A breve história de Asdrúbal, o Terrível, 1971-1983

ELVIRA VIGNA: INFANTIS – A breve história de Asdrúbal, o Terrível (a coleção Asdrúbal, o terrível é composta de quatro livros independentes para ordem crescente de idade com várias edições individuais entre 1971 e 1983; inicialmente pela Bonde/INL-MEC, depois pela José Olympio e Miguilim; cada livro tem 78 páginas)
– edições especiais para o ‘Clube do Livro’ dos dois primeiros títulos, 1981;
– participação no programa salas de leitura da FAE, 1985, dos três primeiros títulos.

 

arquivos internos de ‘infantis’:
a verdadeira história de asdrúbal, o terrível
asdrúbal no museu
o triste fim de asdrúbal, o terrível
viviam como gato e cachorro
a pontinha menorzinha do enfeitinho do fim do cabo de uma colherzinha de café
uma história pelo meio
problemas com o cachorro?
lã de umbigo
mônica & macarra
o jogo dos limites – trecho
o jogo dos limites – oficina escolar
vitória valentina (graphic novel)

críticas

 

 

 

 

 

fora de catálogo, texto integral

 

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Asdrúbal e suas maldade

Asdrúbal, o Terrível, vinha andando muito satisfeito, assobiando a marcha fúnebre. Tinha acabado de cuspir em uma borboleta e contava ainda em fazer um pipi caprichado em cima dos mariscos da praia.

Asdrúbal era um monstrinho ainda dos seus 700 anos de idade que adorava fazer maldade com todo mundo que morava perto dele. Sua mãe sempre dizia:
— Asdrúbal, cuspir em borboletas não adianta nada porque depois que elas secam tornam a voar por aí enfeitando tudo. Você tem que aprender a fazer maldades maiores, como seu pai.

O pai de Asdrúbal era Sigmundo, o Horroroso. Sua especialidade: entrar nos sonhos das pessoas, transformando-os em pesadelos.

 

 

Leninha fica mais limpa

– Ufa! Ainda bem que tem sol!

Leninha, a borboleta, acabando de se secar ensaiou um voozinho e partiu direto para o canteiro de flores.

— Esse Asdrúbal é uma peste. E como enxerga bem! Não adiantou nada eu fingir que era papel picado, me pegou direitinho. Bom, mas eu estava mesmo precisando de um banho.
Leninha cumprimentou todas as flores suas amigas e depois ficou de papo com o besouro que era contralto no Coro Noturno do Jardim.

Em dia de espetáculo, Leninha costumava tocar címbalo, mas tocava mal porque era muito distraída. Vivia levando pito do maestro.

Nessa noite ia ter concerto para festejar o nascimento da margarida, cuja semente a abelha tinha trazido de um outro jardim.

Bom, gente, então até as 7 horas, prometo não me atrasar dessa vez.

— Até logo, Leninha, e vê se treina um pouco de tarde, hein?

Depois que Leninha saiu, o besouro comentou com o sapo-maestro:

— Você ouviu? Asdrúbal tornou a pegar a Leninha. Será que ele vem estragar a nossa festa de hoje à noite?

 

Asdrúbal ataca outra vez

Asdrúbal agora tinha se deitado ao sol, espiando as nuvens lá do céu.

Imaginava como seria bom se pudesse espantá-las a todas com um vento uivante ou com uma tempestade ameaçadora.

Entregue preguiçosamente a esses agradáveis pensamentos nem percebeu a chegada de um gatinho que, como ele, vinha procurar o sol para tirar uma soneca. Asdrúbal estava cansado. Tinha quebrado cinco conchas, roubado a espuma de duas ondas e obrigado uma tartaruguinha a permanecer dentro do casco durante três horas seguidas, à força de fazer caretas e ruídos horripilantes.

Quando reparou, o gato já estava todo estirado, alisando os bigodes e se preparando para dormir. Era a hora. Pé ante pé – e olha que Asdrúbal tinha seis pés – o monstro horrível foi se chegando…

 

 

Um gatinho e um caranguejo

Tchibuummmm!!! A última coisa que o gatinho ouviu antes de mergulhar foi a gargalhada de Asdrúbal, aquele sem-vergonha, moleque, desocupado. Agora era tarde para lamentações. Rolando que nem pedra, o gatinho já estava quase no fundo do mar.
— Vou morrer! Não sei nadar!

O gatinho tremia de medo, sem coragem nem para abrir os olhos.

— O senhor está passando bem? Não abre os olhos por quê? Estão ardendo?
O gatinho pensou que era sonho: onde já se viu escutar vozes no fundo do mar?
Em todo caso arriscou uma olhadela. Na sua frente estava um caranguejo já velho, de óculos.
— O senhor se parece um pouco com um amigo que eu tive, o Alípio. Só que ele era um cachorro e o senhor parece ser um gato.

— S-sim, e-eu… e-eu…

— O senhor é gago, já sei. Não precisa se envergonhar. Gagueira se cura. Pior é esse pelo todo arrepiado. O senhor já ouviu falar em gumex?

— Há, há, há – riram os mariscos lá atrás.

— Estão rindo de quê, seus burros? O visitante pelo menos tem pelo, bigodes respeitáveis e uma cauda. E vocês que nem isso têm, hein?

Os mariscos se calaram e o caranguejo piscou um olho para o gatinho.
— Não ligue não. São mal-educados assim mesmo.

— Bem, muito prazer em conhecê-lo, mas agora eu tenho que voltar para a praia porque senão eu morro afogado, eu não sei nadar e …

De repente o gatinho percebeu que já estava há um tempão embaixo d’água.
Sem sentir, ele tinha perdido o medo durante o bate-papo com o caranguejo. E o que era mais impressionante, já estava respirando que nem os peixinhos, pela bochecha.
— Nossa! Não é que eu aprendi a respirar embaixo d’água!

— Ora, nada mais fácil. O meu amigo, o cahorro Alípio, além disso também sabia fazer um ipsilone com a cauda.
— Puxa! Mas que bacana! – O gatinho ensaiou umas cambalhotas de contentamento e abocanhou três sardinhas que passavm.

— Ei, vamos com calma!

— Desculpe, desculpe. É que eu estou muito contente! Sempre quis aprender a respirar embaixo d’água e nunca consegui. Nem mesmo molhar a pontinha do rabo, de tanto medo do mar. Desculpe, mas eu vou correndo contar a novidade lá para a turma.
– Ciau! Apareça quando quiser, ou melhor, sempre que não estiver com fome…

 

 

Uma reunião monstruosa

Os monstros estavam todos reunidos na casa de Asdrúbal, bebendo um coquetel de óleo de rícino com bolachinhas de pimenta.

— Precisamos mudar nosso estatuto. Assim não pode continuar. Vejam vocês, enquanto eu, apesar da idade avançada (tio Nicósio se orgulhava muito de seus 2.543 anos de idade), trabalho que nem um escravo de manhã até de noite, outros não fazem quase nada.

Tio Nicósio era encarregado de assustar galinhas durante a noite, fazer barulhos suspeitos dentro do quarto, fazer a comida do almoço ficar fria, chover a tarde inteira. Enfim, tio Nicósio realmente trabalhava muito.

— Olha quem fala – retrucou o pai de Asdrúbal. – E eu, que tenho que fazer 10 pesadelos por expediente, acha que é mole? Passo as noites em claro e isso sem falar no trabalho que dá me fantasiar de rinoceronte, de caveira e de mim mesmo.
— E quem é que azeda o leite dos gatos, põe pedra no sapato dos meninos, quem é??? (A prima Eustáquia estava ficando realmente zangada.)

Num instante o tumulto estava formado. Cada um achando suas maldades maiores que as dos outros.

— Quem quebrou aquele pé de hortênsia? Eu!

— Grande coisa, queria ver você cariar cinco dentes de uma vez, como eu fiz semana passada!
— Silêncio! Silêncio! Assim não é possível! Lembrem-se que, além do estatuto, temos que resolver de uma vez por todas se Asdrúbal já pode entrar no Jardim das Maldades, ou se continua mais um ano no Maternal.

Todos ficaram quietos. Mesmo os mais velhos respeitavam seu Tenebroso, o monstro mais terrível da terra, que sabia maldades de atemorizar até a si mesmo. E eis que, no silêncio que assim se fez, todos escutaram uma musiquinha que vinha de longe.

 

 

Muita música, muita dança

O sapo fez uma reverência e agradeceu os aplausos. Alguns pediam bis, bis e o sapo, muito vaidoso, não perdeu a oportunidade para mostrar de novo seu talento. Pigarreou, confabulou com as minhocas do corpo de baile, piscou para o grilo do piano e, com a varetinha de maestro, reiniciou “Minha poça d’água adorada”. Os mosquitinhos começaram a dançar. A lagarta verde, extasiada, lançava suspiros em direção ao sapo. Elegantíssimo em um fraque, ele fingia não reparar, embora estivesse estourando de orgulho por causar tanta emoção. O besouro, comandando o coro de lagartixas, sorriu para acalmar a borboleta, nervosíssima com medo de errar outra vez.

 

“Como é bom brincar

Na poça d’água quentinha

Em noite de luar, luar, luar”

 

Os vagalumes se acenderam no canto do palco e a libélula entrou piruetando, vestida de baiana rica. Mas quando o balé acabou, as palmas foram menos entusiasmadas, pois as pessoas já estavam ficando cansadas. Um sereninho caía, o que deixava as minhocas contentes, mas desagradava aos mosquitos. O sapo, vendo que estava na hora de acabar, atacou o Hino dos Jardins:

“Jardiiim maravilhoso

Cheioooo de encantos mil…”

Era a música que marcava sempre o final das festas.

Os bichos se levantando comentavam o sucesso:

— Pena que o sr. Louva-deus não tenha repetido o número das acrobacias!

— Qual você preferiu: o balé das libélulas ou o das minhocas?

— O das minhocas. Só que eu achei um pouco ousado demais. Enfim, é o tal do balé moderno, não?

— Você viu que bonita estava a borboleta?

— Pois é, ela me contou que um banho meio forçado realçou o brilho das asas.
Essa última frase foi dita pela lagarta verde ao passar por uma moita.

Atrás da moita estava escondido Asdrúbal, que como todos os monstros tinha ido ver que cantoria era quela. Quando Asdrúbal ouviu que a borboleta estava até mais bonita, quase morreu de tristeza. Treinar todo o dia para cuspir na borboleta e quando vê, a cusparada foi até um benefício.
– Você sabe. A borboleta não é muito afeita a banhos e sempre fica com aquela poeirinha nas asas. Pois hoje estava sem a poeirinha. Por isso estava tão bonita.
Asdrúbal só não chorou de ódio porque monstro não chora.

Os bichos foram pouco a pouco entrando em suas casas e no jardim deserto só restaram os monstros. Cada um com mais raiva do que o outro.

— Da próxima vez afogo logo aquela enxerida que se acha o fino só porque tem duas asas azuis.

Asdrúbal estava realmente possesso.

Muito deprimidos com a alegria e beleza presenciadas, os monstros se desejaram uma péssima noite e foram dormir.

 

 

Gatinho faz inveja

No dia seguinte, Asdrúbal sofria outro revés na sua luta contra os bichos.
Sua vítima, o gatinho, contava para os amigos, tintim por tintim, sua aventura.
— Aí, eu…

— Oh! A gatinha suspiradora nem estava mais ouvindo o que o mergulhador dizia. Só pensava em como deveria ser emocionante saber ela também respirar embaixo d’água…

 

 

Um amarelo diferente

A margarida que tinha sido homenageada pelos bichos do jardim estava agora mais crescidinha e já começava a preparar uma flor.

Todos os bichos, ao seu redor, esperavam para ver a flor nova. Mas a margarida, preguiçosa, não tinha pressa alguma. Quando enfim pôs uma pétala para fora, soltou um suspiro de satisfação: estava batendo uma brisa tão agradável…
Seu enlevo foi interrompido por uma série de ‘cruzes!’, ‘ahn!’, ‘ais!’, ‘credo!’, ‘virge!’.
Olhando para baixo, a margarida viu uns bichinhos engraçados com cara de espanto.
— Nossa! A margarida tem a mesma cor que o Asdrúbal!

— Ai que susto! – falou a baratinha, que já tinha ensaiado uma corrida.

— Mas até que nela o amarelo fica bonito.

A margarida rapidamente estendeu as outras pétalas e, muito curiosa, logo quis saber quem era aquele pessoalzinho.

— Muito prazer, sou a lagarta verde. Às vezes como uma folhinha aqui, outra ali, mas de resto sou de muito boa paz.

— Eu sou a abelha. Eu é que te trouxe lá do jardim do vizinho, quando você ainda era assinzinha.
Feitas as apresentações, a margarida perguntou quem era esse tal de Asdrúbal. Ficou horrorizada.
— Ele provavelmente vai querer logo quebrar teu caule ou pintar tuas pétalas de preto. Se isso acontecer não se preocupe. Existe o Grupo da Resistência, especializado em colar folhas partidas, pôr tala em asas quebradas. É um grupo de velozes mosquitinhos que nas horas vagas ficam zunindo nos ouvidos dos monstros.

 

 

E por falar em Asdrúbal

Bem perto da estrada tinha uma flor enorme, apetitosa, linda, se balançando ao vento. Saindo da flor tinha um barbantinho disfarçado de teia de aranha, que ia dar diretamente na mão do Asdrúbal, escondido atrás de uma moita. A flor era de plástico e Asdrúbal estava tentando, pela trigésima quinta vez, pegar a borboleta azul. De vez em quando ele mexia com a mão para a flor se balançar, lá longe, e atrair a borboleta mais depressa.

— Hoje eu pego. Hoje eu destruo, aniquilo, acabo, mato, sumo.

Estava tão contente com seu invento que nem ouviu aquela vozinha atrás dele:

— Psiu… seu Asdrúbal… psiu…

Quando Asdrúbal se virou, viu uma gatinha branca, suando em bicas e olhando arregalado para ele.

Era a primeira vez que um bicho chamava por ele e Asdrúbal, de tão espantado, deixou cair o barbantinho da mão.

— Seu Asdrúbal… é o seguinte… o senhor… eu também queria…

Asdrúbal chegou mais para perto. Não estava ouvindo direito o fio de voz que saía da garganta da gatinha. Mas a gatinha, assustadíssima, desandou a correr assim que viu Asdrúbal tentando se aproximar. Asdrúbal deu de ombros e voltou a pegar o barbantinho do chão. Alguns instantes depois, a vozinha voltou:

— Seu Asdrúbal…

Agora a gatinha se mantinha prudentemente atrás da árvore.

— E-eu também queria conhecer o fundo do mar. Será que o senhor pode me dar um empurrãozinho, só para ajudar?

A gatinha, tremendo que nem vara verde, toda arrepiada, prendia a respiração.
Assim era demais. Asdrúbal nunca tinha sido tão humilhado em toda sua vida. Pedirem uma maldade, como se fosse um favor! Ousarem dirigir a palavra a ele, Asdrúbal, o Terrível. E o medo que todos tinham de ter? Asdrúbal ficou roxo de ódio.
Era demais. Lançou o olhar b.29 (só usado em ocasiões especiais) e, enquanto a gatinha desmaiava de medo, foi embora.

E nem reparou na borboleta azul que, enfim, estava chegando.

 

 

Parar para pensar

Asdrúbal, sozinho dentro de casa, pensava na vida.

Quando ele ainda era bebê, as coisas eram bem diferentes. O tio Nicósio e o seu Tenebroso determinavam o dia das flores se abrirem, a hora do sol dar sua voltinha e quantas músicas as cigarras podiam cantar por semana. Mas com a notícia de que aquele lugar era o ideal para monstros viverem, todos os monstros da redondezas tinham vindo morar ali. Os bichos começaram então a perder o medo. Era para mais de 12 monstros, cada um dando uma ordem diferente.

— Bem-te-vi só às terças e quintas, das 3h15 às 4h00 da tarde.

— Não, porque nesse horário eu costumo dormir. Bem-te-vi tem que cantar das 6h40 às 6h45 da manhã.

— Às 6h40 já tem cigarra. Cigarra com bem-te-vi vai dar uma cantoria insuportável.
As discussões eram intermináveis e os bichos se aproveitaram disso. Cantavam na hora que bem entendiam. Quando algum monstro vinha para castigar o faltoso, o bicho dizia ter recebido ordem de outro monstro. A confusão se instalou. Logo depois, os monstros souberam que os bichos tinham criado o tal Grupo da Resistência. No começo, só de pensar em um bando de mosquitinhos com o glorioso nome de Grupo da Resistência, Asdrúbal morria de rir. Mas agora, depois do pai ter sofrido um ataque deles, evitava-se falar neste assunto dentro de casa.

— Asdrúbal, você viu algum passarinho azul para estar assim tristonho?
Era a mãe de Asdrúbal chegando das compras. Compras é maneira de dizer, pois esta senhora resolvia seus problemas de maneira diferente: ia passando e pegando ovos de passarinho com broto de samambaia, milho das galinhas com mel de abelhas. Era passar e pegar.

Pelo menos isso não tinha mudado, pensou Asdrúbal.

— Se você está triste, meu filho, eu também estou. Imagine você, eu estava passando pela casa do ratinho e enfiei a mão lá dentro para pegar o queijo da sobremesa e levei uma dentada!

Asdrúbal não se conteve e fez o que monstro não faz:

— Buáááá…

— Meu filho! O que é isso… Não precisa ficar assim tão triste, eu soprei um bafo bem fedorento lá dentro e o ratinho teve que entrar em tenda de oxigênio para se recuperar. Asdrúbal, meu filho … para de chorar …

— Buááá…

— O que esse menino tem para chorar desse jeito? – Era o pai de Asdrúbal chegando do trabalho.

— Nada, eu estava contando a ele como ratinho… Querido! O que foi isso no seu nariz??
— Nada, bolas! Ralei sem querer e pronto, não se fala mais nisso.
Asdrúbal parou de chorar e olhou o pai. O nariz dele estava vermelho, igual ao dia em que ele tinha sido atacado pelos mosquitinhos do Grupo da Resistência. Outra vez.
Asdrúbal ficou pensando, pensando … Talvez esses mosquitinhos não fossem tão bobos assim…
O pai de Asdrúbal sentou-se pesadamente na cadeira:

— Acho bom a gente tirar umas férias…

 

 

Rumo à Argentina

Em um canto, a barata de estimação de Asdrúbal esperava pacientemente o seu dono acabar a arrumação das malas.

Em outro canto, Asdrúbal enrolava seu jogo de teia-de-deixar-aranha-maluca, enquanto resmungava irritadíssimo: “Argentina! Aposto como é outra droga!”
O pai tinha resolvido fazer a viagem sem falar com ele, logo depois daquele dia em que chegara pela segunda vez com o nariz vermelho e inchado.
— Meu filho, ande depressa senão a gente perde a carona da frente fria que está voltando para o Pólo Sul.

— Meu filho, escute o que eu estou dizendo: aqui não é mais possível. As maldades da gente já não funcionam mais. Todos os bichos já estão cansados de saber todas elas de cor e salteado. E depois que uma maldade se torna muito conhecida o medo das pessoas diminui. Todos nós, os monstros, sempre tivemos esse problema: imaginar novas maldades. Já falei com o Nicósio: vamos prestar exame de doutorado em monstrologia. Quem sabe se com mais técnica a gente consegue voltar aos dias de glória de antigamente.

A única contente era a barata de Asdrúbal que, muito cínica, só para irritá-lo, cantava baixinho:
— Corrientes 348, segundo piso…

Asdrúbal deu um pontapé na barata e foi o tempo de saírem todos correndo atrás de um relâmpago que passava.

 

 

O vento-correio

Só as formigas não notaram nada.

Tão acostumadas a andar e trabalhar de cabeça baixa que nem viram a poça d’água dançando samba ao vento, o sol lançando cada raio de uma cor diferente e todos os bichos de roupa nova.

Era uma manhã de quarta-feira e deveria estar chovendo, segundo o boletim meteorológico. Mas o boletim meteorológico se enganou nesse dia e em todos os outros que se seguiram. Durante um ano fez sol todo dia, pois o vento tinha prometido:
— Em homenagem à partida dos monstros dou minha palavra que doravante espalharei sempre as canções dos bichos e só trarei boas notícias, boas notícias, boas notícias…
Os bichos ficaram ouvindo o eco.

O vento já estava longe.

Talvez na Argentina, transformado em furacão e alegrando os monstros.
Na Argentina, os monstros neste momento ouviam o assobiar de um vento forte pela janela da sala de aula:

— Muito bem. Nossa primeira lição é referente a como não se deixar influenciar pela alegria reinante, este vírus que pode corroer o planeta.

Asdrúbal, sentado em sua carteira, roeu a ponta do lápis, olhou pela janela cinzenta e suspirou: na Argentina não tinha nenhuma borboleta azul para distraí-lo no intervalo das aulas.