa-que-nunca-tive-com-elvira-vigna-vera-saad/>. Acesso em: 06 Nov 2021.

Coluna | Palimpsesto

Artigo de Vera Saad

 


 

Quando meu blog Palimpsesto completou 10 anos, em março de 2017, escrevi sobre o livro de uma das minhas escritoras favoritas, Elvira Vigna, lançado no ano anterior. O título do romance? Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. Além de ser uma redondilha maior, o título carrega Palimpsesto no nome, como meu blog e esta coluna, pela qual eu vos escrevo.

A estrutura da narrativa se assemelha de fato a um palimpsesto, através das muitas histórias de João. Não sei por quê, me lembrei do Apocalipse, daquele João que viu e ouviu, daquela prostituta devorada pelos dez reis.

O que mais gosto nos romances de Elvira Vigna, além dos crimes, é a cumplicidade entre as mulheres. A relação entre as personagens do livro na verdade lançou um olhar mais doce na minha relação com as personagens da minha vida, mãe, avó, tias, irmãs, primas, amigas. Secretamente, sempre imaginei como seria se um dia me encontrasse com a escritora. Se viveríamos o mesmo que suas personagens.

Esse dia haveria de acontecer, e aconteceu. Em 2015. E eu, bem, eu não fiz nada além de ficar meio abobalhada, querendo e não querendo dizer seu nome. Ela estava na calçada com um amigo, no sentido oposto estava eu, com uma mochila enorme, meio aberta, meio fechada, olhos ao chão e cabeça à lua.

Um segundo. O tempo que durou para que a visse, reconhecesse e encurvasse ainda mais as costas, pelo peso da mochila e da hesitação entre dizer e não dizer seu nome. Continuamos nossos caminhos. Na direção oposta uma da outra.

O nome, ainda o dizia em pensamento, seguido de uma conversa que nunca existiu. Mulheres falam, e como falamos nessa conversa que nunca existiu. Ela me disse da mãe, da nossa sina por termos nascido com buceta neste mundo. Do corpo que viu cair. Da amante do marido que forçava um sotaque espanhol e que virou sua amiga. Da minha xará que sofria por um homem casado. Das coisas que os homens não entendem (vim a saber por ela que, apesar da “má” fama, o título de seu livro foi extraído de um verso de Camões).

A conversa nunca existiu, mas em março de 2017, quando meu blog completou 10 anos, percebi que a cumplicidade, de fato, existia. Entre leitora e escritora. Talvez seja esta melhor até que a conversa, porque por ela invento outras conversas possíveis e impossíveis – impossíveis desde 10 de julho de 2017, alguns meses depois da minha postagem no blog e um dos dias mais tristes para a literatura brasileira, se não para a literatura brasileira ao menos para mim.

 

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Vera Saad é autora dos romances Dança sueca (Patuá, 2019) e Telefone sem fio (Patuá, 2014) e do livro de contos Mind the gap (Patuá, 2011), é jornalista, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP e doutora em Comunicação e Semiótica também pela PUC – SP. Ministrou no Espaço Revista Cult curso sobre Jornalismo Literário em 2012. Tem participações nas revistas Cult, Língua Portuguesa, Metáfora, Portal Cronópios e revista Zunái. Vencedora do concurso de contos Sesc On-line 1997, avaliado pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão, foi finalista, com o romance Estamos todos bem, do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana. Seu romance Dança sueca foi selecionado pela Casa das Rosas para o projeto Tutoria, ministrado pela escritora Veronica Stigger. Mantém uma coluna na revista Vício Velho.

(Imagem @renatoparada)